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Livre docencia silvio yasui

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SILVIO YASUI 
 
 
 
 
 
 
 
VESTÍGIOS, DESASSOSSEGOS E PENSAMENTOS 
SOLTOS: 
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E A REFORMA 
PSIQUIÁTRICA EM TEMPOS SOMBRIOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Assis 
2016 
 
 
 
 
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA 
 
 
 
 
 
 
 
VESTÍGIOS, DESASSOSSEGOS E PENSAMENTOS 
SOLTOS: 
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E A REFORMA 
PSIQUIÁTRICA EM TEMPOS SOMBRIOS 
 
Trabalho apresentado à Universidade 
Estadual Paulista – Campus de Assis 
como parte dos requisitos para a 
obtenção do título de livre-docente em 
Psicologia e Atenção Psicossocial. 
 
 
SILVIO YASUI 
 
Assis 
2016 
 
 
SILVIO YASUI 
 
 
 
 
 
VESTÍGIOS, DESASSOSSEGOS E PENSAMENTOS 
SOLTOS: 
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E A REFORMA 
PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA EM TEMPOS 
SOMBRIOS 
 
 
Banca Examinadora 
 
 
 
 
 
1. 
 
 
2. 
 
 
3. 
 
 
4. 
 
 
5. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DEDICATÓRIA 
 
A Helô 
Aos meus amigos 
Aos meus alunos 
Por uma vida como obra de arte 
Por um outro mundo possível 
Resumo 
 
 
O presente trabalho é exigência para a obtenção do título de livre docente e tem 
como objetivo fazer uma revisão crítica da produção bibliográfica do autor. Trata-
se aqui de uma releitura que tem a pretensão de ser, também, uma recriação 
dos escritos que se articulam ao tema central da Atenção Psicossocial. O texto 
está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado Atenção 
Psicossocial: primeiros escritos, revisito três produções: um texto não publicado 
sobre o Projeto Lar Abrigado, um dos primeiros artigos publicados sobre o CAPS 
Luiz Cerqueira e a minha dissertação de mestrado. Neles, busco evidenciar 
alguns elementos e proposições que, escritos há mais de 20 anos, continuam 
com uma vitalidade que, talvez, valha a pena revisitar, visto que permanecem 
não só como princípios que inspiraram nossas práticas inaugurais, mas também 
como norteadores éticos e políticos necessários a este tempo presente. No 
segundo capítulo, Dois escritos sobre a Atenção Psicossocial e a Reforma 
Psiquiátrica, faço uma releitura de duas produções: um artigo publicado em 2003 
sobre Atenção Psicossocial e o livro de minha tese, publicado em 2010. Em 
ambas, apresento os temas mais significativos, acrescentando reflexões, 
reformulações e atualizações. Aqui, busco salientar os elementos que compõem 
o que podemos nomear como Atenção Psicossocial, em seus planos éticos, 
estéticos e políticos. No terceiro capítulo, Atenção psicossocial e outros escritos, 
faço uma reflexão sobre os artigos e capítulos de livro produzidos após a defesa 
de meu doutorado, agrupando-os em diferentes temas. Procuro articular os 
escritos no que apresentam de comum, acrescentando outras reflexões e 
atualizações. No quarto capítulo, Por uma Atenção Psicossocial menor e uma 
política da amizade, finalizo o trabalho evidenciando pensamentos apresentados 
ao longo deste texto, com a articulação de autores e conceitos, na busca de 
vislumbrar caminhos e forças para seguir adiante nestes tempos sombrios. 
 
Abstract 
This work was made to get the position of Associate Professor and aims to 
develop a critical review of author's bibliographical production. It intends to 
present a revised version of some ideas, and also a rebuilt off some old papers 
about the Psychosocial Care. The text was organized into four chapters. The first 
one, titled "Psychosocial Care: first texts," I re-examine three previous texts: an 
unpublished work about the Lar Abrigado Project; one of the first published 
articles about CAPS Luiz Cerqueira and my master's dissertation. In this section, 
I intend to evince how some elements and propositions, wrote twenty years ago, 
are still useful, and vigor. I argue that it is worthwhile to bring these items forward, 
once they were ones of the most important principles of Psychosocial Care and 
now they can be essential ethical and political guides to this days. The second 
chapter, "Two texts about Psychosocial Care and Psychiatric Reform," I rebuilt 
two documents: an article published by 2003 about Psychosocial Care, and my 
Ph.D. thesis book, released by 2010. The point here is to update and rebuilt the 
main aspects of the theme to distinguish the components of Psychosocial Care 
in the ethical, aesthetical and political sense. The third one, Psychosocial Care 
and new essays, I review some articles and book chapters produced after my 
Ph.D. thesis, and reorganize them. It was my intention to explicit the common 
points and update the information. The fourth chapter, "Supporting a minor 
Psychosocial Care and a friendship policy," I conclude highlighting ideas showed 
in the others sections and bringing some others authors and concepts searching 
for new paths and strength to move on during such darkies times. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp 
 
 
Y29v 
 Yasui, Silvio 
 Vestígios, desassossegos e pensamentos soltos: atenção 
 psicossocial e a reforma psiquiatria em tempos sombrios / 
 Silvio Yasui. Assis, 2016. 
 217 f. 
 
 Tese de Livre Docência – Faculdade de Ciências e Letras 
 de Assis – Universidade Estadual Paulista. 
 
1. Reforma Psiquiátrica. 2. Saúde Mental. 3. Atenção Psi- 
 cossocial. 4. Saúde Pública. 5. Psicologia comunitária. I. Tí- 
 tulo. 
 
 CDD 614 
 
 
Sumário 
Introdução ............................................................................................................................................... 6 
Capítulo 1 – Atenção Psicossocial: primeiros escritos... ................................................................. 11 
Primeiro escrito: Sobre o Lar Abrigado ......................................................................................... 11 
CAPS - Aprendendo a perguntar, 1989. ....................................................................................... 15 
Dez anos depois 1999 – a dissertação de mestrado. .................................................................. 20 
A porta aberta: acolhimento e o cuidado em liberdade ........................................................... 28 
Arranjos cotidianos para o cuidado ou inventando o Projeto Terapêutico ............................ 31 
Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer .......................................................................... 34 
Produzindo coletivos: a reunião geral, ensaiando a cogestão ............................................... 37 
Cotidiano: plano da reprodução, mas também da criação...................................................... 39 
CAPS Luiz Cerqueira ainda existe? .......................................................................................... 40 
Capítulo 2 – Dois escritos sobre a Atenção Psicossocial e a Reforma Psiquiátrica..................... 43 
Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na saúde mental coletiva .......................... 43 
Revendo o artigo... ...................................................................................................................... 47 
O doutorado 2006, o livro 2010...................................................................................................... 53 
A dimensão política: movimentos sociais e política pública ................................................... 55 
Atualizando e revendo o capítulo .............................................................................................. 65 
A dimensão epistêmica: transição de paradigma .................................................................... 81 
CAPS: estratégia de produção de cuidado.............................................................................101 
O projeto civilizatório da Atenção Psicossocial. ..................................................................... 120 
Capítulo 3 – Atenção psicossocial e outros escritos ...................................................................... 128 
Composições do paradigma da Atenção Psicossocial .............................................................. 129 
Atenção Psicossocial e a arte ...................................................................................................... 134 
Atenção Psicossocial e trabalho .................................................................................................. 136 
Extensão universitária ................................................................................................................... 138 
Artigo sobre temas da PNH .......................................................................................................... 141 
Atenção Psicossocial e a política sobre álcool e outras drogas ............................................... 145 
Atenção Psicossocial e os desafios do contemporâneo ........................................................... 146 
Capítulo 4 – Por uma Atenção Psicossocial menor e uma política da amizade ......................... 160 
Ousar desconstruir e reinventar, correndo riscos ...................................................................... 160 
Contra o Fascismo, o pensamento e a arte como afirmação da vida ...................................... 165 
Apostas em uma Atenção Psicossocial menor .......................................................................... 170 
Fragmentos para pensar a Atenção psicossocial e a política da amizade .............................. 175 
Conclusão.... ...................................................................................................................................... 182 
Referências bibliográficas ................................................................................................................. 185 
Anexo 1 ............................................................................................................................................... 196 
 
6 
 
 
 
Introdução 
 
Já faz tempo que meu trem partiu, desde o ano de 1957, percorrendo 
vários caminhos, parando em muitas estações. Minhas lembranças da infância 
estão sempre associadas a alguma viagem. Lembro-me de brincar de dirigir por 
estradas, visitando nos meus devaneios lugares que inventava. Com doze anos, 
já viajava sozinho, com uma carteirinha de autorização do Juizado de Menores. 
Por essa época, vislumbrava da janela do apartamento a torre da estação 
Sorocabana e o seu relógio a marcar a passagem do tempo. Ouvia os apitos do 
trem avisando das partidas. Quais rotas fariam? 
Acasos da vida: ia de trem para a faculdade que ficava em Mogi das 
Cruzes. A primeira experiência importante de trabalho na saúde mental é no 
Juquery e, novamente, viajava de trem para ir trabalhar lá. Hoje, sou docente da 
Unesp de Assis, cidade que viveu durante muitos anos em torno da estação de 
trem. Trem que partia da mesma estação Sorocabana de minha infância. Minha 
vida forjada nas andanças. 
Moro em uma cidade na qual sou forasteiro. Não tenho o sentimento de 
pertencimento nem quando vivia na cidade onde nasci: São Paulo. Em certo 
sentido, apesar dos mais de vinte anos, sinto-me como alguém que está de 
passagem. Talvez o fato de ser filho de imigrantes tenha produzido em mim essa 
sensação de desconforto, de estar, de certo modo, fora-de-lugar, um nômade 
desterritorializado, fazendo do caminhar, da passagem, um tempo/espaço para 
habitar o mundo, vivendo o acaso dos acontecimentos que me levam, a todo 
momento, para outros lugares, para encontros múltiplos. Caminhante/andarilho 
de olhos e ouvidos atentos às pessoas, paisagens, cheiros, gostos e, 
principalmente, às estórias que fui recolhendo desses tantos lugares que meus 
pés, olhos, ouvidos, que meu corpo, enfim, pode sentir e ser afetado. 
Uma outra imagem da infância. Com pouco mais de 8 anos, muito magro 
e mirrado, voltando da escola. No meio do caminho, cai uma chuva torrencial 
com fortes ventos. Faltava pouco para chegar em casa e decido seguir adiante, 
sentindo os pesados pingos molhando meu corpo. De repente, e em frente à 
estação Sorocabana, um vento mais forte me impulsiona para frente e 
7 
 
 
 
ligeiramente para o alto, quase decolo. Fui tomado de intensas múltiplas 
sensações: medo, alegria, leveza, prazer. Mais do que ser levado pelo vento, 
deixei-me ser levado por esse acontecimento, por essa experiência. Nunca tive 
medo da chuva. Muitos dos acasos mais intensos foram vividos em dias de 
chuva: meu primeiro dia no Juquery, no CAPS, na Unesp de Assis, foram em 
dias de chuva. Lembro isso como uma alegoria do que foram os acasos que 
encontrei pela vida. Chuvas torrenciais de sensações, vividas intensamente. 
Bondia (2002) fala que a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o 
que nos toca. Deixo-me exposto à experiência, para ser tocado, atravessado, 
afetado. Para que ela produza marcas, cortes, cicatrizes. Não que isso seja uma 
vontade ou escolha. Há algo de inevitável nessa abertura, como condição 
mesma de experimentar a vida. 
É sempre por um corte ou fissura que se produz uma abertura 
ao acontecimento, nos diz Deleuze, e que se dá passagem ao 
pensamento e à criação. O acontecimento nos joga para fora de 
nós mesmos, rompe a teia de significações, desterritorializa uma 
organização subjetiva, abre o corpo e coloca-o diante do não-
senso. Para ir além deste momento de crise sem desmoronar é 
preciso que se possa criar novos mundos, novos corpos, novos 
ritmos. ‘Fazer a fissura transbordar em traço, virar ferida, marca, 
cicatriz. Fazer corpo do que era silêncio e imensidão’(LIMA, 
2011, p. xxx). 
 
Um tema em especial que, desde os anos da adolescência, me afetou: a 
loucura. Tema que me levou, ainda estudante, no segundo ano de psicologia, a 
buscar um estágio voluntário em um hospital psiquiátrico que ficava distante de 
tudo, no meio do nada. Depois, tema de minha tentativa inacabada de pós-
graduação na PUC. Por fim (ou por princípio), por força e imperativo do acaso, 
me levou ao Juquery. E depois ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz 
da Rocha Cerqueira, depois a Penápolis, depois a Assis. 
Caminhos e paragens que vivenciei intensamente e produziram estas 
marcas que me constituem, cicatrizes que se expressam em assombramentos, 
inquietações e indagações. Nos trajetos, sempre anotei impressões, registrei 
imagens com minhas retinas míopes e astigmáticas, que produzem 
interessantes efeitos que me obrigam a um esforço a mais para ver e enxergar. 
Desses rascunhos, fui ousando escritos, alguns não publicados e outros tantos 
8 
 
 
 
que se transmutaram1 em artigos, dissertação de mestrado, capítulos de livro, 
tese de doutorado, mais artigos, livro, mais capítulos de livros, mais artigos. De 
certa forma escrever era dar passagem, fazer vir ao mundo essas cicatrizes, 
transformando-as em tatuagens no corpo: expressões estéticas visíveis que 
tomavam parte no mundo compartilhado. 
Da reflexão sobre o Projeto dos Lares Abrigados do Juquery (não 
publicada, mas aqui analisada), fui indagar sobre o que é organizar o cuidado 
em um serviço singular chamado CAPS. Sigla que ficou grande, partiu para 
outras aventuras e ficou famosa como um dispositivo importante de uma política 
que, não sabíamos bem ao certo, estávamos construindo em um processo social 
complexo ao qual chamamos de Reforma Psiquiátrica. Foi pensando no 
cotidiano daquela singular e localizada experiência que comecei a desconfiar 
que estivesse sendo gestada e construída uma ousadia conceitual, a ponto de 
aspirar uma mudança de paradigma: a Atenção Psicossocial. Pesquisei a 
recente história que construía da Reforma Psiquiátrica no mestrado. No 
doutorado, ousei ensaiossobre as dimensões desse processo. Fui dialogar com 
a Educação Permanente e com o Humanizasus e descobri interfaces, 
entrelaçamentos que tecem tramas conceituais comuns. Afinal, somos o coletivo 
da saúde. 
E então os anos se passaram e, mais de três décadas depois, tenho a 
tarefa de produzir um texto como exigência para a obtenção do título de livre 
docente. E surge a dúvida: defesa de tese original e inédita ou de texto que 
sistematize criticamente a obra do candidato? 
Coerente com esta alma errante e nômade, escolho uma opção que 
transita a meio caminho. Talvez invente uma terceira margem. Revisitar, reler, 
revisar escritos exige outros verbos complementares neste trabalho: refazer e 
reinventar outras palavras. 
Alguns textos estão marcados por seu tempo. Outros têm a permanência 
de certos temas que me surpreendem atuais. De qualquer modo, proponho-me 
nas páginas seguintes a revisitar os escritos mais importantes, refazendo 
 
1 Para os alquimistas, transformação de um metal sem valor em um metal precioso. A procura 
desse processo pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando ligada à transmutação do 
próprio alquimista. 
9 
 
 
 
caminhos e ressignificando algumas ideias. E, em outro movimento, reinvenção 
de possibilidades, trazer o que de inédito pode ser produzido. 
Há em tudo isso algo de um ritornello. Talvez um pesquisador, como um 
escritor ou um artista, pesquise sempre o mesmo problema, desenvolva sempre 
uma mesma questão, que é para ele vital. Se for assim, essa releitura se faz a 
partir dos ecos que sempre estiveram presentes, habitando a cada vez tempos 
diferentes. Talvez aí esteja a chave da permanência de algo de próprio no 
constante processo de diferenciação que constitui a vida: as cicatrizes, corpos 
que buscam habitar um tempo diferente, se fazem tatuagem cada vez de uma 
nova maneira. Ou trazer mais do que marcas, as cicatrizes que esses textos 
produziram no meu corpo. São marcas que não se apagam, mas que posso 
ressignificar. 
Não será uma revisão exaustiva de cada texto. Pelo contrário, são 
releituras nas quais irei desdobrando modificações, correções e inclusões de 
pensamentos soltos, buscando abrir outras linhas a desenhar, caminhos 
possíveis a trilhar, cuja inspiração nasce das leituras e das lentes atuais. Cada 
texto será como uma encruzilhada que se alastra por diferentes caminhos. 
Tento, com isso, por um lado, evidenciar que, de algum modo, contribuí 
para a Reforma Psiquiátrica, para a reflexão da potência da Atenção 
Psicossocial. E, de outro, me reinventar nesta escrita. Evidenciar o meu pequeno 
legado para a construção desse campo. 
No Capítulo 1, intitulado Atenção Psicossocial: primeiros escritos, revisito 
três produções: um texto não publicado sobre o Projeto Lar Abrigado, um dos 
primeiros artigos publicados sobre o CAPS Luis Cerqueira e a minha dissertação 
de mestrado. Neles, busco evidenciar alguns elementos e proposições que, 
escritos há mais de 20 anos, continuam com uma vitalidade que, talvez, valha a 
pena revisitar, visto que permanecem não só como princípios que inspiraram 
nossas práticas inaugurais, mas também como norteadores éticos e políticos 
necessários a este tempo presente. 
No Capítulo 2, Dois escritos sobre a Atenção Psicossocial e a Reforma 
Psiquiátrica, faço uma releitura de duas produções: um artigo publicado em 2003 
sobre Atenção Psicossocial e o livro de minha tese, publicado em 2010. Em 
10 
 
 
 
ambas, apresento os temas mais significativos, acrescentando reflexões, 
reformulações e atualizações. Aqui, busco salientar os elementos que compõem 
o que podemos nomear como Atenção Psicossocial, em seus planos éticos, 
estéticos e políticos. 
No Capítulo 3, Atenção psicossocial e outros escritos, faço uma reflexão 
sobre os artigos e capítulos de livro produzidos após a defesa de meu doutorado, 
agrupando-os em diferentes temas. Procuro articular os escritos no que 
apresentam de comum, acrescentando outras reflexões e atualizações. 
No Capítulo 4, Por uma Atenção Psicossocial menor e uma política da 
amizade, finalizo o trabalho evidenciando pensamentos apresentados ao longo 
deste texto, com a articulação de autores e conceitos, na busca de vislumbrar 
caminhos e forças para seguir adiante nestes tempos sombrios. 
Como pode ser lido nesta pequena síntese, este trabalho levará em conta, 
também, a produção anterior ao doutorado, pois ela está intimamente 
relacionada à invenção da Atenção Psicossocial, para cuja conceituação, objeto 
do presente concurso, as minhas cicatrizes, marcas, tatuagens, palavras 
puderam contribuir. 
Este texto foi escrito em tempos difíceis. Uma sombra escurece este 
caminhar. Nesta hora de passagem, a instabilidade e os acontecimentos deste 
momento atravessam e afetam meu olhar e meu pensar. 
Tempos sombrios que estão presentes e que explicito nesta escrita. 
Talvez seja tempo de bifurcar e seguir por outras veredas, outras trilhas. Deixo 
aqui os vestígios de meu caminhar, meus desassossegos. Continuo nômade, 
buscando habitar um tempo e um lugar. 
 
11 
 
 
 
Capítulo 1 – Atenção Psicossocial: primeiros escritos... 
 
Primeiro escrito: Sobre o Lar Abrigado 
 
O texto a seguir foi escrito em 1986. Parte dele foi apresentada em um 
Congresso. Ao retomá-lo, percebi que carecia de algumas pequenas 
modificações, que foram efetuadas com o olhar do ano de 2016. Procurei 
manter-me fiel ao essencial do que redigi há 30 anos. 
Eis o texto: 
Iniciei minha vida como psicólogo da saúde pública no Departamento 
Psiquiátrico II da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, mais conhecido 
como Hospital Psiquiátrico Juquery, em um momento muito especial da recente 
história brasileira. Quando assumi meu cargo em novembro de 1983, iniciavam 
as primeiras manifestações de apoio à emenda Dante de Oliveira, que previa 
eleições diretas para presidente. Em 25 de janeiro de 1984, a primeira grande 
mobilização reuniu milhares de pessoas na Praça da Sé, em São Paulo, exigindo 
Diretas Já. Em fevereiro de 1984, duas pacientes foram encontradas mortas em 
uma das Colônias do Juquery. Esse fato, de grande repercussão na imprensa, 
motivou a substituição do diretor geral e deu início a um intenso processo de 
mudança, protagonizado por alguns jovens trabalhadores (psiquiatras, 
psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros e outros) 
que iniciavam a sua vida profissional. 
Dentre as propostas levadas a cabo por aquele grupo, estava o projeto 
Lar Abrigado, que tinha como objetivo principal proporcionar uma melhoria 
substancial na qualidade de vida de uma significativa parcela dos pacientes 
internados de longa permanência, por meio da transformação das unidades 
psiquiátricas em moradias. Operava-se uma importante mudança em seu 
estatuto: de paciente psiquiátrico a morador. Esses pacientes tinham em comum 
a perspectiva de vida de permanecerem internados até a morte. 
Tentava-se operar algumas transformações que se pretendiam radicais. 
Em primeiro lugar, na modificação do espaço físico hospitalar, pensado, 
desenhado e construído para facilitar o exercício do controle com suas amplas 
12 
 
 
 
enfermarias, onde há sempre um olhar a vigiar cada gesto, cada palavra... 
Buscava-se desconstruí-lo como espaço de segregação e violência, e reinventá-
lo como um espaço de moradia. 
Em segundo lugar, ao ingressar no hospital e ser nomeado como paciente 
psiquiátrico, surge uma marca, um estigma que confere à pessoa internada um 
estatuto, definindo-o como incompetente diante do que sente e destituído de 
seus direitos de cidadão. Suas emoções, sensações e seus pensamentos 
passam a ter valor de diagnóstico, cujo domínio pertence ao especialista. Só ele 
conhece a doença, sabe identificá-la, classificá-la, tratá-la... Numa síntese: só 
ele sabe dominá-la. Assim, além deser destituído de seus objetos, a instituição 
opera também uma desapropriação de sua subjetividade. Nada mais lhe 
pertence, apenas o seu corpo doente. Mudar o estatuto de paciente psiquiátrico 
para o de morador, mais do que uma questão semântica, seria a efetivação de 
uma transformação. Tratava-se de constituir um lugar de resgate, de restituição 
de si: sua moradia, suas roupas, seus pertences pessoais, seu direito de ir e vir, 
sua autonomia, sua cidadania. E, nesse processo, entre encontros e 
desencontros, ele pudesse produzir uma outra subjetividade. 
Em terceiro lugar, isso só foi possível porque a equipe do Lar propunha 
um encontro com o morador, quando suas palavras, seus gestos, seus afetos, 
seus pensamentos, tinham uma escuta atenta que procurava, junto dele e ao 
seu lado, produzir sentidos e resgatar aspectos de uma cidadania confiscada. 
Essa produção de novos sentidos se dava no e pelo cotidiano: discutindo a rotina 
da casa, o cardápio das refeições, a saída sem autorização médica, a procura 
de emprego pelos classificados do jornal, as festas de aniversários etc. O dia a 
dia fornecia o material para um vir a ser. 
Ao propor esses objetivos, o Projeto Lar Abrigado caminhava na 
contramão da lógica institucional, questionando as rígidas e hipócritas regras 
hospitalares (tem de usar o uniforme, ainda que velho e rasgado; tem hora para 
acordar, para comer, para dormir; não pode sair sem autorização médica; não 
pode usar garfo e faca). Para andar pelo avesso, cometiam-se infrações e 
desobediências institucionais cotidianas (use a sua roupa, acorde e durma a hora 
que quiser, saia e volte quando quiser, use garfo, faca e copo de vidro). 
 Corríamos o risco. 
13 
 
 
 
Não era fácil resgatar a dimensão cidadã de seres que viveram 
sequestrados e em cárcere privado durante anos. Sempre havia alguém a 
desconfiar se os pequenos direitos conquistados (direito de ir e vir, direito ao 
trabalho) iria de fato durar, ou seria apenas um momento, um sonho... 
Fragmento: em 1939, uma jovem de 17 anos é internada por solicitação 
do Juiz de menores de uma cidade do interior de São Paulo. A alegação para o 
internamento, que consta em seu prontuário: meretrício. Hoje (1986), aos 
sessenta e dois anos de idade, ela perambula pelo pátio de uma das clínicas do 
hospital, sem jamais ter saído de lá. Em seu primeiro dia no Lar Abrigado, 
assusta-se com a sua imagem refletida no espelho. Fazia anos que não se 
mirava no espelho, um objeto proibido. 
Outro fragmento: aos sessenta e oito anos, um paciente epilético nos 
relata, com amargura, que brigava muito com sua família, que o internou por 
diversas vezes, até que, ao completar dezoito anos, decide deixá-lo no Juqueri 
de vez, onde ficou, todos esses anos, sem receber visitas. Recusou-se 
inicialmente a ir para o Lar. – Vocês logo vão embora e isso tudo acaba. 
Medo de que tudo não passasse de um breve instante. No plano macro, 
vivíamos um pouco isso. Sequestrados em nossos direitos de cidadania, vivendo 
o crepúsculo de um regime fechado e autoritário, nossa aposta foi sair as ruas e 
cometer infrações e desobediências civis. Inventar um movimento social. Sentir-
nos partícipes de um momento histórico. Correr riscos. Mas, e se fosse apenas 
um momento passageiro, chuva de verão? (...) 
 
Naqueles anos o hospital ainda era o alvo a ser “humanizado”, 
descontruído de seus aspectos asilares, mas, de certa forma, mantendo-o. Era 
o que tínhamos: atravessados por aquele tempo histórico de violência 
institucionalizada, com os corpos arcados com o peso das chaves das portas do 
hospício, com as roupas impregnadas do cheiro fétido dos pátios, com os olhos 
chocados e ouvidos repletos dos gritos. Foi preciso sair do hospício para 
descobrimos outras possibilidades. Foi preciso ir às ruas para sair da ditadura. 
Era preciso seguir em frente. 
14 
 
 
 
Então, passaram-se muitos verões. A proposição contida naquele projeto 
radicalizou-se e aumentou a sua complexidade. Saiu dos muros do hospital e 
transformou-se em um importante aspecto da Política de Saúde Mental: o 
Programa de Volta para Casa, criado pela Lei Federal 10.708. O Lar Abrigado 
foi um exercício embrionário das Residências Terapêuticas atuais. Estavam 
presentes, naquele momento, elementos que se constituiriam como princípios 
desse programa em particular e da Política de Saúde Mental, de modo mais 
geral: a desconstrução do hospital psiquiátrico. 
Radicalizou-se o estatuto de morador, não mais do hospício, mas da 
comunidade, colocando em cena ações importantes: o espaço urbano como o 
espaço a ser habitado; ações na perspectiva da construção de uma subjetividade 
cidadã; e, por fim, a continuidade dessa construção no plano do cotidiano, na 
potência inventiva dos encontros. 
Paradoxalmente, exatamente este último aspecto, talvez a marca mais 
importante deste processo, perdeu parte de sua força ao ser transformado em 
Política de Estado. Virou regra, prescrição, norma a ser seguida. Como 
consequência, o plano do cotidiano e da potência inventiva e criativa tornou-se 
plano de práticas serializadas, uniformes, gestos a serem repetidos 
mecanicamente, sem reflexão. Em vários encontros com equipes em diferentes 
serviços, uma expressão, sempre repetida, incomodava-me muito: mas tal coisa 
não está prevista na portaria! Retomarei mais à frente essa questão. 
De qualquer modo, deixo por ora sinalizado, e o repetirei muitas vezes, 
que é tempo de nossa radicalidade. A de uma política que é micropolítica, 
produzida na potência inventiva dos encontros cotidianos que criam outros 
modos, outras subjetividades. Apostas em arranjos e composições singulares, 
apostas em modos de produzir agenciamentos coletivos, apostas desejantes. 
Correr riscos. Ser marcado e produzir marcas e cicatrizes 
Eis aqui apenas uma referência a este texto não publicado, mas com o 
qual tinha e ainda tenho certa dívida. Peço licença para deixá-lo passar como 
uma marca. É um texto que narra minha primeira cicatriz, afrontamento contra o 
15 
 
 
 
Manicômio, contra a Ditadura. A complexidade da vida se insinuava, mas ainda 
não percebia o seu esplendor fulgurante. 
Sigamos com reflexões sobre o meu primeiro texto publicado sobre o 
CAPS. 
 
CAPS - Aprendendo a perguntar, 1989. 
 
Após o meu tempo no Juquery, e por contingências do acaso2, fui 
trabalhar no Centro de Atenção Psicossocial “Luiz da Rocha Cerqueira” (CAPS), 
em 1987. Depois de dois anos publiquei, a convite de Antonio Lancetti, no 
primeiro volume da Coleção SaudeLoucura, um texto no qual apresentava 
minhas primeiras reflexões sobre o trabalho do que foi o primeiro Centro de 
Atenção Psicossocial. O título do artigo3, CAPS: aprendendo a perguntar, já 
revelava a perspectiva do que pretendia. Mais do que não ter respostas prontas 
e de abandonar as certezas, deixava-me inquietar, fazer passar a dúvida, 
deixava-me ser levado pela potência da experiência que me atravessava. 
Foi um dos primeiros artigos sobre o CAPS e, apesar de ter sido publicado 
há mais de 27 anos, até hoje é citado4. Por ser um dos textos inaugurais e por 
ainda ser uma referência, considero relevante a sua apresentação e análise 
neste trabalho. 
Começo o texto, fazendo uma referência ao trem que tomava para ir ao 
Juquery. Contava sobre a dificuldade de narrar uma experiência no exato 
momento em que ela ocorria, comparada ao relato de uma viagem quando se 
ainda está nela. Não percebia que estava produzindo uma metáfora. Sou (e)feito 
dessas paisagens que visitei, que vi passar, que me habitam, que produziram 
marcas/cicatrizes. 
A seguir, com o subtítulo de Em certo lugar, num certo momento e com 
certas pessoas, faço uma descrição do momento histórico de mudanças (Diretas 
 
2 Naquele ano, houve uma troca na direção geral do Juquery e acabei por me indispor com o 
novo diretor, quesolicitou minha transferência para uma outra unidade. Por intervenção da Drª. 
Ana Pitta, acabei aceito e sendo incorporado à equipe do CAPS. 
3 YASUI, Silvio. CAPS: aprendendo a perguntar. São Paulo, Hucitec, 1989. 
4 Segundo Scholar Google, o artigo foi citado, até 2016, em 44 diferentes trabalhos. 
16 
 
 
 
Já, mudanças na Saúde etc.) que retomaria posteriormente em minha 
dissertação de mestrado e que analisarei mais adiante. Destaque-se que, como 
estávamos atravessados pelo cenário político da época, um momento de 
retrocesso levou ao afastamento de trabalhadores de seus lugares de trabalho, 
e vários deles encontraram acolhida no CAPS. 
Um tempo difícil, que, ao mesmo tempo, possibilitou a algumas pessoas 
se encontrarem em um lugar singular. Todas com marcas de trabalhos 
anteriores. Um acaso nos uniu em um tempo e lugar. Mais do que uma equipe, 
formamos um coletivo5. 
O texto prossegue fazendo uma descrição de como estavam organizadas 
as atividades e a rotina do CAPS em seus primeiros momentos. Desse trecho, 
destaco o exemplo de um usuário que, apesar de residir num distante bairro da 
Zona Leste de São Paulo: 
[...] comparecia ao CAPS, pontualmente, às oito horas todos os 
dias. Vinha só, sentava-se à cabeceira da mesa no ateliê de 
pintura e desenhava folhas e folhas de papel com linhas que se 
entrecruzavam confusamente, como seu pensamento. Aos 
poucos, foi desenhando linhas paralelas, falava muito durante 
todo o tempo; entendíamos apenas algumas frases soltas. 
Quando seus desenhos foram tomando formas geométricas, 
pode nos contar, de maneira mais organizada, sua história. 
Escutávamos atentamente. Após três meses, tornou-se um 
usuário que se destacava pela inteligência, perspicácia e 
brilhantismo com que fazia suas intervenções. Não desenhava 
mais, apenas conversava, dizendo que precisava trabalhar. 
Desempregado por oito anos conseguiu, sozinho, um trabalho 
naquilo que era seu ofício. Encerrou ele mesmo o tratamento 
“dando-se alta” (YASUI, 1989, p. 53). 
 
A organização do cotidiano do CAPS, descrita nesse artigo e em outros 
trabalhos produzidos pela equipe (FISCHETI, S. 1992; GOLDBERG, J. 1994 e 
1998; SILVA, A.L.A, 1997 e LIMA, 1997), foram construídos a partir de inúmeras 
discussões provocadas especialmente pelo encontro com as demandas dos 
usuários e a nossa capacidade (ou incapacidade) de respondê-las. A cada ano 
reavaliávamos e mudávamos a rotina, as atividades. Estávamos constantemente 
sensíveis, atentos e permeáveis ao que ia sendo produzido nos diferentes 
espaços e encontros. 
 
5 Mais à frente, apresentarei meu entendimento deste conceito. 
17 
 
 
 
Algumas características de nossa organização serviram de inspiração e 
modelo e foram incorporadas às diferentes portarias e documentos oficiais do 
Ministério da Saúde6, transformando a potência de uma experiência singular em 
padrão a ser adotado por todos os CAPS. 
Se, por um lado, como instrumento da política, as normatizações são 
necessárias, por outro apontam para uma homogeneidade preocupante. O que 
pude perceber em muitos CAPS que visitei é uma mera reprodução de um menu 
de ofertas, com pouca ou nenhuma discussão dos trabalhadores. Cito, por 
exemplo, oficinas terapêuticas sendo organizadas porque estavam previstas na 
portaria e não por serem demandas e necessidades dos usuários. Por diversas 
vezes ouvi as expressões “usuário em crise não pode participar das oficinas”, 
“Caps não é para pacientes em crise”. Também ouvia as equipes mais 
preocupadas na prescrição de medicações e atividades do que em tomar o 
drama da vida de seus usuários como tema das ações para além do menu de 
ofertas. Em certo sentido, encontrei mais ambulatórios de saúde mental do que 
CAPS7. Contrariamente a esse movimento, escrevia no texto de 1989: 
[...] procurávamos [...] ser e funcionar como uma unidade que 
desenvolvia um trabalho qualitativamente distinto das práticas e 
modelos de atendimento em saúde mental na rede pública. Em 
primeiro lugar, por elegermos uma parcela de usuários que, 
como afirmei, têm na hospitalização oferta exclusiva e 
compulsória de “tratamento”, em função de suas crises, muitas 
vezes recorrentes, de uma certa cultura que afirma que “lugar de 
louco é no hospício” e de toda uma tendência histórica da 
assistência psiquiátrica que sustenta e legitima essa cultura ao 
privilegiar o hospital psiquiátrico. Optamos por atender o usuário 
em crise, ou fora dela, através de um tratamento intensivo e, na 
medida do possível e até onde nossas contradições nos 
permitam, prescindindo dos muros sejam eles reais ou 
imaginários. Na maioria das vezes o usuário vem ao CAPS só e 
volta para sua casa; anda de ônibus, metrô, trem; passeia pela 
Avenida Paulista, circula livremente (?) apesar de “ser louco”. 
Em segundo lugar, esse trabalho só é possível porque nos 
colocamos desde um outro lugar, desde uma outra postura que 
busca entender que o que está em questão na demanda daquele 
que nos procura não é uma doença, mas sim um sofrimento, 
uma singularidade, uma subjetividade. É a ele que é destinado 
o trabalho e é ele quem, em última instância, determina seu 
percurso, sua trajetória, seu tratamento. O usuário é o centro da 
atenção. Por fim, essa postura é sustentada, com diferentes 
 
6 Portaria 224/92, portaria 336/02, entre outras que serão apresentados mais à frente. 
7 Mais sobre esta reflexão apresento adiante ao abordar minha tese e em um artigo sobre a 
Estratégia a Atenção Psicossocial. 
18 
 
 
 
matizes e argumentações teóricas, por uma equipe de 
profissionais que privilegia muito mais a função terapêutica que 
cada um de seus integrantes pode desempenhar, a partir de sua 
experiência, posição teórica, disponibilidade pessoal, do que a 
categoria profissional a qual pertença (YASUI, 1989, p.53-54). 
 
CAPS é para cuidar da crise, com um olhar para o sofrimento e para a sua 
singularidade e não para uma entidade (doença). O CAPS é constituído por atos 
que se concretizam nas relações e nos encontros produzidos no/pelo trabalho 
em equipe/coletivo. 
O trecho seguinte do artigo tem como subtítulo Assumindo coletivamente 
a fala, o trabalho, o desejo..., no qual narrava um incômodo presente nos 
primeiros movimentos daquela equipe. Havia um projeto previamente 
estabelecido que deveríamos seguir. Uma equipe formada por trabalhadores 
vindos de experiências distintas estava acometida por silêncios e 
desassossegos. Decidiu-se abrir espaço para uma supervisão clínico-
institucional que funcionou como um potente dispositivo: 
Naquele momento, com aqueles profissionais e naquele espaço, 
pudemos possibilitar, afinal, que a fala circulasse mais 
livremente: recontamos a história do CAPS, relatamos 
dificuldades cotidianas, refletimos nossa prática, discutimos 
posições teóricas, técnicas, políticas, explicitamos divergências 
e compartilhamos dúvidas. 
Fundamentalmente, pudemos explicitar e perceber nossas dife-
renças. Isso pode parecer um pouco óbvio, mas, por vezes, 
quando trabalhamos em equipe temos a tendência a minimizá-
las ou mesmo ocultá-las e a nos identificar narcisicamente com 
pontos comuns, criando uma falsa impressão de coesão, de 
unidade. Ao constatar esse óbvio, fizemos da diferença ponto de 
encontro das dúvidas, de confronto de certezas e contradições, 
e ponto de partida para a diversificação do trabalho. 
Reinauguramos a equipe, fundada num radical compromisso 
com a vida e assumimos coletivamente o CAPS como lugar de 
trabalho, de produção de sentido, de invenção, de encontro, de 
busca e — por que não? — de prazer (YASUI, 1989, p.56-57). 
 
Falar do CAPS Luiz Cerqueira como um potente modo de cuidar é falar 
dessa aposta no encontro (nos bons encontros espinosanos), na afirmação do 
desejo e na heterogeneidade. É afirmar que a produção da saúde se faz em ato 
(MERHY,2002), em/narelação, aqui entendida como agenciamento, modo de 
funcionamento do coletivo, que é plano de criação, de coengendramento dos 
19 
 
 
 
seres, plano de produção de subjetividades. Subjetividade não equivale a 
indivíduo, sujeito ou pessoa, pois os processos de subjetivação são sempre 
coletivos, e agenciam estratos heterogêneos do ser (ESCOSSIA; KATRUP, 
2005). Ou, citando Nise da Silveira, agenciam os inumeráveis estados de ser 
(SILVEIRA, 1992) 
Trata-se do encontro com a demanda e o sofrimento dos usuários e seus 
familiares, com suas complexas histórias de vida, com suas necessidades de 
diversas dimensões: cuidado, trabalho, moradia. Vidas com suas cicatrizes, 
contradições, paradoxos. Vida complexa e repleta de infinitas possibilidades. 
Encontro engendrando o coletivo, a criação, a invenção do cotidiano. Encontro 
que inventava um lugar e nos inventava como seu habitante. 
Aquele CAPS só tinha sentido como sujeito, objeto e expressão de um 
coletivo. 
O que se tem é um agenciamento coletivo que é, ao mesmo 
tempo, sujeito, objeto e expressão. O indivíduo não é mais 
aquele que responde universalmente pelas significações 
dominantes. Aqui, tudo pode participar da enunciação – tanto 
indivíduos quanto zonas do corpo, trajetórias semióticas ou 
máquinas ligadas em todas as direções. O agenciamento 
coletivo de enunciação une os fluxos semióticos, os fluxos 
materiais e fluxos sociais (GUATTARI, 1981, p. 178). 
 
A experimentação intensa e o agenciamento de desejos fizeram do CAPS 
um dispositivo... 
Os dispositivos têm, então, como componentes, linhas de 
visibilidade, linhas de enunciação, linhas de força, linhas de 
subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura, que se 
entrecruzam e se misturam [...] Decorrem daí duas 
consequências importantes para uma filosofia dos dispositivos. 
A primeira é o repúdio dos universais. Com efeito, o universal 
nada explica, é ele que deve ser explicado. [...] O Uno, o Todo, 
o Verdadeiro, o objeto, o sujeito não são universais, mas 
processos singulares, de unificação, de totalização, de 
verificação, de objetivação, de subjetivação, processos 
imanentes a um dado dispositivo. E cada dispositivo é uma 
multiplicidade na qual esses processos operam em devir, 
distintos dos que operam em outro dispositivo. [...] A segunda 
consequência de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança 
de orientação que se separa do eterno para apreender o novo. 
O novo não se designa a suposta moda, mas, pelo contrário, a 
criatividade variável segundo os dispositivos: em conformidade 
20 
 
 
 
com a questão nascida no século XX, como é que é possível no 
mundo a produção de algo novo? (DELEUZE, 1990, s/p). 
 
...um dispositivo ético, estético e político ... 
[...] ético é o rigor com que escutamos as diferenças que se 
fazem em nós e afirmamos o devir a partir dessas diferenças. 
Estético porque é a criação de um campo, criação que encarna 
as marcas no corpo do pensamento, como numa obra de arte. 
Político é o de uma luta contra as forças em nós que obstruem 
as nascentes do devir (ROLNIK, 1993, p.245). 
 
...um dispositivo ético, estético e político, permeável ao fluxo dos 
acontecimentos cotidianos, produto e produtor de múltiplos efeitos. 
Encerrava o texto com o seguinte parágrafo: 
Num certo sentido, o que relatei aqui foi uma experiência única 
e singular. No momento certo, no lugar certo, pessoas certas 
encontraram-se e assumiram a tarefa de construir o que o CAPS 
é hoje e o que será no futuro. O que significa dizer que não há 
possibilidade de se fazer o mesmo. Serão sempre outras 
pessoas, em outros lugares, em outros momentos, construindo 
uma outra história. Que sejamos parecidos, que caminhemos na 
mesma direção, mas é fundamental ser diferente, ser singular 
(YASUI,1989, p. 59). 
 
O tempo mostrou que, ao contrário, o CAPS transformou-se em um 
modelo a ser seguido, com todos os riscos que isso implica. Dez anos depois, 
no capítulo final de minha dissertação de mestrado, abordei novamente o tema 
do CAPS. 
 
Dez anos depois 1999 – a dissertação de mestrado. 
 
Em 1995, deixo o CAPS e a cidade de São Paulo, para morar no interior. 
Inicialmente na cidade de Penápolis, onde fico sabendo de um novo programa 
de Pós-Graduação na Unesp de Assis. Fui prestar o processo seletivo para 
retomar o meu projeto de mestrado. Sou aprovado e recebo um convite para 
ministrar aulas como substituto e, no ano seguinte, ingresso como professor 
concursado. Além disso, sou convidado a ocupar uma função de coordenação 
de saúde mental na Regional da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. 
21 
 
 
 
Novamente, o trem da minha história é marcado pelo acaso e por 
acontecimentos. 
No mestrado, dediquei-me a um tema que já me acompanhava há tempos: 
registrar o processo da Reforma Psiquiátrica que estava sendo construída, mas 
em cuja história podíamos encontrar linhas que remontavam a décadas. Mais do 
que isso, desejava ressaltar a íntima e inevitável relação entre o contexto social, 
político e econômico e o avançar ou retroceder da Reforma, especialmente a 
partir da organização dos movimentos sociais. 
Essa escrita foi atravessada por múltiplas vivências e lembranças. Nela, 
estavam presentes outros eus que não apenas o mestrando cumprindo uma 
tarefa acadêmica. Inseriam-se as reverberações do trem da minha história: havia 
sido um dos participantes do movimento estudantil e de algumas ações em 
comunidades de base. Fui preso na invasão da PUC em 1977. Era um dos 
milhares na Praça da Sé gritando Diretas-Já. Estava presente no Juquery e, por 
muito pouco, não fui um dos participantes da 8ª Conferência Nacional de Saúde. 
Fui para o primeiro CAPS. Participei da I e da II Conferência Nacional de Saúde 
Mental. Estava em Bauru, no Congresso de trabalhadores, e vi nascer o 
Movimento Nacional da Luta Antimanicomial. Vi Lula quase ser eleito e vi Collor 
cair. Presenciei o trabalho que se construía no encontro cotidiano ser 
transformado em política de Estado. Fui coordenador regional da saúde mental. 
A escrita revelava os múltiplos e inumeráveis estados de ser: o aluno, o militante, 
o trabalhador da saúde, o gestor. 
O ponto de partida foi considerar o campo da saúde mental como um 
campo político por excelência, sensível e suscetível ao jogo de forças do poder 
que se estabelece na sociedade. No texto, colocava em evidência a Reforma 
Psiquiátrica como movimento que, em consonância com o seu tempo histórico, 
produz modificações, transformações, estabelece alianças, atualiza 
permanentemente seus temas. 
Tinha como objetivo compor o cenário político e social em que o 
Movimento da Reforma Psiquiátrica foi sendo construído, de seu início nos anos 
setenta até os anos noventa, caracterizando-o como um movimento social 
contra-hegemônico. Impulsionado inicialmente por intelectuais e por 
trabalhadores de saúde mental, o movimento foi ampliando e estabelecendo 
22 
 
 
 
alianças com outros segmentos da sociedade civil, principalmente organizações 
populares, como as associações de usuários e pacientes. Foi desconstruindo 
paradigmas e produzindo rupturas em diversos campos. Para singularizar esse 
movimento macropolítico, apresentei uma análise do CAPS Luiz da Rocha 
Cerqueira. 
Foi um trabalho influenciado por minhas leituras à época, especialmente, 
um texto de Sarah Escorel (1995), que está em um livro organizado por Sonia 
Fleury Teixeira (1995) “Reforma Sanitária: Em busca de uma teoria”. 
Como se pode depreender da utilização do conceito contra-hegemônico, 
o trabalho teve forte inspiração em Grasmci, que está presente no primeiro 
capítulo no qual busquei articular os movimentos sociais emergentes nos anos 
de 1970 com a Reforma Sanitária e a Reforma Psiquiátrica. Aqui comparecem 
também os conceitos de guerra de posições, bloco histórico. A saúde é tomada 
como um elemento potencialmente revolucionário e de consenso. 
Revolucionário,pois constitui um campo privilegiado de luta de classes, onde se 
pode dar a formação e a transformação da consciência (luta ideológica), onde 
se chocam as concepções de vida das diferentes classes sociais. E é elemento 
potencialmente de consenso, pois a saúde é um valor largamente compartilhado, 
um direito que pode congregar um conjunto de forças para, por meio de uma 
aliança, empreender uma luta para sua conquista. 
Com os elementos aplicados ao Movimento da Reforma Psiquiátrica, 
analisei as décadas de 1970 a 1990, nos três capítulos posteriores, seguindo a 
mesma composição em cada um deles: uma primeira parte, na qual apresentava 
o cenário político, social e econômico de cada período; uma segunda parte, na 
qual apresentava e descrevia os movimentos sociais e as forças políticas que 
emergiam e potencializam tanto a Reforma Sanitária quanto a Reforma 
Psiquiátrica; e, por fim, como esses fatos podiam ser compreendidos à luz dos 
conceitos gramscianos. 
Como exemplo, reproduzo o parágrafo que sintetiza o sentido das 
análises que propunha nesse olhar para a história: 
O Movimento da Reforma Psiquiátrica alinhava suas bandeiras 
às bandeiras de luta de seu tempo histórico, apresentando-se, 
nessa guerra de posições, como uma força a mais no campo de 
23 
 
 
 
luta pela conquista da direção política ou do consenso 
(COUTINHO, 1981). A hegemonia, ou o bloco histórico 
hegemônico, comporta contradições que possibilitam a abertura 
de brechas. No campo da saúde, e da saúde mental em 
especial, essas brechas e a sua ocupação propiciaram, por um 
lado, a criação de espaços no interior do aparelho estatal que 
foram instrumentalizados por profissionais comprometidos com 
o polo subordinado e, por outro, a construção de práticas que 
foram sendo consolidadas e incorporadas ao discurso oficial, 
nos anos oitenta e noventa (YASUI, 1999, p.75). 
 
Considero que o texto constitui um guia de fatos e eventos desenhando 
uma linha do tempo da Reforma Psiquiátrica. Utilizei como recurso para a 
organização das informações e análises uma divisão temporal por décadas 
(1970, 1980 e 1990). Recurso que considero hoje insuficiente para contemplar e 
caracterizar de modo mais preciso os movimentos da Reforma Psiquiátrica. 
Outros autores, fazendo referências aos mesmos fatos e movimentos, propõem 
periodizações mais interessantes (AMARANTE, 1995; TENORIO, 2002; 
VASCONCELOS, 2008). 
Para sustentar a análise do cenário político e econômico, busquei autores 
de diferentes áreas, com destaque para os que abordavam os movimentos 
sociais, em especial, os ligados à saúde (COUTO, 1999; JACOBI, 1989; 
SCHERER-WARREN, I., KRISCHKE, P.J. , 1987; TELLES, 1997), dentre outros. 
Fiz uma extensa pesquisa em documentos oficiais (especialmente portarias e os 
relatórios das Conferências de Saúde Mental) e textos (relatos dos encontros 
dos Movimentos da Luta Antimanicomial e dos Usuários e Familiares), que me 
permitiram apontar alguns elementos que contribuíram para a construção da 
política de saúde mental. Dentre esses elementos, destacam-se: a existência 
de um movimento em âmbito nacional que articulou trabalhadores, usuários, 
familiares, professores, estudantes e simpatizantes; a participação desses 
diferentes atores em espaços decisivos como as Conferências Nacionais de 
Saúde Mental; a atuação na articulação com legislativos estaduais e municipais, 
tanto na criação de leis, quanto na formulação de políticas locais de saúde 
mental. 
Sempre achei que o texto era um pouco duro, excessivamente teórico e 
centrado na análise da macropolítica. Relendo-o para esta revisão, vejo que em 
minha escolha teórica havia, também e especialmente, uma aposta radical no 
24 
 
 
 
Gramsci que destacava a importância da ocupação dos espaços micropolíticos 
(escola, fábrica, meios de comunicação, cultura) e no protagonismo instituinte 
dos sujeitos fazendo história. 
Assim, o processo que aqui apresentamos contém outras faces 
e outros bastidores que estabelecem uma dinâmica de avanços 
e retrocessos, conquistas e perdas, inerentes a qualquer 
Movimento Social. Se, como afirmamos, o bloco histórico 
hegemônico comporta contradições e fraturas que possibilitam a 
articulação para a organização de um processo contra-
hegemônico, a construção mesma deste também comporta suas 
contradições e fraturas. Reações às transformações podem ser 
observadas em vários campos e frentes: dos interesses 
corporativos e econômicos, [...]; resistências dos trabalhadores 
no interior das instituições; forte resistência em romper com um 
padrão cultural criado em torno da internação etc. 
Embora presentes e exercendo influências sobre o Movimento 
da Reforma Psiquiátrica, preferimos privilegiar as linhas gerais 
do quadro histórico do processo de Reforma Psiquiátrica. 
Falamos do Movimento em seus gestos mais largos, de maior 
visibilidade, buscando dar contornos aos momentos intensos e 
decisivos. Procuramos desenhar os aspectos mais salientes e 
relevantes de uma parte dessa história: a dos atores do 
Movimento, os trabalhadores, em um momento, os usuários e 
familiares, em outro momento (YASUI, 1999, p.180-181). 
 
Assim, para caracterizar e analisar determinados momentos, utilizei a 
minha memória como fonte de informação. Como participante de alguns fatos 
marcantes, busquei construir algo como uma crônica de um tempo. Tentei 
apresentar ao leitor que não viveu aqueles períodos alguns elementos que 
traduziam o ambiente e o clima de nossa vivência. Por exemplo, em vários 
momentos, utilizo trechos de letras de música como epígrafe para “dar o tom” do 
período a ser apresentado. 
O texto está atravessado pelas marcas/cicatrizes que carrego8. Como já 
afirmei neste texto, eram muitas vozes que sussurravam a cada período, a cada 
acontecimento que narrava e analisava. A escrita oscila, portanto, entre a análise 
da “grande’ história e os momentos em que busco contar a minha história, o 
 
8 Relendo, em vários trechos, sinto que poderia ter me autorizado a ousar e deixar mais evidente 
estas marcas. Deixar-me envolver mais pelo que me atravessava na escrita. Mas aí seria outro 
texto que retomo atualmente. Pesquiso agora as diferentes vozes dos que participaram 
ativamente deste processo, buscando compor uma memória/colagem que narre por diferentes 
olhares por quais caminhos a Reforma Psiquiátrica andou. Os encontros e desencontros que a 
constituem. Os contágios e as dissidências. 
25 
 
 
 
tempo que vivi. Neste último sentido, com inspirações nas obras de Basbaum9 e 
Neruda10:“Minha vida é uma vida feita de todas as vidas: as vidas do poeta”. 
Para além da linha do tempo, gostaria de destacar três temas que já estão 
presentes e que permanecem atuais mesmo se consideramos os mais de 15 
anos que nos separam daquele tempo. 
O primeiro tema refere-se à tensão entre ser política de Estado e 
movimento social. Ao longo de boa parte da dissertação, há uma ênfase que 
aponta para a importância de um movimento que busca manter-se como uma 
articulação da sociedade civil, mesmo que em articulação com o Estado. A partir 
da década de 1990, há uma institucionalização da Reforma Psiquiátrica 
especialmente com a publicação da Portaria n.º 224/92, que criava, entre outras 
normatizações, a estranha figura híbrida do NAPS/CAPS, em uma solução de 
compromisso que condensava duas experiências exitosas, com características 
comuns, mas, também, com importantes diferenças. Destas, a mais relevante, o 
Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS), era um serviço territorial substitutivo 
que funcionava 24 horas por dia, inserido em uma rede de ofertas (Cooperativas, 
Urgência, Lar Abrigado). A portaria não contemplava essas características 
fundamentais: funcionamento em tempo integral e a articulação da rede de 
cuidados. Isso seria parcialmente corrigido apenas em 2003 com a portaria 336 
que criou a figura doCAPS III e, muito posteriormente, com a portaria 3088 de 
2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial. 
O que antes era movimento de trabalhadores, usuários e gestores que 
buscavam construir os seus modos singulares e territoriais de produzir o cuidado 
inventando serviços e ações, passou a ser normatizado, regulado. Isso 
incentivou a criação de diversas unidades espalhadas pelo país, com o nome de 
NAPS ou de CAPS como marcas de mudança. 
O que nos faz pensar em duas questões importantes: a primeira 
e óbvia é a de que o nome da instituição não significa 
automaticamente uma adesão, tanto dos trabalhadores quanto 
dos gestores, aos princípios, diretrizes e aos novos paradigmas 
que aquelas experiências pioneiras colocavam, nem é a garantia 
[...] da substituição aos manicômios, aliás muito pelo contrário. 
A prática assistencial das instituições pode ser tão excludente e 
violenta quanto o pior dos manicômios. A segunda questão 
 
9 BASBAUM, Leoncio. História sincera da Republica (vol.4). São Paulo, Alfa-Omega, 1975. 
10 NERUDA, Pablo. Confesso que vivi. São Paulo, Editora DIFEL, 1983. 
26 
 
 
 
refere-se ao fato de que muitos municípios encontraram, nos 
procedimentos de saúde mental, uma oportunidade para 
aumentarem os recursos financeiros repassados à saúde, 
devido ao seu elevado valor, comparativamente aos outros da 
tabela de remuneração do SUS. Ou seja, estavam mais 
preocupados com as finanças municipais do que com a 
implantação de um modelo de assistência em saúde mental 
(YASUI, 1999, p.144-145). 
 
Por outro lado, durante a década de 1990, enquanto os encontros 
institucionais oficiais se tornavam mais raros, o Movimento Nacional da Luta 
Antimanicomial (MNLA) retomava parte de suas origens como um movimento 
social, especialmente com diversos encontros e eventos com a participação ativa 
das associações de usuários e familiares, além de outros setores da sociedade. 
Por exemplo, em 1993, no III Encontro Nacional de Entidades de Usuários, 
Familiares da Luta Antimanicomial, realizado na cidade de Santos, foi redigida e 
aprovada a Carta de Direitos dos Usuários e Familiares de Serviços de Saúde 
Mental. 
Um segundo tema são as proposições que apontam para a Atenção 
Psicossocial como uma proposta de uma mudança de paradigma. Esse aspecto 
é muito importante, pois já sinalizava que havia algo além de uma proposta de 
um novo arranjo técnico-assistencial. Não se tratava de inventar apenas um lugar 
diferente. Muito além, tratava-se de uma radical ruptura com o modelo asilar 
predominante, desconstruindo seus fundamentos e suas práticas, e inventando 
outros fazeres e saberes, outras ferramentas para olhar, sentir, desassossegar. 
A crítica radical à psiquiatria tradicional, efetuada desde os anos 
setenta, produziu uma mudança na concepção do objeto, focado 
exclusivamente na doença, com uma decorrente prática 
centrada quase que exclusivamente na figura do médico, para 
uma concepção que supera as dicotomias saúde/doença, 
individual/social, entendendo a saúde mental como um campo 
complexo, composto por uma rede de fatores sociais, 
psicológicos, culturais e biológicos. Nessa concepção, não se 
busca a preponderância de um determinado fator sobre outro, 
ao contrário, trata-se de tomar o drama do existir humano em 
sua complexidade (YASUI, 1999, p.167). 
 
No texto, citava Costa-Rosa (1990), que nomeou o conjunto das práticas 
promovidas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica como Modo Psicossocial, 
em oposição ao Modo Asilar predominante. De acordo com ele, para caracterizar 
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uma mudança de paradigma de atenção, capaz de superar o modelo asilar, é 
imprescindível que a prática preencha algumas condições, relativas a 
transformações radicais, em quatro âmbitos: concepção do objeto e dos meios 
de trabalho; formas da organização institucional; formas do relacionamento com 
a clientela; e os efeitos típicos em termos terapêuticos e éticos. 
Citava ainda Amarante (1999), que nomeia a Reforma Psiquiátrica como 
um processo social complexo, que se caracteriza por 4 dimensões que se 
interligam: a teórico-conceitual, que se refere à desconstrução, reconstrução de 
conceitos fundantes da psiquiatria; a técnico-assistencial, que se refere à 
construção de uma rede de novos serviços, como espaços de sociabilidade, de 
trocas e produção de subjetividades; a jurídico-político, que aponta para a 
revisão das legislações que tratam dos conceitos de ‘doença mental’ e da 
construção de novas possibilidades de cidadania e trabalho; a sociocultural, que 
se reporta às ações no campo sociocultural, buscando transformar o imaginário 
social relacionado com a loucura, a doença mental. 
Isso evidencia o complexo movimento e agenciamento que se produzia 
na década de 1990 (e seguiu adiante). Ao mesmo tempo que algumas 
importantes experiências iam sendo inventadas e incorporadas como políticas 
essencialmente municipais (CAPS São Paulo, NAPS de Santos, CERSAM de 
Belo Horizonte, Intervenção no Candido Ferreira e a construção da Rede de 
Campinas etc) também se produziam reflexões teórico-conceituais, apontando 
para a potência criativa e disruptiva desses movimentos e experiências. Uma 
intensa articulação entre os fazeres e a produção dos saberes. Abordei esses 
temas com maior profundidade no livro da minha tese de doutorado, que será 
apresentado no próximo capítulo. 
Em relação ao terceiro tema, busquei singularizar a análise macropolítica 
que estava desenvolvendo ao longo da dissertação, analisando novamente o 
CAPS, dez anos após a publicação do primeiro artigo. Saliento, a seguir, 
algumas ações presentes em nosso cotidiano, as quais, anos depois, 
transmutaram-se em ferramentas conceituais não apenas na Atenção 
Psicossocial, mas indo além, para o campo da Saúde Coletiva. Com isso, 
pretendia realçar a contribuição dos fazeres e saberes produzidos na Reforma 
Psiquiátrica, especialmente sobre o objeto e o processo de trabalho, que foram 
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influenciandos e sendo influenciados por produções do campo da Reforma 
Sanitária. São apontamentos do que já emergia no texto de 1999 e que serão 
retomados de modo mais detalhado no próximo capítulo. 
 
A porta aberta: acolhimento e o cuidado em liberdade 
 
O acesso ao CAPS era feito de múltiplos modos: por meio de 
encaminhamentos de outros serviços, tais como ambulatório de saúde mental 
ou hospital psiquiátrico; por “demanda espontânea”, ou seja, pessoas que 
vinham por terem conhecido o trabalho (por exemplo, pela imprensa); ou por 
indicações de profissionais da rede pública ou não, que recomendavam o nosso 
trabalho. Embora não utilizássemos o termo, éramos um serviço de “porta-
aberta” que acolhia a todos que o buscavam. 
Vale lembrar uma discussão que realizamos sobre a porta do CAPS, na 
qual está presente um forte sentido emblemático. 
Em uma das reuniões que realizamos, uma usuária nos 
questionou sobre o fato de a porta do CAPS permanecer 
fechada. Argumentava que ficava parecendo com hospital. Após 
uns instantes de puro constrangimento, afirmamos que era uma 
medida de precaução e segurança para os próprios usuários. 
Nova pergunta: "- Mas não quero ficar presa aqui dentro. Por 
que não posso sair e circular?". A partir dessa pergunta, vários 
outros usuários também questionaram. Argumentavam que por 
vezes queriam sair para tomar café, comprar um cigarro, beber 
um refrigerante e tinham que pedir permissão e procurar quem 
tinha a chave da porta (YASUI, 1999, p.192). 
 
Essa solicitação nos colocava em uma encruzilhada ética. Manter a porta 
fechada seria assumir que ainda estávamos capturados nos pares 
loucura/perigo e perigo/segurança, revelando uma posição de tutela e controle, 
presentes na lógica manicomial, configurada na emblemática posse da chave da 
porta. Como se sabe, os espaços do hospital psiquiátrico são trancados, e o 
acesso às diferentessalas e passagens passa pelo rito de encontrar o 
profissional que está com a chave e que controla a abertura das portas fechadas. 
[...] optamos em manter a porta permanentemente aberta. Em 
um certo sentido, jogamos a chave fora. Ao abrir espaço e 
acolher a reivindicação dos usuários, aprendemos com eles a 
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começar a construir uma instituição que mantém as portas 
abertas para a rua, para a vida. E quando se fechava, a porta 
ganhava um sentido diferente: criava-se um circuito de 
solidariedade, pois, certamente, havia alguém na casa 
precisando de uma atenção mais próxima. A porta fechava-se 
como um dispositivo de intervenção, para acolher mais 
intensivamente alguém, e todos participavam desse acolhimento 
(YASUI, 1999, p.193). 
 
Nossa opção ética, estética e política foi assumir que o cuidado deve ser 
realizado em espaço aberto para a vida (e seus riscos). Relendo esse texto, 
percebo o quanto esta aparente singela menção faz surgir a potência da Atenção 
Psicossocial. Porta aberta não é apenas um recurso, mas é o sentido essencial 
que garante o acesso. Serviços de portas fechadas impedem ou regulam a 
entrada, via de regra, impondo uma lógica advinda da necessidade do serviço, 
de seus trabalhadores e da gestão, e não dos usuários ou do território no qual 
está imerso. O cuidado ao sofrimento psíquico e as complexas demandas que 
se apresentam só são possíveis em espaços porosos, permeáveis aos fluxos e 
aos acontecimentos da vida. 
O encontro com a loucura nos impulsionava na direção de uma 
posição ética que privilegiava uma atenta escuta ao acontecer 
cotidiano. Havia uma tensão vital constante no ar, que nos fazia 
despertar toda vez que o sono da inércia burocrática ameaçava 
instituir-se. Atentos e alertas para que o CAPS não acabasse por 
se transformar em um aparelho de reprodução sutil e sofisticado 
de dispositivos de controle e exclusão, buscávamos construir 
uma identidade a partir da complexidade que o encontro com a 
loucura produzia e não a partir de uma organização formal 
externa ou de um modelo previamente delimitado (YASUI, 1999, 
p.193). 
 
Por sermos o único CAPS existente, durante um certo tempo, pudemos 
construir os nossos modos de nos posicionarmos em relação à rede pública de 
saúde. O primeiro momento de chegada do usuário ao serviço era sempre feito 
com muita atenção e delicadeza, pois encenava-se aí um instante crucial que 
envolvia diferentes dimensões: o reconhecimento do outro e de sua demanda, 
o encontro produtor ou não de outras relações, outras dimensões... Desde o 
primeiro contato por telefone até a conversa com a equipe, o que importava era 
que, nesse primeiro encontro, pudéssemos perceber qual a necessidade 
daquela pessoa com sua complexidade. Tratava-se de uma construção que 
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envolvia o encontro entre a necessidade, nossa oferta e a oferta da rede de 
saúde. Mesmo que o usuário não ficasse no serviço, a equipe responsável por 
esse primeiro contato se encarregava de cuidar das ações necessárias para que 
o usuário encontrasse o lugar mais adequado à sua necessidade. 
Como exemplo, relato o primeiro atendimento de uma usuária que chegou 
com grandes dificuldades de comunicação. Sua companheira relatou que ela era 
professora e que, depois de um “surto”, teria ficado estranha e com essa 
dificuldade. Depois de muitas conversas entre a equipe, a família, e de tentativas 
de conversas com a usuária, além de observação no dia-a-dia, solicitamos uma 
tomografia, pois surgiu a dúvida sobre um quadro neurológico, que foi 
confirmado. Ela estava acometida por um Alzheimer que progrediu muito 
rapidamente, comprometendo diversas funções, incluindo a fala e a capacidade 
de comunicação. A partir dessa constatação, fomos buscar na rede um lugar 
para que ela pudesse ser adequadamente cuidada, o que levou a outras tantas 
reuniões e contatos com diferentes equipes e serviços, até encontrarmos e nos 
assegurarmos de que ela seria de fato recebida e atendida. 
Encaminhamento no nosso cotidiano era sinônimo de muitas horas de 
conversas, contatos, visitas. O que menos importava era o guia de referência e 
contrarreferência. Acolhíamos e construíamos nossa rede a cada demanda de 
usuário, buscando, provocando, conversando, dialogando. Nossa rede era uma 
rede de conversações (TEIXEIRA, 2003). 
A esse primeiro momento de recepção, chamávamos de triagem, mas 
poderia ser chamado também de acolhimento, pois de fato exercíamos uma 
escuta atenta e qualificada das questões e necessidades de saúde do usuário, 
responsabilizando-nos por estar ao seu lado na construção de caminhos e 
alternativas. A responsabilização, como sinalizamos no exemplo anterior, ia além 
desse primeiro atendimento. Era a possibilidade de um intenso diálogo 
permeado pela construção de um necessário vínculo entre o serviço e a 
população usuária. 
O "acolhimento" tem sido muito utilizado na reflexão sobre as práticas de 
saúde, especialmente a partir da sua incorporação pela Política Nacional de 
Humanização (PNH). Novamente indico que, mais à frente, ao discutir os 
capítulos do livro da tese, retomo esse tema em diálogo com a PNH. Nesse 
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âmbito, apresenta-se com um conceito de múltiplas dimensões, pois está 
presente em todas as relações e encontros que fazemos na vida; é uma diretriz 
ética, estética e política da PNH; refere-se ao acesso (às unidades e serviços, à 
qualidade da/na assistência; à continuidade do cuidado, à participação nos 
projetos de produção de saúde, à saúde como bem com “valor de uso” e não 
como mercadoria) e à transformação das práticas e do processo de trabalho em 
saúde (BRASIL, 2009). 
Para exercitar a radicalidade e a potência do acolhimento é necessário 
um serviço de porta aberta. Aberto a receber a crise, as intensas e conflituosas 
relações que se produzem entre as pessoas, às dúvidas, às possibilidades 
inusitadas de cuidado que surgem ao acaso, à potência do encontro para 
inventar projetos de vida. Aberto ao que está fora, onde a vida acontece. 
Lançávamo-nos nessa aventura misteriosa que é trabalhar com 
a loucura, com a dimensão humana que nos obriga a criar a cada 
encontro com o usuário, a estar atento a todo momento ao 
inusitado, ao inesperado, ao sem sentido. Abrimos mão das 
tranquilas, paralisantes e fetichistas certezas científicas (YASUI, 
1999, p.193). 
 
Arranjos cotidianos para o cuidado ou inventando o Projeto Terapêutico 
 
O passo seguinte ao primeiro momento que descrevi era a elaboração do 
que chamávamos de contrato provisório, que durava o tempo necessário para o 
usuário conhecer o que era oferecido e para que a equipe pudesse definir as 
atividades a serem desenvolvidas e os horários a frequentar, negociando e 
pactuando um projeto de cuidado. A cada dia da semana existia uma 
programação de atividades nas quais o usuário poderia, de acordo com suas 
necessidades, participar. Por exemplo, tínhamos diferentes oficinas (expressão 
corporal, jornal, jardinagem, passeio, esportes, vídeo etc.); ateliers (musica, 
cerâmica e marcenaria), coordenados por monitores (músico, ceramista e um 
marceneiro); atendimentos em diferentes modalidades e orientações (individual, 
grupal, psicanalítico freudiano, lacaniano, junguiano). Além disso, o próprio 
usuário podia propor e organizar uma nova atividade, como, por exemplo, 
campeonato de pingue-pongue, buraco, xadrez etc. 
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Além das ofertas que aconteciam no CAPS, incorporávamos o fazer em 
outros espaços e outras atividades para o projeto de cuidado, como: sair para ir 
ao cinema ou a um show, voltar a estudar, procurar trabalho, buscar um lugar 
para morar. Por vezes, outros detalhes do cotidiano podiam ser incorporados, 
como lavar ou consertar uma roupa, cuidar do cabelo e da aparência, aprender 
a cozinhar. 
A negociação e a pactuação desse contrato-projeto de cuidados estavam 
inspiradas e se construíam atentas aos detalhes e aosmovimentos da rotina, do 
cotidiano. Jairo Goldberg, que foi durante muito tempo o coordenador do CAPS, 
costumava afirmar que a clínica da psicose era a clínica do detalhe. Para darmos 
conta das diferentes demandas que se apresentavam, criamos o seguinte 
arranjo: um dos integrantes da equipe, a quem chamávamos de “profissional de 
referência”, era encarregado de ficar atento aos efeitos (ou à ausência deles) 
das ações e atividades que compunham o contrato/projeto de cuidado no usuário 
de sua responsabilidade. Era a ele que eram destinados os eventos e 
intercorrências cotidianas e a ele ficava a incumbência de avaliar, revisar e 
propor alterações nas discussões da equipe. Sua ação pode ser definida como 
uma gestão do cuidado ou da clínica, que é essencialmente interdisciplinar, 
intersetorial, compartilhada, com a participação e corresponsabilização do 
usuário. 
Geralmente, alterações passavam por uma discussão com os outros 
integrantes, mas, não raramente, a intensidade e velocidade dos acontecimentos 
provocavam mudanças sem que o restante da equipe pudesse participar. Cada 
contrato-projeto estava atravessado por muitos planos e relações: o usuário com 
o profissional de referência, com o restante da equipe, com sua família, sua 
família com a equipe, o usuário com as suas outras relações (amigos, amores, 
desafetos, desamores, patrão, colegas, meros conhecidos), com outros serviços 
de saúde (laboratório de análises clinicas, consultório odontológico), outros 
lugares da vida (escola, trabalho), de tal maneira que gerir um projeto terapêutico 
com essa complexidade e intensidade não era tarefa fácil. Cada usuário do 
CAPS tinha o seu contrato/projeto, por vezes escrito (raramente) e na maior 
parte das vezes pactuado coletivamente. Mais do que uma formalidade, um 
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contrato era uma tentativa de produzir práticas de cuidado atentas às 
necessidades de sujeito singular. 
Com isso, ampliávamos e diversificávamos as possibilidades de 
intervenção e invenção terapêutica, criando condições para 
favorecer que o usuário pudesse, a seu modo e a seu tempo,, 
descobrir, construir algum sentido, seu sentido, sua verdade 
(YASUI, 1999, p.196). 
 
O que narrei como um contrato-projeto com ações centradas na 
necessidade do usuário, voltadas para o seu cotidiano, articulando e 
potencializando suas relações, com práticas interdisciplinares e intersetoriais, 
compartilhadas e sustentadas por um coletivo, com a participação e 
corresponsabilização do usuário, como aposta na sua autonomia, nomeia-se, 
atualmente, como Projeto Terapêutico Singular. É uma poderosa ferramenta 
para se pensar a organização do cuidado e dos processos de trabalho em saúde. 
É um conceito que convoca um “movimento de coprodução e de cogestão do 
processo terapêutico de um Sujeito Singular, individual ou coletivo, em situação 
de vulnerabilidade” (OLIVEIRA, 2007: 91). Convoca uma outra produção 
subjetiva. Nesse projeto terapêutico singular, não há prescrições que conhecem 
apenas os diagnósticos estáticos, acompanhadas de ações que incidem sobre 
vidas sem rosto e sem história. Tal relação, pretensamente operada por uma 
técnica neutra, não vê e não escuta a quem se destina o cuidado. Pelo contrário, 
nesse projeto há escuta e olhar para cada singularidade, atenção para os 
detalhes e para a complexidade da vida. Inquietações e questões: Quem é? 
Onde mora? Como vive? Qual a necessidade? Há investigação de 
possibilidades de cuidado nos lugares que o sujeito habita, buscando ou 
inventando recursos. Há construção de propostas, muita negociação e 
pactuação. 
Sem porta aberta não é possível acolher. Sem acolhimento não é possível 
pensar em um Projeto Terapêutico Singular, o qual nos convoca a ir além dos 
limites de uma clínica centrada no organismo, no indivíduo. 
 
 
 
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Ampliando a clínica: trabalho, moradia, lazer 
 
A gente não quer só comida 
A gente quer comida, diversão e arte ... 
A gente quer saída para qualquer parte... 
A gente não quer só comer 
A gente quer comer, quer fazer amor ... 
A gente quer prazer para aliviar a dor 
A gente não quer só dinheiro 
A gente quer dinheiro e felicidade... 
A gente quer inteiro e não pela metade... 
Desejo, necessidade, vontade 
Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto 
 
Em minha dissertação, usei uma música dos Titãs, Comida, como 
epígrafe do tema que desenvolverei a seguir. 
Ao colocar o usuário e sua vida no centro da atenção, deixamo-nos ser 
tocados e afetados por demandas e necessidades que iam para além de um 
cuidado “estrito” de saúde. Nos corredores, nos grupos, nos atendimentos, na 
reunião geral, os usuários nos interpelavam, demandando necessidades de 
outra ordem: “Eu preciso de dinheiro! Aqui não recebo nada”; “Quando vou 
receber alta e poder trabalhar?” “Vou conseguir trabalhar tomando estes 
remédios?”. A complexidade dessa demanda, muito além de um pedido de 
emprego, exigia de nós uma grande atenção para algumas questões: 
A primeira era evitar a todo custo tomar o trabalho [...] como 
dispositivo de Tratamento Moral com características punitivas, 
tal como no raiar da psiquiatria, ou vinculado a conceitos e 
concepções que o transformam em um dispositivo de adaptação 
social, [...]. Uma segunda questão tratava de repensar 
criticamente o trabalho dentro de uma perspectiva social, ou 
seja, dentro do modo de produção capitalista, como gerador de 
valor econômico e social. Nesse sentido, uma terceira questão 
que se colocava era a de criar dispositivos que possibilitassem 
a construção de um processo de produção material, em que 
valores como solidariedade, acolhimento, tolerância, estivessem 
presentes como produto das relações estabelecidas nesse 
processo (YASUI, 1999, p.206). 
 
A demanda por trabalho apresentada pelos pacientes revelava apenas 
uma das tantas demandas presentes, enunciadas para ouvidos e olhos mais 
atentos. Por exemplo, por moradia e lazer: 
Relações familiares extremamente tensas e complexas, ou a 
falta mesmo de um lugar com condições mínimas, levavam 
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muitos usuários a pleitearem permanecer no CAPS, mesmo 
encerrado o período. [...] Isso levou a equipe a discutir várias 
vezes a necessidade de se instituir um turno integral de 
funcionamento, dificultado, entre outros, por questões 
administrativas, e a discutir uma proposta de moradia para 
alguns usuários. Por outro lado, em diversas reuniões gerais os 
usuários solicitavam da equipe e uns aos outros companhia para 
passeios ou programas aos fins-de-semana. Queixavam- se de 
não terem aonde ir, nem com quem, e de que passavam a maior 
parte do tempo dormindo. Ao longo da semana, quando 
compareciam ao CAPS, era comum vê-los saindo para tomar 
chá em um restaurante de comida vegetariana, ou frequentarem 
a biblioteca da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), 
ou irem a um show no Museu de Arte de São Paulo (MASP), ou 
irem passear pelo parque do Trianon. [...] uma das 
reivindicações [...] que o CAPS ficasse aberto aos fins-de-
semana com atividades de lazer, ou como uma possibilidade de 
referência, [...]. Mesmo fechado, servia como ponto de encontro 
entre os usuários que aos domingos iam, por exemplo, ao 
cinema (YASUI, 1999, p.208). 
 
Para incluir essas demandas como tema do trabalho cotidiano do CAPS, 
necessitávamos ampliar o poder de contratualidade, incentivar as possibilidades 
de trocas afetivas e materiais. Era preciso instituir um dispositivo que pudesse 
fazer acontecer ações que transcendessem ou transbordassem os limites de um 
fazer clínico centrado na remissão de sintomas, na adaptação e acomodação do 
sujeito a um certo padrão de normalidade. Um dispositivo que fosse amplo na 
sua composição e na capacidade de criação e que, criado a partir do CAPS, o 
superasse e se tornasse uma força autônoma com a importância de uma 
organização social, com a ativa participação não só de usuários e seus 
familiares, mas de