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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lecionário Patrístico Dominical / tradução e compilação, Fernando José Bondan. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. Bibliografia ISBN 978-85-326-4716-0 – Edição digital 1. Bíblia – Leituras litúrgicas 2. Lecionários I. Bondan, Fernando José. 13.04535 CDD-264.02 Índices para catálogo sistemático: 1. Liturgia : Igreja Católica 264.02 © 2013, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luís, 100 25689-900 Petrópolis, RJ Internet: http://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da editora. Diretor editorial Frei Antônio Moser Editores Aline dos Santos Carneiro José Maria da Silva Lídio Peretti Marilac Loraine Oleniki Secretário executivo João Batista Kreuch Editoração: Fernando Sergio Olivetti da Rocha Projeto gráfico: Alex M. da Silva Ilustração de capa: Benedito G. G. Gonçalves Capa: Sandra Bretz ISBN 978-85-326-4716-0 – Edição digital Editado conforme o novo acordo ortográfico. Sumário Dedicatória Siglas utilizadas neste livro Prefácio Ano A Tempo do Advento Tempo do Natal Tempo da Quaresma Semana Santa Tempo Pascal Tempo Comum Solenidades do Senhor no Tempo Comum Ano B Tempo do Advento Tempo do Natal Tempo da Quaresma Semana Santa Tempo Pascal Tempo Comum Solenidades do Senhor no Tempo Comum Ano C Tempo do Advento Tempo do Natal Tempo da Quaresma Semana Santa Tempo Pascal Tempo Comum Solenidades do Senhor no Tempo Comum Referências principais Textos de capa Dedicatória Ao apoio de minha família. Ao Pe. Júlio Marcelino dos Santos, com gratidão. Siglas utilizadas neste livro CCL: Corpus Christianorum Latinorum CSCO: Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium CSEL: Corpus Scriptorum Eclesiasticorum Latinorum DTC: Domingo do Tempo Comum GCS: Griechischen Christlichen LH: Liturgia das Horas LP: Lecionário Patrístico Dominical PG: Patrologia Grega – Ed. Migne PL: Patrologia Latina – Ed. Migne PLS: Patrologia Latina – Suplemento PS: Patrologia Siríaca PO: Patrologia Orientalis SC: Sources Chrétiennes (Paris: Le Cerf) Prefácio O Interesse pelos Santos Padres da Igreja se verifica desde as origens do cristianismo, mas foi sobretudo a partir do movimento patrístico que antecedeu o Concílio Vaticano II e, depois sob o seu impulso, que ele vem se desenvolvendo amplamente. Cada vez mais as pessoas se interessam e buscam “nas origens” o alicerce de sua fé. A espiritualidade dos Padres é sempre uma espiritualidade original, simples, destituída dos artifícios dos séculos posteriores. Quando se corre o risco de se perder o horizonte teológico, olhemos para os Padres! Infelizmente, os textos originais escritos em línguas mortas (grego, latim, siríaco...) e de difícil acesso aos leigos ainda torna muito restrito o acesso aos mesmos. Na nossa língua materna os textos ainda são muito escassos e poucas iniciativas se tomam nesta área. Uma seleção de textos patrísticos de vários autores em um único volume como consta neste livro, só conheço a já consagrada Antologia dos Santos Padres do falecido beneditino Cirilo F. Gomes, e o ofício das leituras da Liturgia das Horas. Como diácono, preferi servir-me de fontes secundárias de línguas vivas, principalmente dos textos em espanhol, e ofertar aos sedentos estas riquezas, do que continuar esperando e privando nosso povo de uma edição crítica que não sei se algum dia sairá do papel... Na escolha dos textos, dei preferência à variedade de autores, tanto ocidentais como orientais, e à riqueza dos textos. Muitas vezes preferi escolher textos que se encaixam na temática dominical, embora não versem diretamente o Evangelho, para ofertar uma interpretação mais ampla, do que citar autores diferentes, mas que interpretam o Evangelho mais ou menos da mesma forma. Procurei, também, dar aos autores orientais a devida estima, visto que sua literatura é bastante desconhecida entre nós. Discute-se em que data termina o período chamado “patrístico”. Bons autores colocam o século VII no Ocidente, e o século VIII no Oriente. Por isso, procurei não contemplar textos posteriores ao século VIII. Sendo que procurei evitar ao máximo a citação de textos que já constem no ofício das leituras da Liturgia das Horas, posso afirmar com segurança que cerca de 90% dos textos deste livro são inéditos em português. Gostaria de dizer que este é um trabalho simples para os simples. Foi pensado com carinho em vista dos evangelhos dominicais e algumas solenidades semanais. Não busquem aqui o rigor científico; o que não significa o esmero em fornecer uma tradução agradável e fiel, a partir das línguas vivas. Sempre que se fez necessário, os textos foram cotejados com outras versões francesas ou italianas, algumas vezes inclusive com o texto latino. Já os termos clássicos da teologia foram rigorosamente traduzidos. Mantive a maior parte dos textos bíblicos utilizados pelos Padres (Vulgata, Setenta), porque se utilizasse uma versão atual poderia não se encaixar na explicação do texto. Tive um professor de Filosofia que dizia para nós, seus alunos, para irmos direto às fontes, ou seja, aos textos dos filósofos. Depois caberia ler introduções e estudos a respeito. Acho que ele me influenciou: por isso não escrevi uma introdução ao livro, mas apenas este prefácio, para que o leitor vá “direto às fontes”. Uma boa leitura a todos. O autor Páscoa de 2013. Ano A Tempo do Advento 1º Domingo do Advento LEITURAS: Is 2,1-5; Sl 121; Rm 13,11-14 EVANGELHO: Mt 24,37-44 SANTOS PADRES: 1) Santo Efrém, diácono e doutor da Igreja (séc. IV) Comentário sobre o Diatessaron 18,15-17 (SC 121, 325-328; cf. tb. LH, vol. I, p. 144) “Vigiai: Cristo virá de novo” Para impedir qualquer pergunta de seus discípulos a respeito do seu advento, Cristo disse: Essa hora ninguém o sabe, nem os anjos, nem mesmo o Filho; e não vos cabe conhecer os dias e os tempos. Ele quis ocultar-nos isto para que permaneçamos vigilantes, e para que cada um de nós possa pensar que esse acontecimento sobrevirá durante a sua vida. Se o tempo de seu retorno tivesse sido revelado, sua vinda seria vã, e as nações e os séculos em que ela acontecerá já não mais a desejariam. Ele disse com muita clareza que virá, mas não precisou em que momento. Desta forma, todas as gerações e épocas da história o esperam ardentemente. Mesmo que o Senhor tenha dado a conhecer os sinais de sua vinda, não fica claro quando acontecerá, pois estes sinais, submetidos a uma troca constante, tanto tem aparecido como já passaram, e, podemos dizer mais, eles ainda continuam. A última vinda do Senhor, de fato, será semelhante à primeira, pois, do mesmo modo que os justos e os profetas o desejavam, crendo que ele apareceria na sua época, assim, cada um dos atuais fiéis deseja recebê-lo na sua, porque Cristo não revelou o dia de sua aparição. E não o revelou para que ninguém pense que ele – que é soberano do decurso e do tempo – está submetido a algum imperativo ou a alguma hora. O que o próprio Senhor estabeleceu, como poderia lhe estar oculto, visto que pessoalmente detalhou os sinais de sua vinda? Estes sinais foram destacados para que, desde então, todos os povos e todas as épocas pensassem que o advento de Cristo se realizaria em sua própria época. Velai, portanto, quando o corpo dorme, porque nesta ocasião é a natureza quem nos domina, e nossa atividade não se encontra dirigida pela vontade, mas pelos impulsos da natureza. E quando reina sobre a alma um pesado torpor, por exemplo, a pusilanimidade ou a melancolia, é o inimigo que domina a alma e a conduz contra sua aspiração natural. Apropria-se do corpo a força da natureza, e da alma o inimigo. Por isso nosso Senhor falouda vigilância da alma e do corpo, para que o corpo não caia em um pesado torpor, nem a alma no entorpecimento e temor, como diz a Escritura: Despertai, como é justo; e também: Eu me levantei e estou contigo; e ainda: Não vos acovardeis. Por tudo isso, nós, encarregados deste ministério, não nos acovardamos. 2) Santo Hilário de Poitiers, doutor da Igreja (séc. IV) Tratado sobre o Salmo 14,4-5 (CSEL 22, 86-88; cf. tb. LH, vol. I, p. 167) “O fundamento de nosso edifício é Cristo” O primeiro e mais importante degrau que deve ascender aquele que tende às coisas celestiais é habitar nesta tenda e ali – afastado das preocupações mundanas e abandonando os negócios deste mundo –, passar toda a sua vida, noite e dia, à imitação de muitos santos que jamais se afastaram da tenda. Sob o nome de “monte” – sobretudo quando se trata das coisas celestiais – temos de imaginar o mais alto e sublime. E existe algo mais sublime do que Cristo? Mais digno do que o nosso Deus? “Seu monte” é o corpo que assumiu de nossa natureza, e no qual agora habita, sublime e excelso acima de todo principado e potestade, e acima de todo nome. Sobre este monte está edificada a cidade que não pode permanecer oculta, pois como diz o apóstolo: Ninguém pode pôr outro fundamento além do que já foi posto, que é Jesus Cristo. Portanto, como os que pertencem a Cristo foram eleitos no seu corpo antes da fundação do mundo, e a Igreja é o corpo de Cristo, e Cristo é o fundamento de nosso edifício – assim como a cidade edificada sobre o monte –, disto concluímos que Cristo é aquele monte em que se perguntam quem poderá habitar. Em outro salmo lemos a respeito deste mesmo monte: Quem pode subir ao monte do Senhor? Quem pode habitar no recinto sagrado? E Isaías confirma a asserção dizendo: Ao final dos tempos estará firme o monte da casa do Senhor e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, a casa do Deus de Jacó. E também Paulo afirma: Vós vos aproximastes do Monte Sião, a cidade do Deus vivo, a Jerusalém do céu. Ora, se toda nossa esperança de repouso se radica no corpo de Cristo, e se, por outro lado, temos de descansar no monte, não podemos entender por “monte” nada mais que o corpo que Cristo assumiu de nós, antes do qual era Deus, no qual era Deus, e mediante o qual transformou nosso humilde corpo, segundo o protótipo do seu corpo glorioso, contanto que cravemos em sua cruz os vícios de nosso corpo, para ressuscitar conforme o seu modelo. Com efeito, a ele se ascende depois de haver pertencido à Igreja, nele se descansa a partir da sublimidade do Senhor, nele seremos associados aos coros angélicos, quando também formos cidade de Deus. Repousa-se, porque cessou a dor produzida pela enfermidade, cessou o medo procedente da necessidade, e gozando todos da plena harmonia, fruto da eternidade, descansarão nos bens fora dos quais nada mais se pode desejar. Por isso a pergunta: Senhor, quem pode hospedar-se em tua tenda e habitar em teu monte santo? Responde o Espírito Santo pela boca do profeta: O que procede honestamente, e pratica a justiça. Portanto, na resposta nos é dito que aquele que procede honestamente, e vive afastado de qualquer mancha de pecado, é aquele que, depois do banho batismal, não voltou a se manchar com nenhuma espécie de imundície, mas permanece imaculado e resplandecente. Já é uma grande coisa abster-se do pecado; contudo, não é este o descanso que segue o itinerário estabelecido: na pureza de vida inicia-se o caminho, mas não é o seu ápice. De fato, o texto continua: E pratica a justiça. Não basta projetar o bem, é necessário colocá-lo em prática; e a boa vontade não é o suficiente para iniciá-lo: é mister levá-lo à perfeição. 2º Domingo do Advento LEITURAS: Is 11,1- 10; Sl 71; Rm 15,4-9 EVANGELHO: Mt 3,1-12 SANTOS PADRES: 1) Santo Eusébio de Cesareia (séc. IV) Comentário sobre o livro do Profeta Isaías 40 (PG 24, 366-367) “Uma voz grita no deserto” Uma voz clama no deserto: Preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas. O profeta declara abertamente que seu vaticínio não se realizará em Jerusalém, mas no deserto; isto é: que sua glória se manifestará, e a salvação de Deus chegará ao conhecimento de todos os homens. E tudo isto, de acordo com a história e a escrita, cumpriu- se exatamente quando João Batista pregou o advento salvador de Deus no deserto do Jordão, onde a salvação divina se tornou visível. Pois Cristo e sua glória tornaram-se manifestos para todos quando, uma vez batizado, abriram- se os céus e o Espírito Santo desceu em forma de pomba e pousou sobre ele, enquanto se ouvia a voz do Pai que dava testemunho de seu Filho: Este é meu Filho amado; escutai-o. Tudo isto se dizia porque Deus se manifestaria no deserto, lugar que sempre foi intransitável e inacessível. Tratava-se, de fato, de todos os povos privados do conhecimento de Deus, e com os quais não puderam entrar em contato os justos e os profetas. Por esta razão, aquela voz manda preparar um caminho para a Palavra de Deus, assim como aplainar os seus obstáculos e asperezas, para que, quando chegar o nosso Deus, ele possa caminhar sem dificuldade. Preparai um caminho ao Senhor: trata-se da pregação evangélica e de uma nova consolação, com o desejo de que a salvação de Deus chegue ao conhecimento de todos os homens. Sobe a um monte elevado, arauto de Sião; retumba a voz, arauto de Jerusalém. Estas expressões dos antigos profetas se encaixam muito bem, e se referem oportunamente aos evangelistas. Após ter falado da voz que grita no deserto, são elas que anunciam o advento de Deus aos homens. Assim, após a profecia de João Batista, segue-se de forma coerente a menção dos evangelistas. Qual é esta Sião senão aquela mesma que antes se chamava Jerusalém? E ela mesma era aquele monte ao qual a Escritura se refere, dizendo: O Monte Sião onde puseste tua morada; e o apóstolo: Vos aproximastes do Monte Sião. Tais expressões não estarão aludindo ao coro apostólico, escolhido dentre o primitivo povo da circuncisão? E esta Sião e Jerusalém é aquela que recebeu a salvação de Deus, a mesma que por sua vez se ergue magnífica sobre o monte de Deus, ou seja, sobre o seu Verbo unigênito: a qual Deus ordena que, uma vez elevada ao sublime cume, anuncie a palavra de salvação. E quem é o que evangeliza a não ser o coro dos apóstolos? E o que é evangelizar? É pregar a todos os homens, e em primeiro lugar às cidades de Judá, que Cristo veio à terra. 2) Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja (séc. V) Sermão 109,1 (PL 38, 636) “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” Escutamos o Evangelho, e no Evangelho ao Senhor revelando a cegueira daqueles que são capazes de interpretar o aspecto do céu, porém são incapazes de discernir o tempo da fé em um Reino dos Céus que já está chegando. Ele dizia isto aos judeus, mas as suas palavras afetam também a nós. E o próprio Jesus Cristo começou a pregação de seu Evangelho desta forma: Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus. Da mesma forma, João o batista, seu precursor, começou assim: Convertei- vos, porque está próximo o Reino dos Céus. E agora o Senhor corrige aqueles que se negam a converterem-se, já estando próximo o Reino dos Céus. O Reino dos Céus – como ele mesmo afirma – não virá de uma maneira surpreendente. E acrescenta: O Reino de Deus está dentro de vós. Que cada um receba com prudência as advertências do preceptor, se não quer perder a hora de misericórdia do Salvador, misericórdia que se concede no contexto atual, em que ao gênero humano se oferece o perdão. Precisamente ao homem se presenteia o perdão para que se converta e não exista a quem condenar. Isso Deus decidirá quando chegue o fim do mundo; mas de momento nos encontramos no tempo da fé. Se o fim do mundo encontrará ou não aqui a alguns de nós, eu o ignoro; possivelmente não encontre a nenhum. O certo é que o tempo de cada um de nós está próximo, porque somos mortais. Andamos nomeio de perigos. Assustam-nos mais as quedas do que se fôssemos de vidro. E existe algo mais frágil do que um vaso de cristal? Mas, contudo, conserva-se e dura séculos. E mesmo que se possa temer a queda de um vaso de cristal, não existe medo de que a velhice ou a febre o afete. Somos, portanto, mais frágeis do que o cristal, porque devido, sem dúvida, a nossa própria fragilidade, cada dia nos espreita o temor dos numerosos e constantes acidentes inerentes à condição humana; e ainda que estes temores não cheguem a se concretizar, o tempo corre: e o homem que pode evitar um golpe, poderá também evitar a morte? E se consegue escapar dos perigos exteriores, conseguirá evitar também os que vêm de dentro? Algumas vezes são os vírus que se multiplicam no interior do homem, outras é a enfermidade que se abate subitamente sobre nós; e mesmo que o homem consiga ver-se livre dessas taras, a velhice acabará finalmente por chegar a ele, sem moratória possível. 3º Domingo do Advento LEITURAS: Is 35,1- 6a; Sl 145; Tg 5,7-10 EVANGELHO: Mt 11,2-11 SANTOS PADRES: 1) Santo Ambrósio, bispo e doutor da Igreja (séc. IV) Exposição sobre o Evangelho de São Lucas 1,5.93-95.99- 102.109 (CCL 14, 165-166; 167-168; 171-177) “És tu o que virá ou devemos esperar a outro?” João enviou dois dos seus discípulos para perguntar a Jesus: És tu aquele que virá ou devemos esperar a outro? Não é fácil a compreensão destas palavras simples, ou, do contrário, este texto estaria em desacordo com o que foi dito anteriormente. Na realidade, como João pôde afirmar aqui que desconhece a quem anteriormente havia reconhecido por revelação de Deus Pai? Como é que naquela ocasião conheceu o que previamente desconhecia, enquanto que agora parece desconhecer ao que já conhecia antes? Eu – disse ele – não o conhecia, porém aquele que me enviou a batizar com água me disse: Aquele sobre quem vires baixar o Espírito Santo... E João acreditou no oráculo, reconheceu aquele que foi revelado, adorou o que foi batizado e profetizou sobre o enviado dizendo: E eu o vi e dou testemunho de que este é o escolhido de Deus. Portanto, como aceitar sequer a possibilidade de que tão grande profeta tenha se equivocado, até o ponto de não considerar como Filho de Deus àquele de quem tinha afirmado: Este é o que tira o pecado do mundo? Por conseguinte, já que a interpretação literal é contraditória, busquemos o seu sentido espiritual. João, como já afirmamos, era tipo da lei precursora de Cristo. E é correto afirmar que a lei – acorrentada materialmente como estava nos corações dos que não têm fé, como em cárceres privados da luz eterna, e constrangida por entranhas fecundas em sofrimentos e insensatez –, era incapaz de levar a pleno cumprimento o testemunho da divina economia sem a garantia do Evangelho. Por isso João envia a Cristo dois de seus discípulos, para conseguir um complemento de sabedoria, visto que Cristo é a plenitude da lei. Além do mais, sabendo o Senhor que ninguém consegue ter uma fé plena sem o Evangelho – sendo que a fé começa no Antigo Testamento, mas não se consuma senão no Novo –, da pergunta sobre sua própria identidade, responde não com palavras, mas com fatos: Ide, disse ele, anunciar a João o que estais vendo e ouvindo: os cegos veem e os paralíticos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres lhes é anunciado a boa notícia. Contudo, estes exemplos mencionados pelo Senhor ainda não são os definitivos: A plenificação da fé é a cruz do Senhor, sua morte e sua sepultura. Por isso, completa suas afirmações anteriores dizendo: E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim! É verdade que a cruz se apresenta como motivo de escândalo inclusive para os escolhidos, porém, também é verdade que não existe maior testemunho de uma pessoa divina, nada há mais sublime que a total oblação de um só pela salvação do mundo. Só este fato o corrobora plenamente como Senhor. Dizendo de outra forma, é assim que João o designa: Este é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Na verdade, esta resposta não está dirigida apenas para aqueles homens, discípulos de João: vai dirigida a todos nós, para que creiamos no Cristo baseados nos fatos. Então, o que fostes ver? Um profeta? Sim, eu vos digo, e alguém que é mais do que profeta. Porém, como é que queriam ver a João no deserto, se estava preso na cadeia? O Senhor nos propõe como modelo aquele que lhe havia preparado o caminho, não só precedendo-o por seu nascimento segundo a carne e anunciando-o com a fé, mas também lhe antecipando com sua gloriosa paixão. Sim, mais que um profeta, já que é ele quem encerra a sucessão dos profetas; mais do que um profeta, já que muitos desejaram ver a quem ele profetizou, a quem ele contemplou, a quem ele batizou. 2) São Cirilo de Alexandria, doutor da Igreja (séc. V) Comentário sobre o livro do Profeta Malaquias 3,32 (PG 72, 330-331) “Virá o Senhor, e a sua doutrina superará a lei” Eis que envio o meu mensageiro para preparar o caminho diante de mim. Estas palavras proféticas foram oportunamente acomodadas ao mistério de Cristo. Deus Pai o tornou nosso Emanuel: justiça, santificação e redenção, purificação de toda maldade, libertação do pecado, desprezo de toda desonestidade, caminho para um jeito mais digno e santo de se viver e, porta de acesso à vida eterna. Por ele foram corrigidas todas as coisas, destruído o poder do diabo, e reencontrada a justiça. Eis que envio o meu mensageiro para preparar o caminho diante de mim. Estas palavras parecem anunciar ao Batista, pois o próprio Cristo disse em outro lugar: é dele que está escrito: Eis que envio o meu mensageiro para preparar o caminho diante de ti. Isto mesmo o confirma o próprio São João, quando interpelava os que a ele recorriam para receberem o batismo de conversão, dizendo: Eu vos batizo com água, porém, depois de mim virá aquele do qual não sou digno nem de desatar a correia de suas sandálias: Ele vos batizará com o Espírito Santo e com fogo. Repentinamente entrará no santuário o Senhor a quem vós buscais, o mensageiro da aliança que vós tanto desejais. Veja como Cristo veio repentinamente depois de seu precursor: manteve-se oculto a todos os judeus, aparecendo entre eles de forma súbita e inesperada. Dizemos que o santo Batista é chamado de “anjo”: não por natureza, visto que ele nasceu de uma mulher, homem como nós, mas porque lhe foi confiada a missão de pregar- nos e anunciar-nos a Cristo, missão esta que é tipicamente angélica. João é “anjo” por ofício, e não por condição angélica. Diz-se que entrará no santuário, seja porque a Palavra se fez carne e nela habitou como em um santuário, santuário este que assumiu do castíssimo corpo da Santíssima Virgem; seja como homem completo, possuindo alma e corpo, e que segundo a fé foi formado sem intermediário pela divina providência; ou simplesmente por santuário podemos entender Jerusalém, como cidade santa e consagrada a Deus; ou também a Igreja da qual Jerusalém era a imagem. Além do mais, sua vinda ou presença, Cristo a promulgou através de muitas obras magníficas: Proclamando o Evangelho do Reino, curando as enfermidades e sofrimentos do povo, tal como está escrito. Entrará o Senhor – diz –, a quem vós buscais, os que dizeis em sua covardia: Onde está o Deus da justiça? Ele virá, pois, e sua doutrina superará a lei, os símbolos e as figuras, e será o mensageiro da aliança, outrora anunciada pela boca de Deus Pai. Em certa citação dos livros santos, diz-se ao sábio Moisés: Suscitarei um profeta como você, dentre teus irmãos, porei minhas palavras em sua boca, e anunciará o que eu ordenar. Que Cristo é o mensageiro do Novo Testamento, o atesta Isaías ao dizer: Porque o calçado que pisa destemido, e o manto manchado de sangue serão lançados ao fogo. Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado; a soberania repousa sobre seus ombros, e seu nome é: Conselheiroadmirável. Conselheiro incontestável de Deus Pai. 4º Domingo do Advento LEITURAS: Is 7,10- 14; Sl 23; Rm 1,1-7 EVANGELHO: Mt 1,18-24 SANTOS PADRES: 1) São Beda o Venerável, doutor da Igreja (séc. VIII) Sermão 5 na Vigília do Natal (CCL 122, 32-36) “Ó grande e insondável mistério!” Em poucas palavras, porém cheias de realismo, o evangelista São Mateus descreve o nascimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, pelo qual o Filho de Deus, eterno antes do tempo, apareceu no tempo como Filho do homem. Conduzindo o evangelista à sucessão genealógica, partindo de Abraão até chegar a José, o esposo de Maria, e enumerar – conforme o modo costumeiro de narrar às gerações humanas – a totalidade seja dos genitores como dos gerados, e dispondo-se a falar do nascimento de Cristo ressaltou a enorme diferença que existe entre ele e os demais nascimentos: os outros nascimentos ocorrem através da união normal do homem e da mulher, enquanto que ele, por ser o Filho de Deus, veio ao mundo através de uma Virgem. E era conveniente sob todos os aspectos que Deus, ao decidir tornar-se homem para salvar os homens, não nascesse senão de uma virgem, pois era impensável que uma virgem não gerasse a nenhum outro, senão a um que, sendo Deus, ela o gerasse como Filho. Eis que, disse o profeta, a Virgem conceberá, e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Emanuel (que significa “Deus conosco”). O nome que o profeta dá ao Salvador, “Deus conosco”, indica a dupla natureza de sua única pessoa. Na verdade, aquele que é Deus nascido do Pai antes de todos os séculos, é o mesmo que, na plenitude dos tempos, tornou-se, no seio materno, no Emanuel, isto é, em “Deus conosco”, porque se dignou assumir a fragilidade de nossa natureza na unidade de sua pessoa, quando a Palavra se fez carne e habitou entre nós, isto é, quando de modo admirável começou a ser o que nós somos, sem deixar de ser o que era, assumindo de tal forma nossa natureza que não ficasse obrigado a deixar de ser o que ele era. Maria deu à luz, pois, a seu filho primogênito, isto é, ao filho de sua própria carne. Deu à luz aquele que, antes da criação, nasceu Deus de Deus, e na humanidade, na qual foi criado, superava superabundantemente a toda criatura. E ele lhe pôs, diz, o nome de Jesus. Jesus é o nome do filho que nasceu da Virgem; nome que significa – conforme a explicação angélica – que ele salvaria o seu povo dos seus pecados. E aquele que salva dos pecados salvará da mesma forma das corruptelas da alma e do corpo, que são sequela do pecado. A palavra “Cristo” designa a dignidade sacerdotal ou régia. Na lei, tanto os sacerdotes como os reis eram chamados “cristos” pela crisma, isto é, pela unção com o óleo sagrado: Eram um sinal de alguém que, ao manifestar- se no mundo como verdadeiro Rei e Pontífice, foi ungido com o óleo de júbilo entre todos os seus companheiros. Devido a esta unção ou crisma, é chamado Cristo; aos que participam desta unção, ou seja, desta graça espiritual, são chamados de “cristãos”. Que ele, por ser nosso Salvador, nos salve de nossos pecados; enquanto Pontífice nos reconcilie com Deus Pai; na sua qualidade de Rei, digne-se conceder-nos o reino eterno de seu Pai, Jesus nosso Senhor, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina e é Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém. 2) São Cirilo de Alexandria, doutor da Igreja (séc. V) Comentário sobre o livro do Profeta Isaías 4,2 (PG 70, 955-958) “Deus Pai o tornou misericórdia e justiça para nós” Anteriormente já falávamos longamente sobre Ciro, rei dos medos e dos persas, que devastou a região da Babilônia e a trucidou pela força, aliviou Israel da escravidão que lá sofria, afrouxou as cadeias do seu cativeiro, reconstruiu o Templo de Jerusalém, e foi instigado contra os caldeus pelo próprio Deus, que lhe abriu as portas de bronze, e quebrou os ferrolhos de ferro. Porém, nesta narração se tratava de um fato particular, visto que unicamente os israelitas deviam ser colocados em condições de paz e libertados da angústia da servidão. Em seguida todo o interesse da narração passa a se centrar no Emanuel, que foi enviado por Deus Pai para anunciar aos cativos a liberdade e aos cegos a vista; para libertar do mal aos que se encontravam irremediavelmente aprisionados por seus pecados; para atrair novamente a si todos os habitantes da terra já resgatados da tirania do diabo, e conduzi-los desta maneira, através de sua mediação, a Deus Pai. Desta forma tornou-se o mediador entre Deus e os homens, e por ele somos reconciliados com o Pai em um só Espírito, porque, como diz a Escritura, ele é a nossa paz. Ele restaurou o lugar sagrado, isto é, seu templo, que é a Igreja. Pois ele a colocou diante de si como uma virgem pura, sem mancha nem ruga nem nada que se lhe assemelhe, mas santa e imaculada. Pela qual nos é concedido ver em Ciro e em seus gestos uma magnífica figura dos divinos e admiráveis benefícios que Deus concedeu a todos os habitantes da terra. E justamente esta é a finalidade pela qual estes gestos foram recordados. Alegre-se, portanto, o céu superior, isto é, os que vivem na cidade do além, estabelecidos em uma morada distinta e maravilhosa: os anjos e os arcanjos. Dizemos que foi motivo de alegria para os espíritos celestiais a conversão a Deus, por meio de Cristo, Salvador de todos nós, dos homens perdidos desta terra, e também a recuperação da vista pelos cegos: em uma palavra, a salvação do que estava perdido. Se já se alegram por um só pecador que faz penitência, como duvidar que exultem de alegria ao contemplar o mundo todo salvo? Por isso diz: Céus, manai o orvalho; nuvens, derramai a vitória. Nós entendemos por misericórdia a caridade, que é o cumprimento da lei, acompanhada da justiça evangélica, cujo dispensador e mestre é, para nós, o Cristo. Pode afirmar-se também que a misericórdia e a justiça que nascem e brotam da terra são Nosso Senhor Jesus Cristo em pessoa, pois Deus Pai o tornou para nós misericórdia e justiça, isto se realmente temos obtido nele a misericórdia e, justificados com o perdão das culpas passadas, recebemos dele a justiça que pode tornar-nos herdeiros de todos os bens, e é o caminho de nossa salvação. E se da terra manda-se germinar a justiça, que ninguém se ofenda, levando em conta que o salmista usa a mesma expressão para com Deus Pai e o próprio Emanuel: Realizou a justiça na terra. Na realidade Cristo não vestiu nossa carne do alto dos céus, mas, segundo a carne, nasceu de uma mulher, uma das que estão na terra. Portanto, quando se diz que Cristo é fruto e gérmen da terra, deves entender, como acabo de dizer, que nasceu segundo a carne de uma mulher eleita especialmente para este ministério, mesmo sendo apenas mais uma das criaturas da terra. Tempo do Natal Missa da noite LEITURAS: Is 9,1-6; Sl 95; Tt 2,11-14 EVANGELHO: Lc 2,1-14 SANTOS PADRES: 1) São Teódoto de Ancira (séc. V) Sermão na natividade do Senhor (Edic. Schwartz, ACO. T. 3, parte 1, 157-159. Cf. La vie spirituelle, dic. 1967, 509-510) “O dono de tudo veio em forma de servo” O dono de tudo veio em forma de servo, revestido de pobreza, para não afugentar a sua presa. Tendo escolhido para nascer a insegurança de um campo indefeso, nasce de uma virgem pobrezinha, imerso na pobreza, para, no silêncio, dar caça ao homem e assim salvá-lo. Pois de ter nascido no meio do rumor, e se estivesse rodeado de riqueza, os infiéis teriam dito, e com razão, que tinha sido a abundância de riqueza o que havia operado a transformação em volta da terra. E se tivesse escolhido Roma, naquela ocasião a cidade mais poderosa, teriam pensado que era o poderio de seus cidadãos o que tinha mudado o mundo. De ter sido o filho do imperador, sua obra beneficente estaria inscrita como consequência das influências; se tivesse nascido filho de um legislador, sua reforma social seria considerada fruto do ordenamento jurídico. E o que fez? Escolheu todo o que é desprezívele pobre, todo o insignificante e ignorado pela grande massa, a fim de dar a conhecer que a divindade era a única (fonte) transformadora da terra. Este é o motivo pelo qual escolheu uma mãe pobre, uma pátria ainda mais pobre, e ele mesmo escasso de recursos. Aprenda a lição do presépio. Não tendo leito para deitar ao Senhor, ele é colocado em um presépio, e a indigência daquele que é o mais imprescindível se converte em privilegiado anúncio da profecia. Foi colocado em um presépio para indicar que iria converter-se em alimento até mesmo dos irracionais. De fato, vivendo na pobreza e deitado no presépio, a Palavra e Filho de Deus atrai a si tanto aos ricos como aos pobres, aos eloquentes como aos de poucas palavras. Observa como a ausência de bens deu cumprimento à profecia, e como a pobreza tornou acessível a todos aquele que por nós se fez pobre. Ninguém teve dúvida em acorrer por temor às abundantes riquezas de Cristo; ninguém sentiu o acesso bloqueado pelo esplendor do poder: ele se mostrou próximo e pobre, oferecendo-se a si mesmo pela salvação de todos. Mediante a corporeidade assumida o Verbo de Deus se faz presente no presépio, para tornar possível que todos, racionais e irracionais, participem do alimento de salvação. E penso que era o que anteriormente havia pregado o profeta desvelando-nos o mistério deste presépio: O boi conhece o seu possuidor, e o asno, o presépio de seu dono. Israel não me conhece, meu povo não medita. O que é rico por nós se fez pobre, tornando visível a todos a salvação com a força da divindade. Referindo-se a isto dizia também o grande São Paulo: Sendo rico se fez pobre, para enriquecer-nos com a sua pobreza. Porém, quem era o que nos enriquecia? De que nos enriquecia? E como ele se fez pobre por nós? Diga-me, por favor: Quem, sendo rico, se fez pobre com minha pobreza? Será o que apareceu feito homem? Mas este nunca foi rico, mas nasceu pobre de pais pobres. Quem era, pois, rico, e com o que nos enriquecia o que por nós se fez pobre? Deus – diz – enriquece a criatura. Portanto, é Deus quem se fez pobre, fazendo sua a pobreza do que se tornava visível; ele é verdadeiramente rico em sua divindade, e por nós se fez pobre. 2) São Pedro Crisólogo, doutor da Igreja (séc. V) Sermão 149 (PL 52, 598-599) “Paz é o nome pessoal de Cristo” Ao chegar o Senhor e Salvador nosso, e ao fazer sua aparição corporal, os anjos, dirigindo os coros celestiais evangelizavam aos pastores dizendo: Anuncio-vos uma boa- nova, uma grande alegria para todo o povo. Utilizando as mesmas palavras dos santos anjos, também nós vos anunciamos uma grande alegria. De fato, hoje a Igreja está em paz; hoje a nave da Igreja chega ao porto; hoje, caríssimos, é exaltado o povo de Deus e humilhados os inimigos da verdade; hoje Cristo se alegra e o diabo geme; hoje os anjos vivem em exultação e os demônios confusos. Que mais direi? Hoje Cristo, que é o Rei da paz, içando sua paz pôs em fuga as divisões, cobriu de confusão a discórdia e, como o céu com o esplendor do sol, assim ilumina a Igreja com o fulgor da paz. Porque hoje vos nasceu um Salvador. Que desejável é a paz! Que fundamento mais estável é a paz para a religião cristã, e que adorno celeste para o altar do Senhor! O que poderíamos dizer para elogiar a paz? A paz é o nome pessoal de Cristo, como diz o apóstolo: Cristo é nossa paz, ele fez de dois povos uma realidade única. Entretanto, assim como ante a visita de um rei se limpam as praças e toda a cidade é um festim de luzes e flores, de forma que não haja nada que ofenda a vista do ilustre visitante, a mesma coisa acontece agora: diante da vinda de Cristo, rei da paz, deve-se remover do meio toda a tristeza e, ante o esplendor da verdade, deve pôr-se em fuga a mentira, desaparecer a discórdia, resplandecer a concórdia. Por isso, mesmo quando na terra os santos realizam o elogio da paz, onde seus louvores alcançam o nível mais alto é no céu: os santos anjos louvam e proclamam: Glória a Deus no céu, e na terra paz aos homens por Ele amados. Estão vendo, irmãos, como existe um intercâmbio da paz entre todas as criaturas do céu e da terra: os anjos do céu anunciam a paz à terra, e os santos da terra louvam em uníssono a Cristo, que é a nossa paz, já elevado aos céus; e os místicos coros cantam a uma só voz: Hosana no céu! Portanto, digamos juntamente com os anjos: Glória a Deus no céu, que humilhou o diabo e exaltou a Cristo. Glória a Deus no céu, que pôs em fuga a discórdia e consolidou a paz. Missa do dia LEITURAS: Is 52,7-10; Sl 97; Hb 1,1-6 EVANGELHO: Jo 1,1-18 SANTOS PADRES: 1) Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja (séc. V) Sermão sobre o nascimento do Senhor 188,2-4 (PL 38, 1.003-1.004) “O dia de hoje nos leva ao dia eterno” No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus, e também: a Palavra se fez carne e habitou entre nós. Talvez possamos dizer o motivo pelo qual habitou entre nós; talvez ele possa ser explicável onde quis ser visível. Por isso celebramos também este dia em que se dignou nascer de uma virgem, permitindo que, de alguma forma, sua geração fosse narrada pelos homens. Mas quem narrará sua geração, isto é, aquela que teve lugar na eternidade, e pela qual nasceu Deus de Deus? Eternidade na qual não existe um dia que possa ser celebrado solenemente, que passa para voltar cada ano, mas que permanece sem ocaso, porque também não teve aurora. Assim, a Palavra única de Deus, a vida e luz dos homens, é o dia eterno. Em vez disso temos este em que, unido à carne humana, fez-se como esposo que sai de seu leito nupcial, e que agora lhe chamamos hoje, porém, amanhã lhe chamaremos ontem. No entanto, o dia de hoje nos leva ao dia eterno, porque o dia eterno, ao nascer de uma virgem, tornou sagrado o dia de hoje. Que louvores proclamaremos, pois, ao amor de Deus! Quantas graças temos de lhe dar! Tanto nos amou que por nós foi feito no tempo aquele por quem foram feitos os tempos, e neste mundo teve idade menor que muitos de seus servos aquele que era mais antigo que o mundo por sua eternidade. Tanto nos amou que se fez homem aquele que fez o homem; foi criado por uma mãe a qual ele tinha criado; foi levado nas mãos que ele formou, se amamentou do peito que ele encheu, e chorou no presépio a infância muda, a Palavra sem a qual é muda a eloquência humana. Considera, ó homem, o que Deus veio a ser por ti; aprende a doutrina de tão grande humildade da boca daquele doutor que ainda não fala. Em outra época, no paraíso, tu foste tão fecundo que impuseste o nome a todo ser vivente; apesar disso, deitado no presépio sem falar, estava o teu Criador; sem chamar por seu nome, nem sequer a sua mãe. Tu, descuidando da obediência, te perdeste no amplo jardim de árvores frutíferas; ele, por obediência, veio em condição mortal a um estábulo apertado, para buscar, mediante a morte, ao que estava morto. Tu, sendo homem e para tua perdição, quiseste ser Deus; ele, sendo Deus, quis ser homem para encontrar o que estava perdido. Tanto te oprimia a soberba humana, que somente a humildade divina podia te levantar. Celebremos, pois, com alegria o dia em que Maria deu à luz o Salvador; a casada, ao Criador do matrimônio; a virgem ao príncipe das virgens; ela que era virgem antes do matrimônio, virgem no matrimônio, virgem durante o parto, virgem quando amamentava. De fato, de nenhum modo o filho todo-poderoso violou, ao nascer, a virgindade de sua mãe, escolhida por ele. 2) Orígenes (séc. III) Sobre os princípios 2,6,1-2 (PG 16, 209-211) “Temos de contemplar o mistério de Cristo com o maior temor e reverência” Se considerarmos o que a Escritura santa nos refere de sua majestade, e não perdemos de vista que Cristo Jesus é imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura, e que por meio dele foram criadas todas as coisas, as visíveis e invisíveis; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é anterior a tudo,e ele sustenta todas as coisas, que é a cabeça de todos, comprovamos a impossibilidade de colocar por escrito o mistério da glória do Salvador. Portanto, se considerarmos tantas e tais coisas como foram ditas sobre a natureza do Filho de Deus, nos encherá de admiração e de assombro o que uma natureza tão acima de todo o criado, desde a altura de sua majestade, tenha-se rebaixado até o aniquilamento, fazendo-se homem e vivendo entre os homens. Ele mesmo, antes de tornar-se visível em um corpo mortal, enviou aos profetas na qualidade de precursores e mensageiros de sua vinda. E depois de sua ascensão aos céus, ordenou aos santos apóstolos, investidos com os poderes de sua divindade – homens inexperientes e iletrados, escolhidos dentre os publicanos e os pecadores –, a percorrer toda a terra, para que, de toda raça e da universalidade dos povos, congregassem-lhe um povo santo que cresse nele. Mas, entre todos os milagres e prodígios que dele conhecemos, há um que excede de forma mais específica a toda capacidade de admiração da inteligência humana: a fragilidade da inteligência mortal não chega a compreender, nem sequer a intuir que tão imenso poder da divina majestade, o próprio Verbo do Pai e Sabedoria de Deus, por meio da qual foram criadas todas as coisas, visíveis e invisíveis, tenhamos de crer que estava circunscrita dentro dos limites daquele homem que apareceu na Judeia. Ainda mais: Essa fé nos convida a aceitar que a Sabedoria de Deus penetrou no seio de uma mulher, que nasceu como menino, que prorrompeu em prantos como qualquer outro menino que chora. E, por fim, o que dele se conta, que se perturbou na presença da morte, como o próprio Jesus confessou dizendo: Minha alma está triste até a morte; e finalizando, que foi conduzido a uma morte considerada pelos homens como a mais ignominiosa, ainda que ressuscite ao terceiro dia. Contudo, quando observamos nele características tão profundamente humanas, que em nada parecem se diferenciar do comum dos mortais, e, por outro lado, outros tão tipicamente divinos, que não combinam com nenhum outro, a não ser com aquela primeira e inefável natureza da deidade, a inteligência humana se angustia e, presa por imenso assombro, não sabe ao que se fixar, ao que se segurar, que direção tomar. Se o sente como Deus, o vê mortal; se o considera homem, o vê voltar dos mortos carregado de cativos, depois de ter destruído o domínio da morte. Por isso, temos de contemplá-lo com o maior temor e reverência. Domingo na oitava do Natal Sagrada Família LEITURAS: Eclo 3,3-7.14-17a; Sl 127; Cl 3,12-21 EVANGELHO: Mt 2,13-15.19-23 SANTOS PADRES: 1) São João Crisóstomo, bispo e doutor da Igreja (séc. V) Sermão sobre o dia da natividade (PG 56, 392) “Junto ao Menino Jesus estão Maria e José” Jesus entrou no Egito para pôr fim ao pranto da antiga tristeza; suplantou as pragas pela alegria, e converteu à noite e as trevas em luz de salvação. Foi, então, contaminada a água do rio com o sangue dos ternos meninos. Por isso entrou no Egito o que tinha convertido a água em sangue, comunicou às águas vivas o poder de aflorar a salvação, e purificou-as de seu lodo e impureza com a virtude do Espírito. Os egípcios foram atormentados e enfurecidos, e não reconheceram a Deus. Entrou, pois, Jesus no Egito e, transbordando as almas religiosas do conhecimento de Deus, deu ao rio o poder de fecundar uma messe de mártires mais copiosa que a messe de grãos. O que mais direi, ou como seguir falando? Vejo a um artesão e um presépio; vejo a um menino e os panos do berço, vejo o parto da Virgem carente do mais indispensável, todo marcado pela mais premente necessidade; tudo sob a mais absoluta pobreza. Tem visto fulgores de riqueza na mais extrema pobreza? Como, sendo rico, fez-se tão pobre por nossa causa? Como é que não dispôs nem de leito nem de cobertores, mas somente foi depositado em um despojado presépio? Ó tesouro de riqueza, dissimulado debaixo da aparência de pobreza! Repousa no presépio, e faz tremer o orbe da terra; é envolto em panos, e rompe as cadeias do pecado; ainda não consegue articular palavra, e instrui aos magos induzindo-os à conversão. O que mais direi, ou como seguir falando? Vejam a um menino envolto em panos e que descansa em um presépio; com ele está Maria, que é Virgem e Mãe; José lhe acompanhava, aquele que é chamado de pai. José era somente o esposo: foi o Espírito quem a cobriu com a sua sombra. Por isso José estava em um mar de dúvidas, e não sabia como chamar ao menino. Esta é a razão pela qual, aflito pela dúvida, recebe, por meio do anjo, um oráculo do céu: José, não tenha dúvida em levar a tua mulher, pois o que nela foi gerado procede do Espírito Santo. De fato, o Espírito Santo cobriu a Virgem com a sua sombra. E por que ele nasce da Virgem e conserva intacta a sua virgindade? Ora, porque em outro tempo o diabo enganou a virgem Eva; por isso a Maria, que deu à luz sendo virgem, foi Gabriel quem lhe comunicou a abençoada notícia. É verdade que a seduzida Eva deu à luz uma palavra que introduziu a morte; porém, também é verdade que, com Maria, acolhendo a alegre notícia, gerou ao Verbo na carne, e que nos mereceu a vida eterna. 2) São João Crisóstomo, bispo e doutor da Igreja (séc. V) Sermão 9 sobre o Evangelho de São Mateus “Para que se cumprisse que seria chamado nazareno” Morto já Herodes, o anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e lhe disse: Levanta-te, pega o menino e sua mãe, e vai-te para a terra de Israel. Já não disse: foge; mas vai-te. Aconselha o descanso depois da prova? Porque José voltou depois do desterro, regressou a sua pátria e pôde ver ao assassino dos meninos inocentes já morto. Mas apenas retornou para a pátria e se encontrou com as relíquias dos antigos perigos. Porque vivia e reinava um filho do tirano. Perguntarás: Como foi que Arquelau reinasse na Judeia, sendo governador Pilatos? A morte de Herodes era recente, e seu reino ainda não tinha se dividido em várias partes. Pela morte de Herodes, ficou com o poder seu filho. Mas porque o irmão de Arquelau também se chamava Herodes, o evangelista o distinguiu e disse: Em lugar de seu pai Herodes. Mas, se José temia ir à Judeia por causa de Arquelau, na Galileia era-lhe necessário temer a Herodes filho. Contudo, uma vez que José mudou de lugar, a questão acabou no esquecimento, pois o ataque tinha sido contra Belém e seus territórios. De maneira que Arquelau, uma vez concluída a matança, pensou que tudo tinha terminado e que aquele a quem ele buscava havia perecido entre os muitos que morreram. Por outro lado, tendo visto como seu pai morreu, ele se tornou um tanto moderado e não quis continuar a perseguição nem compartir na perversidade. Assim regressou José a Nazaré, tanto para fugir do perigo, como para viver em sua amada pátria. E para que procedesse com maior confiança, recebeu acerca disso o oráculo da parte do anjo. Entretanto, Lucas não diz que José tinha ido a Nazaré por força da profecia; mas que, tendo terminado o (rito) da purificação, desceram a Nazaré. O que dizer sobre isto? Que Lucas o disse falando do tempo que precedeu a fuga ao Egito. Porque não disse que foram lá antes da purificação, a fim de que em nada se transgredisse a lei; mas que esperaram até que concluíssem a Purificação e regressassem a Nazaré, e depois foram ao Egito. Já regressados do Egito, diz o evangelista que retornaram a Nazaré. Na primeira vez nenhum oráculo lhes avisou que regressassem, mas que por vontade própria fossem a sua amada pátria. Não tendo ido a Belém a não ser por motivo do censo, e não tendo encontrado lugar na hospedaria para deter-se, apenas terminada a questão voltaram a Nazaré. Agora, ao invés disso, o anjo os faz regressar a sua casa, para que ali se estabeleçam. E isto não sem motivo, mas porque assim estava profetizado. Para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas, que se chamaria Nazareno. Qual dos profetas disseisto? Não o perguntes, nem o examines com vã curiosidade. Muitos livros proféticos pereceram, como pode ver-se pelos Paralipômenos... 1º de janeiro Santa Maria, Mãe de Deus LEITURAS: Nm 6,22-27; Sl 66; Gl 4,4-7 EVANGELHO: Lc 2,16-21 SANTOS PADRES: 1) Santo Agostinho, bispo e doutor da Igreja (séc. V) Carta 140,6.11 (CSEL 44, 158-159; 162-163) “Foi enviado Filho, não por adoção, mas por geração eterna” Porém, quando se cumpriu o tempo em que a graça, oculta no Antigo Testamento, ia revelar-se no Novo, enviou Deus a seu Filho, nascido de uma mulher. Sob este nome compreende a língua hebraica a qualquer mulher, casada ou solteira. E para que conheças a que filho enviou e quis que nascesse de uma mulher, e saibas quão grande é esse Deus que, pela salvação dos fiéis, dignou-se assumir nossa humilde condição, observa agora ao Evangelho: No princípio já existia a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. A Palavra no princípio estava junto a Deus. Assim, este Deus, Palavra de Deus, mediante a qual tudo se fez, é o Filho de Deus, imutável, onipresente, incircunscrito, e, não sendo suscetível de divisão, está íntegro em todas as partes; está presente inclusive na inteligência dos ímpios, mesmo quando não o veem, da mesma maneira que a luz natural não é percebida pelos olhos do cego. Resplandece também entre aquelas trevas às quais alude o Apóstolo quando diz: Antes éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Enviou, pois, Deus a seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob a lei. Ele se submeteu à observância da lei, para resgatar aos que estavam debaixo da lei, ou seja, aos que a lei tinha como escravos do pecado pela letra que mata, já que é impossível cumprir plenamente o preceito sem a vivificação do Espírito. Porque o amor de Deus, que é a plenitude da lei, foi derramado em nossos corações com o Espírito Santo que nos foi dado. Por isso, depois de ter dito: para resgatar aos que estavam sob a lei, acrescentou logo em seguida: Para que recebêssemos o ser filhos por adoção. Assim distingue a graça deste benefício daquela natureza do Filho, que foi enviado Filho, não por adoção, mas por geração eterna. Deste modo, feito partícipe da natureza dos filhos dos homens, pode adotar aos homens, tornando-os partícipes de sua própria natureza. Por isto mesmo, ao dizer: deu-lhes o poder para se tornarem filhos de Deus, esclareceu a forma para evitar que fosse interpretado como um nascimento carnal. Deu semelhante poder aos que creem em seu nome e, pela graça espiritual, renascem não do sangue, nem do amor carnal, nem do amor humano, mas de Deus, colocando imediatamente em evidência o mistério desta reciprocidade. E como se, assombrados por tamanha maravilha, não ousássemos aspirar a consegui-la, acrescenta imediatamente: E a Palavra se fez carne, e habitou entre nós. Como se dissesse: Não desespereis, ó homens, de poder chegar um dia a serem filhos de Deus, quando o próprio Filho de Deus, ou seja, a Palavra de Deus, fez-se carne e habitou entre nós. Fazei o mesmo, espiritualizai-vos e vivam naquele que se fez carne e habitou entre vós. Doravante, não devemos nos desesperar, homens, de podermos chegar a ser, pela participação da Palavra, filhos de Deus, agora que o Filho de Deus chegou a ser, pela participação da carne, filho do homem. 2) Rufino de Aquileia (séc. V) Explicação do símbolo apostólico, 8 “Nasceu da Virgem Maria” Que nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo. Este nascimento entre os homens é devido à dispensação divina, o resultado da sua condescendência; ao passo que o anterior (na eternidade) é da própria substância divina, da essência de sua natureza. Nasceu da Virgem Maria por obra do Espírito Santo. Aqui é imperioso um ouvido casto e um espírito puro, a fim de que compreendas que o Espírito Santo preparou um templo no recôndito do ventre de uma virgem para aquele de quem você, algum tempo atrás, aprendeu que nascera de modo inefável do Pai. E assim como na santificação do Espírito Santo nenhum pensamento de imperfeição deve ser admitido, da mesma forma no nascimento virginal nenhuma contaminação deve ser imaginada. Por este nascimento foi um novo nascimento dado a este mundo, e apropriadamente (chamado) novo. Pois aquele que é o único Filho no céu é, por consequência, o único Filho na terra; e nasceu de forma singular, assim como nenhum outro jamais foi ou poderá ser. As palavras dos profetas a respeito dele: A Virgem conceberá e dará à luz um Filho, são conhecidas por todos, e são citadas nos evangelhos mais de uma vez. O Profeta Ezequiel também previu a maneira extraordinária do nascimento, chamando Maria figurativamente “o pórtico do Senhor”; o pórtico, isto é, através do qual o Senhor veio ao mundo. Pois ele disse: O pórtico que está fronteiro ao oriente ficará fechado. Ninguém o abrirá, ninguém aí passará, porque o Senhor, Deus de Israel, aí passou; ele permanecerá fechado. O que poderia ser dito com mais clara referência à preservação da condição inviolável da virgem? Esse portão da virgindade foi fechado; através dele o Senhor Deus de Israel entrou; através dele saiu do seio da virgem para este mundo; e o estado virginal manteve-se inviolável, e o pórtico da virgem permaneceu fechado para sempre. Portanto, o Espírito Santo é mencionado como o Criador da carne do Senhor e do seu templo. Partindo deste ponto podes compreender igualmente a majestade do Espírito Santo, pois o Evangelho dá testemunho dele quando o anjo disse a virgem: Ela dará à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo de seus pecados; e ela respondeu, como se fará isso, pois não conheço homem? E o anjo replicou: o Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te envolverá com a sua sombra. Por isso, o ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus. Veja aqui a Trindade, cooperando mutuamente um com os outros. O Espírito Santo é mencionado como descendo sobre a virgem, e o poder do Altíssimo encobrindo-a com sua sombra. Qual é o poder do Altíssimo senão o próprio Cristo, que é o poder e a sabedoria de Deus? Quem é esse poder? A força do Altíssimo. Existe aqui, então, o Altíssimo; existe também o poder do Altíssimo; existe igualmente o Espírito Santo. Esta é a Trindade, em todos os lugares oculta, e em toda parte manifesta, distinta nos nomes e nas pessoas, mas inseparáveis na substância da divindade. E embora só o Filho tenha nascido da virgem, contudo, aí está presente igualmente o Altíssimo, aí está presente também o Espírito Santo, para que sejam santificados tanto a concepção quanto o parto da Virgem. Domingo entre 2 e 8 de janeiro Epifania do Senhor LEITURAS: Is 60,1-6; Sl 71; Ef 3,2-3a.5-6 EVANGELHO: Mt 2,1-12 SANTOS PADRES: 1) São Basílio Magno, doutor da Igreja (séc. IV) Sermão sobre a geração de Cristo (PG 31, 1.471-1.475) “Recebamos também nós essa imensa alegria em nosso coração” A estrela veio parar acima de onde estava o menino. Por isso os magos, ao verem a estrela, transbordaram de alegria. Recebamos também nós essa imensa alegria em nossos corações. É a alegria que os anjos anunciam aos pastores. Adoremos com os magos, demos glória com os pastores, dancemos com os anjos. Porque hoje nasceu um Salvador, que é o Messias, Senhor. O Senhor é Deus: Ele nos ilumina, porém não na condição divina, para atemorizar nossa fragilidade, mas na condição de escravo, para gratificar com a liberdade aos que gemiam debaixo da escravidão. Quem é tão insensível, quem tão ingrato, que não se alegre, não se exulte e não se deleite com tais notícias? Esta é uma festa comum a toda a criação. Que se concedam ao mundo dons celestiais, o arcanjo é enviado a Zacarias e a Maria, forma-se um coro de anjos que cantam: Glória a Deus no céu, e na terra paz aos homens que Deus ama. As estrelas despencam do céu, alguns magos abandonam sua pátria, a terra o recebe em uma gruta. Que todos ofertem algo,que nenhum homem se mostre ingrato. Festejemos a salvação do mundo, celebremos o dia natalício da natureza humana. Hoje ficou cancelada a dívida de Adão. Já não se dirá mais: És pó e ao pó retornarás, mas: “unido ao que vem do céu, serás admitido no céu”. Não será mais dito: Terás filhos com dor, pois é bem-aventurada aquela que deu à luz ao Emanuel e os peitos que o amamentaram. Justamente por isso um menino nos nasceu, um filho nos foi dado: ele leva aos ombros o principado. Junte-se você também aos que, desde o céu, receberam alegres ao Senhor. Pensa nos pastores manando sabedoria, nos pontífices adornados com o dom de profecia, nas mulheres transbordando de júbilo: assim quando Maria é convidada a alegrar-se por Gabriel, assim quando Isabel sente João saltar de alegria em seu ventre. Ana que falava da boa notícia, Simeão que o tomava nos braços, ambos adoravam no menino ao imenso Deus e, longe de desprezar o que viam, exaltam a majestade de sua divindade. Pois a força divina se tornava visível através do corpo humano como a luz atravessa o cristal, refulgindo ante aqueles que tinham purificados os olhos do seu coração. Com os quais oxalá também nós nos encontremos, contemplando face a face a glória do Senhor como em um espelho, para que também nós transformemo-nos em sua imagem com resplendor crescente, pela graça e a benignidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amém. 2) Santo Hilário de Poitiers, doutor da Igreja (séc. IV) Tratado sobre o Salmo 66,3-5 (CSEL 22, 271-273) “Ó Deus, que os povos te louvem!” Que Deus resplandeça sua face sobre nós e tenha piedade de nós. Nós necessitamos a bênção de Deus para que sua face nos ilumine, para que a luz de seu conhecimento irradie-se sobre nossos corações obscurecidos, para que o espírito de sua majestade dissipe a obscuridade de nosso entendimento, e assim possamos gloriar-nos dizendo: Brilhe sobre nós, Senhor, a luz de vossa face. Esta iluminação de sua face sobre nós é dom de sua misericórdia, misericórdia esta que iniciou sua obra em nós com a remissão dos pecados. As palavras que seguem depois nos esclarecem o porquê se pede a iluminação da face de Deus sobre nós. Para que conheçamos na terra os teus caminhos e em todos os povos a tua salvação. Segundo a correta versão grega, pedimos para ser iluminados pela face de Deus para que seja conhecido na terra o seu caminho, que é o ensinamento da vida religiosa: por ela, de fato, caminha-se até Deus. E o ensinamento da vida religiosa é Cristo. Nos evangelhos ele mesmo se identifica com esse ensinamento ao dizer: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. E novamente: Ninguém vai ao Pai a não ser por mim. Que Jesus seja o Salvador, basta analisar o significado do vocábulo para percebê-lo, pois em hebraico Jesus significa “Salvador”. A confirmação desta afirmação a temos no que diz o anjo ao falar com José sobre Maria: Dará à luz um Filho, e lhe porás por nome Jesus, porque ele salvará a seu povo de seus pecados. Portanto, o anjo afirma que a razão pela qual se deve nomeá-lo de Jesus é porque ele está chamado a ser o Salvador do povo. Os apóstolos se confessam incapazes de pregar a mensagem evangélica se não são iluminados, se não irradiam um pouco do esplendor da face do Senhor. Pois, segundo o Evangelho, também eles são luz do mundo. Porém, o Senhor é a luz verdadeira que ilumina a apóstolos e profetas para que também eles possam ser luz. A toda esta pregação profética e apostólica deve seguir o louvor dos povos e a alegria pela remissão dos pecados; e não somente pela remissão dos pecados, mas também pela certeza de que o mesmo que perdoou os pecados julgará aos povos com equidade, e conduzirá pelo caminho da vida a todas as nações da terra que, abandonando o erro da idolatria, são instruídas no conhecimento de Deus. Por isso acrescenta o salmista: Ó Deus, que te louvem as nações, que todos os povos te louvem, porque reges o mundo com justiça e governas as nações da terra. A expressão “que os povos te louvem” parece designar aos crentes ou aos que no futuro crerão procedentes das doze tribos de Israel, enquanto que as palavras “que todos os povos te louvem” não exclui povo algum. O texto “cantam de alegria as nações, porque rege o mundo com justiça e governa as nações da terra” indica como causa da alegria a esperança do juízo eterno e o ingresso das nações no caminho da vida. Domingo entre 9 e 13 de janeiro Batismo do Senhor LEITURAS: Is 42,1-4.6-7; Sl 28; At 10,34-38 EVANGELHO: Mt 3,13-17 SANTOS PADRES: 1) São Gregório Taumaturgo (séc. III) Sermão 4 [atribuído] na Santa teofania (PG 10, 1.182-1.183) “Veio a nós aquele que é o esplendor da glória do Pai” Estando você presente é impossível calar, pois eu sou a voz, e precisamente a voz que grita no deserto: preparai o caminho do Senhor. Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Ao nascer, eu tornei fecunda a esterilidade da mãe que me gerou, e, quando ainda era um menino, procurei remédio na mudez de meu pai, recebendo de ti, menino, a graça de fazer milagres. De tua parte, nascido de Maria a Virgem conforme quiseste e da maneira que só tu conheceste, não menosprezaste sua virgindade, mas a preservaste e a mimoseaste juntamente com o apelativo de mãe. Nem a virgindade impediu o teu nascimento, nem o nascimento feriu a virgindade, mas sim que ambas as realidades, o nascimento e a virgindade – realidades opostas se houver –, firmaram um pacto, porque para ti, Criador da natureza, isto é fácil e possível. Eu sou somente homem, partícipe da graça divina; tu, porém, és ao mesmo tempo Deus e homem, pois és benigno e amas com loucura o gênero humano. Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim? Tu que eras ao princípio, e estavas junto a Deus e eras o próprio Deus; tu que és o esplendor da glória do Pai; tu que és a imagem perfeita do perfeito Pai; tu que és a luz verdadeira, que ilumina a todo homem que vem a este mundo; tu que para estar no mundo vieste onde já estavas; tu que te fizeste carne sem converter-se em carne; tu que habitaste entre nós e te tornaste visível aos teus servos na condição de escravo; tu que, com teu santo nome, como uma ponte uniste o céu e a terra: tu vens a mim? Tu, tão imenso, a um homem como eu? O rei ao precursor? O Senhor ao servo? Pois ainda que não tenhas te constrangido de nascer nas humildes condições da humanidade, eu não posso transpassar os limites da natureza. Tenho consciência do abismo que separa a terra do Criador. Conheço a diferença que existe entre o pó da terra e o seu Criador. Sou consciente de que a claridade do teu sol de justiça me supera imensamente, eu que sou a lâmpada de tua graça. E mesmo quando estás revestido da branca nuvem do corpo, contudo, reconheço teu senhorio. Confesso minha condição servil e proclamo tua magnificência. Reconheço a perfeição de teu domínio, e conheço minha própria baixeza e ignomínia. Não sou digno de desatar a correia de tua sandália; como, pois, irei atrever-me a tocar o alto[1] de tua cabeça imaculada? Como estenderei sobre ti minha mão direita, sobre ti que estendeste os céus como uma tenda e estabeleceste a terra sobre as águas? Como abrirei minha mão de servo sobre tua cabeça divina? Como lavar aquele que é imaculado e isento de todo pecado? Como iluminar a própria luz? Que oração pronunciarei sobre ti, sobre ti que acolhes até mesmo as orações dos que não te conhecem? 2) Santo Ambrósio, bispo e doutor da Igreja (séc. IV) Comentário sobre o Salmo 35,4-5 (CCL 64, 52-53) “Ao encarnar-se não perdeu os atributos de sua grandeza” Creio que sobre a pobreza e os sofrimentos do Senhor temos citado os testemunhos muito válidos de dois santos, dos quais um viu e testemunhou, enquanto que o outro foi escolhido somente para testemunhar. Escutemos ainda novos testemunhos sobre a condição servil do Senhor tirados destes testemunhos confiáveis, ou melhor, escutemoso que o próprio Senhor disse de si mesmo pela boca dos dois. Vejamos o que diz: Fala o Senhor, que desde o ventre me formou servo seu, para que lhe trouxesse a Jacó, para que lhe reunisse a Israel. Lembremos que assumiu a condição de servo para reunir ao povo. Eu estava – diz – nas entranhas maternas, e o Senhor pronunciou meu nome. Escutemos qual é o nome que o Pai lhe dá: Vede! A Virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe porá por nome Emanuel, que significa “Deus conosco”. Qual é o nome de Cristo senão o de “Filho de Deus”? Escuta um novo texto. Anunciando sobre Maria a José, também Gabriel tinha dito: Dará à luz um filho, e lhe porás o nome de Jesus. Escuta agora a voz de Deus: E tu, Belém, terra de Judá, não és de modo algum a menor das cidades de Judá; pois de ti sairá um chefe que apascentará meu povo. Observe o mistério: do seio da Virgem nasceu o que é Servo e Senhor ao mesmo tempo: servo para trabalhar, Senhor para ordenar, a fim de implantar o reinado de Deus no coração do homem. Ambos são um. Não um do Pai e outro da Virgem, mas sim o mesmo que antes dos séculos foi gerado pelo Pai, e mais tarde se encarnará no seio da Virgem. Por isso é chamado Servo e Senhor: servo por nós, mas pela unidade da natureza divina, Deus de Deus, príncipe de príncipe, igual de igual; pois o Pai não pode gerar um ser inferior a ele e afirmar ao mesmo tempo que no Filho tem as suas complacências. Grande coisa é para ti, diz, que sejas meu servo e restabeleças as tribos de Jacó. Emprega sempre termos adequados a sua dignidade: Grande Deus e grande servo, pois ao encarnar-se não perdeu os atributos de sua grandeza, já que sua grandeza não tem fim. Portanto, é igual enquanto Filho de Deus, assumiu a condição de servo ao encarnar-se, sofreu a morte aquele cuja grandeza não tem fim, porque o fim da lei é Cristo, e com isso se justifica a todo o que crê, para que todos creiamos nele e lhe adoremos com profundo afeto. Bendita servidão que a todos nos concedeu a liberdade; bendita servidão que lhe valeu o “nome acima de todo nome”; bendita humildade que fez que ao nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra, no abismo, e toda língua proclame: Jesus Cristo é Senhor para a glória de Deus Pai. [1]. Literalmente: cocuruto. Tempo da Quaresma Quarta-feira de Cinzas LEITURAS: Jl 2,12-18; Sl 50; 2Cor 5,20–6,2 EVANGELHO: Mt 6,1-6.16-18 SANTOS PADRES: 1) São João Crisóstomo, doutor da Igreja (séc. V) Discurso 3 contra os judeus (PG 48, 867-868) “Jejuamos por nossos pecados, pois vamos aproximar-nos dos sagrados mistérios” Por que jejuamos durante estes quarenta dias? No passado, muitos se aproximavam dos sagrados mistérios temerariamente e sem nenhuma preparação, especialmente nestes dias em que Cristo entregou-se a si próprio. Por esse motivo, os Padres, conscientes do prejuízo que podia se derivar dessa aproximação irresponsável aos mistérios, julgaram oportuno prescrever quarenta dias de jejum, de orações, de escuta da Palavra de Deus e de assembleias, para que todos, diligentemente purificados pela oração, a esmola, o jejum, as vigílias, as lágrimas, a confissão e demais obras, possamos aproximar-nos dos sagrados mistérios com a consciência limpa, conforme nossa capacidade receptiva. A experiência nos diz que, com esta decisão unânime, asseguraram, inclusive para os tempos vindouros, algo grandioso e maravilhoso, conseguindo fazer-nos chegar à habitual observância do jejum. De fato, ainda que durante o ano todo nós não nos cansamos de pregar e proclamar o jejum, ninguém presta atenção às nossas palavras. Por outro lado, apenas anunciando a Quaresma, ainda que ninguém incentive, ainda que ninguém exorte, até o mais negligente se reanima e acolhe as exortações e os estímulos que nos faz este mesmo tempo quaresmal. Portanto, se alguém te pergunta por que jejuas, não digas que é pela Páscoa, nem sequer que é pela cruz. De fato, não jejuamos nem pela Páscoa nem pela cruz, mas por causa de nossos pecados, pois vamos aproximar-nos dos sagrados mistérios. Ademais, a Páscoa não é motivo de jejum ou de luto, mas de alegria e de júbilo. Finalmente, a cruz tomou sobre si o pecado, foi expiação pelo mundo inteiro e reconciliação de um ódio entranhado, abriu às portas do céu, devolveu a amizade aos que antes eram inimigos, nos fez subir ao céu, colocou a nossa natureza à direita do trono, e nos concedeu outros bens inumeráveis. Por isso não devemos chorar e afligir-nos por todas estas coisas, mas sim rejubilar-nos e alegrar-nos. O próprio São Paulo disse: Deus me livre de gloriar-me a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo. E novamente: A prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós quando ainda éramos pecadores. Neste mesmo sentido se expressa claramente São João: Deus tanto amou o mundo. Como o amou? Recusando-se perder todas as outras coisas, ergueu uma cruz. Depois de ter dito: Deus tanto amou o mundo, acrescentou: que entregou a seu Filho único para que o crucificassem, para que não pereça nenhum dos que creem nele, mas tenham a vida eterna. Portanto, se a cruz é motivo de amor e de glorificação, não digamos que nos afligimos por ela. Nunca, jamais choremos pela cruz, mas por nossos pecados. Por isso é que jejuamos. 2) São Basílio Magno, doutor da Igreja (séc. IV) Sermão sobre o jejum 1,2-3 “Corre com alegria ao dom do jejum” Perfuma a cabeça e lava o rosto. Estas palavras da santa Escritura chamam tua atenção há um sentido misterioso. Aquele que foi ungido, ungiu; e o que foi lavado, lavou. Traslada este preceito ao teu interior. Lava tua alma das repugnantes manchas do pecado; unge tua cabeça com o perfume da santidade para que acompanhes a Cristo, e com esta disposição inicie o jejum. Não mudes o tom de teu rosto como fazem os hipócritas; e fique sabendo que a cor de teu rosto se muda quando o afeto interior cobre-se por um hábito exterior simulado, e se cobre com a mentira como com um véu espesso. O hipócrita vem a ser como um cômico que representa outras pessoas: algumas vezes representa ser um Senhor, quando não é mais que um vil criado; outras de ser um rei poderoso, não passando de um desprezível servo. De tal forma que na vida presente, como em uma farsa, muitos passam por uma representação aparente de teatro, porque ocultam uma coisa em seu coração, e manifestam outra em seu semblante. Por isso, não mudes o teu rosto; apresenta- te tal como és na realidade, e não te desfigure em um exterior triste e melancólico, colocando toda a tua glória em que te considerem um homem sóbrio e comedido. A verdade é que aquela prática não deixa nada de útil, porque se revelou como trombeta; nem se tira fruto algum daquele jejum, porque se faz apenas para pública ostentação. Aquelas obras que geram reputação entre os homens de nada servem para o século vindouro, porque terminam com a recomendação e louvor dos outros homens. Portanto, corre com alegria ao dom do jejum. O jejum é um dom, que, apesar de ser muito antigo, nem se deteriora, nem envelhece, mas sempre rejuvenesce com um vigor perpétuo e contínuo. Pensas que eu conto a antiguidade do jejum desde que a lei começou? Pois saiba que o jejum é ainda mais antigo que ela. Pensas um pouco, e verás que é verdade o que te digo... O jejum não é nenhuma invenção nova, mas um tesouro que nos guardaram os antigos, e deles chegou até nós. Tudo aquilo que possui em si a recomendação da antiguidade, ao mesmo tempo é digno de veneração. Venera, pois, e reverencia as cinzas e a antiguidade do jejum. Ele é tão antigo quanto o primeiro homem, porque no paraíso o jejum foi promulgado. O primeiro preceito que teve Adão foi este: Da árvore da ciência do bem e do mal não comereis. Estas palavras, não comereis, expressam uma rigorosa lei de jejum e de abstinência. Se Eva houvesse observado o jejum da árvore, não teríamos necessidade do jejum atual, porque os sãos não necessitam de médico, mas os enfermos. Pelo pecadotodos fomos feridos: esforcemo-nos, portanto, pela penitência. Porém, é penitência vã e infrutuosa a que não vai acompanhada pelo jejum. A terra maldita não produzirá senão espinhos e abrolhos. Está ordenado que vivas em penitência, e que não te entregue às delícias. Satisfaz, pois, a Deus com o jejum. 1º Domingo da Quaresma LEITURAS: Gn 2,7-9; 3,1-7; Sl 50; Rm 5,12-19 EVANGELHO: Mt 4,1-11 SANTOS PADRES: 1) São Gregório Nazianzeno, doutor da Igreja (séc. IV) Discurso 40,10 (PG 36, 370ss.) “Os cristãos dispõem de meios para superar as tentações” Se o tentador, o inimigo da luz, ataca-te depois do batismo – e certamente o fará, pois tentou até mesmo ao Verbo, meu Deus, oculto na carne, a saber, a própria Luz velada pela humanidade –, sabes como vencê-lo: não temas o combate. Opõe-lhe a água, opõe-lhe o Espírito contra o qual se despedaçarão todos os incandescentes dardos do maligno. Se ele te apresenta tua própria pobreza – de fato, não deixou de fazê-lo com Cristo, recordando-lhe sua fome para incitá-lo a transformar as pedras em pães –, lembre-se de sua resposta. Ensina-lhe o que parece não ter aprendido; opõe-lhe aquela palavra de vida, que é o pão descido do céu e que dá a vida ao mundo. Se ele te tenta com a vanglória – como fez com Jesus quando o levou ao desfiladeiro do templo e lhe disse: Lança-te daqui abaixo para demonstrar tua divindade –, não se deixe levar pela soberba. Se ele te vencer nisto, não vai parar por aqui: ele é insaciável e te quer por inteiro; mostra-se complacente, de aspecto bondoso, porém acaba sempre confundindo o bem com o mal. É a sua estratégia. Este ladrão é inclusive um perito conhecedor da Escritura. No texto o está escrito se refere ao pão; mais abaixo, refere- se aos anjos. E, de fato, está escrito: dará ordens aos seus anjos a teu respeito, e eles te levarão nas mãos. Ó sofista da mentira! Por que te calas sobre o que segue? Porém, ainda que tu o silencie, eu o conheço perfeitamente. Segue o texto: sobre a serpente e a víbora andarás, calcarás aos pés o leão e o dragão; protegido e amparado – aqui se entende – pela Trindade. Se ele te tenta com a avareza, mostrando-te em um instante todos os reinos como se te pertencessem e exigindo-te que o adores, despreza-o como a um mesquinho. Amparado pelo sinal da cruz, diga-lhe: Eu também sou imagem de Deus; contudo não fui, como tu, precipitado do céu por soberba; estou revestido de Cristo, pelo batismo. Cristo se tornou minha herança; és tu que deve adorar-me. Creia-me, a estas palavras ele se retirará, vencido e envergonhado, de todos aqueles que foram iluminados, como se retirou de Cristo, a luz primordial. Estes são os benefícios que o batismo confere àqueles que reconhecem a força da graça; estes são os suntuosos banquetes que oferece a quem sofre uma fome digna de louvor. 2) São Leão Magno, papa (séc. V) Sermão na Quaresma 1,3-5 “Entramos no combate da santidade” Entramos, amadíssimos, na Quaresma, isto é, em uma maior fidelidade ao serviço do Senhor. Vem a ser como se entrássemos em combate de santidade. Portanto, preparemos nossas almas às investidas das tentações, sabendo que, quanto mais zelosos nos mostremos de nossa salvação, mais violentamente nos atacarão nossos adversários. Porém, aquele que habita no meio de nós é mais forte que aquele que luta contra nós. Nossa fortaleza vem dele, em cujo poder temos posto nossa confiança. O Senhor permitiu que o tentador lhe visitasse, para que nós recebêssemos, além da força de seu socorro, o ensinamento de seu exemplo. Acabais de ouvi-lo: venceu o seu adversário com as palavras da Lei, não com o vigor de seu braço. Sem dúvida, sua humanidade obteve mais glória e foi maior o castigo do adversário ao triunfar do inimigo dos homens como mortal, em vez de como Deus. Combateu para ensinar-nos a combater após Ele. Venceu para que nós, do mesmo modo, sejamos também vencedores. Pois não há, amadíssimos, atos de virtude sem a experiência das tentações, nem fé sem prova, nem combate sem inimigo, nem vitória sem batalha. A vida transcorre em meio a emboscadas, em meio de sobressaltos. Se não queremos ver-nos surpreendidos, devemos vigiar. Se pretendermos vencer, temos de lutar. Por isso disse Salomão quando era sábio: filho, se entras no serviço do Senhor, prepara tua alma para a tentação. Cheio da ciência de Deus, sabia que não há fervor sem esforço e combates. E prevendo os perigos, os adverte a fim de que estejamos preparados para repelir os ataques do tentador. Instruídos pelo ensinamento divino, amadíssimos, entremos no estádio escutando o que o apóstolo nos disse sobre este combate: nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados, contra as potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas. Não nos enganemos: Estes inimigos que desejam perder-nos compreendem muito bem que contra eles se encaminha todo o nosso esforço em favor de nossa salvação. Por isso, cada vez que desejamos algum bem, provocamos ao adversário. Entre eles e nós existe uma oposição entranhada, fomentada pelo diabo, porque, tendo eles sido despojados dos bens que nos advêm da graça de Deus, nossa justificação lhes tortura. Quando nós nos levantamos, eles submergem. Quando revitalizamos nossas forças, eles perdem a sua. Nossos remédios são as chagas de Cristo, pois a cura de nossas feridas os entristece: estejam, portanto, alertas, diz o apóstolo; cingi vossos rins com a verdade, revestidos da couraça da justiça, e os pés calçados de prontidão para anunciar o Evangelho da paz. Embraçai a todo o momento o escudo da fé, com que possais apagar os dardos inflamados do maligno. Tomai, enfim, o capacete da salvação e a espada do espírito, que é a Palavra de Deus. Foi-nos dado o escudo da fé para proteger todo o corpo, colocou em nossa cabeça o capacete da salvação, colocou em nossas mãos a espada, ou seja, a palavra de verdade. Assim, o herói da luta do espírito não somente está resguardado das feridas, mas também pode lesar a quem o ataca. Confiando nestas armas, entremos sem preguiça e sem temor na luta que nos é proposta, e, neste estádio em que se combate pelo jejum, não nos contentemos apenas em abster-se da comida. De nada serve que se debilite a força do corpo, se não se alimenta o vigor da alma. Mortifiquemos algo ao homem exterior, e restauremos ao interior. Privemos a carne de seu alimento corporal, e adquiramos forças na alma com as delícias espirituais. Que todo cristão observe-se detidamente, e com um severo exame esquadrinhe o fundo do seu coração. 2º Domingo da Quaresma LEITURAS: Gn 12,1-4a; Sl 32; 2Tm 1,8b-10 EVANGELHO: Mt 17,1-9 SANTOS PADRES: 1) Santo Efrém, diácono e doutor da Igreja (séc. IV) Sermão sobre a transfiguração 1,3-4 (Opera omnia quae exstant graece. Vol. 2. Roma, 1743, 41- 43) “A transfiguração, suporte da fé dos discípulos” Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Ele os levou até a montanha para mostrar-lhes a glória de sua divindade, e lhes ensinar que ele era o Redentor de Israel, tal como já tinha revelado por seus profetas; e também para prevenir todo escândalo à vista dos sofrimentos que livremente iria sofrer por nós em sua natureza humana. Eles, de fato, o conheciam como homem, mas ignoravam que fosse Deus; conheciam-no como filho de Maria, um homem que vivia com eles no mundo, mas sobre a montanha revelou-lhes que era o Filho de Deus, e o próprio Deus. Eles o tinham visto comer e beber, fatigar-se e descansar, cochilar e dormir, apavorar-se até gotejar de suor, coisas que não pareciam estar em harmonia com sua natureza divina, nem convir à sua humanidade. Por isso os trouxe sobre a montanha, para que o Pai o chamasse seu Filho, e lhes mostrasse que ele era realmente Filho dele, e que ele