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GEOGRAFIA E COMPLEXIDADE Marcos Bernardino de Carvalho Dep. de Geografia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- Brasil Resumo: O debate sobre as possibilidades de construção de abordagens integradas da natureza e da cultura nas ciências sociais, é o tema central deste artigo. Para o seu desenvolvimento, foram eleitos dois momentos bastante ilustrativos dos argumentos, interesses e desafios que acompanharam a história recente do desenvolvimento científico, de uma maneira geral, e das ciências sociais, em particular. Um desses momentos refere-se aos debates havidos, no final do século passado, em torno das obras produzidas por Friedrich Ratzel (1844-1904), especialmente a partir das formulações presentes em sua Anthropogeographie (1882-91), com suas propostas de integração disciplinar e de abordagens hologeicas do complexo terrestre. O outro momento diz respeito aos atuais esforços de pensadores das mais diversas áreas e campos do conhecimento, que investem na construção das ciências da complexidade e na promoção de atitudes transdisciplinares. Como saldo importante da análise desses momentos, o artigo busca evidenciar as contribuições que algumas das formulações ratzelianas podem aduzir ao debate atual em torno das perspectivas para a construção de um conhecimento científico tributário do pensamento complexo. GEOGRAFIA E COMPLEXIDADE(1) Não seria uma novidade afirmar-se que o universo das disciplinas e da institucionalidade científica erigiu-se sobre alicerces disjuntivos e redutores, cujos procedimentos assim poderiam ser caracterizados: "A disjunção isola os objetos não só uns dos outros mas também de seu ambiente e do seu observador. É no mesmo movimento que o pensamento disjuntivo isola as disciplinas umas das outras e insulariza a ciência na sociedade. A redução, essa unifica aquilo que é diverso ou múltiplo, quer àquilo que é elementar, quer àquilo que é quantificável."(2) Das bases lançadas, ainda no século XVII, pelo cogito cartesiano e pelo utilitarismo baconiano, ao apogeu corporativo proporcionado pelos fatos dos anos oitocentos, em que a profissionalização dos fazedores de ciência e os limites rígidos das fronteiras disciplinares se consolidaram, ou se estabeleceram, fortaleceu-se um princípio de simplificação que assentado sobre os mencionados alicerces, disjuntivo-redutores, indicaram o caminho tornado hegemônico no universo dos conhecimentos e dos saberes científicos. Através do artificialismo proporcionado pela eleição e isolamento de objetos específicos, pela desconsideração do ambiente que os envolve e das subjejtivades do observador que os manipula (investiga), fronteiras rígidas e aparentemente intransponíveis foram erguidas e, em torno a cada um desses isolamentos criados, um sem número de disciplinas e corporações desconectadas e desconectantes se estabeleceu. Desse universo corporativo-disciplinar excluiu-se tudo aquilo que não era passível de ser reduzido às equações, enunciados e leis da classificação e do controle, preferentemente matemáticos. http://www.ub.es/geocrit/carva.htm http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_2_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_1_ Sem lugar para a diversidade ou para a particularidade fenomênica, no universo dos modelos e métodos pré-estabelecidos, não só passou a imperar o artficialismo de separações inexistentes, mas também a coação das convivências forçadas, desrespeitadora do singular, do múltiplo e do diverso. Tal postura, separadora do inseparável e uniformizadora do diverso, não se restringe apenas às ações disciplinares, nos momentos em que estas perscrutam os objetos eleitos como exclusivamente seus, mas também contaminou muitos dos procedimentos cognitivos nos quais a própria ciência ou quaisquer uma de suas disciplinas, convertem- se nos objetos definidos por alguma investigação. Assim, ao examinarmos a história de várias dessas disciplinas, não raro nos deparamos também com inúmeras disjunções e reduções em que determinados pensadores e/ou formulações são agrupados ou separados, segundo os interesses impostos pela linearidade evolutiva da história que se quer contar, ou que se pretende construir. No chamado campo das ciências humanas ou sociais, os vínculos que tais histórias nos revelam, quando o interesse é o de entender, por exemplo, o desenvolvimento da geografia, restringem-se aos liames (concordantes ou não) estabelecidos entre figuras como Humboldt, Ritter, Ratzel, La Blache, etc., com seus respectivos pensamentos, ou então, caso o interesse se volte para outras disciplinas particulares, ainda dentro desse mesmo campo das humanidades, como a antropologia, a sociologia ou a historiografia, são outros os agrupamentos que vemos desfilar, tais como aqueles pertencentes às "linhagens" usualmente estabelecidas a partir da evocação dos nomes ou das formulações de personalidades como Durkheim, Mauss, Malinowski, Febvre, Bloch, etc, apenas para citarmos alguns. Claro que quando o foco dos nossos interesses se dirige para os outros grandes campos das formulações científicas, como os das ciências físicas e biológicas (que, diga-se de passagem, são aquelas a que alguns atribuem o qualificativo de ciências propriamente ditas) as lembranças de outras personalidades e de outras formulações, é que são freqüentemente as mais evocadas. Tudo se passa, em suma, como se também na histórias das ciências e de suas disciplinas um modelo de evolucionismo linear, irreversível, produtor de linhagens, espécies e isolamentos, igualmente se verificasse. Mas, se abondonássemos o vício da simplificação que as condutas disciplinadas apenas por pardigmas evolucionistas (lineares), disjuntivos ou redutores, nos impõem, outras possibilidades de conexões, outros cruzamentos de personalidades e de formulações, outras histórias, poderiam, enfim, descortinarem-se em nossos horizontes de análises: "Muitas vezes se compara a evolução da ciência à das espécies, na sua descrição mais clássica: arborescência de disciplinas cada vez mais diversas e especializadas, progresso irreversível e unidirecional. Gostaríamos de propor passar da imagem biológica à geológica, porque aquilo que por nós foi descrito é antes da ordem do deslizamento que da mutação. Questões abandonadas ou negadas por uma disciplina passaram silenciosamente para outra, ressurgiram em um novo contexto teórico. Seu percurso, subterrâneo e de superfície, parece-nos manifestar o trabalho surdo de algumas questões que determinaram o estabelecimento de comunicação profunda para além da proliferação das disciplinas. E é muitas vezes nas intersecções entre disciplinas, por ocasião da convergência entre vias de aproximação separadas, que são ressucitados problemas que se julgavam resolvidos..." (3) . Movidos em parte por princípios como esses, sintetizados nas imagens de Prigogine e Stengers, dedicamo-nos recentemente à investigação dos caminhos que conduziram ao estabelecimento de algumas das principais disciplinas integrantes das chamadas ciências sociais, seus agrupamentos corporativos e, conseqüentemente, à intitucionalização dos isolamentos cognitivos que entre eles se estabeleceu(4). Das necessidades atuais de construção de conhecimentos mais conectados, menos isolados pela rigidez imposta por fronteiras corporativo-disciplinares, é que extraímos a motivação central para a desenvolvimento da mencionada investigação. Hoje questiona-se não só a extrema fragmentação dos conhecimentos, mas também o artificialismo simplificador que classifica tais conhecimentos em físico-naturais, de um lado, ou humano-sociais, de outro. A construção de abordagens integradas da natureza e da cultura deixa de ser vista apenas como uma nostalgia romântica de formulações típicas dos séculos XVIII e XIX, ou como um desvairioreducionista de renitentes positivistas, impondo-se como uma necessidade para a compreensão de um mundo cujas fronteiras culturais, históricas, políticas, não se expressam em escalas menores do que as fronteiras do próprio geóide e com elas tecem um emaranhado complexo, dificilmente desvendado por instrumentos pautados apenas na redução e na disjunção. Motivados por tais questionamentos e necessidades fomos remetidos às próprias origens do processo de institucionalização das diversas fronteiras disciplinares. Se remontarmos às origens desse processo, especialmente aquele que se desenvolveu entre algumas das chamadas ciências humanas, encontraremos inúmeras situações de diálogo e de trânsito disciplinar, cuja recuperação pode nos indicar caminhos, muitos deles interrompidos ou abandonados, capazes de sugerir alternativas para algumas das pretendidas renovações do espírito e do pensamento científico da atualidade. Uma dessas situações, rica em debates e de intensa troca disciplinar que, em muitos casos, questionava até mesmo algumas das pretensões das então nascentes especialidades científicas, encontraremos em torno da celeuma criada a partir da proposta sugerida por Friedrich Ratzel (1844-1904), que, entre outras coisas, pretendeu conferir caráter científico às investigações dos fenômenos humanos. O episódio a que fazemos referência ainda não mereceu a devida atenção por parte daqueles que se dispõem na atualidade a refletir sobre o conhecimento científico, ou, quando muito, teve a sua abrangência e a sua importância reduzidas ao âmbito dos debates internos à ciência geográfica, mais especificamente à geografia humana, da qual Ratzel é considerado um dos pais fundadores. As razões dessa pouca atenção e desse reducionismo vinculam-se, em nossa opinião, ao resultado de um processo que, ao optar pela consagração da rigidez analítico-corporativa das ciências humanas, preferiu não só romper com o diálogo aberto pelas propostas ratzelianas, mas também dificultar flexibilidades nas fronteiras das disciplinas integrantes das chamadas humanidades. Dos conteúdos das principais obras de Ratzel, - Anthropogeographie, Völkerkunde, Politische Geographie e Die Erde und das Leben -, e dos debates de que foram alvo, especialmente nas páginas do L'Année Sociologique, dos Annales de Géographie e nos textos de Lucien Febvre, é possível extrair elementos capazes de nos revelar um grande potencial de contribuição do legado ratzeliano para o http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_4_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_3_ debate da atualidade, desde que não descuidemos das diferenças óbvias de contextos que envolvem esses dois momentos de uma intensa discussão, desencadeada pela mesma temática relacionada aos dilemas e às perspectivas do conhecimento científico, mas com um século de diferença, ou seja, exatamente a distância que aparentemente separa a Antropogeografia, sugerida por Ratzel, dos desafios transdisciplinares do presente. A despeito, no entanto, dessas diferenças, há que se assinalar as similitudes de algumas das perspectivas debatidas em ambos os momentos. Um debate, como aquele que presidiu a segunda metade do século XIX, entre os fundamentos positivistas, naturalistas ou darwinistas, e os historicistas, que na Alemanha atingiu o seu apogeu na primeira metade do século passado(5), não é uma discussão estranha aos tempos atuais, em que os embates entre as perspectivas eco-biológicas e as histórico-culturais também se fazem presentes com grande intensidade. Derivações dessas discussões, tais como as disputas entre horizontes epistemológicos que privilegiam ou as abordagens de conjunto ou as que se pautam em subtotalidades, também não são novidades introduzidas apenas agora pelos confrontos entre modernos e pós-modernos, mas acompanharam igualmente os desenvolvimentos das formulações positivistas, historicistas e funcionalistas que, do século XIX ao início deste, foram produzidas pelos pensadores e cientistas de então, particularmente na França, na Inglaterra e na Alemanha. Ratzel é um pensador cuja obra foi produzida exatamente na Alemanha desse período, fim do século XIX e início do século XX. Tanto em sua formação, como em sua obra incorporou os diversos fundamentos e horizontes epistemológicos que na época se debatiam. Formou-se como naturalista, atraído, como tantos outros, pelo fascínio do evolucionismo darwinista que empolgou a ciência nas últimas décadas dos anos oitocentos, mas, suas principais obras descendem da pena de um pensador que, convertido às humanidades, dedicou-se à investigação dos processos civilizatórios e das relações entre a história das populações humanas e a história da própria Terra, ou entre os fatos culturais e os telúricos. Aparentemente, Ratzel moveu-se do positivismo ao historicismo, mas seria uma precipitação simplificadora qualquer caracterização nesse sentido, pois, ao examinarmos algumas das suas obras, várias de suas formulações dificilmente poderiam ser enquadradas com tranqüilidade em quaisquer reduções esquemáticas. As obras e as idéias de Friedrich Ratzel Entre os anos de 1882 e 1902, as principais obras de Ratzel vieram a público. Tratam-se de quatro títulos, distribuídos em oito volumes que, no total, somam mais de 5.500 páginas. Destas, cerca de 5.000 páginas, correspondentes ao primeiro volume de Anthropogeographie, aos textos integrais de Völkerkunde e Die Erde und das Leben, e a uma versão parcial de Politische Geographie, já foram traduzidas para o castelhano, o inglês, o italiano e o francês(6) O exame de tais obras nos oferece um panorama razoavelmente completo das investigações de Ratzel, dos termos de suas propostas para a construção de um novo campo de conhecimentos -- a antropogeografia --, ou dos conceitos que, segundo o professor de Leipzig, deveriam fundamentar pretensões interessadas no entendimento do http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_6_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_5_ complexo terrestre, considerando o conjunto de seus elementos constitutivos, sejam eles físico-biológicos ou histórico-culturais. (7) A partir daí é possível demonstrar a atualidade da formulação antropogeográfica, principalmente examinando as coincidências de muitas de suas preocupações com algumas daquelas que apenas modernamente se formularam e se admitiram, apesar da trajetória de desgastes, de estigmatizações e de depreciação a que Ratzel e sua obra foram, em muitos casos, submetidos. Entre as quatro obras mencionadas, as três primeiramente publicadas -- Anthropogeographie, Völkerkunde e Politische Geographie -- compõem um conjunto de formulações complementares. A última das grandes obras de Ratzel, Die Erde..., evidencia essa complementaridade, sintetizando, reafirmando e aprofundando muitos dos desenvolvimentos e conceitos presentes nas anteriores. Independentemente das diferenças de conteúdo e dos propósitos específicos que possam estar presentes em cada uma dessas obras, há uma insistência, por parte de Ratzel, em restringir as respectivas abordagens à condição de tributárias de um conhecimento maior que se quer construir. Dessa maneira, estabelece-se uma espécie de vínculo natural entre elas, na medida em que, a despeito do tema tratado (geografia política, etnografia, distribuição geográfica das sociedades humanas ou características ambientais das diversas regiões do planeta), o objetivo é argumentar e demonstrar as conexões existentes entre todas as coisas presentes na Terra. Logo no início da introdução da Antropogeografia, tais propósitos são anunciados: "Nossa Terra constitui em si um único complexo graças à força da gravidade a que obedecem todos os corpos e todos os seres; e esse complexo é também conectado ao espaço externo, mantido no sistema solar pela mesma forçae alimentado por aquela fonte inesgotável de força viva representada pelo Sol. Mas, todas as coisas sobre a Terra encontram-se ligadas e unidas por uma ordem de tão profunda necessidade, que só a abundância de seus desenvolvimentos singulares é que permite às vezes vislumbrar a afinidade que as cimenta"(8). O seu conceito de "complexo Terra" funda-se na idéia da existência de conexões entre sistemas ou organismos dos mais diversos tipos. Tais conexões não se compreendem, tampouco se verificam, sem a consideração da componente espacial. Daí Ratzel considerar a necessidade de agregar, aos estudos da difusão da vida no planeta, a referência geográfica, e, dessa forma, compor uma ciência geral, já há algum tempo existente, a biogeografia, mas que, em rigor só se funda ou se completa, enquanto referência de totalidade, com a instituição de um de seus "ramos": a antropogeografia.(9) Para Ratzel, a "geografia é antes de tudo uma ecologia"(10) . Essa "ecologia", cuja matriz inspiradora encontraremos em E. Haeckel, se distingue, no entanto, e desde o início, da perspectiva biologista, ao direcionar os esforços de suas preocupações no sentido da compreensão das dinâmicas humanas. Tais dinâmicas apresentam as particularidades de desfrutar um certo grau de liberdade e também de ascendência sobre as demais. E isto, segundo Ratzel, deve ser realçado, sobretudo quando o que se pretende é a compreensão da evolução da fisionomia planetária: "Em verdade, na história desta evolução, as plantas influenciaram as plantas, os animais influenciaram os animais, e estes aquelas e vice-versa; mas nenhum outro organismo exerceu uma influência tão ampla e extensa sobre os outros seres como fez o homem, transformando de maneira http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_10_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_9_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_8_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_7_ muito profunda a fisionomia da vida na Terra." Assim, a biogeografia de Ratzel se distingue da biologia pela mesma razão pela qual sua "ecologia humana" se distinguirá da ecologia sugerida por Haeckel Essa "ecologia ratzeliana" se recusa a desvincular a dinâmica que preside as particularidades da geografia dos homens dos outros universos de conexões que envolvem todas as formas de vida presentes no planeta(11) . Essa insistência de Ratzel em destacar a diferença entre a biologia e a biogeografia (uma biogeografia, se poderia dizer, fundada no conteúdo antropogeográfico) traduzia uma necessidade de marcar formulações pretensamente menos negligentes com as referências de conjunto e, portanto, diversas daquelas até então praticadas pelas ciências vigentes. Para Ratzel era preciso superar o legado científico fundado em separações inexistentes: «Nos séculos passados a ciência entendia que a compreensão da vida orgânica não era possível se não se considerasse a vida como completamente separada da Terra. A energia vital era entendida como algo totalmente distinto de todas as outras forças da natureza denominada "morta"». Assim, a ciência que se deveria formular não poderia deixar de considerar a Terra como unidade de diversos elementos, inclusive o humano: "A nossa ciência tem que estudar a Terra unida, como ela é, incluindo o homem, por isso não pode afastar-se do estudo da vida humana, e nem mesmo do da vida vegetal e animal. As mútuas relações existentes entre a Terra e a vida, que nela se produz e se desenvolve, constituem precisamente o nexo entre uma e outra e portanto devem ser especialmente consideradas." A consideração dessa "unidade terrestre", sob uma perspectiva antropogeográfica, implicava a necessidade de enfrentar, com o devido cuidado e rigor, as formulações que buscavam dar conta do relacionamento entre os integrantes dessa unidade, especialmente aquele estabelecido entre a humanidade e o meio físico. Nesse ponto, a despeito de alguns de seus críticos afirmarem que nas propostas de Ratzel a ação humana é vista como passiva diante das determinações físico-ambientais, a posição do pensador alemão é clara: "A maior parte das influências que a natureza exerce sobre a vida espiritual do homem manifesta-se por meio das condições econômicas e sociais, as quais são, por sua vez, com elas profundamente coligadas." Segundo Ratzel, portanto, o homem estabelece com a natureza uma relação intermediada pelo esforço de seu trabalho e de suas ordenações sociais. Por via desse esforço, conquista-se uma aparente autonomia, mas que outra coisa não é senão a própria revelação de atributos naturais da dinâmica humana. Assim, o homem, para Ratzel, não deve ser visto apenas como parte da natureza, mas como integrante e resultado de sua dinâmica evolutiva, ou, em suas próprias palavras: "foi a partir dela que ele se constituiu, e não sem que a natureza gravasse em seu ser e da forma mais múltipla o próprio sinal." O ponto de vista ratzeliano admite modificação na qualidade dos vínculos e mecanismos de interdependência entre o homem e a natureza, mas recusa-se a observar, nessas modificações, qualquer quebra na unidade complexa formada pelos integrantes do sistema Terra: "Alguns etnógrafos têm sustentado que o progresso da civilização não consiste em outra coisa que não seja uma maior libertação, das pessoas, das condições naturais do território; contrariamente a isso, nós podemos afirmar que a diferença entre povos primitivos e civilizados não reside no grau, mas sim no tipo de vínculo existente entre o http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_11_ homem e a natureza. A civilização é independente da natureza não no sentido de um completo afastamento, mas sim no sentido do estabelecimento de vínculos mais diversos, mais vastos e menos imperiosos." Se, para Ratzel, aquilo a que se assistia era uma sofisticação, através de uma "associação mais complexa, mais ampla e menos imperiosa", das relações entre populações humanas e os outros elementos da natureza, também os instrumentos científicos, pretendentes a compreender os processos humanos, deveriam evoluir num ritmo semelhante, isto é, pautados em discursos menos excludentes ou menos fundados em autonomias e independências inexistentes. A partir da elaboração de discursos pautados no procedimento geográfico, consequentemente antropogeográfico, Ratzel via a possibilidade de construção de áreas de conhecimento com características pouco restritivas, que se diferenciavam de outras ciências, principalmente por causa do alcance das suas observações: "Se é verdade que a geografia investiga os mesmos fenômenos que são estudados também por outras ciências, todavia o seu método se distingue por causa de sua tendência natural a ultrapassar seus próprios muros, realizando uma observação que eu denominarei hologeica(12), ou seja, abraçadora de toda a Terra." É através da defesa dessa postura e pretensão hologeicas, realçada como uma das principais qualidades de sua formulação antropogeográfica, que Ratzel destaca também a capacidade dessa nova ciência para fazer frente ao excessivo analitismo então vigente: "Nós não desconhecemos a grande ajuda que o critério hologeico traz ao estudo de cada um dos problemas antropogeográficos. Em uma época como a nossa, na qual, por efeito da especialização, cada uma das ciências é dividida em um grande número de pequenos estudos particulares, é uma verdadeira felicidade que na ciência geográfica tal fracionamento não seja ainda muito acentuado, de forma que a investigação possa ser dirigida e conduzida sobre uma base ampla, possibilitando a descoberta de campos investigativos completamente novos." Em sua obra seguinte, Völkerkunde, encontraremos algumas reafirmações e desenvolvimentos de muitas dessas idéias discutidas naprimeira parte de Anthropogeographie, com reproduções quase integrais dos mesmos textos, sobretudo aqueles referentes ao equacionamento das relações homem-meio. Aqui, no entanto, merece destaque um breve desenvolvimento, feito nas páginas introdutórias de Las Razas Humanas, de interessante polêmica acerca dos perigos oferecidos, segundo a concepção de Ratzel, pela adoção cega do evolucionismo darwinista nos procedimentos investigativos: «Quando um investigador, completamente encharcado pela teoria evolucionista, encontra algum povo que, sob algumas ou muitas circunstâncias, se acha "atrás" de seus semelhantes, converte involuntariamente este "atrás" em "abaixo", quer dizer em um degrau inferior da escada pela qual a humanidade subiu desde o estado primitivo até o cume da civilização.»(13) Ratzel, nesse tema, parece querer adotar uma posição de fato avessa a qualquer predeterminação ou preconcepção acerca do posto ocupado pela humanidade, ou parte dela, na escala evolutiva, pois considera igualmente condenável, frente à teoria da "superioridade e progresso inexoráveis", "outra que parte de uma idéia tão individualista e extravagante como a que preside aquela, ou seja, a de que o homem veio ao mundo como ser civilizado e que os povos selvagens se acham, desde aquela época, submetidos http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_13_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_12_ a uma degradação que, avançando no sentido inverso, os converteu naquilo que hoje equivocadamente se denomina povos naturais." Ratzel, em diálogo direto com Darwin, a quem faz questão de considerar como "grande pensador" que deve ser eximido de maior responsabilidade pelo destino "radicalizado" de uma teoria "concebida com grande moderação", não deixa de apontar, no entanto, alguns dos vícios estimuladores dessa "radicalização" presentes na própria obra de Darwin: «Em sua obra "Origem do Homem" não pôde, mais de uma vez, evitar a tentação de imaginar a humanidade diferente do que ela é em realidade, ela é inferior, pelo que faz a seus membros mais degradados, ou mesmo aos animais; o que não denota um estudo feito com a serenidade necessária.» Aí Ratzel evidentemente ofereceu uma resposta igualmente exagerada à idéia de superioridade, ao defender a de "inferioridade", mas em seu esforço se pode reconhecer pelo menos o mérito de rechaçar as investigações viciadas dos processos humanos. Tal tratamento polêmico, que Ratzel dispensa em Völkerkunde aos evolucionistas e ao próprio Darwin, se soma a algumas das críticas por ele já apontadas no primeiro capítulo da Anthropogeographie aos "positivistas e outros filósofos da ciência", quanto à questão da previsibilidade e linearidade dos processos evolutivos e, conseqüentemente, dos processos cognitivos. Politische Geographie e uma síntese integradora final: Die Erde und das Leben Diferentemente de Völkerkunde, a consideração de Politische Geographie, com o propósito de dela extrair as contribuições, ou reafirmações, de Ratzel à discussão relacionada com a formulação científica e seus aspectos teórico-epistemológicos, exigiria a observação de um número mais ampliado de seções. A argumentação em torno da complexidade do objeto da geografia política, o Estado-território, é uma das tônicas do livro, o que nos dá inclusive a impressão de que, embora não seja essa a intenção declarada, Politische Geographie é também um extenso argumento em prol de instrumentos científicos igualmente complexos e capazes de dar conta das exigências investigativas do conjunto de fatores políticos, econômicos e geográficos que envolvem o entendimento do mencionado objeto. Nesse sentido, Ratzel se recusa a adotar os caminhos da simplificação que ou propõem associações mecânicas entre as dinâmicas naturais e sociais, normalmente subordinando as segundas às primeiras, ou excluem os componentes telúricos da análise e reduzem as construções humanas, como o Estado, por exemplo, a um fenômeno apenas subordinado à esfera das imposições econômicas ou políticas. Nesse último caso, dos "reducionismos economicistas ou políticos", Ratzel critica aquelas perspectivas de análise praticadas por diversos pensadores que excluem, o "fator espacial" de suas explicações. Quanto às concepções fundadas num "mecanicismo natural-social", Ratzel observa principalmente as inconsistências das comparações entre o Estado e organismos naturais: "A comparação do Estado com os organismos superiores é infecunda; e se tantas tentativas de abordar cientificamente o Estado como organismo têm trazido poucos resultados, a causa principal está na utilidade limitada que tais analogias, entre um agregado humano e a estrutura de um ser orgânico, proporcionam."(14) . http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_14_ Ratzel, parecendo querer reforçar aquela diferença anunciada desde a Anthropogeographie, entre a sua proposta de formulação biogeográfica e as perspectivas biologistas de análise, faz questão de concluir com ênfase sua crítica à concepção orgânica do Estado: "Uma das razões pelas quais a concepção orgânica do Estado é unilateral e incompleta, e proporciona à gênese do Estado uma imagem obscura, ou até mesmo incompreensível, é que ela considera a apropriação econômica do solo sem observar que ela contém implicitamente a captura de uma possessão política." O antropogeógrafo alemão admite, no entanto, a possibilidade de utilização da "concepção orgânica", desde que adotada com o sentido de reforçar as idéias de interdependências de fatores, sugeridas pelas analogias organicistas, e que, no caso específico das construções humanas, não se ignore o fato de que tais "organismos" resultam também da interação de elementos ("geográficos, políticos e econômicos" ) com elevado grau de autonomia. Se a tais idéias -- de "articulação orgânica", consequentemente, de "não isolamento" e de consideração da "importância das escalas abrangentes"-- agregamos todos os outros itens, expostos ao longo da Politische Geographie, tais como apropriação econômica, possessão política, fatores espaciais, características territoriais, realidades telúricas, realidades histórico-sociais, etc., enumeraremos, por fim, todos os termos da complexa equação que Ratzel vai conjugando ao longo de sua obra. Podemos concordar ou discordar de muitos dos conceitos ou afirmações que acompanham a exposição desses termos, mas não há como negar a preocupação e a capacidade de Ratzel, ao sugerir a complexidade da "equação", de chamar a atenção para as igualmente complexas e múltiplas possibilidades de sua solução, que passam, necessariamente, pela formulação de instrumentos científicos abrangentes e sintonizados com tais exigências. Em Anthropogeographie e Völkerkunde, os esforços nesse sentido, como vimos, são nítidos. Nessas obras, Ratzel buscou formular e praticar aquilo que ele mesmo denominou de concepção hologeica, chamando a atenção para a necessária integração de conhecimentos que isto obrigatoriamente exige. Em Politische Geographie, Ratzel anuncia essa necessidade como uma intenção explícita, já no prefácio de sua primeira edição: "Eu me sentirei amplamente recompensado por meu sacrifício se puder contribuir para uma reaproximação das ciências históricas e políticas com a geografia. Convencer-nos-emos, de uma vez por todas, que o conjunto das ciências sociais não pode se desenvolver plenamente sem uma base geográfica. Em contrapartida, nós poderemos contar com a mais fértil das estimulações para a geografia, seja como ciência, seja como disciplina escolar." Tal "reaproximação", para Ratzel, dependeria tanto de convencer historiadores e sociólogos a considerar os fatores geográficos, como de convencer geógrafos a considerarem os fatores humanos, sociaise históricos. Por essa razão, desde a Anthropogeographie, Ratzel, como vimos, também se dirige a seus pares da geografia, instando-os a ampliar suas formulações e incluí-las na perspectiva de uma "ecologia humana". Em Politische Geographie, essa tradição se mantém e Ratzel argumenta que, assim como o solo deveria ser elemento de vivo interesse para os estudiosos do Estado, este, por sua vez, não deveria despertar menos interesse para os investigadores das manifestações territoriais, ou da geografia, se se preferir, produzidas pela propagação da vida no planeta. No sentido de realçar a importância do tema em questão, Ratzel enfatiza: "E assim eles [os Estados] se apresentam como formas definidas e localizadas no espaço, integrando o conjunto de fenômenos que a geografia tem por objeto descrever, avaliar, apresentar e comparar de acordo com os procedimentos científicos. Além do mais, eles se integram também entre os outros fenômenos de propagação da vida, no interior da qual os Estados destacam-se constituídos como o ponto culminante." O Estado, portanto, dessa forma considerado, um dos "pontos culminantes entre outros fenômenos resultantes da difusão da vida", se insere no âmbito da biogeografia geral conceituada por Ratzel, ou mais especificamente, se define como fenômeno antropogeográfico, pois é fator e conseqüência não da difusão de qualquer tipo de vida, mas da vida humana no planeta. Ratzel se vale dessa caracterização antropo(bio)geográfica do Estado para, do prefácio ao final dessa sua obra considerada a mais polêmica, exortar pela aproximação entre os distintos campos do conhecimento envolvidos com o tema. Na última de suas grandes obras, Die erde und das Leben (1901-1902), o professor de Leipzig, como já dissemos, sintetiza, reafirma e aprofunda as principais formulações e análises desenvolvidas ao longo das três obras que vimos examinando até aqui. Quando da publicação de Die Erde und das Leben, algumas importantes análises críticas da Anthropogeographie e especialmente da Politische Geographie já haviam sido veiculadas no L'Année Sociologique e nos Annales de Géographie, em artigos escritos por E. Durkheim, V. de La Blache e L. Raveneau(15) . A despeito de alguns elogios presentes nesses artigos iniciais, principalmente naqueles assinados por La Blache e Raveneau, já se esboçavam críticas contundentes, sobretudo nos artigos de Durkheim, às concepções orgânicas de Ratzel, à demasiada importância que ele conferia aos fatores telúricos, ou às pretensões desmedidas da sua antropogeografia e, conseqüentemente, às "invasões" de territórios do conhecimento, pretendidos por outras ciências sociais, que ela promovia. Portanto, o interesse por Die Erde... reside também no fato de ela poder ser considerada uma espécie de obra-resposta às críticas que então se esboçavam. Apesar de não ser esse o seu propósito explícito, tanto o momento como o contexto de sua publicação nos autorizariam a fazer tal afirmação e assim considerá-la. A estrutura geral dessa obra, se consideramos os seus dois volumes, se pauta pelo desenvolvimento, em todas as suas partes e itens, do eixo temático que seu próprio título anuncia, A Terra e a Vida, e do qual não se exclui nenhum dos elementos, físicos, biológicos ou culturais, que conferem a característica de conjunto que tal título busca expressar. As preocupações epistemológicas, os estímulos às aproximações disciplinares, especialmente entre as chamadas ciências do homem, além das sugestões de caminhos e métodos facilitadores dessas aproximações, também não deixam de ser alvo de importantes desenvolvimentos ao longo da obra. Estão presentes em várias de suas passagens, mas realizam-se particularmente nas introduções de cada um dos dois volumes que a compõe. Nessas partes Ratzel expõe, mais uma vez, as suas convicções acerca das afinidades disciplinares existentes entre a geografia e as demais ciências http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_15_ sociais, retomando as críticas, já desenvolvidas em outras obras, às abordagens fragmentadas, reafirmando as suas idéias de uma biogeografia universal e de uma antropogeografia, que lhe é tributária, como meios para a superação de visões parciais do significado tanto da vida em geral como da ação humana no contexto planetário. Ao retomar essa formulação de uma "biogeografia universal", da qual não se exclui a antropogeografia, Ratzel não deixa de mencionar as inspirações que o levaram a concebê-la -- Herder, Humboldt, Ritter, Wagner, entre outros --, e de saudar os progressos que conduziram a uma percepção unificada das manifestações da vida no planeta: "Estes progressos prepararam o caminho para uma biogeografia universal, a qual concebia a vida animal, vegetal e humana como uma manifestação vital única do planeta. A rígida divisão desta ciência em três ramos abandona o seu projeto original e a desvia para uma ciência que tem por objetivo apenas descrever e classificar"(16). A idéia da organicidade telúrica e a concepção hologeica, propriamente ditas, são invocadas mais explicitamente no segundo volume dessa sua última grande obra. Neste, após retomar a crítica aos procedimentos fragmentados, apontando inclusive para as incorreções metodológicas que eles acarretam, tais como um "precipitado abandono do conjunto"(17) , que, na opinião do autor, deveria ser sempre o ponto de partida de qualquer atitude investigativa -- "Nós devemos em primeiro lugar considerar e estudar o conjunto" --, Ratzel sintetiza a sua idéia de concepção orgânica e hologeica do espaço terrestre: "Esta concepção da Terra que considera o elemento sólido, o líquido e o aéreo, de maneira semelhante a cada forma de vida que deles emana e neles floresce, como um todo indivisível, coligado com a história por ações recíprocas e ininterruptas, nós chamamos de concepção orgânica da Terra e a contrapomos àquela que separa estas partes do globo terrestre, como se elas se encontrassem acidentalmente reunidas, e acredita que possa compreender uma sem a consideração das outras. Quiçá a expressão concepção hologeica seja menos dúbia; mas nós não somos propensos à introdução de neologismos." Apesar de dizer-se não propenso a introduzir o neologismo hologeico, Ratzel, como sabemos, já o havia proposto em Anthropogeographie. Embora raramente o utilize ao longo do desenvolvimento de sua obra, inegavelmente busca pautar suas formulações por abordagens respeitadoras dessa concepção. Tanto nos diversos itens e partes do primeiro volume, como do segundo, essa busca se expressa numa tentativa de sempre indicar as possíveis relações, de cada um dos temas enfocados, normalmente coincidentes com os títulos dessas partes, com os diversos outros componentes do complexo terrestre e, principalmente, com as variadas manifestações de vida do contexto planetário. Nesse sentido, Ratzel, ao desenvolver a última parte dessa sua obra -- La Vita della Terra (págs. 664-818) --, acaba dedicando importantes espaços, ao lado de análises mais "técnicas" dos processos de evolução e difusão da vida sobre o planeta, para "dialogar" com a ciência, de uma maneira geral, e com a geografia, em particular. Lamentando, de certa forma, as fragmentações presentes na "literatura geográfica", na qual as "abordagens só se formulam distinguindo geografia botânica, da geografia zoológica, da geografia antrópica"; Ratzel insiste na importância de se compreender "a unidade telúrica da vida", recuperando argumentos que ele próprio afirma vir desenvolvendo desde sua Anthropogeographie, na qual "tratou de dar um fundamento consistente para essa necessidade de uma compreensão hologeica da vida", o que envolve não só uma http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_17_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_16_ percepção das conexões entre "os três reinos do vivente", mas entreestes e a natureza inorgânica da Terra: "Sobre nossa Terra tudo é coligado e conectado de uma maneira tão profunda, que apenas a riqueza dos desenvolvimentos singulares pode, por vezes, nos levar a descuidar do fato de que esta mútua dependência abrange, ao mesmo tempo, a substância e a força, o interno e o externo, a pedra e a vida." O homem, para Ratzel, evidentemente também se insere nesse mesmo contexto de conexões e coligações, e assim deveria ser percebido pelas ciências que o têm como objeto: "Nascido sobre a Terra e formado das substâncias desta, desenvolveu-se por uma longa série de ancestrais de origens igualmente vinculadas com a Terra, o homem não pode ser concebido de outra maneira a não ser a partir de seus vínculos com a Terra." À consideração desses vínculos orgânicos existentes entre a Terra e o homem, Ratzel adiciona os "vínculos existentes entre os próprios homens", reafirmando a sua crença na existência de processos e características comuns a todos eles, tais como "razão, religião, linguagem, instrumentos de civilização...", que, em sua opinião, reforçariam aquela percepção unitária da humanidade, exposta de maneira mais completa e detalhada principalmente em sua obra Völkerkunde. Para a compreensão de todos estes vínculos e da complexidade por eles sugerida, Ratzel indica a necessidade de uma prática científica pautada também no reconhecimento das conexões entre as disciplinas interessadas nos temas da Terra, da vida e do homem, insistindo no caráter de cooperação que entre elas deve se estabelecer, apontando, mais uma vez, particularmente as identidades existentes entre história da humanidade e geografia, ou entre esta e história da Terra, todas caracterizadas por Ratzel como "ciências irmãs", em oposição à idéia de ciência auxiliar, de que muitos autores da época passavam a se utilizar em especial quando se referiam à geografia. Nas últimas páginas de Die Erde..., Ratzel, entre outras considerações sobre os processos cognitivos desenvolvidos pela civilização, afirma sua crença no desenvolvimento da ciência, destacando particularmente o seu caráter estimulador da liberdade de pensamento: "A maior contribuição que a ciência introduziu na civilização de nosso tempo não se resume a uma única aquisição, mas a liberdade de pensamento, que permeia toda a nossa vida, que a plasma e sem descanso prossegue na sua elaboração." A obra do professor de Leipzig é concluida com uma espécie de defesa dessa liberdade de pensamento, projetada no espaço global e cosmopolita que Ratzel vê como positivamente assomando do mundo. Num texto aparentemente ignorado por seus detratores, que não raro acusariam Ratzel de um nacionalismo e xenofobia extremados, o autor de Anthropogeographie não só explicita suas simpatias pelo cosmopolitismo e mestiçagem que se "enraízam por toda a Terra" (pág. 818), como projeta o advento de uma "cidadania universal", a partir dos próprios elementos indicadores dos processos de mundialização característicos de seu tempo: "É próprio do nosso tempo! Fala-se de ciência universal, de comércio mundial, de política mundial, e se busca ao mesmo tempo ansiosamente evitar cada sinal que possa revelar que as barreiras nacionais existem para estreitar o olhar que aspira a abraçar o mundo inteiro. Mas é evidente que no progresso da civilização, no incremento da cultura, das comunicações, dos Estados se inscreve uma tendência em direção a uma cidadania universal." Tais constatações, "próprias do tempo de Ratzel", se afirmadas hoje continuariam igualmente apropriadas, incluindo os projetos de uma ciência e de uma cidadania universais. Caso interpretássemos muitas destas ilações, consideradas sobretudo no âmbito das perspectivas hologeicas, também apregoadas por Ratzel, não seria difícil observarmos vínculos e contribuições, que daí se poderia estabelecer ou extrair, para muito daquilo que se debate no presente, tanto no plano do conhecimento científico, como no plano das relações humanas. Mas, antes que os debates atuais se estabelecessem, nos chamando inclusive a atenção para essa necessidade de observar muitas das propostas presentes na obra de Ratzel, desenvolveu-se um largo processo que, considerando a integralidade da formulação a que genericamente denominamos de antropo(bio)geográfica, resultou num aproveitamento no "varejo" e de uma recusa no "atacado", uma vez que as influências dessa formulação diluíram-se em um número ampliado de disciplinas, na sua esteira constituídas; enquanto a constituição de um campo de conhecimentos antropogeográficos foi rechaçada pelas ciências sociais que na virada do século passado se estabeleciam. Antropogeografia: uma formulação rechaçada A formulação da "nova ciência" antropogeográfica pretendida por Friedrich Ratzel gerou inúmeras e diferentes reações. Atendendo ao apelo feito pelo antropogeógrafo, muitos se dispuseram a discutir o mérito de suas análises e conclusões, não deixando, até mesmo, de reconhecer as inúmeras influências de suas propostas na constituição de várias disciplinas. Mas, quanto à instituição de um campo de conhecimentos com pretensões antropo(bio)geográficas e, portanto, com interesses em inúmeros objetos disputados por várias das ciências que se estabeleciam no final do século passado, houve uma razoável convergência de vários pensadores no sentido de rechaçá-lo. Aparentemente, a formulação antropogeográfica, com seu objeto difuso e seu amplo espectro de interesses, foi considerada um obstáculo potencial para o processo de afirmação corporativo-institucional, em que estavam envolvidas as nascentes ciências sociais na virada do século XIX. As reações e os debates desencadeados a partir das obras principais de Ratzel são bastante ilustrativos disso. Inúmeros são os trabalhos produzidos durante esse período relacionados, direta ou indiretamente, com o debate em questão. Alguns dos mais significativos, e suficientemente ilustrativos, encontraremos nas páginas do L'Année Sociologique (fundado por Émile Durkheim em 1897) ou dos Annales de Géographie (fundado por Vidal de La Blache em 1891) e, também, na importante obra de Febvre, La Terre et l'evolution humaine (1922), que juntamente com Marc Bloch fundou, em 1929, os Annales d'Histoire Économique et Sociale. Talvez não tenha havido, na história das ciências sociais, um debate tão intenso entre as suas diversas especialidades e com a participação de sociólogos, antropólogos, geógrafos e historiadores debruçando-se sobre um mesmo tema, como aquele que se desenvolveu nas páginas das publicações mencionadas(18) Apesar dos Annales de Géographie terem sido fundados antes do L'Année Sociologique, é nas páginas deste último que o debate se inicia, desenvolvendo-se uma espécie de disputa por fatias do conhecimento entre a pretendida Morfologia Social, fundada por Durkheim, e aAntropogeografia de Ratzel. http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_18_ Os adeptos da Morfologia Social, definida como tributária dos estudos sociológicos, julgavam-na mais qualificada do que a Antropogeografia para conduzir muitas das investigações e estudos propostos por esta última. No L'Année Sociologique há pelo menos dois artigos, com conteúdos bastante ilustrativos da disputa que se estabeleceu, que merecem ser examinados: o artigo de Durkheim para o número de 1898 e o escrito por Mauss & Beuchat no número de 1904-1905. No volume II do L'Année (1898), na Sixième Section, batizada de Morphologie Sociale, E. Durkheim elabora extensa análise de uma das obras capitais de F. Ratzel: Politische Geographie. Ao justificar o novo título da Sixième Section, Durkheim afirma: "A vida social repousa sobre um substrato que é determinado tanto por sua grandeza como por sua forma. O que o constitui é a massa de indivíduos que compõe a sociedade,a maneira pela qual eles estão dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração de todas as coisas que afetam as relações coletivas."(19) Para o autor, a constituição desse "substrato" afeta, direta e indiretamente, todos os fenômenos sociais, portanto justifica-se a necessidade de uma ciência -- a morfologia social -- dedicada ao seu estudo e investigação, mas alerta: "Uma escola de geografia está tentando uma síntese bastante análoga sob o nome de geografia política." O sociólogo francês, no entanto, afirma que a geografia, por causa do seu caráter restritivo, seria incapaz de dar conta das sínteses pretendidas e, como forma de superação do impasse, sugere que a geografia assuma essa sua condição, restrita, preocupando-se com aquilo que ele denomina de elementos "menos essenciais" do "substrato social", ou seja, "o solo, os cursos d'água, as montanhas, etc." Nesse sentido, Durkheim propõe que Ratzel diminua suas pretensões, qualificando-as de vagas e hesitantes, e libere de seus horizontes aqueles objetos pretendidos pela morfologia social: "A idéia em que se apóia M.R. [Monsieur Ratzel] é ainda muito vaga e indeterminada; nós temos apontado essa indeterminação desde o início, mas é necessário insisistir. O autor hesita entre duas concepções muito diferentes. Ora ele parece propor como objeto, à geografia política, as formas que adquirem as sociedades ao se fixarem sobre o solo; e isso é o que faz a morfologia social propriamente dita. Ora ele estabelece como meta a determinação dos efeitos que os ingredientes materiais do solo (rios, montanhas, mares, etc.), exercem sobre o desenvolvimento político dos povos." Para que a geografia de Ratzel deixasse de se confundir com a morfologia social, deveria assumir, portanto, as tarefas sugeridas pelo segundo caminho -- "os efeitos dos ingredientes materiais do solo..." --, e situar-se entre aquelas "ciências especiais tendentes a se pôr em contacto com a sociologia e a adquirir uma forma sociológica." Nos artigos seguintes, publicados no L'Année e assinados ou não pelo próprio Durkheim, as abordagens referentes ao litigio estabelecido entre as duas ciências seguem a mesma tônica inaugurada pelo artigo de 1898, argumentando principalmente sobre a necessidade da antropogeografia ratzeliana restringir a sua pretensão investigativa, ou seja, não invadir os territórios reivindicados pelas outras disciplinas que então se constituiam. No L'Année de 1904-1905 num artigo de Marcel Mauss(20) , um esboço de solução para o litígio é assim enunciado: http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_20_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_19_ "Em uma palavra, o fator telúrico deve ser relacionado ao meio social em sua totalidade e sua complexidade. Ele não pode ser isolado. E da mesma maneira como se estudam os efeitos de todas as categorias da vida coletiva, é preciso investigar suas repercussões. Todas estas questões não são geográficas, mas sociológicas. Se, em lugar da expressão antropogeografia, nós preferimos morfologia social, para designar a disciplina à qual cabem tais investigações, isto não se dá apenas por uma questão de preferência entre neologismos; é que esta diferença de rótulos traduz uma diferença de orientação"(21). Distinguindo as questões sociológicas das geográficas, portanto, definindo os interesses da morfologia social e limitando os da antropogeografia, ao mesmo tempo em que insiste na necessidade de distinguir essas diferentes orientações com distintos rótulos, esse texto de Mauss, por causa do tom mais definitivo que emprestou à questão, bem poderia ser considerado como uma espécie de encerramento da participação de sociólogos e antropólogos no litígio com a proposta ratzeliana. A discussão, no entanto, estava longe de se esgotar. Ela não se encerraria, é claro, antes que outos cientistas sociais, como os geógrafos e os historiadores, manifestassem também suas posições. Os geógrafos, liderados por Vidal de La Blache, percorreram, à sua maneira, a mesma trilha de críticas indicada pelos sociólogos dirigidos por Émile Durkheim. Mas, será com Lucien Febvre, que se impôs a tarefa de transformar as perspectivas lablachianas em um verdadeiro programa para a constituição científica das ciências sociais, que as opções de caminhos e os argumentos contrários às formulações ratzelianas serão expostos e cobrados explícita e enfaticamente. Cremos não ser possível compreender-se a trilha disciplinar adotada pela geografia, pela antropologia, ou pela história e a sociologia, sem considerarmos esse papel protagonista que desempenhou a associação Febvre-La Blache, favorável à morfologia social de Durkheim e contrária à antropogeografia de Ratzel. Dois trabalhos bastariam ser mencionados aqui para ilustrar os caminhos indicados por tal associação: Des caractères distinctifs de la géographie (La Blache, 1913)(22) e La Terre et l'évolution humaine (Febvre, 1922)(23). No artigo de La Blache são feitas inúmeras afirmações, claramente definidoras de terrenos e identidades, que ofereciam um conjunto de respostas tanto ao público interno, como às pressões externas que cobravam da geografia um maior controle das suas "fronteiras". La Blache, dizendo-se impelido a pôr um fim aos diversos mal-entendidos que a idéia de "geografia" vinha suscitando, define de início: "No grupo das ciências naturais, ao qual sem nenhuma dúvida pertence, ela [a geografia] possui um lugar à parte"(24) . Ao definir o campo de filiação da geografia junto às ciências naturais, ou o seu campo de interesses como preponderantemente relacionado aos aspectos físicos da superfície terrestre, ou, ainda, "como ciência essencialmente descritiva", La Blache dá razão a todas aquelas observações feitas por Durkheim e Mauss, sobre as tendências de restrição que investigações conduzidas sob o rótulo da geografia quase sempre apresentam. E como se todas essas definições ainda não fossem suficientes, para oferecer o conjunto de respostas esperado pela comunidade dos cientistas sociais, La Blache arremata com as seguintes afirmações: "A história e a geografia são velhas companheiras que há longo tempo têm caminhado juntas e, como acontece com velhas conhecidas, perderam o hábito de discernir as http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_24_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_23_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_22_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_21_ diferenças que as separam. Longe de mim a intenção de atrapalhar a harmonia dessa convivência. Seria útil, no entanto, que, continuando a prestar serviços recíprocos, elas tivessem consciência precisa das divergências existentes nos seus estímulos e nos seus métodos. A geografia é a ciência dos lugares e não dos homens; ela se interessa pelos eventos da história enquanto eles esclarecem e iluminam, nos lugares onde se produziram, as características, as potencialidades que sem eles ficariam ocultas."(25) Ciência natural, descritiva -- "ciência dos lugares e não dos homens" --, esta é, precisamente, a mensagem que La Blache envia aos seus colegas da geografia e das outras ciências sociais. E com isso sugere rumos precisos, que, caso adotados como referências, permitiriam traçar fronteiras mais nítidas entre todas aquelas disciplinas que, de uma maneira ou de outra, se queixavam das vulnerabilidades e do desrespeito à integridade de seus "territórios" que propostas como as de Ratzel ofereciam. A repercussão desse artigo não seria pequena. Foi muito benvindo entre todos aqueles outros cientistas sociais que, desejosos da tranqüilidade oferecida pelo reconhecimento e respeito a cada um dos territórios conquistados por suas especialidades, estavam ávidos pela consagração das fronteiras analíticas. La Blache, Febvre e a receita de ciência: modéstia e restrição O melhor trabalho para se avaliar o alcance da repercussão do artigo de La Blacheé o livro de Lucien Febvre, a que já fizemos referência: La Terre et l'évolution humaine. O fundador dos Annales d'Histoire, com esse seu livro, pretendeu sistematizar os principais argumentos expostos em toda a contenda disciplinar. Os argumentos dos sociólogos, as pretensões dos geógrafos e o papel dos historiadores são examinados em praticamente todas as páginas da obra, com inúmeras referências aos artigos do L'Année Sociologique, dos Annales de Géographie e aos trabalhos de F. Ratzel. A artilharia pesada de toda sua argumentação, Febvre a descarrega sobre as formulações ratzelianas, e em momento algum deixa de ser claro quanto às suas preferências. Se se refere a Vidal de La Blache e seus artigos, Febvre não economiza em palavras como "excelentes", "sugestivos", "objetivos", etc; mas se o seu alvo é Ratzel ou alguma de suas obras, o historiador francês não utiliza expressões ou palavras menos enfáticas que "mal inspirado", "dogmático", "quimérico", "não científico", etc. Assim, Febvre, elegendo La Blache e Ratzel como pólos opostos dessa discussão, vai tecendo os argumentos que, na sua opinião, contribuiriam para definir principalmente o lugar da ciência geográfica. A argumentação é rica, contundente e, embora se desenvolva em quase todos os capítulos de uma obra de mais de quinhentas páginas, concentra-se, sobretudo, numa longa introdução (44 págs.) e em toda a primeira parte (págs. 45-120), denominadas, respectivamente, "O problema das influências geográficas" e "Como formular o problema/ A questão do método". Apesar de dizer-se, nesses itens introdutórios, não interessado "no detalhe das doutrinas", Febvre não deixa de, a todo momento, marcar, e até mesmo rotular, aquelas que ele entendia como as principais diferenças existentes entre elas, como na seguinte passagem em que sugeriu suas famosas caracterizações -- determinista/possibilista --, para distinguir as escolas geográficas e suas diferenças, cuja repercussão é até hoje motivo de discussão entre geógrafos: «Não nos perguntemos se no bloco das idéias geográficas não existem realmente fendas e se se pode seguir, com a mesma segurança, http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_25_ os "deterministas" do tipo de Ratzel e aqueles que talvez pudéssemos denominar os "possibilistas" do tipo de Vidal»(26). Para desenvolver seu argumento, Febvre se apóia nas últimas posições de La Blache, sobretudo as manifestadas no artigo de 1913. Aí, como ele próprio afirmou, estaria apontado o caminho verdadeiramente científico para a geografia, o que, por conseqüência, permitiria também aparar as muitas arestas, ainda pendentes, entre as diversas disciplinas que com ela se desentenderam, principalmente por causa da desmedida ambição da antropogeografia: «Há uma ciência que pretende constituir-se para responder à seguinte pergunta: "quais são as influências que exerce o meio geográfico sobre as diversas manifestações das sociedades humanas?" Mas esse problema é imenso. Decompõe-se em uma multidão de questões secundárias que são, todas elas, do domínio de ciências claramente distintas. Como, pois, um único homem, incompetente em cada uma destas ciências se tornaria, com o nome de geógrafo, competente em todas elas?». Prosseguindo nessa espécie de alerta, de que há uma ciência se constituindo -- a geografia -- cujo objeto invade o "domínio de ciências claramente distintas", Febvre não só denuncia o "roubo" e identifica as "vítimas" principais, como já esboça uma divisão dos domínios pretendidos: «A geografia assim concebida não é mais que uma rapina audaciosa dos domínios reservados aos economistas e aos sociólogos: não há nenhuma de suas conclusões que não pertença ao domínio de alguma disciplina sociológica especial. Desvanece-se, deve se desvanecer como ciência distinta. Não pode reclamar logicamente para si mais que uma espécie de existência "apendicular", se cabe aqui tal palavra. Só o sociólogo (sociólogo, gênero; demógrafo, etólogo, etc., espécies) tem o direito de tratar, em realidade, com método e cautela, das questões que até o presente os geógrafos reivindicaram temerariamente para si...». O problema maior, para Febvre, não residia nas postulações dos sociólogos às voltas com a institucionalização de sua morfologia social. A principal causa das discórdias parecia vir, de fato, da geografia, com seus "defeitos de uma ciência jovem, exuberante e que não sabe limitar seu domínio próprio, respeitando com isso o domínio dos outros". «Agora -- prossegue Febvre -- compreendemos melhor o que querem dizer os partidários da morfologia social quando denunciam "esta dsiciplina de grandes ambições que denomina a si mesma geografia humana". Os geógrafos querem explicar pela Geografia, ou ao menos reivindicam como objeto de estudo, as sociedades humanas, das menores às maiores, das mais mais rudimentares às mais complicadas... Abusos flagrantes que não cometeria, por sua vez, uma ciência sociológica de objetivos modestos e marcha prudente, por ter um objetivo limitado e fixado de antemão...». Ou seja, como via de solução, havia um "modelo científico" a seguir, como esse, destacado por Febvre e sugerido pela ciência sociológica: "modéstia, marcha prudente, objetivos limitados e fixados de antemão". Bastaria convencer os geógrafos a aderirem ao ritmo da "marcha" sugerida pelos sociólogos, ou, então, descobrir entre eles quem defendesse posições mais próximas desse enquadramento, fortalecê-las e torná-las as mais representativas da corporação geográfica, para que, aparentemente, o debate chegasse ao fim. http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_26_ Essa geografia, merecedora finalmente do aplauso de sociólogos e historiadores, Febvre diz ter encontrado especificamente naquele artigo de La Blache publicado nos Annales de Géographie de 1913. Em um item de seu livro apropriadamente denominado "Uma geografia humana modesta", Febvre recupera trechos integrais do texto de La Blache, especialmente aqueles em que o geógrafo francês destaca as "tarefas especiais da geografia", definindo- a enquanto disciplina filiada ao campo das ciências naturais e, portanto, preocupada principalmente em investigar, nos diversos lugares do planeta, como as leis físicas e biológicas se combinam e modificam a fisionomia da Terra. Febvre considera que por esse caminho seriam encontradas as melhores propostas sugeridas para a geografia; todas elas convergindo para definir o objeto geográfico em torno da "fisionomia das paisagens". O texto de La Blache, especialmente em sua parte final, é saudado por Febvre como uma "tábua de salvação": «"A Geografia, continua dizendo Vidal de La Blache, se interessa pelos acontecimentos da História, na medida em que eles esclarecem e iluminam, nos lugares em que se produzem, características e potencialidades que sem eles permaneceriam ocultas." Definição, como se vê, nítida, estrita e egoisticamente geográfica. E, nesta passagem, o ponto de vista é perfeitamente claro. "A geografia é a ciência dos lugares, não dos homens." Está aí, na verdade, a tábua de salvação.» Ao final de seu livro, Febvre retoma os argumentos desenvolvidos em torno das oposições que ele próprio estabelecera entre as escolas ratzeliana e lablachiana de geografia, condena mais uma vez as pretensões ambiciosas de uma -- antropogeografia -- e elogia a prudência da outra que, "sem se deixar seduzir nem desviar pelas possibilidades ambiciosas, as generalizações temerárias e as pobrezas disfarçadas de verdades filosóficas, todos os inúteis desejos teóricos de um Ratzel...", foi construindo, ainda segundo Febvre, «o plano de investigação de uma "geografia humana" prudente, sadia e fecunda.» A confiança nessa "geografia prudente" e nas possibilidades que ela apontava para a solução do litígio estabelecido entre as ciênciassociais levaram Febvre a dedicar, em tons apoteóticos, o último parágrafo de sua obra exatamente ao enaltecimento dessas qualidades: «Encontramo-nos apenas no dia do Gênesis, em que as trevas começam a separar-se da luz. Uma imensa perspectiva de trabalho se abre diante de nós, historiadores e geógrafos, em um porvir indefinido. Não é hora de acomodar-se na admiração preguiçosa e beata do pobre e pequeno sistema lacônico e estéril que alguns precursores, à custa de um esforço bruto cuja beleza e valor pessoal não discutiremos jamais, edificaram sobre a base mesquinha de um determinismo meio arrogante e meio indecoroso. Há outra coisa melhor à qual nos dedicarmos: trabalhar. Faz muito tempo que Vidal de La Blache disse que o preservativo contra o espírito de generalização prematura é "compor estudos analíticos, monografias nas quais as relações entre as condições geográficas e os fatos sociais sejam considerados de perto, em um campo bem definido e limitado." Este programa não deixa de ser excelente. Resta apenas inspirar-se nele.» Até que ponto a arbitragem de Febvre e essa sua exortação final podem ser responsabilizadas pelos rumos desconectados, assumidos daí em diante pela institucionalidade disciplinar verificada nas diversas ciências sociais, é algo difícil de se dizer com segurança, mas, inegavelmente, esse "programa", de inspiração lablachiana -- defensor do analitismo monográfico, dos limites estreitos e das "definições egoisticamente geográficas", ou históricas, ou sociológicas..., etc. -- tornou-se uma fonte inspiradora para as características desconectadas e desconectantes que assomaram dessas e de outras disciplinas científicas, pelo menos em suas vertentes oficialmente e corporativamente institucionalizadas, ao longo da maior parte deste século. Após examinar os argumentos e expedientes utilizados, tem-se a nítida impressão que o esforço despendido, tanto por Febvre como pelo conjunto dos detratores das formulações ratzelianas, concentrou-se no sentido de afastar Ratzel e suas formulações do terreno onde os litígios se processavam. Tal afastamento, conforme demonstravam, permitiria consolidar, enfim, fronteiras corporativas através das quais, e segundo palavras do próprio Febvre, as "restrições", os "egoísmos" e as "modestas pretensões" prevaleceriam. Conseqüentemente, as novas especialidades analíticas poderiam seguir seus cursos com maior tranqüilidade. Tudo leva a crer que a principal ameaça residia na insistência ratzeliana em não distinguir, com a nitidez então requisitada, os campos de conhecimento e de interesses envolvidos por sua antropogeografia. Começando pelo próprio nome de sua formulação central -- Anthropogeographie(27) --, e prosseguindo nas suas declaradas convicções de que a história, a geografia, a biologia e a etnografia não deveriam estabelecer limites claros entre si, tudo em Ratzel conduzia ao fortalecimento de uma perspectiva diametralmente oposta à fragmentação do conhecimento. Ratzel ousou semear sua antropo(bio)geografia em terrenos que já vinham sendo amplamente ocupados pelas estratégias analítico-corporativas. Ou seja, o antropogeógrafo alemão pretendeu encontrar ressonância para a idéia da interação disciplinar num momento em que era exatamente a separação dos conhecimentos o que mais se buscava. Contudo, não eram só os contornos pouco nítidos, do ponto de vista da divisão disciplinar, de sua proposta antropogeográfica que incomodavam. Também a insistência no estabelecimento de vínculos entre "todas as coisas da Terra", resumida na concepção que Ratzel havia batizado de hologeica, ou as metáforas orgânicas de que ele largamente se utilizou, ou, ainda, os cruzamentos entre ecologia e política, materializados na concepção dos Estados como unidades biogeográficas, etc., compunham os itens que estimularam a inegável predisposição, apenas para encontrar equívocos, com que muitos encaravam sua obra. Os enfoques hologeicos, orgânicos e "eco"-políticos, sinalizavam para esses críticos a presença, na obra de Ratzel, de muitas resistências à superação de horizontes científicos que se desejava ultrapassar. Assim, além do nítido embaralhamento das fronteiras disciplinares, tais leituras, predispostas à crítica, acusaram nas formulações ratzelianas persistências deterministas, positivistas e evolucionistas. Inegavelmente, elementos dessas persistências estão presentes na obra de Ratzel. Mas ele próprio critíca e rechaça muitas delas, em alguns casos com bastante ênfase, como é possível conferir apenas com os trechos de Las Razas Humanas (Völkerkunde) e da Geografia Dell'uomo(Anthropogeographie) que há pouco destacamos. Porém, nos processos de ruptura com o horizonte científico oitocentista (predominantemente evolucionista e positivista, a partir da segunda metade daquele século), parecia não haver espaço para caminhos diferentes dos determinados pelas http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_27_ perspectivas analítico-funcionalistas. Portanto, para romper com as concepções pautadas nas idéias de evoluções unilineares e no monismo ditado pelas ciências naturais, estabeleceu-se a via única da fragmentação especializada do conhecimento e do espaço planetário, em unidades mais autônomas do que articuladas, ou mais justapostas do que integradas. As resistências epistemológicas Hoje, no entanto, o ambiente científico é outro. Formulações que busquem pontos de convergência entre diferentes áreas do conhecimento tendem a ser tão bem-vindas quanto as que buscavam realçar apenas incompatibilidades eram há um século. Além do mais, na atualidade, são muitos os que investem claramente contra a excessiva rigidez das fronteiras disciplinares, apregoando trânsitos mais livres e menos tutelados para o conhecimento. As razões dessa maior receptividade às considerações integradoras podem ser atribuídas a pelo menos duas ordens de fatores. Uma delas, sem dúvida, são as próprias condições evidenciadas hoje nos contextos configurados pelas situações-limite a que fomos levados, não só pela ciência e pela tecnologia, mas também pelas disposições econômicas, políticas, culturais e sociais, que hegemônica ou imperativamente vêm se assenhoreando das escalas planetárias há algum tempo. Mas há também um outro conjunto de fatores, que nos interessa analisar mais de perto, relacionados à configuração de uma certa resistência epistemológica que alimentada pelas contribuições proporcionadas pelos mais diversos campos do conhecimento, não deixou de investir, ou sugerir, desde as origens de todo esse processo, na necessidade da construção de alternativas às reduções e simplificações praticadas pelo exclusivismo analítico-corporativo. Algumas dessas contribuições poderiam ser assim consideradas, como integrantes de uma resistência às atitudes simplificadoras da ciência e do conhecimento, simplesmente por causa das idéias que aduziram, às nossas percepções da realidade, através das "descobertas" e das conclusões fornecidas pelos próprios processos de investigação em torno dos objetos específicos que elegeram; outras, porque resolveram se chocar de frente com o caminho que estava se tornando hegemônico para os processos cognitivos. No primeiro caso, é possível enquadrar, por exemplo, a formulação da segunda lei da termodinamica, pois, no mesmo período -- meados do século XIX -- em que se consagrava o paradigma da ordem natural evolutiva, através da teoria da evolução de Darwin e seu Origem das Espécies, o matemático e físico alemão Clausius (1822-1888) resgatava de um "ostracismo" de aproximadamente cinqüenta anos os esboços e estudos feitos por seu colega francês Carnot (1796-1832) -- "um dos grandes gênios ignorados do século XIX"(28) --, que se converteriam nos princípios da mencionada lei. Tal lei, enunciada finalmente por Clausius, estabelecia o princípio daentropia ou da degradação da energia, como fator também "organizador" do mundo físico e, portanto, introduzia uma perturbação às idealizações em que os modelos da natureza, e, analogamente, os da sociedade, evoluiam (progrediam) porque se fundavam em princípios de ordem. Assim se referiu a esse episódio, E. Morin, às voltas com suas tentativas atuais de construção de um pensamento complexo: "Mas o que me interessava era interrogar-me sobre o problema espantoso que o século XIX nos legava. Por um lado http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_28_ os físicos ensinavam ao mundo um princípio de desordem (o segundo princípio tinha-se tornado um princípio de desordem com Boltzman) que tendia a arruinar qualquer coisa organizada; por outro lado, ao mesmo tempo, os historiadores e os biologistas (Darwin) ensinavam ao mundo que havia um princípio de progressão das coisas organizadas"(29) . Na verdade, como hoje sabemos, não havia aí uma incoerência entre realidades físicas e biológicas, mas sim o desvendamento precoce do caráter multifacetado, dual e intrinsecamente contraditório de uma mesma realidade, que não se organiza ou se desenvolve apenas segundo os princípios da ordem, ou da desordem, mas segundo os princípios de um continuum: ordem-desordem. Evidentemente, num contexto como o do final do século XIX, a descoberta precoce desse continuum ordem-desordem, como faces de uma mesma realidade, dificilmente extravasaria as fronteiras disciplinares da física e seus objetos. Tampouco contaminaria as demais disciplinas que, empenhadas em realizar suas especialidades no âmbito de projetos consoantes com a simplificação analítica, estavam mais preocupadas em traduzir, para as suas respectivas linguagens corporativas, as ordens e os progressos que naquele momento se desvendavam e compunham os alicerces do paradigma dominante. Na verdade, a rigidez e a própria segurança oferecida pelas fronteiras disciplinares, já garantiam mecanismos de defesa contra potenciais "perturbações", como essa trazida pelos físicos. Num universo científico que se erigia às custas das definições de incompatibilidades entre disciplinas, desconexões, obsessão de objetividade e de objetos precisos, etc., as realidades e as dinâmicas também se definiam segundo essas mesmas orientações: o que valia para a física, não necessariamente valeria para a biologia, nem tampouco para o conjunto das outras disciplinas. Do ponto de vista disciplinar, portanto, as questões trazidas pelos princípios termodinâmicos resumiam-se a problemas que diziam respeito, exclusivamente, à realidade física dos fenômenos. Não perturbavam o curso normal das demais disciplinas. E a realidade científica que se desenhava como hegemônica defendia-se das possíveis "intrusões ou perturbações", mesmo daquelas originárias de disciplinas respeitadas como a física, mantendo imperturbável a "geografia" das insularidades disciplinares. Mas a utilização de tal expediente não apresentaria igual eficácia diante de uma formulação como a antropogeográfica, cuja natureza indisciplinada, já que não poderia sequer ser enquadrada como ciência humana ou natural, dificultava o seu isolamento analítico. Definindo-se como uma formulação hologeica, a antropogeografia não só transitava da biologia à história ou da física à antropologia, mas também recusava-se a "abraçar algo menor do que a própria Terra", como definia o próprio Ratzel em sua principal obra. Portanto, a atitude em relação à antropogeografia teria de ser outra. Não era possível isolá-la. A não ser que se admitisse a configuração de uma disciplina pautada por sua formulação. Mas isso seria o equivalente a admitir uma "anti-disciplina", num universo sustentado exclusivamente pelo que era disciplinável. A solução para esse impasse foi aquela que há pouco examinamos: diluição, desfiguramento e dispersão disciplinar da proposta original, estigmatização e vinculação a um conjunto de ismos condenáveis, banimento do universo científico, etc, conforme indicavam os termos da "sentença" proferida pela obra-arbitragem de Lucien Febvre em seu receituário de restrição, egoísmo e modéstia. http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_29_ Mas as resistências contra tal tipo de prescrição não deixaram também de se expandir. E, como dissemos, algumas delas se chocaram de frente com o receituário do reducionismo cognitivo. Gaston Bachelard, por exemplo, pouco mais de uma década após o livro de Febvre ter pretendido consagrar o analitismo cartesiano para as ciências sociais, criticava em seu Le nouvel esprit scientifique, publicado em 1934, aqueles que se recusavam a explicitar a essência do método proposto por Descartes e que, portanto, denominavam de indução o que seria melhor caracterizado por redução: "O método cartesiano é redutivo, não é de modo nenhum indutivo. (...) o método cartesiano que consegue tão bem explicar o Mundo, não consegue complicar a experiência, o que é a verdadeira função da investigação objetiva". "Com que direito se supõe a separação inicial das naturezas simples?", indagava Bachelard(30). Alfred N. Whitehead, alguns anos antes de Bachelard, em 1919, numa célebre série de conferências, reunidas no livro O conceito de Natureza(31), inspirado, como o próprio autor afirma, nos desdobramentos da então recentemente formulada teoria da relatividade de Einstein, investe contra os modelos científicos fundados naquilo que ele denominava "teorias de bifurcação da natureza". Insistindo na necessidade da percepção do mundo como uma "trama de acontecimentos", e não como um conjunto de eventos e coisas de "naturezas bifurcadas", Whitehead adota o princípio da inseparabilidade de dimensões como tempo e espaço, indicando o tipo de relação a ser considerada -- a dimensão do continuum -- por aqueles interessados numa filosofia de captação da unidade complexa da natureza. Na última de suas conferências, o autor expõe o seu entendimento de caminho para uma ciência consideradora dessa complexidade: "Essa longa discussão nos leva à conclusão final de que os fatos concretos da natureza são eventos que revelam uma determinada estrutura em suas relações mútuas e determinados caracteres próprios. A finalidade da ciência é expressar as relações entre esses caracteres em termos das relações estruturais mútuas entre os eventos assim caracterizados. As relações estruturais mútuas entre eventos são tanto espaciais como temporais. Se as concebermos como meramente espaciais, estaremos omitindo o elemento temporal, e se as concebermos como meramente temporais, estaremos omitindo o elemento espacial. Assim, quando consideramos unicamente o espaço, ou unicamente o tempo, estamos lidando com abstrações, ou seja, estamos deixando de lado um elemento essencial na vida da natureza tal como esta se faz conhecer a nós na experiência de nossos sentidos"(32). Bachelard e Whitehead, é certo, estavam sobretudo dialogando com as ciências físicas e matemáticas, mas os modelos que eles criticavam foram claramente inspiradores do analitismo funcionalista, que também pretendeu reduzir os objetos de estudo dos cientistas sociais àquelas unidades simples e funcionais -- igualmente um mundo de "naturezas bifurcadas" -- a que, monograficamente, muitos se dedicaram. Assim, não teríamos por que restringir as observações desenvolvidas por esses autores(33) apenas ao universo das chamadas ciências físicas ou naturais, deixando de estendê-las também às inúmeras bifurcações adotadas pelos diversos procedimentos disciplinares das chamadas humanidades, em suas definições de ciências sociais para o tempo, para o espaço, para as paisagens, para a cultura, para as relações homem-meio, http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_33_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_32_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_31_ http://www.ub.edu/geocrit/sn-34.htm#N_30_
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