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Título original: Historia de la Filosofía © do texto: Juan Manuel Cordón e Tomas Calvo Martínez, 1995 Tradução da antologia de textos: Alberto Gomes; do restante: Departamento Editorial de Edições 70 Revisão: Marcelina Amaral Capa: FBA Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação História da filosofia / Juan Manuel Cordon, Tomas Calvo Martinez. – (Extra-colecção) ISBN 978-972-44-1837-7 I – CALVO MARTÍNEZ, Tomas, 1942- CDU 1 Setembro de 2014 Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa por Edições 70 EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A. Avenida Fontes Pereira de Melo, 31 – 3.º C – 1050-117 Lisboa / Portugal e-mail: geral@edicoes70.pt www.edicoes70.pt Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial. ÍNDICE PRÓLOGO PRIMEIRA PARTE DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA QUADRO SINCRÓNICO 1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-SOCRÁTICOS INTRODUÇÃO 1. O Aparecimento da Filosofia e o Problema da Natureza 2. Os Pré-Socráticos, Modelos de Explicação da Natureza 2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO INTRODUÇÃO 1. Os Sofistas 2. Sócrates 3. Platão 3. ARISTÓTELES. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO INTRODUÇÃO 1. Aristóteles 2. A Filosofia do Período Helenístico 4. CRISTIANISMO E FILOSOFIA. SANTO AGOSTINHO INTRODUÇÃO 1. A confrontação do Cristianismo com a Filosofia 2. O apogeu do Platonismo Cristão. Santo Agostinho 3. Augustinismo e Platonismo Medievais 5. SÃO TOMÁS DE AQUINO E O APOGEU DA ESCOLÁSTICA INTRODUÇÃO 1. O Aristotelismo e a Luta pela Autonomia da Razão 2. Síntese de Aristotelismo e Platonismo em Tomás de Aquino 6. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE ESCOLÁSTICA INTRODUÇÃO 1. Os Limites da Razão e a Primazia da Vontade 2. Guilherme de Ockham e a crise da tradição filosófica 3. As Contribuições Físicas dos Cientistas do Século XIV SEGUNDA PARTE DO RENASCIMENTO À IDADE MODERNA QUADRO SINCRÓNICO 7. O RENASCIMENTO E A ORIGEM DA IDADE MODERNA INTRODUÇÃO 1. O Renascimento e a Transformação da Sociedade Europeia 2. A Tradição Grega e o Novo Antropocentrismo Naturalista 3. O Problema da Infinitude: Cusa e Giordano Bruno 4. Francis Bacon e o seu Conceito da Ciência 8. KEPLER E GALILEU: A LUTA PELO MÉTODO EXPERIMENTAL INTRODUÇÃO 1. A Astronomia Pré-Copernicana 2. Realismo e Matemática: Copérnico 3. Kepler: procura da Pura Racionalidade 4. Galileu e o Método Experimental 5. Método Resolutivo-Compositivo 9. O RACIONALISMO INTRODUÇÃO 1. A Auto-Suficiência da Razão como Fonte de Conhecimento 2. Descartes e a Construção do Universo 3. Espinosa e Leibniz 4. A Matemática como Modelo de Saber 5. Razão e Liberdade 10. O EMPIRISMO INTRODUÇÃO 1. O Empirismo e os Limites do Conhecimento 2. Moral e Política 11. O ILUMINISMO INTRODUÇÃO 1. Enquadramento Histórico e Sociopolítico do Iluminismo 3. Newton e o Problema da Natureza 4. Homem e Deus: o Deísmo e a Religião Natural 5. Homem e Sociedade (Rousseau) 12. O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE KANT INTRODUÇÃO 1. Sentido de uma Crítica da Razão. A Ideia de Filosofia 2. A Natureza e a Razão Teórica 3. A Liberdade e a Tarefa da Razão Prática 4. História e Religião 13. HEGEL E A DIALÉCTICA INTRODUÇÃO 1. Enquadramento Histórico-Social e Filosófico da Obra de Hegel 2. Sentido e Estrutura da Dialéctica 3. O Conceito de Espírito e suas Formas 4. A Esquerda Hegeliana. Feuerbach TERCEIRA PARTE A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA QUADRO SINCRÓNICO 14. O POSITIVISMO DE COMTE INTRODUÇÃO 1. A Sociedade Industrial e o Espírito Positivista 2. Natureza do Saber e Sistema das Ciências 3. A Sociologia e a Positivizacao da Razão 15. O MARXISMO INTRODUÇÃO 1. A Crítica de Marx à Consciência Filosófica 2. As Formas de Alienação e o Humanismo Marxista 3. Materialismo, Dialéctica e História 16. HISTORICISMO E VITALISMO INTRODUÇÃO 1. O Historicismo de Dilthey 2. O Vitalismo de Nietzshe 3. O Raciovitalismo de Ortega y Gasset 4. Vida, Tragédia e Heroísmo: Miguel de Unamuno 17. FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO INTRODUÇÃO 1. A Fenomenologia e a Crise das Ciências 2. O Existencialismo: Existência e Liberdade 18. O PERSONALISMO CRISTÃO INTRODUÇÃO 1. Correntes Personalistas Contemporâneas 2. Contributos Históricos para Orientação Personalista 3. O Personalismo de Mounier 19. O NEOPOSITIVISMO E A FILOSOFIA ANALÍTICA INTRODUÇÃO 1. O Atomismo Lógico: Russell 2. O Neopositivismo Lógico 3. A Filosofia Analítica 20. NATUREZA E CIÊNCIA NO PENSAMENTO ACTUAL INTRODUÇÃO 1. A Física Moderna: Novo Conceito de Natureza 2. Os Desenvolvimentos Actuais na Filosofia da Ciência 21. A CRISE DA CONSCIÊNCIA: NOVO CONCEITO DE RAZÃO INTRODUÇÃO 1. Freud e a Interpretação da Cultura 2. O Estruturalismo e a Crise do Humanismo 3. Razão e Sociedade na Escola de Frankfurt 4. Hermenêutica e Crítica das Ideologias BIBLIOGRAFIA PRÓLOGO A História da Filosofia que apresentamos foi pensada e realizada de acordo com os seguintes critérios: 1. Procurou-se a harmonia entre o rigor, a profundidade e a extensão no tratamento das questões com a máxima clareza na exposição. A consecução deste duplo objectivo só é possível actuando selectivamente. Por isso, neste livro não se inclui indiscriminadamente tudo o que os filósofos disseram, mas tão-somente os problemas, e as respectivas respostas, que são relevantes no desenvolvimento histórico do pensamento ocidental. 2. Em consonância com o ponto anterior, a História da Filosofia é concebida mais como história dos problemas filosóficos do que como história dos filósofos. A exposição organiza-se em torno de três núcleos temáticos fundamentais: problemas relativos à natureza, problemas sociais e problemas antropológicos. 3. Partiu-se do princípio de que a filosofia e os problemas de que ela se ocupa estão sempre inseridos em determinadas coordenadas socio- políticas e culturais. Atende-se, pois, de modo explícito, às circunstâncias históricas a partir das quais a filosofia se apresenta, em cada caso, como consciência de uma época. 4. Em quarto lugar, pretende pôr-se continuamente em evidência a coerência interna que preside ao desenrolar da história do pensamento. Assim, em cada período histórico, em cada tema, procuram fazer-se referências claras e essenciais à forma como o problema da teoria em questão surge ou aparece, de novo, noutros momentos históricos. 5. Por último, e de acordo com as orientações anteriores, pretendemos evitar uma História da Filosofia como crónica das opiniões dos filósofos, expressas em frases estereotipadas, muitas vezes, quando apresentadas isoladas do contexto filosófico em que se encontram inseridas. Somos de opinião de que uma História da Filosofia, pensada de acordo com estes critérios, pode constituir uma adequada realização dos objectivos que lhe cabe cumprir. Possibilitará, assim, assimilar o passado como raiz do nosso presente, para se situar neste de uma forma crítica e reflectida. Do ponto de vista da sua estrutura formal, a obra apresenta as seguintes características: 1. É composta por três partes que correspondem, respectivamente, ao pensamento grego e medieval (1.ª), ao pensamento da Idade Moderna até Hegel (2.ª), e ao pensamento contemporâneo (3.ª). Cada um destes ciclos é precedido de uma introdução geral, bem como de um quadro cronológico no qual se registam, panoramicamente, junto com a cronologia dos filósofos e escolas, as datas dos acontecimentos políticos e culturais mais importantes da época. 2. Cada tema está dividido em alíneas e é precedido de uma introdução que fornece orientações sobre o seu sentido e forma de desenvolvimento. 3. Dado que a exposição se centra nos problemas filosóficos, não cabem nela notas biográficas nem referências às obras dos autores abordados. Estas informações são fornecidas em segmentos do texto separados. 4. Os textos que ilustram as teorias abordadas são também apresentados em segmentos textuais separadose com um tipo de letra diferente. 5. No final do livro inclui-se uma secção de bibliografia fundamental para a ampliação e aprofundamento dos temas tratados, separada por cada parte. PRIMEIRA PARTE DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA A Filosofia surge na Grécia, aproximadamente nos começos do século VI a.C. Como as restantes culturas antigas, a cultura grega fundava-se no Mito, transmitido e ensinado pelos poetas, educadores do povo, especialmente Homero e Hesíodo. Através de complexas narrações e doutrinas sobre os deuses e os homens, sobre as forças que intervêm activamente nos acontecimentos cósmicos e humanos, o mito oferecia respostas orientadoras acerca da natureza e destino do ser humano, acerca da origem e das normas da sociedade em que o indivíduo se encontrava inserido e acerca do aparecimento e estrutura do Cosmos. No dealbar do século VI a.C, e em consonância com as profundas transformações de carácter cultural e social, as inteligências mais despertas sentiram a necessidade de substituir as explicações míticas por outro tipo de explicação justificada de um modo racional. Surgiu, assim, a Filosofia como propósito de racionalizar a interpretação do homem e do Universo, das relações dos homens entre si e destes com a natureza. Se o Mito se caracterizava por dar resposta a todos os enigmas fundamentais susceptíveis de inquietar o homem, a Filosofia caracterizou-se, também, pela radicalidade das suas propostas. A atitude filosófica e radical num duplo sentido: na medida em que as suas questões abarcam a totalidade do real e na medida em que pretende atingir os princípios explicativos últimos do real. Desde o seu nascimento, a Filosofia, enquanto atitude crítica e racionalizadora, constituiu um elemento essencial – se não mesmo o elemento essencial – dinamizador da nossa cultura. Nesta primeira parte ocupar-nos-emos da história da filosofia desde as suas origens até ao final da idade Média. Trata-se de um amplo período histórico de vinte séculos, no qual deveríamos distinguir, por sua vez, dois ciclos ou períodos distintos: o correspondente à Idade Antiga e o correspondente à Idade Média. Esta divisão é, sem dúvida, legítima. No entanto, existem razões de carácter histórico e cultural que nos autorizam a considerar ambos os períodos como pertencendo a um único ciclo filosófico. Em primeiro lugar, consideram-se as relações entre o cristianismo e a filosofia. Por outro lado, a assimilação da filosofia grega pelo cristianismo realiza-se na Idade Antiga: quando o Império Romano é definitivamente derrubado, o pensamento cristão, de orientação grega, platónica, conseguira já uma implantação definitiva que culmina na obra de Santo Agostinho. Por outro lado, a Idade Média prolonga e incrementa esta atitude assimiladora da filosofia grega por parte dos pensadores cristãos: como teremos ocasião de comprovar, o pensamento medieval exprime-se através de esquemas e conceitos gregos. Em segundo lugar, deverá ter-se em conta o carácter específico do pensamento do século XIV, ou seja, do final da Idade Média: a crítica desenvolvida, no século XIV, contra os sistemas filosóficos medievais é, na realidade, uma crítica dirigida contra os esquemas e conceitos gregos assimilados pelo pensamento cristão e nele incorporados desde a Idade Antiga e durante toda a Idade Média. O século XIV marca uma reacção radical contra as bases gregas do pensamento. É certo que o Renascimento verá um ressurgir dos sistemas filosóficos gregos, mas este ressurgir – aliás conjuntural – arrastará consigo uma interpretação da filosofia grega, de sinal muito diferente da interpretação medieval da mesma. As forças que mais radicalmente influenciam a nossa cultura são a Filosofia Grega e o Cristianismo. Hoje, poderemos ser gregos ou antigregos, cristãos ou anticristãos, mas de maneira alguma bárbaros ou pagãos. O estudo da História do pensamento ocidental mostrar-nos-á a profunda verdade desta afirmação. QUADRO SINCRÓNICO 1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ- SOCRÁTICOS INTRODUÇÃO Costuma dizer-se, com razão, que a filosofia e a ciência surgem quando se abandona o mito, substituindo-o pela explicação racional. Utilizamos a expressão «explicação racional» para traduzir o termo grego «logos». A filosofia surge, pois, quando o logos substitui o mito na função de explicar a realidade em toda a sua complexidade: o universo físico, a natureza individual humana, a convivência social com as suas implicações de carácter político e moral. Este acontecimento – abandono do mito, aparecimento da explicação racional ou logos – ocorreu, na cultura grega, por volta do século VI a. C. Duas questões se nos apresentam imediatamente: em primeiro lugar, por que é que este facto transcendental teve lugar na cultura grega e não noutras culturas antigas e porquê precisamente nesta data? Em segundo lugar em que consistem o pensar racional (explicação racional logos) que se lhe opõe? Só uma compreensão adequada deste último, ou seja, do sentido e implicações do pensar racional permitirá compreender a originalidade e vigor com que os filósofos gregos investigaram os problemas do universo físico, do homem e da sociedade. Este capítulo é dedicado às origens da filosofia e aos primeiros filósofos gregos, correntemente denominados pré-socráticos. Na primeira parte abordaremos o aparecimento da explicação racional (logos) em oposição ao mito. Na segunda apresentaremos as ideias fundamentais dos filósofos pré-socráticos mais importantes. A estrutura deste capítulo, dividido em duas partes, é a seguinte: 1. O aparecimento da filosofia e o problema da natureza. 2. Os pré-socráticos. Modelos de explicação da natureza. 1. O APARECIMENTO DA FILOSOFIA E O PROBLEMA DA NATUREZA 1.1. Características gerais da cultura grega A primeira das perguntas que anteriormente formulávamos (porque surge a filosofia na Grécia e não noutra cultura?) não pode obter uma resposta taxativa. É, no entanto, possível salientar algumas circunstâncias que, certamente, influenciaram esse facto. Pretendeu-se, frequentemente, explicar a origem da filosofia pelo recurso à genialidade dos Gregos. Pondo de parte o génio grego (cuja originalidade é tão difícil de negar como difícil é explicar em que consiste), deverão ser tomadas em consideração certas condições socioculturais que tornaram possível o aparecimento da filosofia na Grécia. 1.1.1. Etapa pré-filosófica A Grécia anterior ao aparecimento da filosofia caracteriza-se pelas seguintes circunstâncias: a) Em primeiro lugar, trata-se de uma sociedade aristocrática, agrícola e guerreira (cada reino deve defender a sua riqueza dos seus vizinhos). Isso implica uma determinada estrutura social e determinados ideais morais. A estrutura social é a de uma colectividade dividida em duas classes: a nobreza, que vive despreocupadamente em tempo de paz e que conduz o povo em tempo de guerra, e o povo, fundamentalmente dedicado à agricultura e à criação de gado. No que diz respeito aos ideais morais, os nobres são os depositários únicos da virtude, sendo os valores supremos a linhagem (bom é o de linhagem nobre, mau e vulgar o de linhagem plebeia), o êxito (fracassar é vergonhoso; é-se castigado não por ter agido mal no sentido actual do termo, mas por se ter fracassado) e a fama. É facilmente compreensível que, numa sociedade assim estruturada, não haja lugar para as ideias de justiça e direito, que implicam uma certa igualdade. b) Uma segunda característica própria da cultura grega é que carece de livros sagrados e de um sistema educativo organizado. Esta circunstância é extremamente importante, já que caberá aos poetas e aedos o papel educativo (e, de modo muito particular, a Homero). Homero era para os Gregos algo de muito diferente do que é, hoje, para nós. Para nós, não passa de um poeta que nos brinda com narrativas extremamente belas, imaginativas e ilustrativas. Os Gregos aprendiam em Homero. A sua obra era como que o livro de leitura em que sucessivas gerações aprendiam: 1. a moral e o conjunto dos valoresacima descritos; 2. a teologia. A organização social dos deuses – com Zeus como rei supremo – e as suas formas de comportamento descritas por Homero correspondem totalmente à organização social e ao código moral da sociedade grega que anteriormente descrevemos. A conduta dos deuses (roubos, adultérios, dolos etc.), que mais tarde viria a ser considerada imoral pelos filósofos, está de acordo com a moral aristocrática a que já nos referimos; 3. além da moral e da teologia, os Gregos aprendiam de Homero tudo o que, na realidade, sabiam (ou julgavam saber) sobre história, geografia, navegação, arte militar, cosmologia, etc. Sabe-se que é escassa ou nula a possibilidade de criticar as doutrinas e os dogmas nas sociedades onde existem livros sagrados. Neste aspecto, porém, o carácter peculiar da cultura grega, que carecia de livros sagrados e de uma organização sacerdotal que velasse pela ortodoxia, facilitou a crítica ao conjunto dos ensinamentos homéricos. É esta crítica que constitui o ponto de partida da filosofia. 1.1.2. Etapa filosófica A partir do século VII a. C., operou-se uma profunda transformação na sociedade grega: o comércio assume uma importância definitiva; aparece a moeda, as viagens proporcionam novos conhecimentos técnicos e geográficos, o contacto com outras civilizações e formas de vida e novos conhecimentos de etnologia. A sabedoria popular, representada pelos ensinamentos rotineiros dos poetas antigos, começa a ser encarada como inadequada pelas mentes mais despertas: no que diz respeito à moral, os valores bélicos e aristocráticos encontram-se desfasados, já que as relações comerciais exigem novas normas de justiça e de direito como base para as trocas; no que respeita à teologia homérica, o conhecimento de outros povos origina a convicção de que cada povo e cada raça representam os deuses de maneira diferente; em suma, abre-se caminho à convicção de que a interpretação do Universo e da convivência humana deve assentar em bases inteligíveis e racionais. O que atrás fica dito permite-nos compreender dois factos fundamentais: em primeiro lugar, que a filosofia surge na Grécia como uma crítica da sabedoria popular e rotineira, que pretende suplantar; em segundo lugar, que a crítica ao mito se efectua em todas as frentes (moral, sociologia, teologia, astronomia, cosmologia). Trata-se de uma nova visão da realidade em toda a sua complexidade, uma visão que se esforça por eliminar os pressupostos irracionais do mito. 1.2. Mito e explicação racional (logos) 1.2.1. O mito No parágrafo anterior, utilizámos a palavra «mito» ao referirmo-nos à filosofia como crítica do mito. Em geral, deve entender-se por mito o conjunto de narrativas e doutrinas tradicionais dos poetas (especialmente Homero e Hesíodo) acerca do mundo, do homem e dos deuses. Como conjunto destas narrativas e doutrinas, o mito caracteriza-se por oferecer uma explicação total, que forneça respostas para os problemas e enigmas mais prementes e fundamentais acerca da origem e natureza do Universo, do homem, da civilização e da técnica, da organização social, etc. Ao opor- se às explicações de carácter mítico, a filosofia não renunciará a esta dimensão de resposta última acerca da totalidade do real; pelo contrário, tal dimensão constituirá um dos traços essenciais do pensamento filosófico. Por mito deve entender-se, ainda, não só o conjunto de narrativas tradicionais dos poetas, mas também uma atitude intelectual, algo como uma espécie de esquema mental subjacente a tais explicações. São várias as características específicas do mito assim entendido, isto é, enquanto atitude intelectual perante a realidade. Importa-nos considerar fundamentalmente duas. Em primeiro lugar, as forças naturais (o fogo, o vento, etc.) são personificadas e divinizadas no mito: trata-se de deuses pessoais cuja presença e actuação como tais se faz continuamente sentir no decurso dos acontecimentos. Em segundo lugar e em consonância com o anterior, os fenómenos e acontecimentos do Universo dependem da vontade de um deus (dos deuses em geral). As consequências daí decorrentes são facilmente compreensíveis: os fenómenos naturais – e bem assim a conduta humana, individual e colectiva – são em grande medida imprevisíveis, acontecem de modo arbitrário, no seu decurso dependem da vontade caprichosa da divindade. É óbvio que, dentro destas coordenadas, é impossível haver ciência. A ciência só é possível enquanto procura das leis e das regularidades que regem a natureza; ora, se por princípio se nega a própria existência de leis que regem o Universo, como proceder então para as descobrir? Convém assinalar, por outro lado, que o quadro do pensamento mítico, que estamos a traçar, é em certa medida esquemático. A arbitrariedade no curso dos acontecimentos (sejam humanos ou cósmicos) tem certas limitações mesmo no pensamento mítico. A própria actuação dos deuses está submetida a certas forças de carácter cósmico, como o destino. Estas forças são entidades mais ou menos imprecisas que, ao contrário dos deuses a que anteriormente nos referimos, não são pessoais, mas abstractas. Contra o destino nada podem os homens, nada podem os deuses. Deste modo, o destino acaba por estabelecer uma certa necessidade no acontecer universal. A filosofia por um lado criticará a arbitrariedade das intervenções divinas a que acima nos referimos e, por outro, conservará esta ideia de necessidade, despojando-a do seu carácter ilógico e inescrutável e afirmando-a como uma exigência da racionalidade do real. 1.2.2. A explicação racional (logos) Convém acentuar que a explicação racional ( logos) começa quando a ideia de arbitrariedade é definitivamente suplantada pela ideia de necessidade, ou seja, quando se impõe a convicção de que as coisas acontecem quando e como têm de acontecer. Esta convicção pode hoje parecer-nos elementar, mas constitui certamente uma das mais importantes conquistas da cultura ocidental. Esta ideia de necessidade está associada a um conjunto de ideias que constituem o que podemos denominar coordenadas ou esquema intelectual dentro do qual tem lugar a explicação racional na filosofia grega. a) A ideia de que as coisas acontecem como têm de acontecer está relacionada com a ideia de permanência ou constância. Tomemos um exemplo muito simples: a água comporta-se de maneira constante (por exemplo, ferve e solidifica sempre a determinadas temperaturas); possui, pois, propriedades constantes e, por conseguinte, uma maneira de ser constante ou permanente. Esta maneira de ser constante ou permanente foi denominada pelos Gregos essência (eidos). A essência é o que uma coisa é apesar das suas possíveis mudanças de aparência ou estado. A água do nosso exemplo poderá apresentar-se em estado sólido ou líquido, etc., mas é sempre água. Ou seja, o homem apresentar-se-á sob diversas aparências, idades, raças, culturas, etc., mas em todos estes casos trata-se sempre de homens. Desta forma, o pensamento grego conseguiu estabelecer uma série de conceitos opostos dois a dois, cuja trama constitui o sistema de coordenadas da sua explicação da realidade. Por um lado, temos o que há de permanente nas coisas face ao que nelas há de mutável, face aos seus diferentes estados ou aparências; o permanente constitui, por seu turno, a essência (o que as coisas verdadeiramente são) face às suas aparências (o que as coisas parecem ser); por último, esta maneira de ser constante é o que existe de comum ou idêntico entre seres que apresentam aparências diversas: homens de raças e culturas diferentes etc., têm em comum precisamente o facto de serem homens. A essência é, portanto, o fundamento da unidade das coisas face à multiplicidade dos seus estados e aparências, bem como face à multiplicidade de indivíduos que dela compartilham. Conhecer as coisas será, então, conhecer o que elas verdadeiramente são, o que têm de comum e permanente. Os Gregos estavam firmemente convencidos de que, por muito útil que o conhecimento sensível possa ser, os sentidos não bastam para nos proporcionaresse conhecimento. Pelo contrário, os sentidos mostram-nos uma multiplicidade de indivíduos, de aparências e de estados mutáveis e acidentais. É necessário um esforço intelectual, racional, para atingir o ser das coisas. Deste modo, e em correspondência com a dualidade anteriormente estabelecida (unidade e permanência face à pluralidade e mudança), os Gregos estabeleceram ainda uma dualidade no campo do conhecimento: a razão face aos sentidos. A heterogeneidade do conhecimento racional relativamente ao conhecimento sensível revelou-se aos gregos fundamentalmente no domínio das matemáticas, na descoberta da estrutura matemática subjacente ao real e na especificidade do raciocínio matemático. A distinção entre os dois tipos de conhecimento e a presença de ambos no homem teria, por seu turno, importantes repercussões nas suas ideias antropológicas. O que foi dito pode representar-se por meio deste gráfico: O MITO DE PROMETEU Quando os deuses e os homens se separaram em Mecona, Prometeu ofereceu um boi enorme que dividiu com ânimo resoluto, pensando enganar a inteligência de Zeus. De um lado, pôs a carne, as miudezas, a gordura, ocultando-as no ventre do boi; do outro lado, com astúcia falaz, juntou os ossos descarnados do boi e dissimulou-os, cobrindo-os com gordura luzidia. Então o pai dos homens e dos deuses dirigiu-se a ele: «Filho de Jápeto, o mais ilustre de todos os deuses, amigo meu, repartiste os lotes tão parcialmente!». Assim falou Zeus, conhecedor dos desígnios imortais, em tom de brincadeira. O astuto Prometeu respondeu-lhe com um leve sorriso e não ocultou a sua falaz astúcia: «Zeus, o mais ilustre e poderoso dos deuses sempiternos! Escolhe o lote que o coração no teu peito te dita». Falou certamente com pensamentos falsos. E Zeus, sabedor dos desígnios imortais, reconheceu o logro; mas o seu coração estava já a preparar desgraças para os homens mortais e ia dar-lhes cumprimento. Com ambas as mãos recolheu a gordura branca. As suas entranhas irritaram-se e a cólera atingiu-lhe o coração quando viu os descarnados do boi e a falaz astúcia. Foi a partir daí que sobre a terra as tribos de homens queimam os ossos descarnados para os imortais quando fazem sacrifícios nos altares. E Zeus, pastor das nuvens, terrivelmente indignado, disse a Prometeu: «Filho de Jápeto, conhecedor dos desígnios de todas as coisas, amigo meu, certamente não te esqueceste já da tua falaz astúcia!». Assim falou Zeus colericamente, conhecedor dos desígnios imortais. E desde então lembrou-se sempre deste logro e não deu a infatigável chama de fogo aos fresnos [os homens mortais que habitam sobre a terra]. Mas o sagaz filho de Jápeto ludibriou-o, escondendo numa oca o brilho intenso do incansável fogo. Quando Zeus altissonante viu que os homens possuíam o brilho intenso do fogo, a sua alma feriu-se de novo e o seu coração irritou-se. E imediatamente, como contrapartida para o fogo, preparou uma desgraça para os homens. Por vontade do Crónida, o ilustre Patizambo modelou então em terra uma imagem com aparência de donzela casta. A deusa Atena de olhos glaucos deu-lhe uma faixa e adornou-a com um vestido resplandecente de brancura; cobriu-lhe a cabeça com um magnífico velo bordado pelas suas próprias mãos; e rodeou os seus seios com deliciosas coroas de erva fresca trançada com flores... Logo que preparou o belo mal, em troca de um bem, levou-a para onde estavam os outros deuses e os homens, engalanada com os atavios da deusa de olhos glaucos, filha do poderoso pai; e um espanto enorme se apoderou então dos deuses imortais e dos homens mortais quando viram o espinhoso engano, irresistível para os homens. É desta donzela que descende a estirpe das mulheres feminis [...]. Foi uma grande calamidade para os mortais, dado que a vida dos varões não se conforma com a penúria funesta mas sim com a saciedade. Tal como nas colmeias abobadadas as abelhas alimentam os zangãos sempre ocupados com tarefas mesquinhas (durante todo o dia até ao pôr- do-sol elas afadigam-se diariamente e fazem brancos favos de mel, ao passo que eles aguardam nos favos recobertos e recolhem no seu ventre o esforço alheio), assim também Zeus altissonante fez com que as mulheres, sempre ocupadas com tarefas perniciosas, fossem uma desgraça para os homens mortais. Hesíodo, Teogonia b) Há, pois, essências ou maneiras de ser que são comuns a uma multiplicidade de indivíduos. Nesta ideia se baseia a actividade intelectual que consiste em classificar. Suponhamos agora que, baseando-nos nesta ideia, classificamos globalmente os seres do Universo agrupando-os em minerais, plantas, animais e homens. Deter-se-á aqui o entendimento humano? Decerto que não. O entendimento voltará a fazer a si próprio a mesma pergunta sobre os indivíduos pertencentes a estes grupos. Talvez – pensará – minerais, plantas, animais e homens não sejam senão variedades ou estados distintos de uma única substância, ou então o resultado de combinações várias de umas tantas – poucas – substâncias primeiras e elementares. A busca do permanente e comum está associada a uma segunda convicção fundamental: que todo o Universo se reduz, em última análise, a um ou a poucos elementos. Esta convicção constitui outro dos pilares sobre os quais assenta a investigação racional acerca do Universo. Sem esta convicção, a ciência é igualmente impossível. É esta perspectiva que permite compreender a originalidade e a transcendência histórica da interrogação dos filósofos gregos acerca da arché ou princípio último real. Com efeito, a partir desta perspectiva é possível compreender que a própria interrogação da arché ou princípio é muito mais importante do que as variadas respostas que os filósofos gregos foram sucessivamente tentando. Há pessoas de escassa sensibilidade histórica que se limitam a sublinhar a ingenuidade de Tales de Mileto quando este afirmava que a água é o princípio último de tudo o que é real. A resposta de Tales não é realmente importante. O que é notável e genial é que este filósofo foi o primeiro a formular tal pergunta em toda a sua amplitude e radicalidade. 1.3. A natureza (physis) Nos parágrafos anteriores, procurámos evitar a utilização do termo «natureza». Vamos agora tentar tornar claro o significado e importância desta ideia no pensamento grego, bem como a sua relação com o conjunto de conceitos já expostos que servem de coordenadas à explicação racional ou logos. Comecemos por observar que de um modo geral «natureza» ou «physis» possui para os Gregos, e para nós, dois grandes usos ou acepções. Fala-se frequentemente da natureza como o conjunto de seres que povoam o Universo, excluindo deste conjunto as coisas produzidas pelo homem (mais adiante veremos a importância desta excepção): assim, fala-se actualmente da degradação da natureza provocada pela actividade industrial humana e da necessidade de protegê-la; na linguagem religiosa, diz-se que «a natureza inteira louva o seu Criador», etc. Nesta acepção, a natureza coincide com a totalidade do Universo. É também com frequência que o termo natureza adquire um segundo significado quando o utilizamos para referir classes ou conjuntos de coisas; é o que acontece quando nos interrogamos acerca da natureza humana. Neste caso, natureza quer dizer o que as coisas são, aquilo que (no parágrafo anterior) denominávamos por essência, o modo de ser permanente ou constante. 1.3.1. A natureza segundo os Gregos Estabelecido este duplo uso do termo (como universo na sua totalidade e como ser intrínseco permanente das coisas), salientaremos em seguida os aspectos que caracterizam a natureza) segundo a filosofia grega. a) Em primeiro lugar, o conceito de natureza – e isto é válido para a dupla acepção referida – está indissoluvelmente ligado ao conceito de necessidade a que anteriormente nos referimos. No tocante ao Universo como totalidade, a necessidade traduz-se no facto de aquele ser um todo ordenado, um Cosmos e não um Caos. Ora o Universo só poderia ser um todo ordenado se os diferentes seres que o integram(os astros, a Terra, os elementos, os seres vivos) estivessem no seu lugar e se comportassem da forma que lhes compete; é precisamente a natureza dos diferentes seres (entendida agora no seu sentido próprio e intrínseco) que determina o seu lugar no Universo e a sua maneira de comportar-se. b) A natureza não é algo estático e inerte. O Universo como totalidade revela uma ordem dinâmica na qual os movimentos dos astros, as estações, as gerações dos seres vivos, etc., se sucedem ordenadamente. A natureza é, pois, dinâmica. Negar a mudança e o movimento é negar a natureza. Por isso, Aristóteles chamará aphysikós a Parménides, isto é, negador da natureza, pois Parménides, como mais adiante veremos, negava a possibilidade do movimento. c) A natureza implica, pois, movimento e actividade, mas movimento e actividade intrínsecos e próprios do ser natural. Este terceiro e importantíssimo aspecto marca a separação radical entre os seres naturais e os seres artificiais ou artefactos, isto é, as coisas que são produto do trabalho e da indústria humanos. Uma cadeira, enquanto cadeira, não possui propriedades diferentes das que lhe cabem por força dos materiais naturais de que é feita. Parafraseando Aristóteles, suponhamos que semeamos cadeiras de pinho. Nada crescerá, com certeza. Mas supondo que algo crescesse, não cresceriam cadeiras (felizmente para os carpinteiros) mas pinheiros: estes têm uma actividade intrínseca e própria que uma cadeira – ente artificial – não possui. É precisamente por causa desta actividade intrínseca e própria que caracteriza a natureza que o Universo não pode ser concebido, em geral, pelos Gregos segundo o modelo de uma máquina (o modelo da máquina presidirá à concepção do Universo na modernidade); terá de conceber-se segundo o modelo de um organismo vivo. 1.3.2. Natureza, essência, origem, causa Passemos agora à segunda questão: a relação que esta ideia de natureza mantém com o conjunto de conceitos que anteriormente considerámos como a trama da explicação racional ou logos. Tudo o que até agora expusemos permite-nos compreender esta relação de acordo com as observações seguintes. Enquanto modo de ser próprio e permanente das coisas, a natureza identifica-se realmente com aquilo que denominávamos essência. Existe, no entanto, uma importante diferença de matiz resultante do carácter dinâmico da natureza que assinalámos: a essência é a maneira de ser permanente das coisas por oposição aos seus aspectos variáveis e mutáveis; a natureza é esse mesmo modo de ser permanente, mas só enquanto determina um certo tipo de actividades ou operações próprias. Aplicando esta diferença ao quadro de oposições exposto na secção 1.2.2., diremos que, enquanto a essência prescinde dos aspectos mutáveis e variáveis das coisas, a natureza explica precisamente essas variações e mudanças. O conceito de natureza estabelece, portanto, uma ponte entre os membros das diferentes oposições do gráfico a que nos referimos: é o permanente, mas enquanto explica as mudanças; é o que as coisas realmente são, mas enquanto fundamento do que parecem ser; é o princípio de unidade capaz de gerar a pluralidade. Assim interrogar-se acerca da natureza é interrogar-se sobre o que as coisas são para, a partir daí, explicar os seus movimentos e processos. A pergunta dos filósofos gregos é desde o primeiro momento (desde Tales de Mileto) uma pergunta pela natureza, pela physis. O princípio ou princípios últimos (a água, o ar, etc.) são a natureza das coisas, porque: – são aquilo a partir do qual se geram os seres do Universo. O princípio assim concebido é a origem; – são aquilo em que consistem os seres do Universo (na hipótese de Tales, as coisas não só procedem da água como são, em última análise, água). O princípio assim concebido é o permanente, o substrato último; – são aquilo que é capaz de explicar as diferentes transformações do Universo. O princípio assim concebido é a causa. A interrogação dos filósofos gregos acerca do princípio ou princípios da totalidade do real apresenta, pois, uma dupla característica: a sua radicalidade, na medida em que pretende alcançar o princípio ou princípios últimos e originários; e a sua universalidade, na medida em que aspira a atingir o princípio ou princípios de todo o real. Trata-se, portanto, de uma interrogação filosófica ou, mais exactamente, da interrogação que dá início à filosofia. O SUBSTRACTO MATERIAL COMO ARCHÉ A maioria dos primeiros filósofos pensou que os únicos princípios de todas as coisas eram de natureza material: todos o seres eram assim constituídos, formando-se primeiro a partir disso e nisso se decompondo por último, permanecendo no entanto a entidade por mais que as suas qualidades mudem. Esse era o elemento e o princípio que constituía os seres, e por isso pensaram que nada se gerava nem se destruía porque essa natureza se mantinha sempre a mesma. Do mesmo modo não dizemos que Sócrates é uma entidade total quando se torna belo ou músico, ou que se destrói quando perde tais disposições (já que o sujeito, o próprio Sócrates, permanece); o mesmo acontece relativamente a todas as outras coisas. Por conseguinte, deve haver alguma natureza, seja uma ou mais de uma, a partir da qual tudo é gerado mas conservando-se essa natureza. Aristóteles, Metafísica 1, 3, 993b 6-20. 2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS, MODELOS DE EXPLICAÇÃO DA NATUREZA O tema fundamental de que os primeiros filósofos, os pré-socráticos, se ocupam é a natureza ou physis. Daí também serem frequentemente denominados cosmólogos ou físicos (Aristóteles chamava-lhes physikoi, ou seja, físicos, ou, se preferir, filósofos da natureza). A sua actividade desenvolve-se durante o século VI e a primeira metade do século V a.C. (ver quadro cronológico seguinte). Nem todos os filósofos pré-socráticos propuseram o mesmo modelo de explicação racional da natureza. Exporemos de seguida os diversos modelos a que recorreram. 2.1. Natureza e substrato. A escola de Mileto Embora a ideia de natureza ( physis) remeta para o princípio (arché) e este abarque as ideias de origem, substrato e causa, não podemos deixar de levantar uma séria questão: será possível que uma única realidade ou substância seja capaz de exercer sozinha todas estas funções? Os filósofos de Mileto – Tales, Anaximandro e Anaxímenes – consideraram que era possível, estabelecer um único princípio ou natureza. Tales de Mileto sustentou que esse princípio é a água; Anaximandro considerou que tal princípio não pode ser nenhuma das substâncias concretas que povoam o Universo, já que todas elas procedem desse princípio; por isso chamou ápeiron (o indeterminado, o indefinido) ao princípio; Anaxímenes, finalmente, à semelhança de Tales, recorreu a uma substância determinada e afirmou que o princípio é o ar, do qual todos os seres derivam, através de processos de rarefacção e de condensação. Não se encontram quaisquer escritos de Tales ou de Anaxímenes. Contudo e felizmente, um comentarista de Aristóteles, Simplício (séc, VI d. C.), transmitiu-nos as seguintes e preciosas linhas de Anaximandro: «A geração dos seres existentes tem lugar a partir daquilo que conduz à sua destruição, como é justo e necessário. E indemnizam-se e pagam o seu castigo uns aos outros pelas suas ofensas (ou injustiça: adikía) segundo a ordem do tempo». Nestas linhas, surge poeticamente expressa a ideia de que o Universo constitui um processo em que a destruição de uns seres dá lugar ao surgir de outros seres opostos e vice-versa, bem como a afirmação de que este processo é necessário, alheio a qualquer arbitrariedade, e regular, «segundo a ordem do tempo». 2.2. Natureza e matemáticas. A escola pitagórica Os pitagóricos foram sobretudo matemáticos («os primeiros que fizeram progredir as matemáticas», como diz Aristóteles) e a sua dedicação às matemáticas exerceu influência definitiva na sua explicação acerca da origem da natureza (origem, substrato e causa) do real. Observaram, com efeito, como múltiplas propriedades e comportamentos dos seres reais podem ser formuladosmatematicamente e partiram da hipótese de que todos os seres do Universo – o que são e a sua forma de comportar-se – são formuláveis matematicamente. A partir de então, a ciência beneficiou continuamente desta hipótese, confirmando-a sempre. Tales de Mileto Nascido na segunda metade do século VII a. C., desenvolveu a sua actividade intelectual na primeira metade do século seguinte. Astrónomo (predisse o eclipse do Sol ocorrido no ano de 585 a. C.), engenheiro e matemático (formulou o teorema que tem o seu nome), Tales é considerado o primeiro filósofo grego ao introduzir a investigação racional acerca do princípio ou arché do real. Compatrício, discípulo e sucessor de Tales foi Anaximandro nascido talvez nos últimos anos do século VII a. C. e que morreu em meados do século VI. Foi também astrónomo, geómetra e geógrafo (desenhou um mapa do mundo) e escreveu uma obra que – como muitas outras dos filósofos pré-socráticos – foi posteriormente intitulada Acerca da Natureza. De Mileto foi também Anaxímenes, um pouco mais jovem do que Anaximandro. Sabemos muito pouco a seu respeito, salvo que escreveu também uma obra acerca da natureza na qual expunha as suas teorias. Pitágoras A sua maturidade situa-se por volta do ano 530 a. C. Nasceu em Samos, mas emigrou para a Grande Grécia, estabelecendo-se em Crotona onde fundou a sua escola. A sua figura depressa se converteu em lenda. Atribui-se-lhe a invenção da tábua de multiplicação e do teorema que tem o seu nome. Visto que nada escreveu, torna-se impossível distinguir as suas próprias contribuições das da sua escola. A escola pitagórica foi uma comunidade singular de carácter científico, religioso e político. No campo científico, cultivaram especialmente a matemática, a música e a astronomia. No âmbito religioso, afirmavam a imortalidade da alma e a sua transmigração, atribuindo uma importância fundamental à sua purificação através do conhecimento e de um sistema de vida rigidamente regulado por proibições. No campo político, apoiavam o partido dórico e exerceram o poder durante muito tempo, até que, a meio do século V a. C., se verificou uma rebelião em que morreu a maior parte dos membros da escola. Alguns, como Filolau, fugiram e estabeleceram-se em Tebas. Outros continuaram ainda por meio século na Grande Grécia, até à sua dispersão definitiva. Também a partir de então, esta dócil submissão do Universo às matemáticas constituiu motivo de reflexão. Porque é que os seres do Universo se acomodam às matemáticas? Os pitagóricos consideraram como única explicação possível que os princípios das matemáticas são também os princípios dos seres reais, e como os princípios das matemáticas são os números, afirmaram que os números constituem a natureza do Universo. A partir desta afirmação, dedicaram-se a uma dupla tarefa: por um lado, atribuir (por meio de procedimentos em grande medida arbitrários) um número a cada coisa; por outro, e visto que os números são muitos, perguntaram-se de que são constituídos e donde procedem os mesmos números (o que equivalia a perguntar, como vimos, de onde procedem, em última análise, os seres reais). Os números – afirmavam – procedem de dois elementos, o par e o ímpar. Os pitagóricos adoptavam assim não uma explicação monista mas dualista da natureza e conseguiram estabelecer uma série de oposições entre dois termos (par-ímpar, limitado-ilimitado, bom-mau, luz-obscuridade, etc.), as quais mais não são do que aspectos ou concreções dos princípios originais propostos. Talvez – não sabemos – os pitagóricos antigos se tivessem perguntado se seria possível reduzir estes opostos a um único princípio original do qual ambos procederiam. 2.3. Natureza e logos. Heraclito e Parménides 2.3.1. Heraclito Heraclito é tradicionalmente considerado como o filósofo que afirmou radicalmente que tudo muda e nada permanece, que o Universo, não é mais do que contínuo devir no qual a lei da identidade – a identidade de cada coisa consigo mesma – carece de vigência, pois todas as coisas estão submetidas a uma contínua transformação. Postas as coisas assim tão simplesmente, Heraclito teria negado os próprios pressupostos da explicação do real (o permanente face ao mutável, a unidade face à pluralidade, o que é face ao que parece ser), estabelecendo a absoluta irracionalidade do real. Esta interpretação da filosofia de Heraclito não é falsa, mas é sem dúvida unilateral. Tudo muda, com efeito, mas o devir não é irracional, caótico, já que se realiza de acordo com certas leis e proporções. A lei ou logos interno do devir universal constitui o verdadeiro princípio explicativo do Universo. O Universo é fogo («este Cosmos, o mesmo de todos, não o fez nenhum deus nem nenhum homem, mas sempre foi, é e será fogo eterno que se acende segundo a medida e conforme a medida se extingue», fg. 30); a lei que rege o Universo é a luta dos contrários («a guerra é o pai de todas as coisas e rei de todas as coisas, a uns fez deuses e a outros fez homens», fg. 53); os contrários constituem, em última análise, uma unidade profunda («Deus é dia-noite, Inverno-Verão, guerra-paz, fartura-fome», fg. 67); a harmonia que caracteriza o Universo («harmonia oculta», fg. 54), não é afinal uma harmonia estática, mas o equilíbrio dinâmico das tensões entre os contrários, uma harmonia tensa «como acontece com o arco e com a lira» (fg. 51). Ao procurar a ordem e inteligibilidade do real, não em seus aspectos estáticos mas no seu dinamismo, não na identidade mas na contradição, na luta dos contrários, Heraclito chamou pela primeira vez a atenção para a dialéctica. 2.3.2. Parménides Parménides representa um marco decisivo na evolução da filosofia grega. De facto, como consequência da sua doutrina, a filosofia da natureza tomará um rumo e princípios totalmente diferentes. Parménides escreveu um Poema que consta de uma introdução ou proémio e de duas partes perfeitamente distintas. Na primeira – usualmente intitulada Via da Verdade – Parménides expõe a sua concepção da realidade; na segunda – intitulada Via da Opinião – expõe a origem e a configuração do Universo. a) Via da Verdade A doutrina de Parménides sobre a realidade, sobre o que há ou existe, pode ser resumida em duas afirmações: 1. A partir de uma única realidade é impossível que surja a pluralidade, contra o que afirmavam os milésios (e que talvez os pictagóricos do seu tempo discutissem, como insinuámos). Efectivamente, suponhamos que originalmente existia apenas água: porque não continua a existir somente água? Se existia apenas água, esta não pôde gerar-se a partir de outra substância (que, por hipótese, não existia) e muito menos transformar-se noutra coisa ou desaparecer (o que poderia fazê-la desaparecer ou transformar-se, se além dela nada mais existe?). O que desde sempre não existe nem existia, não pode originar-se; o que existe desde sempre não pode ser destruído. O que existe, o que é (o ente), é, segundo Parménides, não-engendrado, indestrutível, imutável, finito, compacto, homogéneo, indivisível e esférico. Parménides Nasceu nos finais do século VI a. C. e a sua importância filosófica é enorme, uma vez que a sua obra divide a filosofia pré-socrática da natureza em dois períodos bem definidos: o dos sistemas monistas anteriores a ele e o dos sistemas pluralistas, que lhe são posteriores. Talvez tivesse sido pitagórico na sua juventude. Escreveu um Poema em verso que – além do proémio, de carácter alegórico-religioso – compreendia duas partes claramente distintas: na primeira – via da verdade – expõe a sua doutrina da realidade, do ente único e imóvel: na segunda, apresenta uma cosmologia de tipo tradicional, narrando a origem e criação do Universo. O nome de Parménides está associado ao do poeta Xenófanes. Teofrasto diz que Xenófanes – que nas suas obras critica energicamente a teologia mítica de Homero – foi o mestre de Parménides. Foram seus continuadores Melisso e Zenão de Eleia, tendo este último proposto argumentos engenhosos para demonstrar a impossibilidade do movimento. 2. Juntamentecom estas características ou propriedades, Parménides deduz também que o que existe deverá ser único, isto é, uma única realidade. As consequências destas duas afirmações são peremptórias e iniludíveis: se, por um lado, de uma única realidade não pode surgir a pluralidade e se, por outro, a razão nos força a aceitar a existência de uma só realidade, não haverá outro remédio senão declarar que o movimento e a pluralidade são irracionais e ininteligíveis. Dentro das coordenadas da explicação racional expostas no capítulo anterior, Parménides elimina a mudança ao afirmar o permanente; elimina o que as coisas parecem ser (múltiplas e mutáveis) ao afirmar o que são (uma única realidade); elimina a pluralidade ao estabelecer a unidade; elimina, finalmente, o conhecimento sensível, sacrificando-o no altar da razão. Esta visão monista da realidade é, no entender de Parménides, uma exigência necessária da razão, do logos. O raciocínio de Parménides recai sobre a noção abstracta de o que existe, o ente, e desenvolve-se em dois momentos sucessivos. Em primeiro lugar, a razão enfrenta-se com a disjunção: «existe ou não existe (o que existe)?» fg. VIII, 15-16; face a esta disjunção, terá necessariamente de afirmar-se que o que existe, existe, que o ente é. Em segundo lugar, a razão enfrenta uma nova disjunção: «o que existe, o ente, existe ou será que existiu ou existirá, mas não existe?» (fg. VIII, 20), a razão volta a afirmar necessariamente o primeiro e exclui desse modo toda a existência passada ou futura, mas não actual. Desta maneira, chega-se às características da realidade que acima assinalámos. No raciocínio de Parménides, o logos recai sobre uma noção formal e abstracta de ente, de realidade: formal, porque se atende exclusivamente ao jogo lógico desta noção; abstracta, porque nela se prescinde de todos os aspectos diferenciadores dos entes reais. b) Via da Opinião Esta doutrina de Parménides sobre a realidade (única, permanente, inalterável) mostra a impossibilidade de qualquer mudança e, portanto, de qualquer processo de criação do Universo. Não obstante, na segunda parte do Poema, Parménides expõe uma cosmogonia segundo a qual o Universo teve origem em dois princípios: a claridade e a escuridão. A existência desta segunda parte no Poema provocou um grave problema de interpretação: de facto se a razão exige que a realidade seja uma e imutável porque é que Parménides recorrendo à mudança e introduzindo a pluralidade, se dá ao trabalho de nos relatar como o Universo foi criado? Até mesmo os filósofos gregos – profundamente impressionados pelo rigor e pelo radicalismo da doutrina de Parménides – formularam esta interrogação. Desde então e até aos nossos dias têm surgido respostas muito diferentes a esta questão. A diferença que Parménides estabeleceu entre as duas vias (a da verdade e a da opinião) teve grande influência no campo da teoria do conhecimento. A razão, como referimos, exige que a realidade seja única e imutável; contudo, os nossos sentidos, percepções e experiências mostram-nos a pluralidade e o movimento. A partir de Parménides configura-se, já de um modo definitivo, a oposição entre a razão e os sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento do visível. Apesar de o próprio Parménides não ter enunciado explícita e literalmente esta oposição, a sua obra contribuiu sem dúvida para a estabelecer. 2.4. O mecanismo. Anaxágoras e Demócrito Depois de Parménides já não era possível regressar a uma explicação monista da natureza, já que aceitar uma única realidade como origem, substrato e causa era condenar-se a não poder explicar nem a pluralidade nem o movimento. Por isso surgiram as filosofias pluralistas de Empédocles, Anaxágoras e Demócrito. Demócrito Nasceu em Abdera (Trácia) no ano 460 a. C., sendo portanto contemporâneo de Sócrates. O seu mestre foi Leucipo e os nomes de ambos aparecem associados na criação do atomismo mecanicista. Demócrito foi um escritor enciclopédico. Diógenes Laércio reproduz uma lista dos seus escritos em que se recolhem mais de sessenta obras dedicadas a temas éticos, físicos, matemáticos, musicais e técnicos. Desta imensa obra sobreviveram apenas curtos fragmentos. As suas teorias chegaram até nós mentalmente através da exposição que delas fazem outros autores, sobretudo Aristóteles. 2.4.1. Anaxágoras Anaxágoras, como todos os pluralistas, aceita como evidente o raciocínio parmenídeo segundo o qual nenhuma realidade nova pode originar-se. Aceitando-se este princípio, não resta outra alternativa senão afirmar que tudo existe desde sempre. Partículas diminutas de todas as substâncias existiam e existem sempre (nos homens predominam as partículas de homem, mas na realidade do homem – como aliás nos restantes seres – há partículas ou homeomerias de todas as substâncias do Universo: «tudo participa de tudo», diz Anaxágoras) Estas inumeráveis partículas encontravam-se originalmente misturadas numa massa compacta e maciça, sem interstícios nem separação alguma. Torna-se assim possível explicar a pluralidade, mas como se explica o movimento? Como começou a mover-se esta massa compacta originária, de tal modo que as partículas se foram separando e unindo para dar lugar aos diferentes seres? Anaxágoras recorre a uma causa exterior, o entendimento, o nous, que imprimiu a esta massa inerte um movimento de redemoinho. O recurso de Anaxágoras ao entendimento abre perspectivas novas que mais tarde serão aproveitadas por Platão e Aristóteles. Com Anaxágoras aparece pela primeira vez de modo explícito a ideia de Deus como princípio que rege o Universo. Isso parecia conduzir a uma concepção da Ordem do Universo como o resultado de uma Inteligência que actua de acordo com fins, de maneira tal que o resultado dos processos naturais seria sempre a consecução do melhor, da máxima perfeição e beleza. O entusiasmo com que Sócrates acolheu a leitura da obra de Anaxágoras é-nos descrito num diálogo de Platão, o Fédon, em que Sócrates recorda: «Pois bem, em certa ocasião ouvi a leitura de um livro de Anaxágoras em que se dizia que o Entendimento é o ordenador e causa de tudo. Tal causa encheu-me de alegria e pareceu-me muito certo que o Entendimento fosse a causa de tudo. E pensei que, a ser assim, o Entendimento Ordenador ordenaria todas as coisas e disporia cada uma de forma a alcançar o estado mais perfeito» (Fédon, 97b). No entanto, Anaxágoras só de passagem aborda este aspecto implícito na sua cosmologia, atribuindo de facto o papel fundamental na construção do Universo ao redemoinho e, por conseguinte, a forças de carácter mecânico. No mesmo diálogo platónico, Sócrates exprime mais adiante a desilusão que Anaxágoras lhe produziu: «Mas, amigo, tive de abandonar a minha maravilhosa esperança quando, avançando em sua leitura, observei que este homem (isto é, Anaxágoras) não se servia do Entendimento, mas recorria a causas como o ar, o éter e muitas outras coisas estranhas.» (98b). A filosofia de Anaxágoras situa-se, pois, entre o finalismo e o mecanicismo. 2.4.2. Demócrito Demócrito juntamente com o seu mestre, Leucipo – ofereceu uma resposta mais audaz e mais radical do que a de Parménides. Aceita também como indiscutível a afirmação de Parménides segundo a qual a pluralidade não se pode originar de uma única realidade. Mais ainda, aceita que o real deve possuir as características estabelecidas pelo raciocínio de Parménides: inengendrado, indestrutível, imutável, finito, compacto, homogéneo e indivisível. Aceita todas as características excepto duas: a esfericidade (há átomos esféricos, mas também os há de outras formas e figuras) e a unicidade. Segundo Parménides, não pode haver mais do que uma única realidade. Porquê? Suponhamos que existem duas ou mais realidades, dois ou mais entes: deverá forçosamente haver alguma separação real entre eles, pois, caso contrário, não seriam duas mas uma única realidade contínua. Pois bem, argumentava Parménides, se entre eles há realmente separação, o que se interpõe entre eles? Não é possível contestar que seinterpõe algo real, pois voltaríamos à situação anteriormente descrita: não duas mas apenas uma única realidade contínua. Interpor-se-á entre eles algo de não- real? Mas como pode interpor-se algo que não seja real? Algo não real é algo que não é, e portanto não pode dividir-se nem interpor-se. É perante este dilema que a audácia intelectual dos atomistas se manifesta. Entre a multidão de realidades (átomos), cuja existência pretendem estabelecer, interpõe-se certamente algo, o vazio. Os atomistas concedem de boa vontade a Parménides que o vazio que separa os átomos não é real, se por real se entende a matéria existente: somente os átomos são reais neste sentido e o vazio pode muito bem ser caracterizado como não- ente por Parménides; com efeito o vazio é algo real, se por real se entende o que efectivamente existe. Juntamente com os átomos, o vazio faz parte da natureza do Universo. O papel desempenhado pelo vazio é decisivo. Não só torna possível a pluralidade como também o movimento. Como vimos, Anaxágoras admitira uma pluralidade de partículas originalmente misturadas numa massa compacta. Não admitindo o vazio, estas partículas ficavam «aprisionadas» na massa originária compacta e inerte. Admitindo o vazio, os átomos podem mover-se livremente nele. A pergunta «porquê e como se iniciou o movimento?» tem sentido no caso de Anaxágoras (iniciou-o o nous ou entendimento), mas não tem qualquer sentido no atomismo: o movimento não se iniciou em nenhum movimento, os átomos movem-se eternamente no vazio. O atomismo de Leucipo e Demócrito estabeleceu definitivamente uma concepção, um modelo mecanicista da natureza levado até às últimas consequências: o Universo não é presidido por plano algum traçado por uma Inteligência transcendente, e também não existe finalidade imanente que forneça inteligibilidade aos processos naturais. O Universo é o resultado de uma necessidade cega e opaca que para o homem acaba por confundir-se com o acaso. O modelo mecanicista permanecerá como modelo sempre disponível após um longo período de obscurecimento voltando a ressurgir com veemência a partir da Modernidade. O sistema atomista constituiu a última resposta do pensamento pré- socrático à doutrina de Parménides. No que se refere à teoria do conhecimento, Demócrito radicalizou a oposição entre a razão e os sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento sensível, uma oposição que – como indicámos – surgia já no Poema de Parménides. Só a razão nos garante o conhecimento e nos revela os verdadeiros princípios das coisas, a verdadeira realidade dos átomos e do vazio. Por sua vez, as qualidades que apercebemos por via dos sentidos (cores, odores, calor e frio, etc.) não são reais, não são propriedades reais dos átomos; são apenas impressões resultantes da interacção dos átomos do nosso corpo com os átomos do exterior. 2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO INTRODUÇÃO A actividade intelectual dos últimos filósofos pré-socráticos prolonga-se bastante pela segunda metade do século V a.C. É o caso de Demócrito e Anaxágoras (este último amigo íntimo e mentor intelectual de Péricles). No entanto, na segunda metade do século V a. C. ocorre uma notável mudança de interesses intelectuais no mundo grego. Os temas relativos à filosofia da natureza, à cosmologia, passam para segundo plano e os pensadores da época ocupam-se principalmente de questões relacionadas com o ser humano, com a educação, a moral e a política. Para caracterizar esta mudança de interesses utiliza-se frequentemente a expressão «mudança antropológica». Esta orientação da filosofia para os assuntos humanos foi levada a cabo por um conjunto de intelectuais habitualmente designados sofistas. Os primeiros sofistas e os mais importantes, como Protágoras e Górgias, não eram atenienses, embora tenha sido em Atenas que angariaram a sua influência e reputação. A primeira parte capítulo é dedicada a eles. A segunda parte é dedicada a Sócrates. Tal como os sofistas, Sócrates interessou-se pelos temas relacionados com o homem, particularmente pelos temas morais. Não escreveu nada, os seus ensinamentos eram sempre transmitidos oralmente, por meio do diálogo directo com os seus concidadãos. Por essa razão, o conhecimento que temos dele provém das obras de alguns contemporâneos, sobretudo dos seus discípulos, e especialmente de Platão. Os contemporâneos de Sócrates, os concidadãos que o condenaram à morte, certamente consideravam-no como mais um sofista. Platão, todavia, transmitiu-nos a imagem de um Sócrates que se opunha radicalmente às doutrinas dos sofistas. A última parte deste capítulo é dedicada a Platão, sem dúvida o mais genial dos seguidores e discípulos de Sócrates, detentor de um génio filosófico brilhante e complexo. O ser humano, os temas políticos e morais continuam a ser prioritários para Platão, mas encontramos nele um sistema filosófico completo que também aborda questões da filosofia da natureza e da teoria do conhecimento. O capítulo está organizado do seguinte modo: 1. Os Sofistas. 2. Sócrates. 3. Platão. 1. OS SOFISTAS 1.1. Características gerais da sofística Designa-se por «sofistas» um conjunto de pensadores gregos que florescem na segunda metade do século V a. C. e que têm em comum, pelo menos, dois aspectos relevantes: nos seus ensinamentos, incluem um conjunto de disciplinas humanistas (retórica, política, direito, moral, etc.) e são os primeiros profissionais do ensino (organizam cursos completos e por ensinar cobram somas consideráveis). Ambos os aspectos – carácter humanístico dos seus ensinamentos e institucionalização do próprio ensino – mostram claramente que os sofistas tinham um projecto bem definido de educação, que rompia com o ensino tradicional mas que se mostrava já inadequado para as exigências da época. As circunstâncias que rodeiam o aparecimento do movimento sofista são particularmente duas, uma filosófica outra político-social: a primeira tem a ver com o desenvolvimento das teorias físicas anteriores e a segunda com o sistema democrático estabelecido em Atenas. Analisemo-las. 1.1.1. Os sofistas e a filosofia anterior O desenvolvimento das teorias gregas acerca do Universo até meados do século V a. C. (desenvolvimento que abrange os filósofos estudados no capítulo anterior, desde Tales até Demócrito) oferece-nos um espectáculo fascinante, sem dúvida, mas também desencorajador. Antes de mais, desanima e escandaliza a diversidade de teorias opostas e incompatíveis que se opõem entre si: para uns, o princípio ou arché é único (milésios), para outros, é múltiplo (pluralistas); para Parménides, o movimento é impossível, ao passo que para Heraclito o Universo é movimento e devir incessante; este defenderá que o Universo é produto de uma Inteligência (Anaxágoras), aquele afirmará que é o resultado de uma necessidade cega e ocasional (Demócrito), etc. Não é de estranhar que este espectáculo criasse uma atitude céptica perante a filosofia da natureza, a qual se mostrara incapaz de produzir um sistema aceitável para todos. Mas há mais. Tal atitude relativista e céptica não era apenas a posição que um espectador da filosofia da natureza podia adoptar perante ela ao contemplá- la a partir do exterior; era também a atitude onde o próprio desenvolvimento da filosofia desembocara a partir de dentro. Já assinalámos no capítulo anterior como o atomismo conduzia à negação da possibilidade do conhecimento da natureza: como conhecer ou calcular as infinitas combinações e ligações possíveis de infinitos átomos movendo-se no vazio? O próprio Demócrito chegara a uma posição resignadamente céptica: «a verdade está no profundo». E visto que a verdade não é acessível ao homem, só nos restam as aparências. Era este o clima intelectual no círculo de Demócrito. E temos de anotar como pormenor extremamente significativo que Protágoras, o grande sofista, era conterrâneo de Demócrito e conhecia bem a filosofia deste. Assim o relativismo (não há verdade absoluta) e o cepticismo (se há verdade absoluta, é impossível conhecê-la)divulgam-se e generalizam-se como atitude intelectual. Uma célebre e feliz expressão do relativismo é a frase de Protágoras «o homem é a medida de todas as coisas»; uma expressão desconcertante e crua do cepticismo são as três afirmações escalonadas de Górgias: «não há ser; se houvesse, não poderia ser conhecido; se fosse conhecido, o seu conhecimento não poderia ser comunicado por meio da linguagem». O texto de Górgias que acabámos de citar revela uma ruptura radical com a filosofia grega anterior, e posteriormente, para Platão e Aristóteles, a realidade é racional; por isso, o pensamento e a linguagem acomodam-se a ela e são capazes de expressá-la adequadamente. A desvinculação da linguagem relativamente à realidade constitui um pilar importante da sua interpretação do homem e da realidade. Com efeito, se se renunciar à linguagem como expressão manifestadora do real, a linguagem acaba por converter-se num instrumento de manipulação, numa arma para convencer e impressionar as massas, num meio eficaz para impor-se aos outros, se se dominar as técnicas apropriadas. «A palavra é um poderoso tirano, capaz – escreve Górgias – de realizar as obras mais divinas, apesar de ser o mais pequeno e invisível dos corpos. Com efeito, é capaz de apaziguar o medo e eliminar a dor, de produzir a alegria e excitar a compaixão.» (Elogio de Helena, 8). 1.1.2. Circunstâncias políticas e filosofia Para o abandono da filosofia da natureza não contribuíram só a circunstância filosófica assinalada no parágrafo anterior, mas também as necessidades criadas pela prática democrática da sociedade ateniense. O advento da democracia trouxera consigo uma notável mudança na natureza da liderança: já não bastava a linhagem, a própria liderança política passava pela aceitação popular. Numa sociedade em que as decisões são tomadas pela assembleia do povo e cuja máxima aspiração é o triunfo e o poder político, depressa se fez sentir a necessidade de estar preparado para isso. Qual era a preparação idónea para o ateniense que pretendia triunfar na política? Um político necessitava indubitavelmente de ser um bom orador para manipular as massas. Necessitava, ainda, de possuir algumas ideias acerca da lei, acerca do que é justo e conveniente, acerca da administração e do Estado. Este era precisamente o tipo de treino que os ensinamentos dos sofistas proporcionavam. OS SOFISTAS E A EDUCAÇÃO Quando nos sentámos, Protágoras disse: – Agora que todos estão presentes, Sócrates, podes retomar o que estavas a dizer há pouco acerca do rapaz. Respondi então: – Começarei, Protágoras, tal como há um bocado, com o porquê do meu pedido. Hipócrates, aqui presente, desejara muito a tua companhia e saber o que lhe aproveitaria a convivência contigo. É esse o nosso pedido. Protágoras tomou a palavra: – Se me acompanhares, jovem, cada dia comigo fará de ti uma pessoa melhor. E cada dia te levará a um progresso contínuo até à perfeição. Depois de o ouvir, disse-lhe: – O que dizes, Protágoras, não é nada estranho mas natural, dado que até tu (apesar da tua idade avançada e da tua sabedoria) te aperfeiçoarias se alguém te ensinasse algo que não soubesses. Mas suponhamos que Hipócrates mudava repentinamente de disposição e desejava a companhia desse outro jovem que acaba de chegar, Zeuxipo de Heraclea e, do mesmo modo que recorreu a ti agora, escutasse dele a mesma resposta que tu lhe deste: que cada dia se aperfeiçoaria mais e progrediria na companhia dele. E se alguém lhe perguntasse: «Aperfeiçoar-se e progredir em relação a quê?», Zeuxipo replicava que seria na pintura. E, tratando com Ortágoras, o tebano, se lhe ouvisse as mesmas coisas que tu disseste e lhe perguntasse em que é que seria melhor cada dia estando na sua companhia, ele responderia que seria na arte de tocar flauta. Assim, deste modo responde-nos tu, a mim e ao rapaz, quando perguntamos: – Hipócrates anda com Protágoras e cada dia em que convive com ele torna-se melhor e progride... em relação a quê, Protágoras? Depois de me ouvir, Protágoras disse: – Boa pergunta, Sócrates. Agrada-me responder aos que sabem fazer perguntas. Recorrendo a mim, Hipócrates não terá de suportar o que sofreria no trato com qualquer outro sofista, porque os outros oprimem os jovens. Com efeito, estes jovens fogem das especializações técnicas mas eles reconduzem-nos de novo contra a sua vontade e iniciam-nos nas ciências técnicas, ensinando-lhes o cálculo, a astronomia, a geometria e a música – e ao dizer isto dirigiu o olhar a Hípias. Comigo, pelo contrário, aprenderá apenas aquilo que quiser. O meu ensino consiste na boa administração dos bens domésticos para se poder optimizar a direcção da casa, e nos assuntos políticos, para se ser o mais capaz da cidade, tanto nas obras como nas palavras. – Então, digo eu, e segundo a tua exposição, parece-me que falas da ciência da política e pretendes tornar os homens em bons cidadãos? – Esse é o programa que eu professo, Sócrates. Platão, Protágoras, 318A-19A. 1.2. As instituições políticas e a moral Entre as doutrinas político-morais dos sofistas, a sua afirmação mais característica e importante é a de que tanto as instituições políticas como as normas e ideias morais vigentes são convencionais. 1.2.1. Sentido do convencionalismo Na sua acepção mais geral, o termo grego nomos significa a lei, o conjunto de normas políticas e institucionais estabelecidas que uma comunidade humana acata e pelas quais se rege. Toda a comunidade humana possui leis e instituições e é perfeitamente compreensível que se interroguem acerca de sua origem e natureza. A primeira resposta a esta questão fora dada pelo pensamento mítico- religioso ao afirmar que as leis e instituições procedem dos deuses. Em consonância com a sua função racionalizadora, a filosofia depressa abandonou esta explicação mítica sobre a origem do nomos. Assim, Heraclito já não vincula o nomos à intervenção particular de qualquer divindade que fundara a cidade em questão num passado remoto, mas vincula-o à ordem do Universo: a ordem do Estado é parte de uma ordem mais ampla, a ordem do Universo, e tanto aquele como este se regem, em última análise, por uma única lei ou logos. O terceiro grande momento do pensamento político-moral na Grécia (depois do mito e depois da racionalização heraclitiana) é constituído pela sofística. A filosofia está sempre radicada num marco social, num conjunto de experiências de carácter sócio-político. No tempo dos sofistas, a experiência sócio-política dos Gregos havia-se ampliado definitivamente, graças a três factores de considerável importância: em primeiro lugar, o contacto contínuo com outros povos e culturas, o que permitiu verificar que as leis e costumes são muito distintos nas diversas comunidades humanas; em segundo lugar, a fundação de colónias por todo o Mediterrâneo, pois cada nova cidade possibilitava a redacção de uma nova constituição; por último, a sua própria experiência de mudanças sucessivas de constituição. Estas experiências levaram os sofistas a abandonar a teoria heraclitiana do nomos vinculado à ordem do Universo, fortalecendo neles a convicção de que as leis e as instituições são o resultado de um acordo ou decisão humana: são assim, mas nada impede que sejam ou possam vir a ser de outra maneira. É isto precisamente o que significa o termo «convencional»: algo estabelecido por um acordo e que, por conseguinte, nada impede que possa ser de outra maneira, se se julgar conveniente. O termo grego nomos passou, assim a significar o conjunto de leis e normas convencionais, por oposição ao termo physis que exprime o natural, as leis e normas alheias a qualquer acordo ou convenção, e cuja origem é a própria natureza humana. 1.2.2. Carácter convencional da moral Os sofistas defendiam o carácter convencional não só das instituições políticas mas também das normas morais: o que se considera bom e mau, justo e injusto, louvável e repreensível, não é fixo, absoluto, universalmente válido e imutável. Para chegar a tal conclusão, os sofistas contavamcom um duplo argumento: por um lado, a falta de unanimidade acerca do que seja o bom, o justo, etc. (falta de unanimidade que salta à vista, não só comparando uns povos com os outros, mas comparando os critérios morais de indivíduos e grupos diferentes dentro de uma mesma sociedade); por outro, os sofistas costumavam estabelecer uma comparação entre as leis e normas morais vigentes e a natureza humana. A comparação entre as normas de conduta vigentes e a natureza humana tem sido de uma transcendência capital na nossa cultura. O que é verdadeiramente absoluto, imutável (isto é, comum a todos os homens), é a natureza humana. Já vimos no capítulo anterior que estas são precisamente as características da natureza entendida como aquilo que as coisas verdadeiramente são. E visto que a natureza é dinâmica, isto é, princípio das actividades e operações próprias de um ser, só será possível conhecer a natureza humana observando qual o modo próprio e intrínseco de os homens se comportarem. A procura do modo próprio – natural – de os homens se comportarem não é nada fácil, já que o nosso comportamento está condicionado pela aprendizagem, pelas normas e hábitos que nos foram inculcados ao longo da nossa vida. O que é, então, o natural do homem? De um modo geral, poderia responder-se que é o que ficaria se eliminássemos tudo o que adquirimos através dos ensinamentos que nos foram inculcados. Os sofistas, especialmente os da segunda geração, como Calicles e Trasímaco, utilizaram a criança e o animal como exemplos do que é a natureza humana, prescindindo dos elementos culturais adquiridos. A partir destes dois modelos deduzem que só há duas normas naturais de comportamento: a procura do prazer (a criança chora quando sente dor e sorri feliz quando experimenta prazer) e o domínio do mais forte (entre os animais, o macho mais forte domina os outros). Quando vai contra as duas normas, a moral vigente é antinatural. Não só é convencional (na realidade, estaria correcto que a moral fosse convencional, mas não antinatural se por exemplo as normas não fossem um mero acordo mas um acordo conforme às exigências da natureza; foi esta a posição dos primeiros sofistas, como Protágoras), mas, além disso, é contrária à natureza, segundo os últimos e mais radicais sofistas. É fácil compreender a transcendência destas reflexões da sofística. Com elas inaugura-se o eterno debate acerca das normas morais, acerca da lei natural (physis) e da lei positiva (nomos). CONVENCIONALIDADE DAS NORMAS MORAIS É por isso que a lei considera injusto e vergonhoso o desejo de ser superior à maioria, e é a isto que chamam injustiça. Mas a própria natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja acima do pior e o mais forte acima do mais fraco. Em muitos domínios, não só entre os animais como entre as cidades e as raças dos homens, é evidente que é assim, que, na ordem da justiça, o mais poderoso deve dominar o mais fraco e gozar as da sua superioridade. Que outro direito tinha Xerxes para vir fazer guerra à Grécia, ou o seu pai aos Citas? E, como estes, podia referir um sem número de exemplos. É que estas pessoas, a meu ver, agem segundo a natureza da justiça, e, por Zeus, segundo a lei da natureza, que não é, certamente, àquela que nós criámos. Os melhores e os mais fortes de nós tomámo-los em pequenos, como aos leões, para os domar, e escravizámo-los à custa de sortilégios e encantamentos, dizendo-lhes que a igualdade é que é bom e que consiste o belo e o justo. Mas se aparece um homem suficientemente dotado para sacudir e quebrar estas cadeias e se libertar da sua prisão, sei que, depois de pisar a pés os nossos escritos, as nossas magias e os nossos encantos e leis antinaturais, se há-de erguer, na sua revolta, de escravo a senhor nosso, e então brilhará em todo o seu esplendor o direito da natureza. Platão, Górgias, 483c-84a 2. SÓCRATES Sócrates pertenceu ao ambiente filosófico e cultural dos sofistas mas combateu-os energicamente. Compartilha com eles o interesse pelo homem, pelas questões políticas e morais e pela vinculação destas aos problemas da linguagem. Distingue-se deles fundamentalmente em três aspectos: a) não se faz pagar pelo seu ensino; b) adopta um método totalmente oposto. Os sofistas preferiam pronunciar longos discursos e comentar textos de poetas e autores antigos. Sócrates recusa ambos os métodos: os longos discursos, porque impedem a discussão passo a passo das afirmações do orador, e os textos antigos porque não é possível interrogar os seus autores para fornecerem esclarecimentos sobre o que escreveram. Perante estas objecções, é claro que o único método válido para Sócrates será o diálogo directo, no qual cada interlocutor pode replicar ao outro e argumentar em defesa das próprias posições; c) traz aos temas político-morais soluções radicalmente novas. 2.1. Sócrates contra o relativismo moral Quando analisámos anteriormente a teoria convencionalista dos sofistas, sublinhámos como estes filósofos insistiam na falta de unanimidade dos homens a respeito do que é justo e injusto, bom e mau, louvável e censurável. O relativismo, atitude geral dos sofistas, ficava assim consagrado a respeito dos conceitos morais. Sócrates não concordava com este relativismo pois pensava que se cada um entende por justo e por bom uma coisa diferente (quer se trate do prazer, do domínio do mais forte ou o que está de acordo com a tradição, etc.), se, para cada um, os termos morais (bom e mau, justo e injusto) significam coisas diferentes, a comunicação e a possibilidade de entendimento entre os homens torna-se impossível: como decidir se uma lei é justa ou não quando cada qual entende uma coisa diferente por «justo»? A tarefa mais urgente é restaurar o valor da linguagem como veículo de significações objectivas e válidas para toda a comunidade humana. Em seu entender, torna-se necessário procurar definir com rigor os conceitos morais (justiça, etc.). Nos diálogos de Platão, vemos Sócrates a colocar perguntas do género: que é a justiça? Que é a piedade? Que é a moderação? etc. Normalmente nestes diálogos não se chega a uma definição geral da virtude ou do conceito em questão; todavia a discussão serve para evidenciar que os interlocutores de Sócrates carecem, de uma noção, de um conhecimento coerente em assuntos de tão vital importância. 2.2. Virtude e saber. O intelectualismo moral É, pois, necessário definir com precisão as virtudes e os conceitos, para restabelecer a comunicação e tornar possível o diálogo sobre temas morais e políticos. É necessário defini-los com exactidão, além disso, por uma segunda razão: para Sócrates só se pode ser justo quando se sabe o que é a justiça e só se pode agir bem quando se sabe o que é bom. A isto chama-se intelectualismo moral, que pode definir-se como a doutrina que identifica a virtude com o saber. Sócrates Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates nasceu em Atenas no ano 470 a. C. Não escreveu nenhuma obra, talvez porque considerava que o diálogo, a comunicação directa e interpessoal, é o único método válido para a filosofia. São características da sua forma de entender e praticar o diálogo a ironia e a maiêutica. A sua ironia exprime-se frequentemente na atitude modesta do «só sei que nada sei»; a maiêutica (arte que dizia ter herdado de sua mãe) consistia em fazer perguntas de maneira a que o interlocutor acabasse por extrair de si mesmo as formulações correctas sobre o tema em questão. Cidadão exemplar, foi acusado de impiedade e condenado à morte no ano 399 a. C. Poderia ter fugido, mas preferiu obedecer às leis da cidade e morrer. Bebeu a cicuta depois de conversar longa e tranquilamente com os seus amigos sobre a imortalidade da alma. Este modo de conceber a moral será chocante e rejeitável para muitos: estamos habituados a ver pessoas ignorantes que, no entanto, são boas e agem com rectidão, mesmo se não sabem definir o que é bom e o que é a rectidão; estamos igualmente habituados a ver pessoas instruídas mas com uma conduta reprovável.
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