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História da Filosofia Dos Pré-Socráticos à Filosofia Contemporânea (Juan Manuel Navarro Cordon etc ) (Z-Library)

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Título original:
Historia de la Filosofía
© do texto: Juan Manuel Cordón e Tomas Calvo Martínez, 1995
Tradução da antologia de textos: Alberto Gomes; do restante: Departamento Editorial de Edições 70
Revisão: Marcelina Amaral
Capa: FBA
Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação
História da filosofia / Juan Manuel Cordon, Tomas Calvo Martinez. – (Extra-colecção)
ISBN 978-972-44-1837-7
I – CALVO MARTÍNEZ, Tomas, 1942-
CDU 1
Setembro de 2014
Direitos reservados para todos os países de Língua Portuguesa por Edições 70
EDIÇÕES 70, uma chancela de Edições Almedina, S.A.
Avenida Fontes Pereira de Melo, 31 – 3.º C – 1050-117 Lisboa / Portugal
e-mail: geral@edicoes70.pt
www.edicoes70.pt
Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o
modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer
transgressão à lei dos Direitos de Autor será passível de procedimento judicial.
ÍNDICE
PRÓLOGO
PRIMEIRA PARTE
DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE MÉDIA
QUADRO SINCRÓNICO
1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-SOCRÁTICOS
INTRODUÇÃO
1. O Aparecimento da Filosofia e o Problema da Natureza
2. Os Pré-Socráticos, Modelos de Explicação da Natureza
2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO
INTRODUÇÃO
1. Os Sofistas
2. Sócrates
3. Platão
3. ARISTÓTELES. A FILOSOFIA DO PERÍODO HELENÍSTICO
INTRODUÇÃO
1. Aristóteles
2. A Filosofia do Período Helenístico
4. CRISTIANISMO E FILOSOFIA. SANTO AGOSTINHO
INTRODUÇÃO
1. A confrontação do Cristianismo com a Filosofia
2. O apogeu do Platonismo Cristão. Santo Agostinho
3. Augustinismo e Platonismo Medievais
5. SÃO TOMÁS DE AQUINO E O APOGEU DA ESCOLÁSTICA
INTRODUÇÃO
1. O Aristotelismo e a Luta pela Autonomia da Razão
2. Síntese de Aristotelismo e Platonismo em Tomás de Aquino
6. GUILHERME DE OCKHAM E A CRISE ESCOLÁSTICA
INTRODUÇÃO
1. Os Limites da Razão e a Primazia da Vontade
2. Guilherme de Ockham e a crise da tradição filosófica
3. As Contribuições Físicas dos Cientistas do Século XIV
SEGUNDA PARTE
DO RENASCIMENTO À IDADE MODERNA
QUADRO SINCRÓNICO
7. O RENASCIMENTO E A ORIGEM DA IDADE MODERNA
INTRODUÇÃO
1. O Renascimento e a Transformação da Sociedade Europeia
2. A Tradição Grega e o Novo Antropocentrismo Naturalista
3. O Problema da Infinitude: Cusa e Giordano Bruno
4. Francis Bacon e o seu Conceito da Ciência
8. KEPLER E GALILEU: A LUTA PELO MÉTODO EXPERIMENTAL
INTRODUÇÃO
1. A Astronomia Pré-Copernicana
2. Realismo e Matemática: Copérnico
3. Kepler: procura da Pura Racionalidade
4. Galileu e o Método Experimental
5. Método Resolutivo-Compositivo
9. O RACIONALISMO
INTRODUÇÃO
1. A Auto-Suficiência da Razão como Fonte de Conhecimento
2. Descartes e a Construção do Universo
3. Espinosa e Leibniz
4. A Matemática como Modelo de Saber
5. Razão e Liberdade
10. O EMPIRISMO
INTRODUÇÃO
1. O Empirismo e os Limites do Conhecimento
2. Moral e Política
11. O ILUMINISMO
INTRODUÇÃO
1. Enquadramento Histórico e Sociopolítico do Iluminismo
3. Newton e o Problema da Natureza
4. Homem e Deus: o Deísmo e a Religião Natural
5. Homem e Sociedade (Rousseau)
12. O IDEALISMO TRANSCENDENTAL DE KANT
INTRODUÇÃO
1. Sentido de uma Crítica da Razão. A Ideia de Filosofia
2. A Natureza e a Razão Teórica
3. A Liberdade e a Tarefa da Razão Prática
4. História e Religião
13. HEGEL E A DIALÉCTICA
INTRODUÇÃO
1. Enquadramento Histórico-Social e Filosófico da Obra de Hegel
2. Sentido e Estrutura da Dialéctica
3. O Conceito de Espírito e suas Formas
4. A Esquerda Hegeliana. Feuerbach
TERCEIRA PARTE
A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA
QUADRO SINCRÓNICO
14. O POSITIVISMO DE COMTE
INTRODUÇÃO
1. A Sociedade Industrial e o Espírito Positivista
2. Natureza do Saber e Sistema das Ciências
3. A Sociologia e a Positivizacao da Razão
15. O MARXISMO
INTRODUÇÃO
1. A Crítica de Marx à Consciência Filosófica
2. As Formas de Alienação e o Humanismo Marxista
3. Materialismo, Dialéctica e História
16. HISTORICISMO E VITALISMO
INTRODUÇÃO
1. O Historicismo de Dilthey
2. O Vitalismo de Nietzshe
3. O Raciovitalismo de Ortega y Gasset
4. Vida, Tragédia e Heroísmo: Miguel de Unamuno
17. FENOMENOLOGIA E EXISTENCIALISMO
INTRODUÇÃO
1. A Fenomenologia e a Crise das Ciências
2. O Existencialismo: Existência e Liberdade
18. O PERSONALISMO CRISTÃO
INTRODUÇÃO
1. Correntes Personalistas Contemporâneas
2. Contributos Históricos para Orientação Personalista
3. O Personalismo de Mounier
19. O NEOPOSITIVISMO E A FILOSOFIA ANALÍTICA
INTRODUÇÃO
1. O Atomismo Lógico: Russell
2. O Neopositivismo Lógico
3. A Filosofia Analítica
20. NATUREZA E CIÊNCIA NO PENSAMENTO ACTUAL
INTRODUÇÃO
1. A Física Moderna: Novo Conceito de Natureza
2. Os Desenvolvimentos Actuais na Filosofia da Ciência
21. A CRISE DA CONSCIÊNCIA: NOVO CONCEITO DE RAZÃO
INTRODUÇÃO
1. Freud e a Interpretação da Cultura
2. O Estruturalismo e a Crise do Humanismo
3. Razão e Sociedade na Escola de Frankfurt
4. Hermenêutica e Crítica das Ideologias
BIBLIOGRAFIA
PRÓLOGO
A História da Filosofia que apresentamos foi pensada e realizada de
acordo com os seguintes critérios:
1. Procurou-se a harmonia entre o rigor, a profundidade e a extensão no
tratamento das questões com a máxima clareza na exposição. A
consecução deste duplo objectivo só é possível actuando
selectivamente. Por isso, neste livro não se inclui indiscriminadamente
tudo o que os filósofos disseram, mas tão-somente os problemas, e as
respectivas respostas, que são relevantes no desenvolvimento histórico
do pensamento ocidental.
2. Em consonância com o ponto anterior, a História da Filosofia é
concebida mais como história dos problemas filosóficos do que como
história dos filósofos. A exposição organiza-se em torno de três núcleos
temáticos fundamentais: problemas relativos à natureza, problemas
sociais e problemas antropológicos.
3. Partiu-se do princípio de que a filosofia e os problemas de que ela se
ocupa estão sempre inseridos em determinadas coordenadas socio-
políticas e culturais. Atende-se, pois, de modo explícito, às
circunstâncias históricas a partir das quais a filosofia se apresenta, em
cada caso, como consciência de uma época.
4. Em quarto lugar, pretende pôr-se continuamente em evidência a
coerência interna que preside ao desenrolar da história do pensamento.
Assim, em cada período histórico, em cada tema, procuram fazer-se
referências claras e essenciais à forma como o problema da teoria em
questão surge ou aparece, de novo, noutros momentos históricos.
5. Por último, e de acordo com as orientações anteriores, pretendemos
evitar uma História da Filosofia como crónica das opiniões dos
filósofos, expressas em frases estereotipadas, muitas vezes, quando
apresentadas isoladas do contexto filosófico em que se encontram
inseridas.
Somos de opinião de que uma História da Filosofia, pensada de acordo
com estes critérios, pode constituir uma adequada realização dos objectivos
que lhe cabe cumprir. Possibilitará, assim, assimilar o passado como raiz do
nosso presente, para se situar neste de uma forma crítica e reflectida.
Do ponto de vista da sua estrutura formal, a obra apresenta as seguintes
características:
1. É composta por três partes que correspondem, respectivamente, ao
pensamento grego e medieval (1.ª), ao pensamento da Idade Moderna
até Hegel (2.ª), e ao pensamento contemporâneo (3.ª). Cada um destes
ciclos é precedido de uma introdução geral, bem como de um quadro
cronológico no qual se registam, panoramicamente, junto com a
cronologia dos filósofos e escolas, as datas dos acontecimentos políticos
e culturais mais importantes da época.
2. Cada tema está dividido em alíneas e é precedido de uma introdução
que fornece orientações sobre o seu sentido e forma de
desenvolvimento.
3. Dado que a exposição se centra nos problemas filosóficos, não cabem
nela notas biográficas nem referências às obras dos autores abordados.
Estas informações são fornecidas em segmentos do texto separados.
4. Os textos que ilustram as teorias abordadas são também apresentados
em segmentos textuais separadose com um tipo de letra diferente.
5. No final do livro inclui-se uma secção de bibliografia fundamental
para a ampliação e aprofundamento dos temas tratados, separada por
cada parte.
PRIMEIRA PARTE
DOS PRÉ-SOCRÁTICOS À IDADE
MÉDIA
A Filosofia surge na Grécia, aproximadamente nos começos do século
VI a.C. Como as restantes culturas antigas, a cultura grega fundava-se no
Mito, transmitido e ensinado pelos poetas, educadores do povo,
especialmente Homero e Hesíodo. Através de complexas narrações e
doutrinas sobre os deuses e os homens, sobre as forças que intervêm
activamente nos acontecimentos cósmicos e humanos, o mito oferecia
respostas orientadoras acerca da natureza e destino do ser humano, acerca
da origem e das normas da sociedade em que o indivíduo se encontrava
inserido e acerca do aparecimento e estrutura do Cosmos. No dealbar do
século VI a.C, e em consonância com as profundas transformações de
carácter cultural e social, as inteligências mais despertas sentiram a
necessidade de substituir as explicações míticas por outro tipo de
explicação justificada de um modo racional. Surgiu, assim, a Filosofia
como propósito de racionalizar a interpretação do homem e do Universo,
das relações dos homens entre si e destes com a natureza. Se o Mito se
caracterizava por dar resposta a todos os enigmas fundamentais susceptíveis
de inquietar o homem, a Filosofia caracterizou-se, também, pela
radicalidade das suas propostas. A atitude filosófica e radical num duplo
sentido: na medida em que as suas questões abarcam a totalidade do real e
na medida em que pretende atingir os princípios explicativos últimos do
real. Desde o seu nascimento, a Filosofia, enquanto atitude crítica e
racionalizadora, constituiu um elemento essencial – se não mesmo o
elemento essencial – dinamizador da nossa cultura.
Nesta primeira parte ocupar-nos-emos da história da filosofia desde as
suas origens até ao final da idade Média. Trata-se de um amplo período
histórico de vinte séculos, no qual deveríamos distinguir, por sua vez, dois
ciclos ou períodos distintos: o correspondente à Idade Antiga e o
correspondente à Idade Média. Esta divisão é, sem dúvida, legítima. No
entanto, existem razões de carácter histórico e cultural que nos autorizam a
considerar ambos os períodos como pertencendo a um único ciclo
filosófico. Em primeiro lugar, consideram-se as relações entre o
cristianismo e a filosofia. Por outro lado, a assimilação da filosofia grega
pelo cristianismo realiza-se na Idade Antiga: quando o Império Romano é
definitivamente derrubado, o pensamento cristão, de orientação grega,
platónica, conseguira já uma implantação definitiva que culmina na obra de
Santo Agostinho. Por outro lado, a Idade Média prolonga e incrementa esta
atitude assimiladora da filosofia grega por parte dos pensadores cristãos:
como teremos ocasião de comprovar, o pensamento medieval exprime-se
através de esquemas e conceitos gregos.
Em segundo lugar, deverá ter-se em conta o carácter específico do
pensamento do século XIV, ou seja, do final da Idade Média: a crítica
desenvolvida, no século XIV, contra os sistemas filosóficos medievais é, na
realidade, uma crítica dirigida contra os esquemas e conceitos gregos
assimilados pelo pensamento cristão e nele incorporados desde a Idade
Antiga e durante toda a Idade Média. O século XIV marca uma reacção
radical contra as bases gregas do pensamento. É certo que o Renascimento
verá um ressurgir dos sistemas filosóficos gregos, mas este ressurgir – aliás
conjuntural – arrastará consigo uma interpretação da filosofia grega, de
sinal muito diferente da interpretação medieval da mesma.
As forças que mais radicalmente influenciam a nossa cultura são a
Filosofia Grega e o Cristianismo. Hoje, poderemos ser gregos ou
antigregos, cristãos ou anticristãos, mas de maneira alguma bárbaros ou
pagãos. O estudo da História do pensamento ocidental mostrar-nos-á a
profunda verdade desta afirmação.
QUADRO SINCRÓNICO
 
1. AS ORIGENS DA FILOSOFIA. OS PRÉ-
SOCRÁTICOS
INTRODUÇÃO
Costuma dizer-se, com razão, que a filosofia e a ciência surgem quando
se abandona o mito, substituindo-o pela explicação racional. Utilizamos a
expressão «explicação racional» para traduzir o termo grego «logos». A
filosofia surge, pois, quando o logos substitui o mito na função de
explicar a realidade em toda a sua complexidade: o universo físico, a
natureza individual humana, a convivência social com as suas implicações
de carácter político e moral.
Este acontecimento – abandono do mito, aparecimento da explicação
racional ou logos – ocorreu, na cultura grega, por volta do século VI a.
C. Duas questões se nos apresentam imediatamente: em primeiro lugar, por
que é que este facto transcendental teve lugar na cultura grega e não noutras
culturas antigas e porquê precisamente nesta data? Em segundo lugar em
que consistem o pensar racional (explicação racional logos) que se lhe
opõe? Só uma compreensão adequada deste último, ou seja, do sentido e
implicações do pensar racional permitirá compreender a originalidade e
vigor com que os filósofos gregos investigaram os problemas do universo
físico, do homem e da sociedade.
Este capítulo é dedicado às origens da filosofia e aos primeiros filósofos
gregos, correntemente denominados pré-socráticos.
Na primeira parte abordaremos o aparecimento da explicação racional
(logos) em oposição ao mito. Na segunda apresentaremos as ideias
fundamentais dos filósofos pré-socráticos mais importantes.
A estrutura deste capítulo, dividido em duas partes, é a seguinte:
1. O aparecimento da filosofia e o problema da natureza.
2. Os pré-socráticos. Modelos de explicação da natureza.
1. O APARECIMENTO DA FILOSOFIA E O
PROBLEMA DA NATUREZA
1.1. Características gerais da cultura grega
A primeira das perguntas que anteriormente formulávamos (porque
surge a filosofia na Grécia e não noutra cultura?) não pode obter uma
resposta taxativa. É, no entanto, possível salientar algumas circunstâncias
que, certamente, influenciaram esse facto. Pretendeu-se, frequentemente,
explicar a origem da filosofia pelo recurso à genialidade dos Gregos. Pondo
de parte o génio grego (cuja originalidade é tão difícil de negar como difícil
é explicar em que consiste), deverão ser tomadas em consideração certas
condições socioculturais que tornaram possível o aparecimento da filosofia
na Grécia.
1.1.1. Etapa pré-filosófica
A Grécia anterior ao aparecimento da filosofia caracteriza-se pelas
seguintes circunstâncias:
a) Em primeiro lugar, trata-se de uma sociedade aristocrática, agrícola
e guerreira (cada reino deve defender a sua riqueza dos seus vizinhos). Isso
implica uma determinada estrutura social e determinados ideais morais.
A estrutura social é a de uma colectividade dividida em duas classes: a
nobreza, que vive despreocupadamente em tempo de paz e que conduz o
povo em tempo de guerra, e o povo, fundamentalmente dedicado à
agricultura e à criação de gado. No que diz respeito aos ideais morais, os
nobres são os depositários únicos da virtude, sendo os valores supremos
a linhagem (bom é o de linhagem nobre, mau e vulgar o de linhagem
plebeia), o êxito (fracassar é vergonhoso; é-se castigado não por ter agido
mal no sentido actual do termo, mas por se ter fracassado) e a fama. É
facilmente compreensível que, numa sociedade assim estruturada, não haja
lugar para as ideias de justiça e direito, que implicam uma certa igualdade.
b) Uma segunda característica própria da cultura grega é que carece de
livros sagrados e de um sistema educativo organizado. Esta
circunstância é extremamente importante, já que caberá aos poetas e aedos
o papel educativo (e, de modo muito particular, a Homero).
Homero era para os Gregos algo de muito diferente do que é, hoje, para
nós. Para nós, não passa de um poeta que nos brinda com narrativas
extremamente belas, imaginativas e ilustrativas. Os Gregos aprendiam em
Homero. A sua obra era como que o livro de leitura em que sucessivas
gerações aprendiam:
1. a moral e o conjunto dos valoresacima descritos;
2. a teologia. A organização social dos deuses – com Zeus como rei
supremo – e as suas formas de comportamento descritas por Homero
correspondem totalmente à organização social e ao código moral da
sociedade grega que anteriormente descrevemos. A conduta dos deuses
(roubos, adultérios, dolos etc.), que mais tarde viria a ser considerada
imoral pelos filósofos, está de acordo com a moral aristocrática a que já
nos referimos;
3. além da moral e da teologia, os Gregos aprendiam de Homero tudo o
que, na realidade, sabiam (ou julgavam saber) sobre história, geografia,
navegação, arte militar, cosmologia, etc.
Sabe-se que é escassa ou nula a possibilidade de criticar as doutrinas e
os dogmas nas sociedades onde existem livros sagrados. Neste aspecto,
porém, o carácter peculiar da cultura grega, que carecia de livros sagrados e
de uma organização sacerdotal que velasse pela ortodoxia, facilitou a crítica
ao conjunto dos ensinamentos homéricos. É esta crítica que constitui o
ponto de partida da filosofia.
1.1.2. Etapa filosófica
A partir do século VII a. C., operou-se uma profunda transformação na
sociedade grega: o comércio assume uma importância definitiva; aparece a
moeda, as viagens proporcionam novos conhecimentos técnicos e
geográficos, o contacto com outras civilizações e formas de vida e novos
conhecimentos de etnologia.
A sabedoria popular, representada pelos ensinamentos rotineiros dos
poetas antigos, começa a ser encarada como inadequada pelas mentes mais
despertas: no que diz respeito à moral, os valores bélicos e aristocráticos
encontram-se desfasados, já que as relações comerciais exigem novas
normas de justiça e de direito como base para as trocas; no que respeita à
teologia homérica, o conhecimento de outros povos origina a convicção de
que cada povo e cada raça representam os deuses de maneira diferente; em
suma, abre-se caminho à convicção de que a interpretação do Universo e da
convivência humana deve assentar em bases inteligíveis e racionais.
O que atrás fica dito permite-nos compreender dois factos fundamentais:
em primeiro lugar, que a filosofia surge na Grécia como uma crítica da
sabedoria popular e rotineira, que pretende suplantar; em segundo lugar,
que a crítica ao mito se efectua em todas as frentes (moral, sociologia,
teologia, astronomia, cosmologia). Trata-se de uma nova visão da realidade
em toda a sua complexidade, uma visão que se esforça por eliminar os
pressupostos irracionais do mito.
1.2. Mito e explicação racional (logos)
1.2.1. O mito
No parágrafo anterior, utilizámos a palavra «mito» ao referirmo-nos à
filosofia como crítica do mito. Em geral, deve entender-se por mito o
conjunto de narrativas e doutrinas tradicionais dos poetas (especialmente
Homero e Hesíodo) acerca do mundo, do homem e dos deuses. Como
conjunto destas narrativas e doutrinas, o mito caracteriza-se por oferecer
uma explicação total, que forneça respostas para os problemas e enigmas
mais prementes e fundamentais acerca da origem e natureza do Universo,
do homem, da civilização e da técnica, da organização social, etc. Ao opor-
se às explicações de carácter mítico, a filosofia não renunciará a esta
dimensão de resposta última acerca da totalidade do real; pelo contrário, tal
dimensão constituirá um dos traços essenciais do pensamento filosófico.
Por mito deve entender-se, ainda, não só o conjunto de narrativas
tradicionais dos poetas, mas também uma atitude intelectual, algo como
uma espécie de esquema mental subjacente a tais explicações. São várias as
características específicas do mito assim entendido, isto é, enquanto atitude
intelectual perante a realidade. Importa-nos considerar fundamentalmente
duas. Em primeiro lugar, as forças naturais (o fogo, o vento, etc.) são
personificadas e divinizadas no mito: trata-se de deuses pessoais cuja
presença e actuação como tais se faz continuamente sentir no decurso dos
acontecimentos. Em segundo lugar e em consonância com o anterior, os
fenómenos e acontecimentos do Universo dependem da vontade de um deus
(dos deuses em geral). As consequências daí decorrentes são facilmente
compreensíveis: os fenómenos naturais – e bem assim a conduta humana,
individual e colectiva – são em grande medida imprevisíveis, acontecem de
modo arbitrário, no seu decurso dependem da vontade caprichosa da
divindade.
É óbvio que, dentro destas coordenadas, é impossível haver ciência. A
ciência só é possível enquanto procura das leis e das regularidades que
regem a natureza; ora, se por princípio se nega a própria existência de leis
que regem o Universo, como proceder então para as descobrir?
Convém assinalar, por outro lado, que o quadro do pensamento mítico,
que estamos a traçar, é em certa medida esquemático. A arbitrariedade no
curso dos acontecimentos (sejam humanos ou cósmicos) tem certas
limitações mesmo no pensamento mítico. A própria actuação dos deuses
está submetida a certas forças de carácter cósmico, como o destino. Estas
forças são entidades mais ou menos imprecisas que, ao contrário dos deuses
a que anteriormente nos referimos, não são pessoais, mas abstractas. Contra
o destino nada podem os homens, nada podem os deuses. Deste modo, o
destino acaba por estabelecer uma certa necessidade no acontecer universal.
A filosofia por um lado criticará a arbitrariedade das intervenções divinas
a que acima nos referimos e, por outro, conservará esta ideia de
necessidade, despojando-a do seu carácter ilógico e inescrutável e
afirmando-a como uma exigência da racionalidade do real.
1.2.2. A explicação racional (logos)
Convém acentuar que a explicação racional ( logos) começa quando a
ideia de arbitrariedade é definitivamente suplantada pela ideia de
necessidade, ou seja, quando se impõe a convicção de que as coisas
acontecem quando e como têm de acontecer. Esta convicção pode hoje
parecer-nos elementar, mas constitui certamente uma das mais importantes
conquistas da cultura ocidental.
Esta ideia de necessidade está associada a um conjunto de ideias que
constituem o que podemos denominar coordenadas ou esquema intelectual
dentro do qual tem lugar a explicação racional na filosofia grega.
a) A ideia de que as coisas acontecem como têm de acontecer está
relacionada com a ideia de permanência ou constância. Tomemos um
exemplo muito simples: a água comporta-se de maneira constante (por
exemplo, ferve e solidifica sempre a determinadas temperaturas); possui,
pois, propriedades constantes e, por conseguinte, uma maneira de ser
constante ou permanente. Esta maneira de ser constante ou permanente foi
denominada pelos Gregos essência (eidos). A essência é o que uma coisa é
apesar das suas possíveis mudanças de aparência ou estado. A água do
nosso exemplo poderá apresentar-se em estado sólido ou líquido, etc., mas é
sempre água. Ou seja, o homem apresentar-se-á sob diversas aparências,
idades, raças, culturas, etc., mas em todos estes casos trata-se sempre de
homens.
Desta forma, o pensamento grego conseguiu estabelecer uma série de
conceitos opostos dois a dois, cuja trama constitui o sistema de coordenadas
da sua explicação da realidade. Por um lado, temos o que há de
permanente nas coisas face ao que nelas há de mutável, face aos seus
diferentes estados ou aparências; o permanente constitui, por seu turno, a
essência (o que as coisas verdadeiramente são) face às suas aparências (o
que as coisas parecem ser); por último, esta maneira de ser constante é o
que existe de comum ou idêntico entre seres que apresentam aparências
diversas: homens de raças e culturas diferentes etc., têm em comum
precisamente o facto de serem homens. A essência é, portanto, o
fundamento da unidade das coisas face à multiplicidade dos seus estados e
aparências, bem como face à multiplicidade de indivíduos que dela
compartilham.
Conhecer as coisas será, então, conhecer o que elas verdadeiramente
são, o que têm de comum e permanente. Os Gregos estavam firmemente
convencidos de que, por muito útil que o conhecimento sensível possa ser,
os sentidos não bastam para nos proporcionaresse conhecimento. Pelo
contrário, os sentidos mostram-nos uma multiplicidade de indivíduos, de
aparências e de estados mutáveis e acidentais. É necessário um esforço
intelectual, racional, para atingir o ser das coisas. Deste modo, e em
correspondência com a dualidade anteriormente estabelecida (unidade e
permanência face à pluralidade e mudança), os Gregos estabeleceram ainda
uma dualidade no campo do conhecimento: a razão face aos sentidos. A
heterogeneidade do conhecimento racional relativamente ao conhecimento
sensível revelou-se aos gregos fundamentalmente no domínio das
matemáticas, na descoberta da estrutura matemática subjacente ao real e na
especificidade do raciocínio matemático. A distinção entre os dois tipos de
conhecimento e a presença de ambos no homem teria, por seu turno,
importantes repercussões nas suas ideias antropológicas. O que foi dito
pode representar-se por meio deste gráfico:
 
O MITO DE PROMETEU
Quando os deuses e os homens se separaram em Mecona, Prometeu
ofereceu um boi enorme que dividiu com ânimo resoluto, pensando
enganar a inteligência de Zeus. De um lado, pôs a carne, as miudezas, a
gordura, ocultando-as no ventre do boi; do outro lado, com astúcia falaz,
juntou os ossos descarnados do boi e dissimulou-os, cobrindo-os com
gordura luzidia.
Então o pai dos homens e dos deuses dirigiu-se a ele: «Filho de
Jápeto, o mais ilustre de todos os deuses, amigo meu, repartiste os lotes
tão parcialmente!».
Assim falou Zeus, conhecedor dos desígnios imortais, em tom de
brincadeira. O astuto Prometeu respondeu-lhe com um leve sorriso e não
ocultou a sua falaz astúcia:
«Zeus, o mais ilustre e poderoso dos deuses sempiternos! Escolhe o
lote que o coração no teu peito te dita».
Falou certamente com pensamentos falsos. E Zeus, sabedor dos
desígnios imortais, reconheceu o logro; mas o seu coração estava já a
preparar desgraças para os homens mortais e ia dar-lhes cumprimento.
Com ambas as mãos recolheu a gordura branca. As suas entranhas
irritaram-se e a cólera atingiu-lhe o coração quando viu os descarnados
do boi e a falaz astúcia. Foi a partir daí que sobre a terra as tribos de
homens queimam os ossos descarnados para os imortais quando fazem
sacrifícios nos altares. E Zeus, pastor das nuvens, terrivelmente
indignado, disse a Prometeu:
«Filho de Jápeto, conhecedor dos desígnios de todas as coisas, amigo
meu, certamente não te esqueceste já da tua falaz astúcia!».
Assim falou Zeus colericamente, conhecedor dos desígnios imortais. E
desde então lembrou-se sempre deste logro e não deu a infatigável chama
de fogo aos fresnos [os homens mortais que habitam sobre a terra].
Mas o sagaz filho de Jápeto ludibriou-o, escondendo numa oca o
brilho intenso do incansável fogo.
Quando Zeus altissonante viu que os homens possuíam o brilho
intenso do fogo, a sua alma feriu-se de novo e o seu coração irritou-se. E
imediatamente, como contrapartida para o fogo, preparou uma desgraça
para os homens.
Por vontade do Crónida, o ilustre Patizambo modelou então em terra
uma imagem com aparência de donzela casta. A deusa Atena de olhos
glaucos deu-lhe uma faixa e adornou-a com um vestido resplandecente de
brancura; cobriu-lhe a cabeça com um magnífico velo bordado pelas suas
próprias mãos; e rodeou os seus seios com deliciosas coroas de erva
fresca trançada com flores...
Logo que preparou o belo mal, em troca de um bem, levou-a para
onde estavam os outros deuses e os homens, engalanada com os atavios
da deusa de olhos glaucos, filha do poderoso pai; e um espanto enorme se
apoderou então dos deuses imortais e dos homens mortais quando viram
o espinhoso engano, irresistível para os homens. É desta donzela que
descende a estirpe das mulheres feminis [...]. Foi uma grande calamidade
para os mortais, dado que a vida dos varões não se conforma com a
penúria funesta mas sim com a saciedade.
Tal como nas colmeias abobadadas as abelhas alimentam os zangãos
sempre ocupados com tarefas mesquinhas (durante todo o dia até ao pôr-
do-sol elas afadigam-se diariamente e fazem brancos favos de mel, ao
passo que eles aguardam nos favos recobertos e recolhem no seu ventre o
esforço alheio), assim também Zeus altissonante fez com que as
mulheres, sempre ocupadas com tarefas perniciosas, fossem uma
desgraça para os homens mortais.
Hesíodo, Teogonia
b) Há, pois, essências ou maneiras de ser que são comuns a uma
multiplicidade de indivíduos. Nesta ideia se baseia a actividade intelectual
que consiste em classificar. Suponhamos agora que, baseando-nos nesta
ideia, classificamos globalmente os seres do Universo agrupando-os em
minerais, plantas, animais e homens. Deter-se-á aqui o entendimento
humano? Decerto que não. O entendimento voltará a fazer a si próprio a
mesma pergunta sobre os indivíduos pertencentes a estes grupos. Talvez  –
pensará – minerais, plantas, animais e homens não sejam senão variedades
ou estados distintos de uma única substância, ou então o resultado de
combinações várias de umas tantas – poucas – substâncias primeiras e
elementares.
A busca do permanente e comum está associada a uma segunda
convicção fundamental: que todo o Universo se reduz, em última análise,
a um ou a poucos elementos. Esta convicção constitui outro dos pilares
sobre os quais assenta a investigação racional acerca do Universo. Sem esta
convicção, a ciência é igualmente impossível.
É esta perspectiva que permite compreender a originalidade e a
transcendência histórica da interrogação dos filósofos gregos acerca da
arché ou princípio último real. Com efeito, a partir desta perspectiva é
possível compreender que a própria interrogação da arché ou princípio é
muito mais importante do que as variadas respostas que os filósofos gregos
foram sucessivamente tentando. Há pessoas de escassa sensibilidade
histórica que se limitam a sublinhar a ingenuidade de Tales de Mileto
quando este afirmava que a água é o princípio último de tudo o que é real.
A resposta de Tales não é realmente importante. O que é notável e genial é
que este filósofo foi o primeiro a formular tal pergunta em toda a sua
amplitude e radicalidade.
1.3. A natureza (physis)
Nos parágrafos anteriores, procurámos evitar a utilização do termo
«natureza». Vamos agora tentar tornar claro o significado e importância
desta ideia no pensamento grego, bem como a sua relação com o conjunto
de conceitos já expostos que servem de coordenadas à explicação racional
ou logos.
Comecemos por observar que de um modo geral «natureza» ou «physis»
possui para os Gregos, e para nós, dois grandes usos ou acepções. Fala-se
frequentemente da natureza como o conjunto de seres que povoam o
Universo, excluindo deste conjunto as coisas produzidas pelo homem (mais
adiante veremos a importância desta excepção): assim, fala-se actualmente
da degradação da natureza provocada pela actividade industrial humana e
da necessidade de protegê-la; na linguagem religiosa, diz-se que «a natureza
inteira louva o seu Criador», etc. Nesta acepção, a natureza coincide com a
totalidade do Universo.
É também com frequência que o termo natureza adquire um segundo
significado quando o utilizamos para referir classes ou conjuntos de coisas;
é o que acontece quando nos interrogamos acerca da natureza humana.
Neste caso, natureza quer dizer o que as coisas são, aquilo que (no
parágrafo anterior) denominávamos por essência, o modo de ser
permanente ou constante.
1.3.1. A natureza segundo os Gregos
Estabelecido este duplo uso do termo (como universo na sua totalidade e
como ser intrínseco permanente das coisas), salientaremos em seguida os
aspectos que caracterizam a natureza) segundo a filosofia grega.
a) Em primeiro lugar, o conceito de natureza – e isto é válido para a
dupla acepção referida – está indissoluvelmente ligado ao conceito de
necessidade a que anteriormente nos referimos. No tocante ao Universo
como totalidade, a necessidade traduz-se no facto de aquele ser um todo
ordenado, um Cosmos e não um Caos. Ora o Universo só poderia ser um
todo ordenado se os diferentes seres que o integram(os astros, a Terra, os
elementos, os seres vivos) estivessem no seu lugar e se comportassem da
forma que lhes compete; é precisamente a natureza dos diferentes seres
(entendida agora no seu sentido próprio e intrínseco) que determina o seu
lugar no Universo e a sua maneira de comportar-se.
b) A natureza não é algo estático e inerte. O Universo como totalidade
revela uma ordem dinâmica na qual os movimentos dos astros, as estações,
as gerações dos seres vivos, etc., se sucedem ordenadamente. A natureza é,
pois, dinâmica. Negar a mudança e o movimento é negar a natureza. Por
isso, Aristóteles chamará aphysikós a Parménides, isto é, negador da
natureza, pois Parménides, como mais adiante veremos, negava a
possibilidade do movimento.
c) A natureza implica, pois, movimento e actividade, mas movimento
e actividade intrínsecos e próprios do ser natural. Este terceiro e
importantíssimo aspecto marca a separação radical entre os seres naturais e
os seres artificiais ou artefactos, isto é, as coisas que são produto do
trabalho e da indústria humanos. Uma cadeira, enquanto cadeira, não possui
propriedades diferentes das que lhe cabem por força dos materiais naturais
de que é feita. Parafraseando Aristóteles, suponhamos que semeamos
cadeiras de pinho. Nada crescerá, com certeza. Mas supondo que algo
crescesse, não cresceriam cadeiras (felizmente para os carpinteiros) mas
pinheiros: estes têm uma actividade intrínseca e própria que uma cadeira –
ente artificial – não possui.
É precisamente por causa desta actividade intrínseca e própria que
caracteriza a natureza que o Universo não pode ser concebido, em geral,
pelos Gregos segundo o modelo de uma máquina (o modelo da máquina
presidirá à concepção do Universo na modernidade); terá de conceber-se
segundo o modelo de um organismo vivo.
1.3.2. Natureza, essência, origem, causa
Passemos agora à segunda questão: a relação que esta ideia de natureza
mantém com o conjunto de conceitos que anteriormente considerámos
como a trama da explicação racional ou logos. Tudo o que até agora
expusemos permite-nos compreender esta relação de acordo com as
observações seguintes.
Enquanto modo de ser próprio e permanente das coisas, a natureza
identifica-se realmente com aquilo que denominávamos essência. Existe, no
entanto, uma importante diferença de matiz resultante do carácter dinâmico
da natureza que assinalámos: a essência é a maneira de ser permanente das
coisas por oposição aos seus aspectos variáveis e mutáveis; a natureza é
esse mesmo modo de ser permanente, mas só enquanto determina um certo
tipo de actividades ou operações próprias.
Aplicando esta diferença ao quadro de oposições exposto na secção
1.2.2., diremos que, enquanto a essência prescinde dos aspectos mutáveis e
variáveis das coisas, a natureza explica precisamente essas variações e
mudanças. O conceito de natureza estabelece, portanto, uma ponte entre os
membros das diferentes oposições do gráfico a que nos referimos: é o
permanente, mas enquanto explica as mudanças; é o que as coisas
realmente são, mas enquanto fundamento do que parecem ser; é o princípio
de unidade capaz de gerar a pluralidade. Assim interrogar-se acerca da
natureza é interrogar-se sobre o que as coisas são para, a partir daí,
explicar os seus movimentos e processos.
A pergunta dos filósofos gregos é desde o primeiro momento (desde
Tales de Mileto) uma pergunta pela natureza, pela physis. O princípio ou
princípios últimos (a água, o ar, etc.) são a natureza das coisas, porque:
– são aquilo a partir do qual se geram os seres do Universo. O princípio
assim concebido é a origem;
– são aquilo em que consistem os seres do Universo (na hipótese de
Tales, as coisas não só procedem da água como são, em última análise,
água). O princípio assim concebido é o permanente, o substrato último;
– são aquilo que é capaz de explicar as diferentes transformações do
Universo. O princípio assim concebido é a causa.
A interrogação dos filósofos gregos acerca do princípio ou princípios da
totalidade do real apresenta, pois, uma dupla característica: a sua
radicalidade, na medida em que pretende alcançar o princípio ou princípios
últimos e originários; e a sua universalidade, na medida em que aspira a
atingir o princípio ou princípios de todo o real. Trata-se, portanto, de uma
interrogação filosófica ou, mais exactamente, da interrogação que dá início
à filosofia.
O SUBSTRACTO MATERIAL COMO ARCHÉ
A maioria dos primeiros filósofos pensou que os únicos princípios de
todas as coisas eram de natureza material: todos o seres eram assim
constituídos, formando-se primeiro a partir disso e nisso se decompondo
por último, permanecendo no entanto a entidade por mais que as suas
qualidades mudem. Esse era o elemento e o princípio que constituía os
seres, e por isso pensaram que nada se gerava nem se destruía porque
essa natureza se mantinha sempre a mesma. Do mesmo modo não
dizemos que Sócrates é uma entidade total quando se torna belo ou
músico, ou que se destrói quando perde tais disposições (já que o sujeito,
o próprio Sócrates, permanece); o mesmo acontece relativamente a todas
as outras coisas.
Por conseguinte, deve haver alguma natureza, seja uma ou mais de
uma, a partir da qual tudo é gerado mas conservando-se essa natureza.
Aristóteles, Metafísica 1, 3, 993b 6-20.
2. OS PRÉ-SOCRÁTICOS, MODELOS DE
EXPLICAÇÃO DA NATUREZA
O tema fundamental de que os primeiros filósofos, os pré-socráticos, se
ocupam é a natureza ou physis. Daí também serem frequentemente
denominados cosmólogos ou físicos (Aristóteles chamava-lhes physikoi, ou
seja, físicos, ou, se preferir, filósofos da natureza). A sua actividade
desenvolve-se durante o século VI e a primeira metade do século V a.C.
(ver quadro cronológico seguinte).
Nem todos os filósofos pré-socráticos propuseram o mesmo modelo de
explicação racional da natureza.
Exporemos de seguida os diversos modelos a que recorreram.
2.1. Natureza e substrato. A escola de Mileto
Embora a ideia de natureza ( physis) remeta para o princípio (arché) e
este abarque as ideias de origem, substrato e causa, não podemos deixar de
levantar uma séria questão: será possível que uma única realidade ou
substância seja capaz de exercer sozinha todas estas funções?
Os filósofos de Mileto – Tales, Anaximandro e Anaxímenes –
consideraram que era possível, estabelecer um único princípio ou natureza.
Tales de Mileto sustentou que esse princípio é a água; Anaximandro
considerou que tal princípio não pode ser nenhuma das substâncias
concretas que povoam o Universo, já que todas elas procedem desse
princípio; por isso chamou ápeiron (o indeterminado, o indefinido) ao
princípio; Anaxímenes, finalmente, à semelhança de Tales, recorreu a uma
substância determinada e afirmou que o princípio é o ar, do qual todos os
seres derivam, através de processos de rarefacção e de condensação.
Não se encontram quaisquer escritos de Tales ou de Anaxímenes.
Contudo e felizmente, um comentarista de Aristóteles, Simplício (séc, VI d.
C.), transmitiu-nos as seguintes e preciosas linhas de Anaximandro: «A
geração dos seres existentes tem lugar a partir daquilo que conduz à sua
destruição, como é justo e necessário. E indemnizam-se e pagam o seu
castigo uns aos outros pelas suas ofensas (ou injustiça: adikía) segundo a
ordem do tempo». Nestas linhas, surge poeticamente expressa a ideia de
que o Universo constitui um processo em que a destruição de uns seres dá
lugar ao surgir de outros seres opostos e vice-versa, bem como a afirmação
de que este processo é necessário, alheio a qualquer arbitrariedade, e
regular, «segundo a ordem do tempo».
2.2. Natureza e matemáticas. A escola pitagórica
Os pitagóricos foram sobretudo matemáticos («os primeiros que fizeram
progredir as matemáticas», como diz Aristóteles) e a sua dedicação às
matemáticas exerceu influência definitiva na sua explicação acerca da
origem da natureza (origem, substrato e causa) do real. Observaram, com
efeito, como múltiplas propriedades e comportamentos dos seres reais
podem ser formuladosmatematicamente e partiram da hipótese de que
todos os seres do Universo – o que são e a sua forma de comportar-se – são
formuláveis matematicamente. A partir de então, a ciência beneficiou
continuamente desta hipótese, confirmando-a sempre.
Tales de Mileto
Nascido na segunda metade do século VII a. C., desenvolveu a sua actividade intelectual na
primeira metade do século seguinte. Astrónomo (predisse o eclipse do Sol ocorrido no ano de
585 a. C.), engenheiro e matemático (formulou o teorema que tem o seu nome), Tales é
considerado o primeiro filósofo grego ao introduzir a investigação racional acerca do princípio
ou arché do real.
Compatrício, discípulo e sucessor de Tales foi Anaximandro nascido
talvez nos últimos anos do século VII a. C. e que morreu em meados do
século VI. Foi também astrónomo, geómetra e geógrafo (desenhou um
mapa do mundo) e escreveu uma obra que – como muitas outras dos
filósofos pré-socráticos – foi posteriormente intitulada Acerca da Natureza.
De Mileto foi também Anaxímenes, um pouco mais jovem do que
Anaximandro. Sabemos muito pouco a seu respeito, salvo que escreveu
também uma obra acerca da natureza na qual expunha as suas teorias.
Pitágoras
A sua maturidade situa-se por volta do ano 530 a. C. Nasceu em Samos, mas emigrou para a
Grande Grécia, estabelecendo-se em Crotona onde fundou a sua escola. A sua figura depressa se
converteu em lenda. Atribui-se-lhe a invenção da tábua de multiplicação e do teorema que tem o
seu nome. Visto que nada escreveu, torna-se impossível distinguir as suas próprias contribuições
das da sua escola. A escola pitagórica foi uma comunidade singular de carácter científico,
religioso e político. No campo científico, cultivaram especialmente a matemática, a música e a
astronomia. No âmbito religioso, afirmavam a imortalidade da alma e a sua transmigração,
atribuindo uma importância fundamental à sua purificação através do conhecimento e de um
sistema de vida rigidamente regulado por proibições. No campo político, apoiavam o partido
dórico e exerceram o poder durante muito tempo, até que, a meio do século V a. C., se verificou
uma rebelião em que morreu a maior parte dos membros da escola. Alguns, como Filolau,
fugiram e estabeleceram-se em Tebas. Outros continuaram ainda por meio século na Grande
Grécia, até à sua dispersão definitiva.
Também a partir de então, esta dócil submissão do Universo às
matemáticas constituiu motivo de reflexão. Porque é que os seres do
Universo se acomodam às matemáticas? Os pitagóricos consideraram
como única explicação possível que os princípios das matemáticas são
também os princípios dos seres reais, e como os princípios das matemáticas
são os números, afirmaram que os números constituem a natureza do
Universo. A partir desta afirmação, dedicaram-se a uma dupla tarefa: por
um lado, atribuir (por meio de procedimentos em grande medida arbitrários)
um número a cada coisa; por outro, e visto que os números são muitos,
perguntaram-se de que são constituídos e donde procedem os mesmos
números (o que equivalia a perguntar, como vimos, de onde procedem, em
última análise, os seres reais).
Os números – afirmavam – procedem de dois elementos, o par e o
ímpar. Os pitagóricos adoptavam assim não uma explicação monista mas
dualista da natureza e conseguiram estabelecer uma série de oposições entre
dois termos (par-ímpar, limitado-ilimitado, bom-mau, luz-obscuridade,
etc.), as quais mais não são do que aspectos ou concreções dos princípios
originais propostos. Talvez – não sabemos – os pitagóricos antigos se
tivessem perguntado se seria possível reduzir estes opostos a um único
princípio original do qual ambos procederiam.
2.3. Natureza e logos. Heraclito e Parménides
2.3.1. Heraclito
Heraclito é tradicionalmente considerado como o filósofo que afirmou
radicalmente que tudo muda e nada permanece, que o Universo, não é mais
do que contínuo devir no qual a lei da identidade – a identidade de cada
coisa consigo mesma – carece de vigência, pois todas as coisas estão
submetidas a uma contínua transformação. Postas as coisas assim tão
simplesmente, Heraclito teria negado os próprios pressupostos da
explicação do real (o permanente face ao mutável, a unidade face à
pluralidade, o que é face ao que parece ser), estabelecendo a absoluta
irracionalidade do real. Esta interpretação da filosofia de Heraclito não é
falsa, mas é sem dúvida unilateral. Tudo muda, com efeito, mas o devir não
é irracional, caótico, já que se realiza de acordo com certas leis e
proporções. A lei ou logos interno do devir universal constitui o verdadeiro
princípio explicativo do Universo.
O Universo é fogo («este Cosmos, o mesmo de todos, não o fez
nenhum deus nem nenhum homem, mas sempre foi, é e será fogo
eterno que se acende segundo a medida e conforme a medida se
extingue», fg. 30); a lei que rege o Universo é a luta dos contrários («a
guerra é o pai de todas as coisas e rei de todas as coisas, a uns fez
deuses e a outros fez homens», fg. 53); os contrários constituem, em
última análise, uma unidade profunda («Deus é dia-noite, Inverno-Verão,
guerra-paz, fartura-fome», fg. 67); a harmonia que caracteriza o Universo
(«harmonia oculta», fg. 54), não é afinal uma harmonia estática, mas o
equilíbrio dinâmico das tensões entre os contrários, uma harmonia tensa
«como acontece com o arco e com a lira» (fg. 51). 
Ao procurar a ordem e inteligibilidade do real, não em seus aspectos
estáticos mas no seu dinamismo, não na identidade mas na contradição, na
luta dos contrários, Heraclito chamou pela primeira vez a atenção para a
dialéctica.
2.3.2. Parménides
Parménides representa um marco decisivo na evolução da filosofia
grega. De facto, como consequência da sua doutrina, a filosofia da natureza
tomará um rumo e princípios totalmente diferentes. Parménides escreveu
um Poema que consta de uma introdução ou proémio e de duas partes
perfeitamente distintas. Na primeira – usualmente intitulada Via da Verdade
– Parménides expõe a sua concepção da realidade; na segunda – intitulada
Via da Opinião – expõe a origem e a configuração do Universo.
a) Via da Verdade
A doutrina de Parménides sobre a realidade, sobre o que há ou existe,
pode ser resumida em duas afirmações:
1. A partir de uma única realidade é impossível que surja a
pluralidade, contra o que afirmavam os milésios (e que talvez os
pictagóricos do seu tempo discutissem, como insinuámos). Efectivamente,
suponhamos que originalmente existia apenas água: porque não continua a
existir somente água? Se existia apenas água, esta não pôde gerar-se a partir
de outra substância (que, por hipótese, não existia) e muito menos
transformar-se noutra coisa ou desaparecer (o que poderia fazê-la
desaparecer ou transformar-se, se além dela nada mais existe?). O que
desde sempre não existe nem existia, não pode originar-se; o que existe
desde sempre não pode ser destruído. O que existe, o que é (o ente), é,
segundo Parménides, não-engendrado, indestrutível, imutável, finito,
compacto, homogéneo, indivisível e esférico.
Parménides
Nasceu nos finais do século VI a. C. e a sua importância filosófica é enorme, uma vez que a
sua obra divide a filosofia pré-socrática da natureza em dois períodos bem definidos: o dos
sistemas monistas anteriores a ele e o dos sistemas pluralistas, que lhe são posteriores. Talvez
tivesse sido pitagórico na sua juventude. Escreveu um Poema em verso que – além do proémio,
de carácter alegórico-religioso – compreendia duas partes claramente distintas: na primeira – via
da verdade – expõe a sua doutrina da realidade, do ente único e imóvel: na segunda, apresenta
uma cosmologia de tipo tradicional, narrando a origem e criação do Universo.
O nome de Parménides está associado ao do poeta Xenófanes. Teofrasto diz que Xenófanes
– que nas suas obras critica energicamente a teologia mítica de Homero – foi o mestre de
Parménides. Foram seus continuadores Melisso e Zenão de Eleia, tendo este último proposto
argumentos engenhosos para demonstrar a impossibilidade do movimento.
2. Juntamentecom estas características ou propriedades, Parménides
deduz também que o que existe deverá ser único, isto é, uma única
realidade.
As consequências destas duas afirmações são peremptórias e iniludíveis:
se, por um lado, de uma única realidade não pode surgir a pluralidade e se,
por outro, a razão nos força a aceitar a existência de uma só realidade, não
haverá outro remédio senão declarar que o movimento e a pluralidade são
irracionais e ininteligíveis. Dentro das coordenadas da explicação racional
expostas no capítulo anterior, Parménides elimina a mudança ao afirmar o
permanente; elimina o que as coisas parecem ser (múltiplas e mutáveis) ao
afirmar o que são (uma única realidade); elimina a pluralidade ao
estabelecer a unidade; elimina, finalmente, o conhecimento sensível,
sacrificando-o no altar da razão.
Esta visão monista da realidade é, no entender de Parménides, uma
exigência necessária da razão, do logos. O raciocínio de Parménides recai
sobre a noção abstracta de o que existe, o ente, e desenvolve-se em dois
momentos sucessivos. Em primeiro lugar, a razão enfrenta-se com a
disjunção: «existe ou não existe (o que existe)?» fg. VIII, 15-16; face a esta
disjunção, terá necessariamente de afirmar-se que o que existe, existe, que o
ente é. Em segundo lugar, a razão enfrenta uma nova disjunção: «o que
existe, o ente, existe ou será que existiu ou existirá, mas não existe?» (fg.
VIII, 20), a razão volta a afirmar necessariamente o primeiro e exclui desse
modo toda a existência passada ou futura, mas não actual. Desta maneira,
chega-se às características da realidade que acima assinalámos. No
raciocínio de Parménides, o logos recai sobre uma noção formal e abstracta
de ente, de realidade: formal, porque se atende exclusivamente ao jogo
lógico desta noção; abstracta, porque nela se prescinde de todos os
aspectos diferenciadores dos entes reais.
b) Via da Opinião
Esta doutrina de Parménides sobre a realidade (única, permanente,
inalterável) mostra a impossibilidade de qualquer mudança e, portanto, de
qualquer processo de criação do Universo. Não obstante, na segunda parte
do Poema, Parménides expõe uma cosmogonia segundo a qual o Universo
teve origem em dois princípios: a claridade e a escuridão. A existência
desta segunda parte no Poema provocou um grave problema de
interpretação: de facto se a razão exige que a realidade seja uma e imutável
porque é que Parménides recorrendo à mudança e introduzindo a
pluralidade, se dá ao trabalho de nos relatar como o Universo foi criado?
Até mesmo os filósofos gregos – profundamente impressionados pelo rigor
e pelo radicalismo da doutrina de Parménides – formularam esta
interrogação. Desde então e até aos nossos dias têm surgido respostas muito
diferentes a esta questão. A diferença que Parménides estabeleceu entre as
duas vias (a da verdade e a da opinião) teve grande influência no campo da
teoria do conhecimento. A razão, como referimos, exige que a realidade
seja única e imutável; contudo, os nossos sentidos, percepções e
experiências mostram-nos a pluralidade e o movimento. A partir de
Parménides configura-se, já de um modo definitivo, a oposição entre a
razão e os sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento do
visível. Apesar de o próprio Parménides não ter enunciado explícita e
literalmente esta oposição, a sua obra contribuiu sem dúvida para a
estabelecer.
2.4. O mecanismo. Anaxágoras e Demócrito
Depois de Parménides já não era possível regressar a uma
explicação monista da natureza, já que aceitar uma única realidade como
origem, substrato e causa era condenar-se a não poder explicar nem a
pluralidade nem o movimento. Por isso surgiram as filosofias pluralistas de
Empédocles, Anaxágoras e Demócrito.
Demócrito
Nasceu em Abdera (Trácia) no ano 460 a. C., sendo portanto contemporâneo de Sócrates. O
seu mestre foi Leucipo e os nomes de ambos aparecem associados na criação do atomismo
mecanicista. Demócrito foi um escritor enciclopédico. Diógenes Laércio reproduz uma lista dos
seus escritos em que se recolhem mais de sessenta obras dedicadas a temas éticos, físicos,
matemáticos, musicais e técnicos. Desta imensa obra sobreviveram apenas curtos fragmentos.
As suas teorias chegaram até nós mentalmente através da exposição que delas fazem outros
autores, sobretudo Aristóteles.
2.4.1. Anaxágoras
Anaxágoras, como todos os pluralistas, aceita como evidente o
raciocínio parmenídeo segundo o qual nenhuma realidade nova pode
originar-se. Aceitando-se este princípio, não resta outra alternativa senão
afirmar que tudo existe desde sempre. Partículas diminutas de todas as
substâncias existiam e existem sempre (nos homens predominam as
partículas de homem, mas na realidade do homem – como aliás nos
restantes seres – há partículas ou homeomerias de todas as substâncias do
Universo: «tudo participa de tudo», diz Anaxágoras) Estas inumeráveis
partículas encontravam-se originalmente misturadas numa massa compacta
e maciça, sem interstícios nem separação alguma. Torna-se assim possível
explicar a pluralidade, mas como se explica o movimento? Como começou
a mover-se esta massa compacta originária, de tal modo que as partículas se
foram separando e unindo para dar lugar aos diferentes seres? Anaxágoras
recorre a uma causa exterior, o entendimento, o nous, que imprimiu a esta
massa inerte um movimento de redemoinho.
O recurso de Anaxágoras ao entendimento abre perspectivas novas que
mais tarde serão aproveitadas por Platão e Aristóteles. Com Anaxágoras
aparece pela primeira vez de modo explícito a ideia de Deus como princípio
que rege o Universo. Isso parecia conduzir a uma concepção da Ordem do
Universo como o resultado de uma Inteligência que actua de acordo com
fins, de maneira tal que o resultado dos processos naturais seria sempre a
consecução do melhor, da máxima perfeição e beleza. O entusiasmo com
que Sócrates acolheu a leitura da obra de Anaxágoras é-nos descrito num
diálogo de Platão, o Fédon, em que Sócrates recorda: «Pois bem, em certa
ocasião ouvi a leitura de um livro de Anaxágoras em que se dizia que o
Entendimento é o ordenador e causa de tudo. Tal causa encheu-me de
alegria e pareceu-me muito certo que o Entendimento fosse a causa de tudo.
E pensei que, a ser assim, o Entendimento Ordenador ordenaria todas as
coisas e disporia cada uma de forma a alcançar o estado mais perfeito»
(Fédon, 97b). No entanto, Anaxágoras só de passagem aborda este aspecto
implícito na sua cosmologia, atribuindo de facto o papel fundamental na
construção do Universo ao redemoinho e, por conseguinte, a forças de
carácter mecânico. No mesmo diálogo platónico, Sócrates exprime mais
adiante a desilusão que Anaxágoras lhe produziu: «Mas, amigo, tive de
abandonar a minha maravilhosa esperança quando, avançando em sua
leitura, observei que este homem (isto é, Anaxágoras) não se servia do
Entendimento, mas recorria a causas como o ar, o éter e muitas outras
coisas estranhas.» (98b).
A filosofia de Anaxágoras situa-se, pois, entre o finalismo e o
mecanicismo.
2.4.2. Demócrito
Demócrito juntamente com o seu mestre, Leucipo – ofereceu uma
resposta mais audaz e mais radical do que a de Parménides. Aceita também
como indiscutível a afirmação de Parménides segundo a qual a pluralidade
não se pode originar de uma única realidade. Mais ainda, aceita que o real
deve possuir as características estabelecidas pelo raciocínio de Parménides:
inengendrado, indestrutível, imutável, finito, compacto, homogéneo e
indivisível. Aceita todas as características excepto duas: a esfericidade (há
átomos esféricos, mas também os há de outras formas e figuras) e a
unicidade. Segundo Parménides, não pode haver mais do que uma única
realidade. Porquê? Suponhamos que existem duas ou mais realidades, dois
ou mais entes: deverá forçosamente haver alguma separação real entre eles,
pois, caso contrário, não seriam duas mas uma única realidade contínua.
Pois bem, argumentava Parménides, se entre eles há realmente separação, o
que se interpõe entre eles? Não é possível contestar que seinterpõe algo
real, pois voltaríamos à situação anteriormente descrita: não duas mas
apenas uma única realidade contínua. Interpor-se-á entre eles algo de não-
real? Mas como pode interpor-se algo que não seja real? Algo não real é
algo que não é, e portanto não pode dividir-se nem interpor-se.
É perante este dilema que a audácia intelectual dos atomistas se
manifesta. Entre a multidão de realidades (átomos), cuja existência
pretendem estabelecer, interpõe-se certamente algo, o vazio. Os atomistas
concedem de boa vontade a Parménides que o vazio que separa os átomos
não é real, se por real se entende a matéria existente: somente os átomos são
reais neste sentido e o vazio pode muito bem ser caracterizado como não-
ente por Parménides; com efeito o vazio é algo real, se por real se entende o
que efectivamente existe.
Juntamente com os átomos, o vazio faz parte da natureza do Universo. O
papel desempenhado pelo vazio é decisivo. Não só torna possível a
pluralidade como também o movimento. Como vimos, Anaxágoras
admitira uma pluralidade de partículas originalmente misturadas numa
massa compacta. Não admitindo o vazio, estas partículas ficavam
«aprisionadas» na massa originária compacta e inerte. Admitindo o vazio,
os átomos podem mover-se livremente nele. A pergunta «porquê e como se
iniciou o movimento?» tem sentido no caso de Anaxágoras (iniciou-o o
nous ou entendimento), mas não tem qualquer sentido no atomismo: o
movimento não se iniciou em nenhum movimento, os átomos movem-se
eternamente no vazio.
O atomismo de Leucipo e Demócrito estabeleceu definitivamente uma
concepção, um modelo mecanicista da natureza levado até às últimas
consequências: o Universo não é presidido por plano algum traçado por
uma Inteligência transcendente, e também não existe finalidade imanente
que forneça inteligibilidade aos processos naturais. O Universo é o
resultado de uma necessidade cega e opaca que para o homem acaba por
confundir-se com o acaso. O modelo mecanicista permanecerá como
modelo sempre disponível após um longo período de obscurecimento
voltando a ressurgir com veemência a partir da Modernidade. 
O sistema atomista constituiu a última resposta do pensamento pré-
socrático à doutrina de Parménides. No que se refere à teoria do
conhecimento, Demócrito radicalizou a oposição entre a razão e os
sentidos, entre o conhecimento intelectual e o conhecimento sensível, uma
oposição que – como indicámos – surgia já no Poema de Parménides. Só a
razão nos garante o conhecimento e nos revela os verdadeiros princípios das
coisas, a verdadeira realidade dos átomos e do vazio. Por sua vez, as
qualidades que apercebemos por via dos sentidos (cores, odores, calor e
frio, etc.) não são reais, não são propriedades reais dos átomos; são apenas
impressões resultantes da interacção dos átomos do nosso corpo com os
átomos do exterior.
2. OS SOFISTAS, SÓCRATES E PLATÃO
INTRODUÇÃO
A actividade intelectual dos últimos filósofos pré-socráticos prolonga-se
bastante pela segunda metade do século V a.C. É o caso de Demócrito e
Anaxágoras (este último amigo íntimo e mentor intelectual de Péricles). No
entanto, na segunda metade do século V a. C. ocorre uma notável
mudança de interesses intelectuais no mundo grego. Os temas relativos à
filosofia da natureza, à cosmologia, passam para segundo plano e os
pensadores da época ocupam-se principalmente de questões relacionadas
com o ser humano, com a educação, a moral e a política. Para caracterizar
esta mudança de interesses utiliza-se frequentemente a expressão «mudança
antropológica».
Esta orientação da filosofia para os assuntos humanos foi levada a cabo
por um conjunto de intelectuais habitualmente designados sofistas. Os
primeiros sofistas e os mais importantes, como Protágoras e Górgias, não
eram atenienses, embora tenha sido em Atenas que angariaram a sua
influência e reputação. A primeira parte capítulo é dedicada a eles.
A segunda parte é dedicada a Sócrates. Tal como os sofistas, Sócrates
interessou-se pelos temas relacionados com o homem, particularmente
pelos temas morais. Não escreveu nada, os seus ensinamentos eram sempre
transmitidos oralmente, por meio do diálogo directo com os seus
concidadãos. Por essa razão, o conhecimento que temos dele provém das
obras de alguns contemporâneos, sobretudo dos seus discípulos, e
especialmente de Platão. Os contemporâneos de Sócrates, os concidadãos
que o condenaram à morte, certamente consideravam-no como mais um
sofista. Platão, todavia, transmitiu-nos a imagem de um Sócrates que se
opunha radicalmente às doutrinas dos sofistas.
A última parte deste capítulo é dedicada a Platão, sem dúvida o mais
genial dos seguidores e discípulos de Sócrates, detentor de um génio
filosófico brilhante e complexo. O ser humano, os temas políticos e morais
continuam a ser prioritários para Platão, mas encontramos nele um sistema
filosófico completo que também aborda questões da filosofia da natureza e
da teoria do conhecimento.
O capítulo está organizado do seguinte modo:
1. Os Sofistas.
2. Sócrates.
3. Platão.
1. OS SOFISTAS
1.1. Características gerais da sofística
Designa-se por «sofistas» um conjunto de pensadores gregos que
florescem na segunda metade do século V a. C. e que têm em comum, pelo
menos, dois aspectos relevantes: nos seus ensinamentos, incluem um
conjunto de disciplinas humanistas (retórica, política, direito, moral, etc.) e
são os primeiros profissionais do ensino (organizam cursos completos e por
ensinar cobram somas consideráveis). Ambos os aspectos – carácter
humanístico dos seus ensinamentos e institucionalização do próprio ensino
– mostram claramente que os sofistas tinham um projecto bem definido
de educação, que rompia com o ensino tradicional mas que se mostrava já
inadequado para as exigências da época. As circunstâncias que rodeiam o
aparecimento do movimento sofista são particularmente duas, uma
filosófica outra político-social: a primeira tem a ver com o desenvolvimento
das teorias físicas anteriores e a segunda com o sistema democrático
estabelecido em Atenas. Analisemo-las.
1.1.1. Os sofistas e a filosofia anterior
O desenvolvimento das teorias gregas acerca do Universo até meados do
século V a. C. (desenvolvimento que abrange os filósofos estudados no
capítulo anterior, desde Tales até Demócrito) oferece-nos um espectáculo
fascinante, sem dúvida, mas também desencorajador. Antes de mais,
desanima e escandaliza a diversidade de teorias opostas e incompatíveis que
se opõem entre si: para uns, o princípio ou arché é único (milésios), para
outros, é múltiplo (pluralistas); para Parménides, o movimento é
impossível, ao passo que para Heraclito o Universo é movimento e devir
incessante; este defenderá que o Universo é produto de uma Inteligência
(Anaxágoras), aquele afirmará que é o resultado de uma necessidade cega e
ocasional (Demócrito), etc. Não é de estranhar que este espectáculo criasse
uma atitude céptica perante a filosofia da natureza, a qual se mostrara
incapaz de produzir um sistema aceitável para todos. Mas há mais.
Tal atitude relativista e céptica não era apenas a posição que um
espectador da filosofia da natureza podia adoptar perante ela ao contemplá-
la a partir do exterior; era também a atitude onde o próprio
desenvolvimento da filosofia desembocara a partir de dentro. Já
assinalámos no capítulo anterior como o atomismo conduzia à negação da
possibilidade do conhecimento da natureza: como conhecer ou calcular as
infinitas combinações e ligações possíveis de infinitos átomos movendo-se
no vazio? O próprio Demócrito chegara a uma posição resignadamente
céptica: «a verdade está no profundo». E visto que a verdade não é
acessível ao homem, só nos restam as aparências. Era este o clima
intelectual no círculo de Demócrito. E temos de anotar como pormenor
extremamente significativo que Protágoras, o grande sofista, era
conterrâneo de Demócrito e conhecia bem a filosofia deste. Assim o
relativismo (não há verdade absoluta) e o cepticismo (se há verdade
absoluta, é impossível conhecê-la)divulgam-se e generalizam-se como
atitude intelectual. Uma célebre e feliz expressão do relativismo é a frase de
Protágoras «o homem é a medida de todas as coisas»; uma expressão
desconcertante e crua do cepticismo são as três afirmações escalonadas de
Górgias: «não há ser; se houvesse, não poderia ser conhecido; se fosse
conhecido, o seu conhecimento não poderia ser comunicado por meio da
linguagem».
O texto de Górgias que acabámos de citar revela uma ruptura radical
com a filosofia grega anterior, e posteriormente, para Platão e Aristóteles, a
realidade é racional; por isso, o pensamento e a linguagem acomodam-se a
ela e são capazes de expressá-la adequadamente. A desvinculação da
linguagem relativamente à realidade constitui um pilar importante da sua
interpretação do homem e da realidade. Com efeito, se se renunciar à
linguagem como expressão manifestadora do real, a linguagem acaba por
converter-se num instrumento de manipulação, numa arma para
convencer e impressionar as massas, num meio eficaz para impor-se aos
outros, se se dominar as técnicas apropriadas. «A palavra é um poderoso
tirano, capaz – escreve Górgias – de realizar as obras mais divinas, apesar
de ser o mais pequeno e invisível dos corpos. Com efeito, é capaz de
apaziguar o medo e eliminar a dor, de produzir a alegria e excitar a
compaixão.» (Elogio de Helena, 8).
1.1.2. Circunstâncias políticas e filosofia
Para o abandono da filosofia da natureza não contribuíram só a
circunstância filosófica assinalada no parágrafo anterior, mas também as
necessidades criadas pela prática democrática da sociedade ateniense. O
advento da democracia trouxera consigo uma notável mudança na natureza
da liderança: já não bastava a linhagem, a própria liderança política passava
pela aceitação popular. Numa sociedade em que as decisões são tomadas
pela assembleia do povo e cuja máxima aspiração é o triunfo e o poder
político, depressa se fez sentir a necessidade de estar preparado para isso.
Qual era a preparação idónea para o ateniense que pretendia triunfar na
política? Um político necessitava indubitavelmente de ser um bom orador
para manipular as massas. Necessitava, ainda, de possuir algumas ideias
acerca da lei, acerca do que é justo e conveniente, acerca da administração e
do Estado. Este era precisamente o tipo de treino que os ensinamentos dos
sofistas proporcionavam.
OS SOFISTAS E A EDUCAÇÃO
Quando nos sentámos, Protágoras disse:
– Agora que todos estão presentes, Sócrates, podes retomar o que
estavas a dizer há pouco acerca do rapaz.
Respondi então:
– Começarei, Protágoras, tal como há um bocado, com o porquê do
meu pedido. Hipócrates, aqui presente, desejara muito a tua companhia e
saber o que lhe aproveitaria a convivência contigo. É esse o nosso pedido.
Protágoras tomou a palavra:
– Se me acompanhares, jovem, cada dia comigo fará de ti uma pessoa
melhor. E cada dia te levará a um progresso contínuo até à perfeição.
Depois de o ouvir, disse-lhe:
– O que dizes, Protágoras, não é nada estranho mas natural, dado que
até tu (apesar da tua idade avançada e da tua sabedoria) te aperfeiçoarias
se alguém te ensinasse algo que não soubesses. Mas suponhamos que
Hipócrates mudava repentinamente de disposição e desejava a companhia
desse outro jovem que acaba de chegar, Zeuxipo de Heraclea e, do
mesmo modo que recorreu a ti agora, escutasse dele a mesma resposta
que tu lhe deste: que cada dia se aperfeiçoaria mais e progrediria na
companhia dele. E se alguém lhe perguntasse: «Aperfeiçoar-se e
progredir em relação a quê?», Zeuxipo replicava que seria na pintura. E,
tratando com Ortágoras, o tebano, se lhe ouvisse as mesmas coisas que tu
disseste e lhe perguntasse em que é que seria melhor cada dia estando na
sua companhia, ele responderia que seria na arte de tocar flauta. Assim,
deste modo responde-nos tu, a mim e ao rapaz, quando perguntamos:
– Hipócrates anda com Protágoras e cada dia em que convive com ele
torna-se melhor e progride... em relação a quê, Protágoras?
Depois de me ouvir, Protágoras disse:
– Boa pergunta, Sócrates. Agrada-me responder aos que sabem fazer
perguntas. Recorrendo a mim, Hipócrates não terá de suportar o que
sofreria no trato com qualquer outro sofista, porque os outros oprimem os
jovens. Com efeito, estes jovens fogem das especializações técnicas mas
eles reconduzem-nos de novo contra a sua vontade e iniciam-nos nas
ciências técnicas, ensinando-lhes o cálculo, a astronomia, a geometria e a
música – e ao dizer isto dirigiu o olhar a Hípias. Comigo, pelo contrário,
aprenderá apenas aquilo que quiser. O meu ensino consiste na boa
administração dos bens domésticos para se poder optimizar a direcção da
casa, e nos assuntos políticos, para se ser o mais capaz da cidade, tanto
nas obras como nas palavras.
– Então, digo eu, e segundo a tua exposição, parece-me que falas da
ciência da política e pretendes tornar os homens em bons cidadãos?
– Esse é o programa que eu professo, Sócrates.
Platão, Protágoras, 318A-19A.
1.2. As instituições políticas e a moral
Entre as doutrinas político-morais dos sofistas, a sua afirmação mais
característica e importante é a de que tanto as instituições políticas como
as normas e ideias morais vigentes são convencionais.
1.2.1. Sentido do convencionalismo
Na sua acepção mais geral, o termo grego nomos significa a lei, o
conjunto de normas políticas e institucionais estabelecidas que uma
comunidade humana acata e pelas quais se rege. Toda a comunidade
humana possui leis e instituições e é perfeitamente compreensível que se
interroguem acerca de sua origem e natureza.
A primeira resposta a esta questão fora dada pelo pensamento mítico-
religioso ao afirmar que as leis e instituições procedem dos deuses. Em
consonância com a sua função racionalizadora, a filosofia depressa
abandonou esta explicação mítica sobre a origem do nomos. Assim,
Heraclito já não vincula o nomos à intervenção particular de qualquer
divindade que fundara a cidade em questão num passado remoto, mas
vincula-o à ordem do Universo: a ordem do Estado é parte de uma ordem
mais ampla, a ordem do Universo, e tanto aquele como este se regem, em
última análise, por uma única lei ou logos.
O terceiro grande momento do pensamento político-moral na Grécia
(depois do mito e depois da racionalização heraclitiana) é constituído pela
sofística. A filosofia está sempre radicada num marco social, num conjunto
de experiências de carácter sócio-político. No tempo dos sofistas, a
experiência sócio-política dos Gregos havia-se ampliado definitivamente,
graças a três factores de considerável importância: em primeiro lugar, o
contacto contínuo com outros povos e culturas, o que permitiu verificar que
as leis e costumes são muito distintos nas diversas comunidades humanas;
em segundo lugar, a fundação de colónias por todo o Mediterrâneo, pois
cada nova cidade possibilitava a redacção de uma nova constituição; por
último, a sua própria experiência de mudanças sucessivas de constituição.
Estas experiências levaram os sofistas a abandonar a teoria heraclitiana
do nomos vinculado à ordem do Universo, fortalecendo neles a convicção
de que as leis e as instituições são o resultado de um acordo ou decisão
humana: são assim, mas nada impede que sejam ou possam vir a ser de
outra maneira. É isto precisamente o que significa o termo «convencional»:
algo estabelecido por um acordo e que, por conseguinte, nada impede que
possa ser de outra maneira, se se julgar conveniente. O termo grego nomos
passou, assim a significar o conjunto de leis e normas convencionais, por
oposição ao termo physis que exprime o natural, as leis e normas alheias a
qualquer acordo ou convenção, e cuja origem é a própria natureza
humana.
1.2.2. Carácter convencional da moral
Os sofistas defendiam o carácter convencional não só das instituições
políticas mas também das normas morais: o que se considera bom e mau,
justo e injusto, louvável e repreensível, não é fixo, absoluto, universalmente
válido e imutável. Para chegar a tal conclusão, os sofistas contavamcom
um duplo argumento: por um lado, a falta de unanimidade acerca do que
seja o bom, o justo, etc. (falta de unanimidade que salta à vista, não só
comparando uns povos com os outros, mas comparando os critérios morais
de indivíduos e grupos diferentes dentro de uma mesma sociedade); por
outro, os sofistas costumavam estabelecer uma comparação entre as leis e
normas morais vigentes e a natureza humana.
A comparação entre as normas de conduta vigentes e a natureza humana
tem sido de uma transcendência capital na nossa cultura. O que é
verdadeiramente absoluto, imutável (isto é, comum a todos os homens), é a
natureza humana. Já vimos no capítulo anterior que estas são
precisamente as características da natureza entendida como aquilo que as
coisas verdadeiramente são. E visto que a natureza é dinâmica, isto é,
princípio das actividades e operações próprias de um ser, só será possível
conhecer a natureza humana observando qual o modo próprio e intrínseco
de os homens se comportarem.
A procura do modo próprio – natural – de os homens se comportarem
não é nada fácil, já que o nosso comportamento está condicionado pela
aprendizagem, pelas normas e hábitos que nos foram inculcados ao longo
da nossa vida. O que é, então, o natural do homem?
De um modo geral, poderia responder-se que é o que ficaria se
eliminássemos tudo o que adquirimos através dos ensinamentos que nos
foram inculcados. Os sofistas, especialmente os da segunda geração, como
Calicles e Trasímaco, utilizaram a criança e o animal como exemplos do
que é a natureza humana, prescindindo dos elementos culturais adquiridos.
A partir destes dois modelos deduzem que só há duas normas naturais de
comportamento: a procura do prazer (a criança chora quando sente dor e
sorri feliz quando experimenta prazer) e o domínio do mais forte (entre os
animais, o macho mais forte domina os outros). Quando vai contra as duas
normas, a moral vigente é antinatural. Não só é convencional (na
realidade, estaria correcto que a moral fosse convencional, mas não
antinatural se por exemplo as normas não fossem um mero acordo mas um
acordo conforme às exigências da natureza; foi esta a posição dos primeiros
sofistas, como Protágoras), mas, além disso, é contrária à natureza,
segundo os últimos e mais radicais sofistas.
É fácil compreender a transcendência destas reflexões da sofística. Com
elas inaugura-se o eterno debate acerca das normas morais, acerca da lei
natural (physis) e da lei positiva (nomos).
CONVENCIONALIDADE DAS NORMAS MORAIS
É por isso que a lei considera injusto e vergonhoso o desejo de ser
superior à maioria, e é a isto que chamam injustiça. Mas a própria
natureza, em minha opinião, demonstra que é justo que o melhor esteja
acima do pior e o mais forte acima do mais fraco. Em muitos domínios,
não só entre os animais como entre as cidades e as raças dos homens, é
evidente que é assim, que, na ordem da justiça, o mais poderoso deve
dominar o mais fraco e gozar as da sua superioridade. Que outro direito
tinha Xerxes para vir fazer guerra à Grécia, ou o seu pai aos Citas? E,
como estes, podia referir um sem número de exemplos. É que estas
pessoas, a meu ver, agem segundo a natureza da justiça, e, por Zeus,
segundo a lei da natureza, que não é, certamente, àquela que nós criámos.
Os melhores e os mais fortes de nós tomámo-los em pequenos, como aos
leões, para os domar, e escravizámo-los à custa de sortilégios e
encantamentos, dizendo-lhes que a igualdade é que é bom e que consiste
o belo e o justo. Mas se aparece um homem suficientemente dotado para
sacudir e quebrar estas cadeias e se libertar da sua prisão, sei que, depois
de pisar a pés os nossos escritos, as nossas magias e os nossos encantos e
leis antinaturais, se há-de erguer, na sua revolta, de escravo a senhor
nosso, e então brilhará em todo o seu esplendor o direito da natureza.
Platão, Górgias, 483c-84a
2. SÓCRATES
Sócrates pertenceu ao ambiente filosófico e cultural dos sofistas mas
combateu-os energicamente. Compartilha com eles o interesse pelo homem,
pelas questões políticas e morais e pela vinculação destas aos problemas da
linguagem. Distingue-se deles fundamentalmente em três aspectos:
a) não se faz pagar pelo seu ensino;
b) adopta um método totalmente oposto. Os sofistas preferiam
pronunciar longos discursos e comentar textos de poetas e autores
antigos. Sócrates recusa ambos os métodos: os longos discursos, porque
impedem a discussão passo a passo das afirmações do orador, e os
textos antigos porque não é possível interrogar os seus autores para
fornecerem esclarecimentos sobre o que escreveram. Perante estas
objecções, é claro que o único método válido para Sócrates será o
diálogo directo, no qual cada interlocutor pode replicar ao outro e
argumentar em defesa das próprias posições;
c) traz aos temas político-morais soluções radicalmente novas.
2.1. Sócrates contra o relativismo moral
Quando analisámos anteriormente a teoria convencionalista dos sofistas,
sublinhámos como estes filósofos insistiam na falta de unanimidade dos
homens a respeito do que é justo e injusto, bom e mau, louvável e
censurável. O relativismo, atitude geral dos sofistas, ficava assim
consagrado a respeito dos conceitos morais.
Sócrates não concordava com este relativismo pois pensava que se cada
um entende por justo e por bom uma coisa diferente (quer se trate do prazer,
do domínio do mais forte ou o que está de acordo com a tradição, etc.), se,
para cada um, os termos morais (bom e mau, justo e injusto) significam
coisas diferentes, a comunicação e a possibilidade de entendimento entre
os homens torna-se impossível: como decidir se uma lei é justa ou não
quando cada qual entende uma coisa diferente por «justo»? A tarefa mais
urgente é restaurar o valor da linguagem como veículo de significações
objectivas e válidas para toda a comunidade humana. Em seu entender,
torna-se necessário procurar definir com rigor os conceitos morais (justiça,
etc.).
Nos diálogos de Platão, vemos Sócrates a colocar perguntas do género:
que é a justiça? Que é a piedade? Que é a moderação? etc. Normalmente
nestes diálogos não se chega a uma definição geral da virtude ou do
conceito em questão; todavia a discussão serve para evidenciar que os
interlocutores de Sócrates carecem, de uma noção, de um conhecimento
coerente em assuntos de tão vital importância.
2.2. Virtude e saber. O intelectualismo moral
É, pois, necessário definir com precisão as virtudes e os conceitos, para
restabelecer a comunicação e tornar possível o diálogo sobre temas morais e
políticos. É necessário defini-los com exactidão, além disso, por uma
segunda razão: para Sócrates só se pode ser justo quando se sabe o que é a
justiça e só se pode agir bem quando se sabe o que é bom. A isto chama-se
intelectualismo moral, que pode definir-se como a doutrina que identifica
a virtude com o saber.
Sócrates
Filho de um escultor e de uma parteira, Sócrates nasceu em Atenas no ano 470 a. C. Não
escreveu nenhuma obra, talvez porque considerava que o diálogo, a comunicação directa e
interpessoal, é o único método válido para a filosofia. São características da sua forma de
entender e praticar o diálogo a ironia e a maiêutica. A sua ironia exprime-se frequentemente na
atitude modesta do «só sei que nada sei»; a maiêutica (arte que dizia ter herdado de sua mãe)
consistia em fazer perguntas de maneira a que o interlocutor acabasse por extrair de si mesmo as
formulações correctas sobre o tema em questão. Cidadão exemplar, foi acusado de impiedade e
condenado à morte no ano 399 a. C. Poderia ter fugido, mas preferiu obedecer às leis da cidade
e morrer. Bebeu a cicuta depois de conversar longa e tranquilamente com os seus amigos sobre
a imortalidade da alma.
Este modo de conceber a moral será chocante e rejeitável para muitos:
estamos habituados a ver pessoas ignorantes que, no entanto, são boas e
agem com rectidão, mesmo se não sabem definir o que é bom e o que é a
rectidão; estamos igualmente habituados a ver pessoas instruídas mas com
uma conduta reprovável.

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