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Estigma e Identidade na Hanseníase

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Daniele Borges Bezerra; Juliane Conceição Primon Serres | 25 
 
da experiência do autor, que coloca em perspectiva a própria 
identidade alterada pela estigmatização decorrente do adoecimento: 
 
[...] quando uma pessoa contrai hanseníase é como se ela 
“contraísse” também uma nova identidade as pessoas começam a 
chamá-lo de leproso, hanseniano, etc. 
Essa identidade é muito mais difícil de “curar” e de carregar do que 
a própria doença. Existe ainda um agravante: As pessoas 
costumam identificar as mutilações e os aleijos com a doença. 
Assim sendo, mesmo que a pessoa fique curada, mas se ficar com 
algumas deficiências, será sempre identificada como “doente. 
(NUNES, s/d, p.1). 
 
O excerto acima reflete o modo como a pessoa acometida pela 
doença sofria uma alteração do seu estatuto social, tendo sua 
intimidade esquadrinhada – por ser considerada um foco de 
contágio– sendo desumanizada e submetida à tutela do serviço 
sanitário. 
Inventariar as próprias experiências de vida, narrar o vivido, 
sobretudo quando se trata de experiências difíceis, como o 
isolamento compulsório em hospitais-colônia, requer um esforço de 
recordação dirigido contra a dimensão latente da memória que não 
permite a pessoa avançar. Esse processo não é puramente 
intelectual, mas está diretamente relacionado às emoções, pois, 
reativa, na forma de evocações involuntárias, emoções de memórias 
que subsistem como fantasmas, “sentimentos duráveis” 
(CHAUMONT, 2000, p.175) que dizem respeito ao preconceito e à 
perda, gerados pela experiência do adoecimento, da estigmatização 
social e do isolamento compulsório. Para Paul Ricouer “existe pathos 
na zêtêsis, ‘afecção’ na ‘busca’. Assim se entrecruzam a dimensão 
intelectual e a dimensão afetiva no esforço de recordação [...]” 
(RICOEUR, 2007, p. 48). 
Quando o esforço de recordação – a mesma busca pela 
verdade em Deleuze (2010, p.14) – culmina na consciência do tempo 
e no encadeamento de lembrança e percepção no tempo conclui-se 
que esta foi uma “busca feliz” (RICOEUR, idem, p. 53). Nesse 
26 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
processo de luta contra o esquecimento, um esquecimento que 
integra a memória e precisa ser nomeado, é comum que os diversos 
atores acionem o que Paul Ricouer chamou de “reminding” que 
“consiste em fazer reviver o passado evocando-o entre várias 
pessoas [...] a lembrança de uma servindo de reminder para a 
lembrança de outra” (idem) na forma de uma memória mediativa, 
onde se localizam os diários íntimos e as autobiografias: 
 
[...] em que o suporte da escrita confere materialidade aos rastros 
conservados, reanimados e novamente enriquecidos por 
depósitos inéditos. Assim, faz-se provisão de lembranças para 
os dias vindouros, para o tempo dedicado às lembranças... 
(RICOUER, 2007, p.56, grifos nossos). 
 
Esses lugares de registro e transmissão do vivido surgem em 
resposta a um dever de memória gerado pela sensibilização a “uma 
sociedade que aplaina os particularismos” (NORA, 1981, p.13). No 
entanto, não há ingenuidade, o terreno das narrativas sobre o 
passado nunca é neutro. Philippe Lejeune, por exemplo, chama 
atenção para a naturalização com que as histórias de vida são 
manipuladas por diversas profissões, do saber médico aos 
pesquisadores que atuam com história oral: “o universo das 
histórias de vida é repleto de pessoas que têm poder. Há os que 
sabem e os que cuidam, os médicos-chefe e os enfermeiros [...]” 
(1997, p.111). O exemplo mais ordinário dessa naturalização do 
arquivamento da vida e da manipulação dessas informações, na 
qualidade de documentos, são os prontuários hospitalares. Além 
disso, na esfera do reconhecimento das “identidades coletivas” 
(RICOEUR, 2006, p.151), as narrativas estão sempre em disputa, 
como destaca Jean- Michel Chaumont, quando afirma que o estatuto 
da vítima tornou-se “invejável” (CHAUMONT, 2000, p.168), por 
conferir distinção social às testemunhas que passam a ocupar uma 
“postura reivindicadora privilegiada” (CHAUMONT, 2000, p.168). 
Não obstante os fatos contidos em uma autobiografia não 
correspondam a uma versão literal dos eventos, por resultarem de