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29 do caminho tomado pela moder- nidade. O que Kant percebe é que, na continuidade do teor unitário da racionalidade, instituído por Descar- tes, não seria possível dar conta da moral pois a racionalidade científica não atinge o plano dos requisitos do ato moral, autonomia e liberdade. Isto o levou a conceber uma outra esfera de racionalidade na qual os critérios de determinação teórica não teriam vigência. E com isto separou o conhe- cimento da ação, ao menos naquilo que a ação comporta de decisão mo- ral. Podemos medir o alcance deste acontecimento lembrando que, no caso do saber prático preconizado por Aristóteles, o sujeito discernia no seio da contingência o meio de realizar a ação que guardasse alguma correspon- dência com o Bem absoluto. Em Kant este é um princípio formal, que a ra- zão pensa de maneira isolada do mun- do concreto, que vai decidir acerca da moralidade, isto é , da conformidade da ação à moral. Isto significa a tenta- tiva de vincular a universalidade for- mal à ação. Ora, o mundo da contin- gência se distingue de um universo logicamente necessário como o da ciência exatamente devido à impossi- bilidade desta vinculação. Por isto a moralidade kantiana acaba sendo muito mais um ideal de que devemos nos aproximar do que um critério de discernimento para a experiência mo- ral concreta. A época contemporânea sentiu mais de perto o impacto da experiên- cia moral concreta. Talvez a drama- ticidade da história deste século tenha manifestado de forma mais intensa certas contradições entre elementos da ação moral, com que antes as teorias trabalhavam de maneira pacífica. O Existencialismo é seguramente a cor- rente de pensamento em que estes pro- blemas apareceram de forma mais aguda. Pois nele, pela primeira vez, a liberdade é vista como o exercício do- loroso da constante invenção de si mesma. Nas teorias clássicas, a liber- dade aparece como uma sábia confor- mação à necessidade. Existe um Deus, existe um mundo transcendente de valores, existe uma teleologia históri- ca, existem referências que dão senti- do ao mundo e aos homens. Claro, existe a insensatez, o erro, o pecado, a desordem, a contingência, enfim, mas tudo isto tem causas e explicações que são fornecidas pela razão e mesmo pela fé. Há uma ordem previamente dada. Quando me insiro nela de maneira harmônica, sintonizo com o universo e com os seus princípios. Quando se torna mais difícil descobrir esta ori- gem e esta finalidade, como em Kant, tenho ainda o recurso da forma, que é também um princípio a que posso tentar conformar minhas ações. Quando não me ponho em sintonia com a totalidade, não é de todo mi- nha culpa, é antes algo derivado da finitude que afeta irremediavelmente o ser humano. Enfim, há essência, que posso realizar de maneira mais ou menos completa, mas que consti- tui referência prévia à minha exis- tência. Mesmo quando sinto o uni- verso imenso e estranho, e Deus afastado, posso contar ainda com a esperança. Mas quando não há mais Deus nem valores transcendentes, quando não há um plano a realizar, que sen- tido atribuir às contradições, à de- sordem dentro e fora do homem, e à 30 miséria histórica? O Existencialismo coloca da maneira mais crua a ques- tão da imanência, isto é, nada existe acima do humano com que o homem possa contar para ordenar o seu mun- do e para orientar as suas ações. É apenas diante de si mesmo que ele deverá construir seus critérios e suas justificações. A liberdade não é uma forma de Deus testar o homem, é a forma de o homem existir, é o dado primeiro, não há critérios anteriores de como utilizá-la, ela se faz na continui- dade dos atos que a exprimem, cada vez que o homem se projeta na cons- trução de si mesmo. A liberdade é um fardo, como foi o destino para o ho- mem antigo. É isto o que significa di- zer que a existência vem antes da es- sência e que o homem está condena- do a ser livre. A história da humanida- de e a história de minha vida me colo- cam diante de opções. Como enfrentá- las sem critérios absolutos de discernimento e de escolha? Tenho de inventar, para cada ato, o valor a par- tir do qual eu o escolho, não encontro este valor, ainda que outro mo apre- sente, tenho que torná-lo meu. Cada um é aquilo que se torna, aquilo que faz de si em cada momento da exis- tência. Uma ética com um único crité- rio, que se confunde com um dado irredutível de realidade: a liberdade. Assumi-la é lucidez e autenticidade; negá-la é má-fé. O Existencialismo está na verten- te das éticas que partem de uma pro- funda meditação acerca da situação humana, tal como a reflexão a apre- senta. Procura então uma maneira de proporcionar o encontro do homem consigo próprio e com a história a par- tir da consciência, entendida agora não mais como essência, mas como proje- to. Mas há uma outra vertente que faz da exterioridade a matriz do pensamen- to ético, e nesta linha estão as éticas utilitaristas. Partem, por exemplo, de uma concepção da evolução dos con- ceitos éticos para estabelecer a origem prática e utilitária destes conceitos. O bom teria sido, na origem, o útil, isto é, a ação benéfica para o indivíduo e, principalmente, para o grupo. Má se- ria a ação prejudicial. Com o passar do tempo e com o progresso da civili- zação esta utilidade imediata deixou de aparecer claramente como critério, mas se manteve a distinção, que foi aos poucos tornada abstrata e resultou nos valores Bem e Mal. Esta posição pro- cura buscar a origem dos valores por meio de uma reflexão histórica e psi- cológica acerca da evolução da huma- nidade, e utiliza critérios de uma lógi- ca imanente ao desenvolvimento das necessidades humanas. Em última ins- tância, seria a sobrevivência do grupo a origem dos valores, que são então estabelecidos para manter obrigações morais que assegurem a sociabilida- de, a cooperação e a coesão necessá- rias à estabilidade da sociedade. Nes- ta vertente, a liberdade importa menos do que a adaptação do indivíduo a esquemas de conduta que ele já encon- tra prontos e aos quais é coagido a aceitar. A relatividade cultural dos va- lores aparece, assim, de forma mais nítida, pois é a perspectiva históri- co-sociológica que procura dar con- ta do estabelecimento e das mudan- ças dos critérios morais. Existe uma racionalidade na prescrição dos valo- res, mas ela está a serviço da coesão social. Trata-se de uma figura da racionalidade técnica que se estrutura