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iniciao biotica-14

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do caminho tomado pela moder-
nidade. O que Kant percebe é que, na
continuidade do teor unitário da
racionalidade, instituído por Descar-
tes, não seria possível dar conta da
moral pois a racionalidade científica
não atinge o plano dos requisitos do
ato moral, autonomia e liberdade. Isto
o levou a conceber uma outra esfera
de racionalidade na qual os critérios
de determinação teórica não teriam
vigência. E com isto separou o conhe-
cimento da ação, ao menos naquilo
que a ação comporta de decisão mo-
ral. Podemos medir o alcance deste
acontecimento lembrando que, no caso
do saber prático preconizado por
Aristóteles, o sujeito discernia no seio
da contingência o meio de realizar a
ação que guardasse alguma correspon-
dência com o Bem absoluto. Em Kant
este é um princípio formal, que a ra-
zão pensa de maneira isolada do mun-
do concreto, que vai decidir acerca da
moralidade, isto é , da conformidade
da ação à moral. Isto significa a tenta-
tiva de vincular a universalidade for-
mal à ação. Ora, o mundo da contin-
gência se distingue de um universo
logicamente necessário como o da
ciência exatamente devido à impossi-
bilidade desta vinculação. Por isto a
moralidade kantiana acaba sendo
muito mais um ideal de que devemos
nos aproximar do que um critério de
discernimento para a experiência mo-
ral concreta.
A época contemporânea sentiu
mais de perto o impacto da experiên-
cia moral concreta. Talvez a drama-
ticidade da história deste século tenha
manifestado de forma mais intensa
certas contradições entre elementos da
ação moral, com que antes as teorias
trabalhavam de maneira pacífica. O
Existencialismo é seguramente a cor-
rente de pensamento em que estes pro-
blemas apareceram de forma mais
aguda. Pois nele, pela primeira vez, a
liberdade é vista como o exercício do-
loroso da constante invenção de si
mesma. Nas teorias clássicas, a liber-
dade aparece como uma sábia confor-
mação à necessidade. Existe um Deus,
existe um mundo transcendente de
valores, existe uma teleologia históri-
ca, existem referências que dão senti-
do ao mundo e aos homens. Claro,
existe a insensatez, o erro, o pecado, a
desordem, a contingência, enfim, mas
tudo isto tem causas e explicações que
são fornecidas pela razão e mesmo pela
fé. Há uma ordem previamente dada.
Quando me insiro nela de maneira
harmônica, sintonizo com o universo
e com os seus princípios. Quando se
torna mais difícil descobrir esta ori-
gem e esta finalidade, como em Kant,
tenho ainda o recurso da forma, que
é também um princípio a que posso
tentar conformar minhas ações.
Quando não me ponho em sintonia
com a totalidade, não é de todo mi-
nha culpa, é antes algo derivado da
finitude que afeta irremediavelmente
o ser humano. Enfim, há essência,
que posso realizar de maneira mais
ou menos completa, mas que consti-
tui referência prévia à minha exis-
tência. Mesmo quando sinto o uni-
verso imenso e estranho, e Deus
afastado, posso contar ainda com
a esperança.
Mas quando não há mais Deus
nem valores transcendentes, quando
não há um plano a realizar, que sen-
tido atribuir às contradições, à de-
sordem dentro e fora do homem, e à
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miséria histórica? O Existencialismo
coloca da maneira mais crua a ques-
tão da imanência, isto é, nada existe
acima do humano com que o homem
possa contar para ordenar o seu mun-
do e para orientar as suas ações. É
apenas diante de si mesmo que ele
deverá construir seus critérios e suas
justificações. A liberdade não é uma
forma de Deus testar o homem, é a
forma de o homem existir, é o dado
primeiro, não há critérios anteriores de
como utilizá-la, ela se faz na continui-
dade dos atos que a exprimem, cada
vez que o homem se projeta na cons-
trução de si mesmo. A liberdade é um
fardo, como foi o destino para o ho-
mem antigo. É isto o que significa di-
zer que a existência vem antes da es-
sência e que o homem está condena-
do a ser livre. A história da humanida-
de e a história de minha vida me colo-
cam diante de opções. Como enfrentá-
las sem critérios absolutos de
discernimento e de escolha? Tenho de
inventar, para cada ato, o valor a par-
tir do qual eu o escolho, não encontro
este valor, ainda que outro mo apre-
sente, tenho que torná-lo meu. Cada
um é aquilo que se torna, aquilo que
faz de si em cada momento da exis-
tência. Uma ética com um único crité-
rio, que se confunde com um dado
irredutível de realidade: a liberdade.
Assumi-la é lucidez e autenticidade;
negá-la é má-fé.
O Existencialismo está na verten-
te das éticas que partem de uma pro-
funda meditação acerca da situação
humana, tal como a reflexão a apre-
senta. Procura então uma maneira de
proporcionar o encontro do homem
consigo próprio e com a história a par-
tir da consciência, entendida agora não
mais como essência, mas como proje-
to. Mas há uma outra vertente que faz
da exterioridade a matriz do pensamen-
to ético, e nesta linha estão as éticas
utilitaristas. Partem, por exemplo, de
uma concepção da evolução dos con-
ceitos éticos para estabelecer a origem
prática e utilitária destes conceitos. O
bom teria sido, na origem, o útil, isto
é, a ação benéfica para o indivíduo e,
principalmente, para o grupo. Má se-
ria a ação prejudicial. Com o passar
do tempo e com o progresso da civili-
zação esta utilidade imediata deixou
de aparecer claramente como critério,
mas se manteve a distinção, que foi aos
poucos tornada abstrata e resultou nos
valores Bem e Mal. Esta posição pro-
cura buscar a origem dos valores por
meio de uma reflexão histórica e psi-
cológica acerca da evolução da huma-
nidade, e utiliza critérios de uma lógi-
ca imanente ao desenvolvimento das
necessidades humanas. Em última ins-
tância, seria a sobrevivência do grupo
a origem dos valores, que são então
estabelecidos para manter obrigações
morais que assegurem a sociabilida-
de, a cooperação e a coesão necessá-
rias à estabilidade da sociedade. Nes-
ta vertente, a liberdade importa menos
do que a adaptação do indivíduo a
esquemas de conduta que ele já encon-
tra prontos e aos quais é coagido a
aceitar. A relatividade cultural dos va-
lores aparece, assim, de forma mais
nítida, pois é a perspectiva históri-
co-sociológica que procura dar con-
ta do estabelecimento e das mudan-
ças dos critérios morais. Existe uma
racionalidade na prescrição dos valo-
res, mas ela está a serviço da coesão
social. Trata-se de uma figura da
racionalidade técnica que se estrutura

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