Buscar

A economia política da crise brasileira

Prévia do material em texto

A ECONOMIA POLÍTICA DA CRISE BRASILEIRA* 
HELVÉCIO DE OLIVEIRA AZEVEDO** 
Consagrei os últimos meses de 1986 à inventariação das formas de manifesta­
ção - algumas já sabidas, outras bem surpreendentes - que a célebre lei ten­
dencial da queda da taxa média de lucro vem assumindo tanto no segmento 
perifáico brasileiro, como no sistema econômico-social mundial do capitalismo. 
Como se sabe, a referida regularidade é uma característica específica do capita­
lismo. No esforço para contorná-la ou neutralizá-la, tal modo de produção de­
senvolve-se e adquire dinamismo, na medida em que, enquanto possível for, in­
troduz "reformas" que, incapazes de mudar-lhe a essência, podem transitoria­
mente anular a irresistível propensão à queda. Assim se retarda o declínio por 
um período que, embora larguíssimo, é passível de completa exaustão para 
quaisquer reformas procrastinadoras. Isto ocorre em todo processo puramente 
quantitativo (desprovido de alteração essencial), que, mais cedo ou mais tarde, 
terá de se defrontar com o momento do salto qualitativo. Procuramos provar na 
pesquisa que as contradições do capitalismo estão-se exacerbando novamente 
(tal saturação não constitui novidade na história do capital), mas agora em novas 
e decisivas condições, visto que se encontra impossibilitado de apelar para a 
mais salvadora de todas as saídas, aquela que, promovendo a mais brutal depre­
ciação e destruição de capital parasitário e superacumulado, permite o posterior 
reformismo: a guerra. Além da completa inviabilidade de se travar, na era 
nuclear, uma guerra vantajosa com os países socialistas (a chamada Iniciativa 
de Defesa Estratégica, a conhecida Stars War, revelou-se um fracasso militar e 
sempre foi uma impossibilidade econômica), ressalte-se que a rivalidade entre 
os países centrais do capital (o "triângulo da rivalidade" constituído pelo Japão, 
EUA e Europa Ocidental) se aguça como tantas vezes no passado, mas agora 
com uma nova e terminante qualidade: cada membro do triângulo depende do 
outro para sobreviver economicamente (já se foi a era das potências semi-autár­
quicas com seus penduricalhos de colônias). Deste modo, não podem aniquilar 
seus capitais supérfluos num conflito armado. Outra nova e decisiva condição 
em que se aguçam as contradições do todo capitalista: ao mesmo tempo era 
que isto se dá, o Japão, paradoxalmente, desorganiza e abate a economia dos 
EUA, o centro dos centros do capitalismo.! Para se opor frutuosamente ao desafio 
japonês (e a outros dilemas decorrentes da internacionalização de seu aparelho 
produtivo) e evitar, assim, sua decadência, os EUA teriam de conscientemente 
transformar em profundidade sua base econômica e muitas de suas relações 
sociais.2 Ora, os três últimos anos já deram evidências de que o gigante do Norte 
* Nota de pesquisa. 
':,* Pesquisador do INDIPO/FGV. 
j Cf. japan in America e Deal mania, relatórios especiais publicados em Business Week. 
n. 2.954-284. 14 jul. 1986, e 2.073-303, de 24 novo 86. 
? Sobre este ponto, cf. Reich, Robert B. The New American frontier. New York, Times 
Books/The New York Times Book, 1983. 
R. C. poI., Rio de Janeiro, 30(3):94-8, jul./set. 1987 
falhou e que a solução que, espontânea e rapidamente, vem lá se materializando 
é o contrário da pretendida pelos interesses norte-americanos: eis que eles vão 
sendo engolidos por um Japão que, gradualmente, investe seu colossal capital 
excedente e ocioso nos EUA, esmagando concorrentes e assumindo o controle 
do que lhe interessa. Ao mesmo tempo e contraditoriamente, tal capital é, sob 
certos aspectos, útil aos EUA, visto que estes vêm acumulando crescentes recor­
des negativos em setores-chave, diante dos quais se estrebucha em vão a ciência 
econômica burguesa: a maior dívida externa do mundo, a maior dívida pública 
interna do mundo, o maior déficit comercial do mundo ... É pura ilusão pensar 
que o todo transnacional do capital funcionaria sem um núcleo do núcleo ou 
à base de um policentrismo estrito (a situação concretamente existente mostra 
que o vitorioso Japão carece vitalmente - outra contradição! - do mercado 
consumidor norte-americano). O centro do capitalismo é, sem dúvida, um triân­
gulo, mas sua hipotenusa tem sido, até aqui, os EUA. 
Neste jogo maior e determinante, em última instância, de tudo o mais, a posi­
ção do Brasil é estruturalmente passiva, periférica e bastante melancólica (tirante 
um ou outro aspecto quase sempre provisório e ideológico-propagandístico). É 
bastante salutar reconhecer, neste abismo de trêfega inconsciência histórica, que 
é o Brasil, nosso País, que, no contexto capitalista, carece de qualquer possibi­
lidade duradoura de grandeza e bem-estar (como se demonstra na pesquisa). Ao 
contrário do propalado no discurso moralizante vulgar, na retórica política e 
na crônica jornalística, a dívida externa brasileira não foi, em sua causalidade 
primária, produzida pela imprudência, incompetência e corrupção. Estes fatores 
existiram, e muito, mas surgiram dialeticamente, ou seja, determinados a poste­
riori, quando passaram então a influenciar fortemente os negócios na área. A 
presente quadra se iniciou com uma premente necessidade de se expandir e 
reciclar a acumulação mundial-nacional do capital no Brasil, sociedade cuja base 
econômica foi historicamente determinada como •. periférica", "excludente" e 
"de terceira demanda". Vejamos algo do que isto consiste. Por falta de uma 
real revolução nacional-burguesa, hoje impossível, ou de uma autêntica revolu­
ção socialista, nossa sociedade conservou e desenvolveu uma estrutura de consu­
mo (e as respectivas classes e camadas consumidoras) vazada pelos ditames da 
Europa e América do Norte. Isto, por sua vez, devido à inevitável importação 
de bens finais, trocados, evidentemente, por matérias-primas e produtos tropicais 
primários (aqui produzidos por camadas excluídas e pertencentes a modos de 
produção pré-capitalistas) ou devido à posterior importação de capital (produtivo 
ou de empréstimo), este suscetível, segundo a lógica do imperialismo, de defor­
mar e onerar cada vez mais nossas contas externas. Ora, o trajeto dos países 
centrais foi o contrário, pois começaram de baixo, desenvolvendo o setor I (bens 
de produção), dialeticamente unido a um pobre e pouco diversificado consumo. 
Isto significa que nosso País nasceu e cresceu no bojo do colonialismo e neo­
colonialismo (imperialismo). Tem uma história o mistificadamente chamado 
"subdesenvolvimento", esta qualidade genérica inscrita na vasta periferia da 
totalidade mundial capitalista. Ela nada mais é que a outra face do processo de 
formação e expansão do capitalismo, a partir da Europa. Ademais, a tônica 
atual desta história é um crescente desnível ou polarização entre o "Norte" e o 
"Sul" desta totalidade (excluídos os países socialistas). Enquanto país capitalista 
historicamente determinado nestes moldes, tinha o Brasil de se valer do capital 
excedente (segundo a equação da queda da taxa de lucro vigente nas matrizes) 
que lhe foi pressurosamente ofertado pela bancaria internacional. 
Economia política 95 
Sabem os estudiosos do assunto que a lei tendencial da taxa média de lucro, 
ou lei da crise de superprodução ou superacumulação de capital, se manifesta 
como crise de realização (consumo insuficiente, ou seja, superacumulação de 
estoques, não só de bens de consumo final, como de bens de produção, como 
veremos muito brevemente). A referida lei aparece no mundo dos fenômenos 
como contradição entre a produção e sua realização. Sendo expressão de um 
fenômeno mais profundo, inerente ao capitalismo, a última antinomia tem um 
caráter subordinado (logo, como as políticas econômicas do capitalismo só se 
aplicam nas manifestações da lei, são elas, no máximo, apenas prorrogativas). 
A lei em foco explica por que os capitalistas, em determinadas conjunturas, não 
conseguem (não conseguiam, para sermos mais precisos, como veremos) realizar 
suas mercadorias ou, em termos mais comuns, não logram converterem dinheiro 
a mais-valia ou sobrevalor materializado nos produtos. Estes não se vendem 
porque, em função da elevada taxa média de lucro coletivamente pretendida 
(não arbitrariamente pretendida, mas imposta pelo volume de acumulação atin­
gido na sociedade ou, noutros termos, pelo aumento do capital constante, como 
se vê na equação da aludida lei), os preços se tornam inacessíveis ao poder de 
compra da população. Há, assim, no capitalismo, a necessidade de se vender a 
um preço que satisfaça a taxa de lucro anterior. t um limite mínimo matematica­
mente intransponível. A superprodução de capital aparece, deste modo, como 
superprodução de mercadorias. Esta, em sua pureza, a lei da queda da taxa 
média de lucro, tal como atuava nas primeiras etapas de um capitalismo ainda 
tosco ou algo mais que tosco, antes que se dominassem certas técnicas dilatórias 
e, ao cabo, eficazmente dissimuladoras (a ponto de embair os ideólogos burgue­
ses, sempre despreparados na matéria, apesar de suas "leituras"). Mas, a cada 
paliativo, a lei não é vencida, mas somente engrolada por um prazo demarcado, 
mesmo que mensurável em termos de fases históricas sempre terminadas em 
graves crises. até que se atinja uma espécie de limite último (à cuja aproxima­
ção, as crises tendem a se tornar crônicas). Eppur si muove . .. 
Na verdade, a lei do declínio da taxa de lucro exprime, por sua vez, o gradual 
e constante aguçamento da mais fundamental contradição do capitalismo: a que 
se dá entre o caráter cada vez mais social das forças produtivas (tanto na origem 
dos meios de produção, como na destinação do produto) e o caráter cada vez 
mais concentrado da apropriação destes meios de produção e do sobre valor cris­
talizado nos produtos. Com efeito, as estatísticas revelam, na economia capita­
lista mundial, crescente concentração (monopolização-oligopolização) da produ­
ção (não se trata aqui do mero emprego de "mão-de-obra", ou seja, de trabalho 
vivo), tanto a nível de empresa. como a nível de países e grupos de países (estes 
os hegemônicos). Que se consultem, por exemplo, os relatórios anuais do Banco 
Mundial, as publicações da Onudi, etc. 
Em 1911, diante de gravíssima crise, iniciou-se a safra dos grandes remendos 
nas manifestações da lei do declínio da taxa de lucro. Obvio que não se tinha 
tal consciência científica da realidade, mas fazia-se, segundo a ideologia domi­
nante, aquilo que se devia e podia fazer. Tratava-se de introduzir como que uma 
racionalização geral na formação social burguesa, sendo Taylor o grande inspi­
rador teórico. Iniciava-se, assim, a "era da administração", como a chama Reich, 
tão inserida na cultura norte-americana, mas logo se espraiando pelos demais 
países desenvolvidos. Aquele autor nos fornece, em sua já referida obra, uma 
análise extraordinariamente valiosa do que isto representou para a formação 
social capitalista. Mas seus limites eram gritantes e, por isso, grandes problemas 
ainda explodiriam à frente (não será, como deseja Reich, apenas com algo tão 
96 R.C.P. 3/87 
psicologizante e a-estrutural como sua "era do capital humano" - como se o 
social se reduzisse ao somatório vetustamente liberal de átomos individuais 
"melhorados" - que o presente impasse capitalista, a começar pelo colossal 
impasse norte-americano, se solucionará}. 
Cruzados o grande desarranjo de 1929 (a última vez que a lei da queda do 
lucro cingiu sua manifestação a um problema de demanda) e a II Guerra Mun­
dial, os centros do capitalismo intentaram avançar mais na questão da superpro­
dução de capital. Como de se esperar, fizeram-no ignorando a essência, atuando 
apenas sobre a aparência até então típica, as dificuldades de realização. Repi­
sando o inevitável figurino capitalista (que não se pode revolucionar), o problema 
foi mais uma vez contemporizado, significando isto mais uma progressão quan­
titativa das forças produtivas em escala mundial. Vieram, então, novas medidas 
visando controlar e incentivar o consumo. O grande achado foi o keynesianismo, 
hoje pouco menos que a ovelha negra da teoria econômica burguesa. Mas o clima 
keynesiano deixaria instituições permanentes. Numa delas, a mais trivial, a fra­
ção financeira da burguesia passaria a emprestar dinheiro à massa de consumi­
dores finais para que esta, num vantajosíssimo (para os intermediários financei­
ros) jogo de prazos e juros, comprasse a prestações bens normalmente fora de seu 
poder aquisitivo. Os banqueiros, por sua vez, se endividariam cada vez mais 
junto aos bancos centrais, pois os recursos dos poupadores depositantes e dos 
"investidores" se mostrariam francamente insuficientes. Além disto, os banquei­
ros da periferia capitalista teriam de fortemente lançar mão de empréstimos 
externos. Isto porque outro tipo de cliente, os próprios governos, passaria a 
se endividar dramaticamente não só junto ao mercado financeiro doméstico (nu­
ma ciranda sem fim, os papéis governamentais se colocariam num open market 
descaracterizado de sua função precípua de regulação monetária), como junto 
aos emprestadores internacionais. A chamada crise fiscal, já prenunciada por 
Marx, explica a inextricável confusão financeira dos governos, principalmente 
os das sociedades subalternas. Atualmente, as administrações públicas, para 
motivar investimentos externos e até os próprios nacionais, vêem-se forçadas a 
financiá-los a taxas privilegiadas, quando não a doar capital nacional (incentivos 
fiscais, subsídios e isenções, cessão de recursos naturais e de insumos básicos, 
além de tolerar escabrosas irregularidades como subfaturamento das exportações, 
superfaturamento das importacões, manipulação dos preços externos, contraban­
do, fraudes e corrupções, vandalismo contra a natureza e o meio ambiente, etc.), 
Tudo isto desfalca a receita pública.3 Em minha análise, isto caracteriza a sín­
drome do capitalismo monopolista de Estado. 
O que existe hoje no Ocidente é uma economia movida a dívida em todos 
os níveis e setores. Como acentuou Magdoff, o caminho de uma tal economia 
está juncado de ameaças e armadilhas.4 
Outro meio de fomentar o consumo foi criar uma imensa camada superior de 
burocratas, vivendo direta ou indiretamente de recursos fiscais altamente infla-
3 Cf. Afonso, Carlos A. & Souza, Herbert de. Estado e desenvolvimento capitalista no 
Brasil: a crise fiscal. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1977; O'Connor, John. USA: the fiscal 
crisis of the state. New York, St. Martin Press, 1973; Salama, Pierre & Mathias, Gilberto. 
O estado superdesenvolvido. trad. bras., São Paulo, Brasiliense, 1984; Vogt, Winfried, 
Frank, Jürgen & Offe, Claus. Estado e capitalismo. trad. bras., Rio de Janeiro, Tempo 
Brasileiro, 1980; etc. 
4 Cf. Magdoff, Harry. La crise économique internationale et le Tiers Monde. Amérique 
Latine. Paris, n. 10. avr./mai 1982, p. 89; também, de autor anônimo, The debt economy. 
Special reports on major business problems. Business Week, New York, 1977, p. 114-21. 
Economia política 97 
cionários. Um interessante estudo econômico-antropológico da questão detectou 
uma vinculação entre o recrutamento nestes estratos e o inchaço do sistema 
escolar, utilizando-se, é claro, os velhos mecanismos do clientelismo político, das 
relações familiares e de amizade, etc. Há como que uma fuga desesperada do 
trabalho produtivo capitalista através da criação do fetiche do diploma e da 
passagem pelo ritual da diplomação universitária, mesmo que este pouco signifi­
que no "exercício" do posto ocupado. Isto porque - já se sabia desde o século 
passado - a verdadeira qualificação necessária ao capitalismo é dada na escola 
do capital, ao nível mesmo da produção econômica, não na escola formal. Neste 
contexto, esta última passaria a ter outras funções, que não cabe aqui men­
cionar.5 
Aqui paro, parecendo-me inconveniente alongar mais este texto. Tais são suas 
idéias básicas, e espero para elas boa acolhida. 
5 Cf., a respeito, Salm, Cláudio L. Escola e trabalho. São Paulo, Brasiliense, 1980. 
98 R.C.P. 3/87

Mais conteúdos dessa disciplina