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Clístenes Hafner Fernandes didáticas. Pretendem ensinar algo às pessoas. Isso é bastante evidente rí Os Trabalhos e os Dias quando Hesíodo dedica o livro ao seu irmão, falando em primeira pessoa e exortando-o a que trabalhe: “Trabalha, que assim ficarás bem, farás boa figura diante dos homens e os deuses ficarão satisfeitos contigo; terás vida favorável, pois essa vida aqui é sofrida. E por que estamos sofrendo? E porque, justamente, o homem estava lá”. Essa é a primeira explicação: o homem estava lá. E estava lá até que Prometeu roubou dos deuses o fogo e deu ao homem, e por isso Júpiter castiga não só Prometeu, acorrentando-o, mas também castiga o próprio homem, enviando-lhe Pandora, a primeira mulher. Pandora vem junto com uma caixa ou bolsa, dentro da qual se encerra toda desgraça, toda doença e intempéries que farão o homem sofrer. A partir de Pandora entra no mundo esse sofrimento do homem. O homem sem a mulher não estaria sofrendo (e o contrário também). Essa é uma das explicações geniais que a poesia dá. A outra explicação é que existiram diversas gerações de homens: os homens de ouro, os homens de prata, os homens bronze, até chegar nos homens de ferro, que são os mais decaídos. Essas gerações, por motivos diversos, realmente vão decaindo, por muitos vícios, até chegar no homem de ferro, que é a tua própria geração. E nesse caso, o homem sofre por culpa já dos seus antepassados. E isto é bastante observável em nosso entorno aqui e agora, pois vemos que um pai pode ser rico, mas se ele ainda em vida dissipa toda sua riqueza, seu filho terá uma vida mais trabalhosa; se o pai tivesse sido mais prudente, isto não ocorreria; o mesmo vale ao seu avô, bisavô e assim por diante. Vês como essa ideia de herança das circunstâncias é bastante verificável: que se as gerações passadas fizeram pouco caso de sua existência, as gerações futuras hão de por isso mesmo ser prejudicadas? Diante disso, não posso deixar de pensar no próprio Gênesis. Lembro- te do mito de Adão e Eva, o mito hebreu sobre a criação do mundo, que com certeza recebe influência, pelo menos na forma de contar a história, da cosmogonia egípcia. Com certeza no Egito não se fala que Javé, Adonai, criou o mundo, mas sim outra coisa, embora este seja um dado da revelação. Mas no Egito já existe, sim, explicações poéticas sobre a 72 Lições de Literatura criação do mundo. Fazer, pois, essa ponte não é algo errado. Quando estás a ler um livro, comparar uma coisa com a outra não é errado: forçar a barra, sim, é errado: “Isso talvez tenha vindo do Antigo Testamento... por certo que Hesíodo aprendera com o Antigo Testamento”. Alguns filósofos judeus afirmavam em Alexandria que Platão e Aristóteles tinham aprendido tudo de Moisés, do Antigo Testamento. Bom, não há como provar esse tipo de coisa, mas o que podes sempre ter em mente é que todas essas obras, essa literatura, foi escrita por pessoas. E se foi escrita por pessoas, elas têm origem comum; e tudo que possui origem comum, terá um desenvolvimento que pode destoar muito dessa origem, embora mantenha certa semelhança, pontos a serem comparados e outros pelos quais chegamos quase sempre à mesma conclusão. Não existiu inventor da matemática, uma pessoa que descobriu como contar os objetos e a partir de quem a matemática se desenvolveu. Todo o homem tem a capacidade de contar os objetos, qualquer ser humano e em qualquer parte do mundo. Hora ou outra a matemática acaba por desenvolver-se, numas culturas mais, noutras menos — não só a matemática, mas também a literatura. A matemática está sempre presente, assim como institucionalizar a família também está sempre presente, o que aliás pode ser como no ocidente: o homem, a mulher e seus filhos; pode ser uma tribo inteira; pode ser que seja mais de um homem com uma mulher, ou mais de uma mulher com um homem; mas sempre existe uma institucionalização da família — em toda sociedade tais se observa. Portanto, não podes te admirar de conseguires traçar paralelos nas literaturas de um povo com a de outro; em última instância, esses paralelos existem porque a literatura é humana e, como definiu Aristóteles, ser humano é ser racional, e vice e versa: se é racional, é humano. Pensa na ficção científica das últimas décadas, que opõe alienígenas a humanos, a partir da hipótese de vida inteligente em outro planeta. Podes criar uma história como esta, mas vê que, independente da forma dos alienígenas, se estes forem inteligentes, racionais, eles serão humanos. Podem ter oito olhos, tentáculos, podem desejar destruir a terra e seus habitantes, mas se forem racionais, são homens tão humanos quanto tu. E vamos 73 Clístenes Hafner Fernandes mais longe: se forem seres humanos, com certeza teriam matemática, música, literatura e tudo mais, porque de uma alma racional, de uma mente racional, de uma psique, só podem sair essas coisas; este é o fruto da própria existência da razão, assim como o calor inevitavelmente muda o estado físico da água, a razão humana faz cálculos, canta e conta histórias. Lição VIII Meu aluno, O ser humano de que falava na lição anterior, o homem, é o maior dos temas literários; a literatura é a mais humana e a mais importante das expressões artísticas. Antes de seguires à próxima epopeia das nossas sete, quero que leias três livros sobre o homem. Três livros recentes e escritos originalmente na tua língua por aquele que é considerado o maior escritor do teu país: Dom Casmurro (16), Quincas Borba (17) e Memórias Póstumas de Brás Cubas (18), de Machado de Assis. Estes três romances compõem o que os modernos chamaram de Trilogia Realista, e é bom que dês este salto de textos antiquíssimos e mitológicos para livros tidos por “realistas”, assim como saltaste para um livro dito histórico quando leste Tucídides. O protagonista e narrador de Dom Casmurro é Bento Santiago, que ao narrar a história quer “atar as duas pontas da vida”, quer unir os fatos da sua juventude com os dos dias em que está escrevendo. Neste ínterim, Bento escreve sobre seus anos de menino, sua passagem pelo seminário, seu relacionamento de ciúmes com Capitu, que é tema principal da narrativa. Como em Camões precisas de inúmeras referências de textos antigos e medievais para compreender a história em sua totalidade, em Dom Casmurro também; Machado de Assis exprime-se referenciando suas leituras anteriores de autores ingleses, como Shakespeare, ou franceses, como Victor Hugo, e alemães, como Schopenhauer. A questão por demais debatida se Capitu traiu ou não, é um 74