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A Revolução Russa A Revolução Russa é um dos principais eventos do século XX e foi, até há bem pouco tempo, um dos principais condicionantes da ordem política mundial. Seu principal significado reside no fato de ter sido a primeira revolução a colocar no poder um regime comunista, baseado nas ideias do socialismo científico de Marx e Engels. Embora tenha havido um desvirtua mento do processo revolucioná- rio que levou a Rússia (e, posteriormente, a União Soviética) a um modelo social, político e econômico bem distante da proposta de Marx, a simples existência de um regime não capitalista na Europa representou uma ameaça aos países que adotavam o capitalismo. Estes tentaram, sem medir esforços, destruir o regime soviético. Ao constatar que não seria possível, trataram de impedir o crescimento internacio- nal russo e, portanto, o crescimento das ideias socialistas. Esses elementos condicionaram vários dos principais aspectos das relações internacionais ao longo do século XX e foram, até a década de 1990, responsáveis pela grande divisão internacional vivida pelo mundo, particularmente após a Segunda Guerra Mundial. As constatações são suficientes para demonstrar a importância de um estudo detalhado sobre a Revolução e seu significado, partindo-se da compreensão do que era a Rússia antes de outubro de 1917 e de como foi possível a revolução naquele país. Devemos fazer, inicialmente, uma ressalva cronológi- ca. Até 1918, a Rússia utilizava o calendário Juliano, 13 dias atrasado em relação ao calendário Gregoriano utilizado no Ocidente. Assim, a Revolução de 28 de fevereiro, segundo nosso calendário, é na verdade a Revolução de 8 de março; do mesmo modo, a Revolução Bolchevique de outubro ocor- reu em novembro. Para os estudos, adotaremos a tendência mais atual, que é a de considerar o calendário ocidental. A Rússia antes da Revolução No início do século XX, a Rússia era um território com diversas contradições. Do ponto de vista político, o país ainda era governado despoticamente pelos czares da Dinastia Romanov, no poder desde 1613. A pessoa do czar confundia se com o Estado, personificando uma autocracia de caráter absolutista. Fig. 1 Nicolau II, o czar derrubado na Revolução de 1917, e sua família (da esquerda para a direita): Olga, Maria, Nicolau, Alexandra, Anastásia, Alexei e Tatiana. L e v it s k y S tu d io A Igreja Ortodoxa, religião oficial do Estado, exercia enorme poder sobre a massa da população, ignorante e analfabeta em sua maioria formada por camponeses, os mu- jiques Sobre uma população de 150 milhões de habitantes, dos quais 80% estavam concentrados no campo, havia uma estrita elite de grandes proprietários de terras, de origem nobre, formando a camada privilegiada da sociedade Os membros do alto clero e da aristocracia agrária, aliados ao alto oficialato do Exército geralmente de as cendência nobre exerciam um poder econômico-político praticamente sem limites, constituindo-se no tripé que sus tentava o trono. Paralelamente a isso, a Segunda Revolução Industrial, no século XIX, e a busca incessante dos países industrializa- dos pela ampliação de mercados e fontes de barateamento da produção trouxeram alguns novos elementos à estrutura social e econômica russa, com uma série de decorrências políticas Fig. 2 Camponeses russos no início do século XX. A utilização de técnicas e instru- mentos primitivos é um símbolo do atraso vivido pela Rússia no período. As reservas naturais do país, bem como uma população pobre, habituada a baixíssimos salários se comparados aos padrões dos países mais avançados da Europa sub metida a um regime violento e autoritário, o qual reduzia as possibilidades de reivindicação, foram um enorme atrativo para industriais da Europa e dos Estados Unidos. A partir de meados do século XIX, iniciou-se a instalação de fábricas no país. Especialmente nos setores têxtil e petrolífero, a Rús- sia passava por amplo processo de industrialização. Os principais centros dessa mudança eram São Petersburgo, Odessa e Moscou, mas a burguesia que começava a se firmar economicamente era estrangeira ou dependia do Estado, o que a tornava fraca e pouco articulada. Essa aparente modernização econômica criava uma dicotomia sensível em um país essencialmente agrário, em que nenhuma das conquistas populares (re- forma agrária, abolição da servidão) havia sido obtida. Czar: designação utilizada pelos imperadores russos Seu uso remonta ao Império Romano, sendo uma tradução de César, da mesma forma que o título de kaiser, no Império Alemão. B a in N e w s S e rv ic e /L ib ra ry o f C o n g re s s W a s h in g to n D C HISTÓRIA Capítulo 10 O período entreguerras88 Por outro lado, o nascente proletariado urbano enfrentava uma situação de miséria, agravada pelo caráter policial do Estado, que impedia toda e qualquer forma de reivindica ção e organização dos trabalhadores. Assim começavam a surgir organizações clandestinas como sindicatos e partidos políticos. Estes últimos poderiam ser marxistas, socialistas ou liberais, sendo em grande parte liderados por pessoas que se exilavam para fugir da polícia czarista. Dentre esses partidos, merece destaque, pelo papel que desempenhou no processo revolucionário, o Partido Operário Social-Democrata dos Trabalhadores Russos. Esse partido, fundado no final do século XIX por alguns militantes exilados, sofreu uma cisão em 1903 A ala menchevique (mi noritária), liderada por Martov e Plekhanov, propunha uma aliança com a burguesia para desencadear uma revolução que acelerasse o desenvolvimento capitalista russo, para só então passar à construção do socialismo A ala bolchevique (majoritária), sob o comando de Lenin, defendia uma revo lução imediata, que, por meio da ditadura do proletariado, implantaria o socialismo. Em 1904, a Rússia entrou em guerra contra o Japão para disputar áreas no Extremo Oriente. Em menos de um ano de guerra, as condições internas na Rússia já se ha- viam deteriorado em todos os níveis. Além disso, o Japão conseguiu o que parecia impossível: derrotar o até então orgulhoso Império Russo, cem vezes maior e mais de três vezes mais populoso que o pequeno arquipélago japonês A derrota russa serviu para evidenciar as fragilidades do regime e a necessidade de reformas, além de ter agravado em muito as condições de vida dos trabalhadores tanto no campo quanto nas cidades. Foram esses elementos que levaram à Revolução de 1905. A Revolução de 1905 Persistia entre a população russa uma visão, em gran de parte disseminada pela Igreja Ortodoxa, de que o czar era um homem bem-intencionado, apenas pessimamente informado por seus assessores da real situação de penúria do povo e dos problemas do país. Assim, o movimento procurou, inicialmente, apenas um caminho de diálogo com o czar. Em 22 de janeiro de 1905 ocorreria uma manifestação popular pacífica em frente ao palácio de Nicolau II, em São Petersburgo. Essa manifestação foi convocada com o in- tuito de levar ao czar uma carta de súplica, lavrada no tom mais respeitoso possível. A maior demonstração do caráter pacífico da manifestação são as fotos que mostram pais de família, muitas vezes empunhando crucifixos e carregando seus filhos no colo Nicolau II, entretanto, ao ser informado da manifestação, deixou São Petersburgo e ordenou à tropa de elite, os cossacos, que reprimisse violentamente a mani festação. A ação violenta e desproporcional dos cossacos deixou centenas de mortos, no que foi conhecido como o Domingo Sangrento. Fig. 3 Civis e o exército czarista no Domingo Sangrento. L ib ra ry o f C o n g re s s P ri n ts a n d P h o to g ra p h s D iv is io n W a s h in g to n D .C A demonstração da intransigência do regime, bem como o fim da ilusão sobre as boas intenções de Nico- lau II, surtiu um efeito imediato. Uma onda de agitações e protestos espalhou-se pela Rússia. Greves operárias ocor-reram nas principais cidades do país e a própria população camponesa voltava se contra os aristocratas. Na marinha russa, os marinheiros do encouraçado Potemkin reclama- vam melhores condições de trabalho, e a guarnição da base naval de Kronstadt rebelou-se. Fig. 4 O encouraçado Potemkin, que se tornou famoso durante a Revolução de 1905 e mais tarde no filme de Sergei Eisenstein, de 1925. C o le ç ã o Y u r C h e rn o v Pressionado, o czar foi obrigado a ceder e convocou eleições para uma Assembleia Legislativa, a Duma (1906). Paralelamente a isso, decretava a liberdade de organização partidária, embora as lideranças operárias continuassem banidas do país. Tratava-se de uma manobra para ganhar tempo. A Duma nunca teve poder efetivo, sendo controlada por Nicolau II, que instaurou um falso constitucionalismo no país. Seu po- der, na prática, continuou absoluto e a repressão policial foi intensificada, notadamente sobre o movimento operário Cisão: divisão F R E N T E 2 89 De qualquer forma, a Revolução de 1905 trouxe efeitos de grande importância para a Rússia Inicialmente, ela foi a primeira experiência de luta dos trabalhadores russos O proletariado que em 1917 lutou pelo poder já não era iniciante politicamente; já aprendera a se organizar, tendo criado inclusive a forma de organização que possibilitou a Revolução de 1917: os sovietes conselhos de traba lhadores eleitos em locais de trabalho, distritos rurais e destacamentos militares, gerando direções que são fruto da própria luta dos trabalhadores e uma estrutura extrema- mente ágil, capaz de se estender por todo o país Além disso, a luta de 1905 forjou as principais lideran ças políticas dos trabalhadores russos. Praticamente todos os líderes da Revolução de 1917, como Trotsky, Kamenev e Znoviev, tiveram em 1905 seu grande aprendizado político Entretanto, a repressão política, ao lado de um relati vo crescimento econômico e da aparente liberalização do regime, geraram um refluxo do movimento popular que se estendeu até o início da Primeira Guerra Mundial A Primeira Guerra Mundial e a Revolução de 1917 O Império Russo não suportou o peso da Primeira Guer- ra Mundial. Isolada pelo controle otomano na região dos estreitos de Bósforo e Dardanelos, o que impedia o acesso ao Mediterrâneo, a economia russa desmoronou. A inflação corroía os salários, as empresas paralisavam suas atividades por falta de matérias-primas, as colheitas e a distribuição de alimentos acabaram por se desorganizar e o sistema ferroviário entrou em colapso. Treze milhões de homens mobilizados na frente de batalha foi uma carga impossível de ser sustentada. Ao mesmo tempo, o desastre militar perante os ale- mães foi completo. Ricas áreas foram perdidas, três milhões de baixas fragilizaram o exército e as sucessivas derrotas provocaram uma onda de deserção. Greves e manifestações incendiavam o país, numa de- monstração clara de que o regime havia perdido até seu componente mais típico: a capacidade repressiva. Em março de 1917, a situação escapou ao controle. A polícia não conseguiu dispersar as multidões, o exército recusou-se a reprimir as manifestações e o czar abdicou. Fig 5 Tropas bolcheviques marcham na Praça Vermelha, em Moscou, em 1917. C o le ç ã o p a rt ic u la r Instalou-se então a República da Duma, sob a presidên- cia do príncipe Lvov, do Partido Constitucional Democrático (cujos integrantes eram conhecidos como cadetes), repre- sentante da burguesia liberal. O novo governo insistiu em manter a Rússia na guerra, dependente que era do apoio aliado para sustentar-se, e passou a reprimir os bolcheviques Fig. 6 O soviete de Petrogrado. C o le ç ã o p a rt ic u la r O governo de Lvov teve curta duração. A incapacidade em dar qualquer resposta às demandas dos trabalhadores tornava-o altamente impopular em um país onde o movi- mento operário crescia em um ritmo alucinante Em abril caía o governo de Lvov, assumindo o comando do Governo Provisório o líder do Partido Social Revolucionário, Kerenski. Além da Duma, muitas regiões da Rússia eram gover- nadas pelos sovietes – organizações políticas democráticas abertas aos partidos socialistas e populares e que excluíam, de todas as formas, os burgueses. Tratava-se de conselhos que reuniam deputados, os quais dispunham de poder le- gislativo e judiciá rio. A estrutura soviética era um sistema piramidal de tais conselhos: na base, estavam os sovietes de fábricas, cidades, aldeias e campo; nas cidades, os sovietes de bairros e cidades; e, no campo, estavam os sovietes de distrito e província. Essas organizações políticas reuniam os representantes reconhecidos da insurreição vitoriosa. Muitos sovietes ligaram-se à Duma e governaram junto a ela; outros, no entanto, consideraram os sovietes como única autoridade legítima. Para os bolcheviques, por exemplo, os sovietes – órgãos de poder popular – eram os embriões do socialismo. Sendo assim, a constituição desses dois po- deres em geral, conflitantes foi um elemento de tensão no mundo russo ao longo de 1917. A situação tornava-se mais grave e o exército continua- va a se desintegrar enquanto os bolcheviques ganhavam popularidade com as Teses de Abril, de Vladimir Ilich Lenin. Ao divulgar slogans como “Todo poder aos sovietes”, e “Paz, pão e terra”, o líder dos bolcheviques insistia na saída da guerra, na regularização da distribuição de alimentos e HISTÓRIA Capítulo 10 O período entreguerras90