Prévia do material em texto
F R E N T E 2 163 Transformações econômicas e sociais trazidas pela expansão Naturalmente, uma expansão do porte da romana traria profundas transformações sociais e econômicas, as quais acabariam por modificar toda a estrutura interna de Roma. Em primeiro lugar, as riquezas geradas pela expansão quase aniquilaram a pequena agricultura plebeia, voltada essencialmente para a produção de gêneros de consu- mo interno. Ao mesmo tempo, o vasto comércio que se desenvolvia ocupava o lugar antes pertencente à ativida- de agrícola. A ampla camada de pequenos proprietários tendeu a desaparecer, em função da concorrência dos gêneros advindos das províncias e do latifúndio patrício, o qual tinha seu crescimento fortemente apoiado na mão de obra escrava O próprio crescimento da escravidão, um efeito direto da expansão, esteve ligado à miséria da plebe, visto que muitos escravos eram prisioneiros de guerra Mesmo que, desde 367 a.C., a escravidão por dívida tivesse sido abolida, ao plebeu endividado só restava entregar a terra ao patrício em troca da dívida. Com isso, verificou-se em Roma um processo de concentração fundiária, com as grandes pro- priedades patrícias transformadas em grandes latifúndios voltados a uma produção extensiva de exportação, à qual o trabalho escravo adaptava-se perfeitamente. A miséria da plebe, sem terra e sem trabalho no campo, conduziu a um amplo processo de êxodo rural, concentrando em Roma toda uma massa miserável, fato que trouxe sérios desdobramentos em termos de tensão social e política. O crescimento do comércio abriu possibilidades de enriquecimento a uma camada de plebeus urbanos, dan- do origem a um novo setor social: os homens novos, ou cavaleiros. Ao mesmo tempo que sua condição plebeia lhes impunha uma situação de marginalização política, sua riqueza tornava-os naturais adversários do Estado patrício, o que também representou um elemento a conspirar contra a ordem republicana. A expansão trouxe ainda um forte componente mili tar No rastro das conquistas romanas, e da necessidade de uma força militar mais eficiente, o exército romano passara por um processo de profissionalização a partir do século II a.C. A antiga estrutura centurial, baseada nos cidadãos recrutados em época de guerra, cedeu lugar a uma força permanente, na qual os guerreiros recebiam o soldo para combater (daí a designação de soldados), submetidos a uma hierarquia rígida, no topo da qual se achavam os generais. Com isso, cada general romano passou a significar um poder extraordinário, o que alimen- tava suas ambições políticas e fazia do exército uma força política à margem da estrutura republicana. O conjunto dessas transformações teve por efeito en- fraquecer o poder patrício como este fora concebido em 509 a.C. A luta de plebeus miseráveis e escravos por me- lhores condições de vida e de generais e homens novos pelo poder fez com que os últimos dois séculos da Repúbli- ca fossem caracterizados por lutas internas e guerras civis, que acabaram, em última análise, resultando na queda do regime republicano. Não por acaso, esse período é conhe- cido como a crise da República. A crise da República Um dos principais elementos de tensão política da Re- pública era a situação de miséria que atingia a plebe ociosa e concentrada em Roma. Em 133 a.C., Tibério Graco, eleito tribuno da plebe, embora fosse de origem patrícia, propôs uma lei de reforma agrária, que limitava a posse das terras do Estado (ager publicus) em 500 juggera, cerca de 310 hectares, por indivíduo Todas as terras que excedessem a esse limite seriam revertidas ao Estado, que as redistribuiria em peque- nos lotes aos cidadãos sem terra. A reação do Senado e da elite patrícia fez com que Tibério Graco fosse assassinado, junto com seus seguidores, em 132 a C. M u s é e d ’O rs a y /T h e B ri d g m a n A rt L ib ra ry -K e y s to n e Fig. 13 Escultura de bronze dos irmãos Graco, feita por Eugène Guillaume, século XIX. Dez anos mais tarde, seu irmão, Caio, também tribuno da plebe, tentou executar um programa mais ambicioso. Aplicou a lei de reforma agrária em Cápua e Tarento, per- mitiu aos cavaleiros o acesso aos tribunais que julgavam as finanças provinciais, prometeu a cidadania romana aos aliados itálicos e decretou a Lei Frumentária, que deter minava a venda de trigo a preços baixos aos plebeus. Reeleito em 122 a.C., mas derrotado no ano seguinte, Caio tentou um golpe de Estado, que resultou no massacre de seus seguidores; no final, Caio ordenou que um escravo o matasse. A reação à morte de Caio levou a uma ampla revolta popular que agravou ainda mais a tensão política em Roma. A vida política passou a ser dividida em dois agrupamen tos, o partido aristocrático, composto de patrícios membros das elites tradicionais e que desejava manter seu poder e a ordem vigente, e o popular, que lutava pela realização de reformas. A própria instabilidade política abriu espaço à ação dos generais, que usavam seu prestígio e poderio militar para fazer carreira política em um dos partidos. Um deles, chamado Caio Mário, conseguiu chegar ao poder entre 105 e 100 a.C. De origem plebeia, Mário era o homem mais rico de Roma, um homem novo que, graças a HISTÓRIA Capítulo 3 A Antiguidade Clássica: o mundo greco-romano164 sua riqueza, foi galgando postos dentro do exército romano. Chegando a general, conquistou a Numídia, em 106 a.C., derrotando também povos germânicos que ameaçavam os domínios romanos Seu prestígio fez com que se impusesse como ditador por seis vezes seguidas, em um flagrante ato inconstitucional, mas com apoio do partido popular. A Caio Mário deve-se a formação do exército proletário e profis- sional, no qual os legionários se alistavam por 25 anos, recebendo soldo, parcelas do espólio de guerra e um lote de terra quando tinham baixa. Mário permitiu aos homens livres pobres o acesso a uma ocupação remunerada; seu exército, contudo, era um instrumento político. Entre 99 a.C. e 82 a.C., o partido popular dominou Roma, especialmente por meio de Mário (morto em 86 a C.), salvo breves intervalos. Foi somente com sua morte que o partido aristocrático logrou recuperar o poder, através de Sila, um general cujo prestígio vinha também no rastro de conquistas militares. Sila tomou o poder em Roma, es- tabelecendo uma ditadura militar (82 79 a C ) Restaurou o poder do Senado em sua plenitude, revogou as prerro- gativas legislativas do Tribunato da Plebe e restringiu os direitos jurídicos dos cavaleiros. Baniu numerosos sena- dores e cavaleiros, suspeitos de serem simpatizantes do partido popular, lhes confiscando os bens e excluindo seus descendentes da vida pública. Esse conjunto de ações deixa claro que o Senado não reconhecia em si condições de manter o poder, mesmo quando o partido aristocrático recuperava o con- trole da vida pública Assim, optava por delegá-lo a uma ditadura. Sila cria um vácuo político em Roma quando, ao se encerrar seu período ditatorial, se recusou a dar um golpe; gesto inesperado. Em 70 a C., Crasso, que se notabilizou por esmagar a rebelião de escravos liderada por Espártaco (73 a.C.), e Pompeu, vencedor da revolta nacionalista de Sertório, na Ibéria (78-72 a.C.), elegeram-se cônsules. Contra eles ergueu-se uma conspiração patrícia, chefiada por Catilina. A necessidade de ampliar sua base de apoio levou os dois cônsules a se aliarem a um sobrinho de Mário, Caio Júlio (mais tarde conhecido como Júlio César), principal líder do partido popular e herdeiro da incalculável fortuna deixada por Mário Essa aliança, firmada em 60 a C., totalmente ile- gal, segundo a composição institucional da República, ficou conhecida como Primeiro Triunvirato. Os três líderes dividiram entre si a jurisdição do Império, cabendo, a Crasso, o Oriente; a Pompeu, a Ibéria; e a Júlio, a Gália, território ainda independente de Roma A morte de Crasso, em 53 a C., inevitavelmente colocou Júlio e Pompeu frente a frente. O fortalecimento militar de Júlio, que con- quistara a Gália e ampliara intensamente seu poder,fez com que o Senado passasse a temer suas ambições políticas. Por isso, numa tentativa de detê lo, em 49 a.C. Pompeu foi nomeado cônsul único pelo Senado Ao mesmo tempo, chamava Júlio de volta a Roma, numa clara manobra para esvaziar seu poder militar. Pronunciando a famosa frase Alea jacta est (“A sor- te está lançada”), Júlio entrou em Roma à frente de seus exércitos, configurando um inegável golpe de Estado. Aba- lado com o prestígio popular de Júlio, Pompeu fugiu para a Grécia, onde foi derrotado em 48 a.C. Em 46 a.C, senhor absoluto de Roma, Júlio fez-se proclamar ditador por dez anos, de onde vem o título de César atribuído a outros governantes Seu período de ditadura foi curto, sofrendo forte oposição do Sena do, que via nele uma clara ameaça, por sua ambição de instaurar uma monarquia hereditária de tipo helenístico. Em 44 a.C., César foi assassinado a punhaladas na saída de uma reunião do Senado Esse assassinato foi fruto de uma conspiração que reuniu senadores, republicanos idealistas, partidários de Pompeu e elementos de seu próprio círculo. Fig. 14 Lionel-Noël Royer. Vercingetorix joga suas armas aos pés de Júlio César, 1899. Museu Crozatier de Puy-en-Velay, França. As conquistas de Júlio César prati- camente deram contorno final ao Império Romano. Na reprodução, Vercingetorix, líder gaulês, rende-se a Júlio César. L io n e l- N o ë R o y e r/ w ik im e d ia c o m m o n s O projeto do Senado de recuperar o poder não se realizou, contudo, com a morte de Júlio César, em ra- zão de dois fatores. O primeiro foi a violenta reação da plebe, a quem César mimara com a distribuição do trigo das regiões conquistadas e com a doação de parte da sua fortuna pessoal. O segundo, e mais importante, foi a reação do exército. César: título que se originou do nome de família de Júlio César, que governou Roma como monarca sem coroa de 49 a.C. a 44a.C. Otávio, sobrinho e filho adotivo de César, tomou o nome do tio e também o título de Augusto. Os quatro imperadores romanos seguintes, por intermédio de família ou adoção, tiveram todos direito ao nome de César, que se tornou tão estreitamente associado à ideia de imperador que era uma espécie de título. Ao escolher uma pessoa para sucedê-lo como governante supremo, o imperador conferia a seu herdeiro o título de césar. Na época do Império Bizantino, qualquer pessoa escolhida como governante de um país que fizesse parte do Império podia ser chamada de césar Na língua russa, esse título tornou-se czar; em alemão, césar passou a ser kaiser. Durante os anos de seu governo, César trouxera o exército cada vez mais para o centro das decisões, em sua política de neutralizar o poder do Senado. A morte de César foi, assim, tomada pelo exército como um golpe contra ele, motivando uma reação que o tornaria o centro da vida política em Roma Não por acaso, foi, na prática, o F R E N T E 2 165 exército quem tomou o poder, o que pode ser facilmente observado na composição do governo que ascendeu logo após a morte de César: composto de Otávio, sobrinho e herdeiro de César; Lépido, antigo comandante das suas forças de cavalaria, e Marco Antônio, seu mais hábil gene- ral. Em 43a.C., esses três homens formaram o Segundo Triunvirato. A ascensão do Segundo Triunvirato deu origem a uma violenta repressão sobre os conspiradores que haviam par ticipado do assassinato de César. Instalou se um clima de perseguições e mortes, impondo o terror sobre o Senado. Claramente, é o exército quem detém o poder, e toda a luta política resume-se agora à busca de sua plena aceitação. Foi nesse contexto que, em 33 a C , Marco Antônio con- trolava as províncias orientais e Lépido foi derrotado por Otávio, que já dominava a Itália e as províncias ocidentais. Restando só Marco Antônio e Otávio, o conflito entre ambos tornou-se inevitável. O estopim para o conflito foi representado pela questão do Egito, a qual vinha se arrastando desde o governo de Júlio César. Este, para ampliar seu poder contra o Senado, inclusive o militar, havia feito um acordo com a herdeira do trono egípcio, Cleópatra, colocando-a no trono contra seu irmão, PtolomeuXIII No confronto com Otávio, Marco Antônio buscou uma aproximação com o Egito, vista como perigosa aos interesses romanos, uma vez que Cleópatra tinha um filho com Júlio César. Otávio usou essa aproxi- mação para aglutinar o exército romano em torno de seu nome, contra Marco Antônio A última guerra civil da República terminou em 31a.C., com o suicídio de Marco Antônio e de Cleópatra após a grande derrota de Ácio, na Grécia, e com a vitória defini- tiva de Otávio, que transformou o Egito em sua província pessoal Cristalizou-se, assim, um poder pessoal, fortemente apoiado no exército. Mais que isso, usando métodos se- melhantes aos de seu tio, Júlio César, Otávio apoderou-se das abundantes colheitas do Egito, passando a abastecer a plebe romana com trigo gratuito Além disso, o gigan tesco tesouro egípcio, acumulado ao longo de milênios, permitiu a ele formar um grande exército diretamente sob sua autoridade. Submetido pela força e pelo apoio popu- lar a Otávio, o Senado viu-se obrigado a referendar esse poder, concedendo lhe uma série de títulos O primeiro deles foi o de princeps senatus, ou primeiro senador, o que lhe permitia presidir o Senado. A simples concessão desse título já representa uma clara inversão na própria estrutura da República A existência de um poder acima do Senado significava um passo decisivo no caminho da centralização do poder. Esse período, inclusive, já é co- nhecido como Principado, dando a entender que não é exatamente a forma republicana de governo que tem o poder em Roma Os demais títulos recebidos por Otávio apenas confir maram essa tendência: imperator, ou comandante e chefe do exército; tribuno da plebe, que lhe dava o direito de falar em nome da plebe nas reuniões do Senado, e pontífice máximo, que lhe concedia a chefia da religião oficial O corolário desse processo foi a concessão a ele do título de Augusto (o escolhido dos deuses), título que o colocava acima dos mortais comuns, dando-lhe o direito de indicar seus sucessores. Era a constatação definitiva do fim da República e do retorno à forma monárquica de governo, caracterizando a fase do Império. O Alto Império (27a.C.-235d.C.) Tradicionalmente, o período do Império em Roma é dividido em duas fases distintas. O Alto Império estende- se da sagração de Otávio em 27a.C. até por volta do séculoIIId.C. e constitui o período de consolidação e apogeu do Império. O Baixo Império, do séculoIII aoV, representa o momento de crise e decadência do Império, até o seu final em 476. Em termos políticos, o Império teve por base a cen tralização do poder nas mãos do imperador, fortemente apoiado no exército. As prerrogativas do Senado, embora formalmente mantidas, foram drasticamente reduzidas na prática, restando-lhe apenas a administração da Itália e das províncias sem guarnições militares (províncias senatoriais). O imperador controlava a religião, o exército, as funções legislativa e judiciária, as finanças do Estado, a política ex- terna e as províncias mais importantes A redução do poder do Senado causou choques entre este e o poder imperial, os quais sempre foram resolvidos pelo uso da força militar na qual se apoiava o imperador Lembramos que o poder efetivo estava nas mãos do exér- cito, sendo o imperador apenas aquele a quem o exército aceitava como governante As seguidas crises sucessórias, golpes, assassinatos e conspirações mostram exatamente essa característica. O exército, com um efetivo de mais de 300mil homens, foi estacionado ao longo das fron teiras do Império, o limes, para resguardá-lo dos ataques bárbaros Formava uma força profissional, composta de legiões, de recrutamento obrigatório entre os cidadãos romanos; e de forças auxiliares, de recrutamento provincial. Augusto criou também uma força militar de elite, a Guarda Pretoriana, aquartelada em Roma, para a proteção pessoal do imperador. A sociedadefoi dividida em três ordens, segundo um critério censitário, formando-se a Senatorial, que possuía privilégios políticos; a Equestre, que permitia o acesso aos cargos públicos; a Inferior, que abrangia a maioria dos cidadãos. Com isso, Otávio ganhava o apoio dos comerciantes ricos Ao mesmo tempo, como forma de compensar a perda de poder do Senado, ele cumulava os senadores com regalias que os tornavam dependentes do poder imperial O controle sobre a plebe era efetuado através da po- lítica de concessão de alimentos, iniciada por Júlio César e ampliada por Otávio Também foram criados grandes espaços públicos para a realização de jogos, corridas de bigas e combates de gladiadores, de modo a dar à plebe uma forma de diversão que permitisse manter a revolta social em um nível controlável. Era a política do “pão e circo”