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Copyright © 2021 por José Francisco Botelho Todos os direitos desta publicação reservados à Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA. Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990. É vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização, salvo como referência de pesquisa ou citação acompanhada da respectiva indicação. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.9.610/98 e punido pelo artigo 194 do Código Penal. Este texto é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião da Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA. EDITORA Diretor executivo Guther Faggion Diretor de operações Jardel Nascimento Diretor Financeiro Nilson Roberto da Silva Editora Executiva Renata Sturm Editora Gabriela Castro Direção de arte Rafael Bersi, MatheusCosta Revisão Daniela Georgeto Assistente Ana Maria Menezes DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA — CRB-8/7057 BOTELHO, José Francisco A odisseia da filosofia / José Francisco Botelho. – São Paulo : Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA, 2021. EPUB ISBN 978-65-88370-18-6 1. Filosofia - História 2. Filósofos I. Título ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO: 1. Filosofia - História CDD 109 Endereço R. Ibituruna, 1095 – Parque Imperial, São Paulo – SP – CEP: 04302-052 www.mqnr.com.br http://www.unipro.com.br/ Sumário Prefácio A AURORA da FILOSOFIA OCIDENTAL O SÁTIRO de ATENAS A CAVERNA de PLATÃO ILLE PHILOSOPHUS O OUTONO da FILOSOFIA ANTIGA O LABIRINTO de DEUS O DEMÔNIO de DESCARTES SOB O OLHAR da ETERNIDADE GELO QUENTE e FOGO FRIO OS LIMITES do PENSAMENTO O VÉU de MAIA OS SENTIDOS DESTE MUNDO O MISTÉRIO, a BELEZA e as VANTAGENS da CONTEMPLAÇÃO Bibliografia Dedico este livro à minha família. PREFÁCIO Admiração. Eis o que me acomete ante a leitura desta obra que prefacio. Admiração pelo autor e pelo que foi capaz de fazer. Em que consiste essa admiração? Um embasbacamento inicial, semelhante ao que sentiram o homem e a mulher quando se deram conta do mundo, de si e da própria vida. Mas não só. Uma certeza de que aquele feito não é alcançável pelo seu admirador. Eis como o autor do prefácio se coloca ante o livro que ousa prefaciar. Em admiração. Dada essa condição inicial, o que fazer? O que deve conter um prefácio? Um resumo? Uma síntese? Um comentário? Que o leitor perdoe tanta hesitação. É pura falta de jeito. Coisa de quem foi pego de surpresa. Porque, entre outros motivos, nunca esteve à altura. — Há meio século, o professor Bourdieu assumiu uma cadeira no Collège de France. Instituição muito antiga que, nos dias de hoje, oferece cursos livres e gratuitos para simples interessados. Não há nenhuma seleção para frequentá-los. Os docentes, esses sim, são escolhidos com muito critério. Em geral, o nome de maior prestígio em sua área, franceses e estrangeiros. A mais alta distinção do ensino superior francês. A lista de exemplos não tem �m. Georges Duby e Emmanuel Le Roy Ladurie em História, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss em Antropologia, Raymond Aron em Sociologia, Umberto Eco em Linguística, Andre Siegfried em Geogra�a, Gabriel Tarde, Maurice Merleau-Ponty e Michel Foucault em Filoso�a, e tantos outros expoentes de seus tempos. A tradição exige uma primeira aula, de cunho inaugural. Com todas as implicações simbólicas que aquele cenário enseja. Um instante de reconhecimento que unge, pelo que há de mais sagrado, aquele porta- voz como legítimo e autorizado a se manifestar sobre seus assuntos. Cerimônia rara de apropriação autorizada de capital simbólico, propriamente intelectual, junto ao patrimônio institucional acumulado ao longo dos séculos de sua existência. O professor Bourdieu viria a publicá-la mais tarde com o título Leçon sur la leçon. Um trabalho de enquadramento sociológico daquele evento por ele protagonizado a partir do seu próprio arsenal conceitual, tais como as noções de campo social, habitus, legitimidade, capital social, dominação simbólica, distinção e outras tantas. A aula inaugural foi sobre o que signi�cava proferir uma aula inaugural. Uma aula sobre a aula. Muito mais do que uma lição sobre a lição que a tradução mais ingênua poderia fazer crer. Tal como em Ce que parler veut dire (O que falar quer dizer, em português), Bourdieu se debruça sobre o que pode signi�car uma aula inaugural no Collège de France. Sobre as condições sociais de construção de signi�cado em torno dessa atividade de índole tão prestigiosa. Quais os limites, socialmente de�nidos e �scalizados, da produção discursiva objetivada naquela aula? Até que ponto é possível ir sem “pisar na bola”, sem “perder a mão”, sem “chocar demais”? Até onde a heresia é aplaudida, tolerada e rejeitada? Em que consiste uma aula inaugural como aquela? A legitimidade do porta-voz seria tal que lhe autorizaria de�nir do zero e por conta própria os seus limites? Não estaria, dessa forma, empanando a autoridade da instituição, fonte da sua própria legitimidade? Não havendo um tutorial do que deve conter uma aula inaugural, não estaria ela, com seus vazios de princípio, à mercê de uma luta sobre o seu conteúdo legítimo? O certo é que uma aula inaugural é inaugural – a primeira daquele professor na instituição. Mas também é aula, que atende a um compromisso propriamente acadêmico, com seus programas, conteúdos e objetivos pedagógicos. E mais: se objetiva num ritual social, rica e meticulosamente preparado, que faz advir o que enuncia, marcando espetacularmente um antes e um depois naquele espaço especí�co de relações. — Bem, para você, raro leitor de prefácios, que se dispôs a folhear o que vinha antes do livro que adquiriu, esses primeiros parágrafos podem ter trazido alguma perplexidade. A�nal, nada do que foi escrito até aqui tem aparentemente a ver com o anunciado no título e capa da obra. Vamos tentar amarrar isso antes que você desista de mim. Tal como no caso da aula inaugural, espera-se de um prefácio que cumpra papel condizente com todo o projeto editorial. Porém, não há como negar, o espaço destinado ao prefaciador é de prestígio e reconhecimento. Há uma apropriação, mais ou menos extensa e autorizada dos ganhos sociais conquistados, a duras penas, pelo autor e pelos editores do projeto. A expressão do senso comum que melhor traduz essa dinâmica de �uxos e transferências de capital é “pegar carona”. O prefaciador é um sortudo caroneiro, com um aspecto meio “folgado”, que chega no �nal, liga o ar-condicionado, senta junto à janela e pede para pôr o som na sua rádio favorita. Para além dessas implicações simbólicas, assim como na aula inaugural, não há obviedades sobre o que um prefácio deve conter. No mundo editorial, a diversidade de estratégias costuma ser grande. Algumas mais pertinentes do que outras. Francisco costura, com grande originalidade, história política e do pensamento. Dono de um estilo preciso e atraente, leva o leitor para onde quer, fazendo-o degustar enredando num prazer de leitura por intermédio de uma narrativa cujos �os tece com a excelência de quem sabe fazer o que faz. A estupefação como pontapé inicial da �loso�a vem apresentada por alegoria criativa da vida doméstica. Os pré-socráticos superam, de longe, os manuais de divulgação. Esses se limitam a comparar, como numa tabela, a physis dos principais pensadores. A vida desses últimos e seus cenários permitem ao leitor um entendimento enriquecido das ideias e de seu �uxo. Em 2020, publiquei um livro sobre Sócrates. E asseguro-lhes que aprendi muito lendo o capítulo a ele dedicado por Francisco. Com a leveza de sempre, o texto nos faz imaginar o ateniense e seu amor pela polis, sua ignorância assumida e sua sabedoria inaugural. De Platão em diante, limito-me a recomendar. Porque o texto lembra muito esses salgadinhos que é impossível comer um só. A leitura engata e só larga na quarta capa. Admiração é isso. Não se sentir autorizado a falar muito. E sugerir, sem mais delongas, que o leitor vire a página e passe ao que interessa.Sirvam-se sem moderação. Clóvis de Barros Filho Jornalista, �lósofo e autor de A vida que vale a pena ser vivida. CAPÍTULO 1 Imagine-se acordando de repente em uma casa desconhecida: a mobília tem ângulos estranhos e funções misteriosas; as paredes estão cobertas por cores incongruentes; há enigmáticos mecanismos espalhados pelos cômodos, funcionando de forma deliberada, como se alguém os houvesse programado especi�camente para causar perplexidade e indagação. Ao acordar, você não sabe de onde veio, tampouco imagina o que está fazendo ali. O propósito e o funcionamento de todas as coisas lhe parecem, à primeira vista, impenetráveis; ao mesmo tempo, parece haver um sentido em todos esses estranhos objetos que o cercam. Situação semelhante foi a enfrentada por nossa espécie, lá na aurora da História, quando a mente humana começou a processar o mundo ao seu redor. O espanto foi a reação de nossos antepassados diante desse Universo regulado e inexplicável, onde vieram parar sem que ninguém lhes desse um manual. Do espanto, nasceu a �loso�a. Antes da �loso�a, contudo, veio o mito. Àquelas perguntas elementares – “em que consiste este mundo? E o que estamos fazendo nele?” – a humanidade respondeu, inicialmente, com grandiosos relatos cósmicos. As forças obscuras do Universo eram personi�cadas em deuses; seus combates, amores e caprichos explicavam a incoerente coerência da vida humana. Por que o relâmpago corta o céu? Porque Zeus, governante do Olimpo, está de mau humor. Por que perdemos a cabeça diante de um corpo atraente? Porque Afrodite, a deusa do amor, tem poder irresistível sobre os mortais. Por que nascemos, sofremos e morremos? Porque as Parcas, deusas do destino, tecem, enrolam e cortam os �os de nossa vida, conforme lhes apraz. Assim, o enigma visível do nosso mundo ganhava sentido por meio de um outro mundo, que os sentidos humanos não podiam perceber, mas que a imaginação supunha. Em determinado momento, no entanto, a explicação mitológica deixou de satisfazer as mentes mais inquisitivas, e, no lugar das histórias herdadas desde tempos imemoriais, uma sucessão de pensadores buscou suas próprias respostas, baseando-se em duas ferramentas: a observação do mundo e o pensamento racional. Essa transição ocorreu entre os séculos 7 e 5 a.C.; os pensadores dessa época, considerados os fundadores da �loso�a ocidental, são conhecidos como pré-socráticos. Suas re�exões podem ser vistas como uma negação da mitologia; por outro lado, o que os motivava era o mesmo espanto que levou a humanidade a criar deuses e heróis. “Foi por conta do espanto e do assombro que os homens começaram a �losofar – e, pelo mesmo motivo, �losofam até hoje”, escreveu Aristóteles, no século 4 a.C., na obra Metafísica. “Espantaram-se inicialmente com as perplexidades mais óbvias e foram gradualmente levantando questões relativas a assuntos mais graves: as mudanças do sol e da lua, o sentido das estrelas, as origens do Universo. A sensação de assombro advém da ignorância: assim, o apreciador dos mitos é também um �lósofo, pois todos os mitos são compostos de espanto.” Dos �lósofos pré-socráticos, não sobreviveu nenhuma obra completa: nós os conhecemos apenas por fragmentos. Mas sua importância é inversamente proporcional ao que sabemos sobre eles. São gigantes nas sombras da história, raiados aqui e ali por um raio de luz; e essa mistura de grandeza e mistério lhes dá, nos primórdios da �loso�a, uma estatura semelhante à dos personagens das epopeias antigas. Os pré-socráticos são os heróis quase mitológicos da razão. O CALDEIRÃO GREGO A história da �loso�a grega não começa no que hoje chamamos Grécia, mas do outro lado do mar Egeu, no território da atual Turquia – região que, na Antiguidade, era conhecida como Ásia Menor. Para entender como isso aconteceu, é preciso remontar a um período bem anterior ao surgimento dos primeiros �lósofos. Até uns 1200 anos antes do nascimento do cristianismo, �orescia na Grécia continental e nos arquipélagos do mar Egeu a chamada civilização micênica ou aqueana. Era uma cultura aristocrática, formada por múltiplos reinos belicosos e famílias principescas, que se diziam descendentes dos deuses e governavam pequenas comunidades espalhadas por montanhas, ilhas e planícies. Essa civilização tinha alicerces de bronze, pois era esse o metal usado na fabricação de suas armas e ferramentas. O sistema de escrita, conhecido pelos arqueólogos como Linear B, era diferente do alfabeto que mais tarde seria adotado na Grécia – as letras micênicas representavam os sons das sílabas, em vez dos fonemas. Em locais como Micenas e Tirinto, os helênicos arcaicos ergueram palácios magní�cos; séculos depois, seus descendentes �cariam tão impressionados com tais construções que haveriam de atribuí-las aos ciclopes1 (por isso, os restos das fortalezas micênicas �caram conhecidos, na Antiguidade, como ruínas ciclópicas). Entre os séculos 12 e 8 a.C., essa civilização ruiu. Até meados do século 20, historiadores e arqueólogos atribuíam o colapso à chegada de um outro grupo étnico e linguístico: os dórios. Vindo do norte da Europa e da Ásia em bandos sucessivos, esse povo teria devastado a antiga cultura micênica, assim como os bárbaros germânicos fariam com Roma, milênios depois. Em vários aspectos – na arquitetura, por exemplo –, os dórios tinham uma cultura menos re�nada que os micênicos; contavam, no entanto, com uma vantagem incontornável: sabiam fabricar armas de ferro e, portanto, eram militarmente superiores. Hoje, muitos arqueólogos colocam em dúvida a teoria da Invasão Dórica. A civilização micênica teria tombado de forma gradual, por problemas internos. O fato incontestável é que, entre os séculos 12 e 8 a.C., os palácios ciclópicos foram incendiados e a escrita Linear B se perdeu (embora tenha sido redescoberta pela moderna arqueologia). Foi certamente um período violento e destrutivo; por isso, é conhecido como Idade das Trevas (o mesmo nome seria depois aplicado, de forma não totalmente justa, à Idade Média europeia). Durante essa época conturbada, remanescentes da antiga civilização micênica meteram-se em seus barcos de proas recurvas e buscaram novas terras, singrando as águas cor de vinho (essa era a cor dos mares na época, segundo os poetas). Aportaram na Ásia Menor. Lá, fundaram uma série de colônias ) que adornariam a história humana com grandes pensadores e poetas. Entre essas cidades, estavam Éfeso e Mileto. Vários dialetos do grego eram falados na antiga civilização micênica, como o beócio, o eólio e o jônio. Este último era falado pela maior parte dos imigrantes que rumaram ao atual território da Turquia a partir do século 12 a.C.; por isso, a região �cou conhecida como Jônia. Colocadas a meio caminho entre a Grécia continental e as civilizações do Oriente Médio – como os persas, os fenícios e os babilônios –, as cidades jônicas prosperaram com o comércio e o intercâmbio cultural. Enquanto isso, na Grécia continental, a cultura dos imigrantes ou invasores dóricos ia se misturando com a dos jônios, beócios, eólios e outros grupos autóctones. Por volta do século 10 a.C., os gregos em ambas as margens do mar Egeu adaptaram o sistema de escrita dos antigos fenícios, habitantes do Líbano e do Norte da África. Nascia assim o alfabeto grego clássico – dessa vez, representando os fonemas, não as sílabas. Com o novo sistema de escrita, surgiram as primeiras obras da literatura grega, que é até hoje uma das maiores criações da humanidade. Antes disso, já havia histórias e poemas, mas estes eram compostos e transmitidos oralmente por bardos itinerantes chamados aedos. Entre os séculos 10 e 8 a.C., a Ilíada e a Odisseia foram colocadas no papel – onde se encontram até hoje, para nosso deleite. Homero, a quem se atribui a autoria das grandes epopeias gregas, nasceu e viveu em algum lugar da Ásia Menor; na Antiguidade, dezenove cidades gregas disputavam a honra de serem o local de nascimento do grande poeta. O �orescimento da escrita teve grande importância no surgimento da �loso�agrega: graças a ela, os pensadores de uma geração podiam avaliar, corrigir e elaborar as ideias de seus antecessores. E ela deu seus primeiros frutos em uma região próxima à provável terra natal de Homero. Na cidade de Mileto, o pensamento �losó�co foi gradualmente se separando da poesia e do mito. A ESCOLA DE MILETO – SÉCULOS 7 E 6 A.C. Em �ns do século 7 a.C., Mileto era uma cidade rica e poderosa: os antigos gregos a conheciam como “o orgulho da Jônia”. Sua localização geográ�ca era muito propícia à navegação e ao comércio; os milesianos tinham uma aliança mercantil com o reino da Lídia, na atual Anatólia, de proverbial prosperidade – Creso, monarca lídio no início do século 6 a.C., foi considerado o homem mais rico dos tempos antigos (sua memória perdura na expressão “fulano é rico como Creso”). A Lídia tinha contatos com a Babilônia e o Egito, cujos conhecimentos cientí�cos – inclusive os rudimentos da astronomia – gradualmente respingaram sobre os gregos da Jônia. Outra prova da pujança da Ásia Menor nessa época é a adoção do sistema monetário, o que gerou uma revolução econômica em Mileto e nas regiões vizinhas. A utilização de moedas conferiu poder à classe mercantil e diminuiu a supremacia dos aristocratas, possuidores de terras. Isso tudo tem ligação crucial com nosso assunto, pois há indícios de que Tales de Mileto2, celebrado como fundador da �loso�a ocidental, tenha sido uma espécie de empreendedor bem-sucedido. Embora nascido pobre, enriqueceu precisamente graças à ciência (cujas fronteiras com a �loso�a, lembremos, eram bastante tênues). Tales é uma �gura misteriosa, a respeito da qual circulavam muitos relatos, alguns provavelmente lendários. O certo é que nasceu em �ns do século 7 a.C.; sua vida adulta transcorreu na época em que Creso, o magnata, governava a Lídia. Pouco se sabe sobre sua vida, mas uma coisa é evidente: ele foi um atento estudioso das ciências naturais. Uma das provas é que, em 585 a.C., Tales previu corretamente um eclipse solar. A façanha foi possível graças aos conhecimentos astronômicos vindos do Oriente Médio: os babilônios sabiam que eclipses se sucedem em ciclos de dezenove anos, e essa informação pode ter chegado a Tales por meio de mercadores e viajantes. A sabedoria herdada dos babilônios transformou Tales em um homem rico. Ao menos, é o que relata Aristóteles, na Política: Tales era reprovado por viver na pobreza; segundo alguns, isso era prova de que a �loso�a é uma ocupação inútil. Um dia, contudo, Tales usou seus conhecimentos astronômicos para prever uma grande colheita de olivas; em pleno inverno, observando as estrelas, ele descobriu que a safra do ano seguinte seria profusa. Juntou então o pouco dinheiro que tinha e o investiu maciçamente em prensas de azeite; comprou-as por preço baixo, já que, no inverno, ninguém tinha interesse por elas. Quando veio a grande colheita, houve enorme e repentina demanda por prensas, e Tales negociou-as pelos valores que bem entendesse; assim, ganhou grande quantidade de dinheiro. E dessa forma demonstrou ao mundo que os �lósofos podem enriquecer, se desejarem, embora suas ambições sejam de natureza diferente. Além de astrônomo habilidoso e investidor arguto, Tales foi o primeiro pensador a examinar uma questão que seria importantíssima na �loso�a grega nos próximos séculos: a physis. No vocabulário da época, a palavra tinha vários signi�cados: “processo de crescimento”, “vigor criativo”, “fonte original” ou ainda “a matéria-prima da qual uma coisa é feita”. Tudo o que existe tem uma determinada physis. Em um tronco de árvore, a physis é a madeira e a seiva; em uma montanha, é a rocha, a terra, os minérios; no corpo humano, a carne, o sangue etc. Observando a multiplicidade de coisas que existem no mundo – como árvores, montanhas, pessoas... –, Tales perguntou-se: qual é a physis do universo? Em outras palavras: é possível considerar todas as coisas como uma realidade única, que se manifesta em diferentes formas? Essa questão foi tão essencial aos primeiros �lósofos que os pré- socráticos �caram conhecidos como physikoi, ou estudiosos da physis. À sua inovadora pergunta, Tales deu uma resposta que hoje pode parecer primária: o princípio de todas as coisas é a água. A proposta, entretanto, é mais complexa do que parece: a água, em estado líquido, é intermediária entre os estados gasoso e sólido. A physis de todas as coisas, portanto, seria uma espécie de plasma que, por meio de diversas transformações, assume as formas das diferentes e in�nitas coisas que no cercam. Essa ideia inaugura a noção de uma causa primordial que explique as variadas faces de tudo o que existe – como escreveu Georg Hegel nas Preleções para a História da Filoso�a: “A proposição de Tales, de que a água é o absoluto ou, como diziam os antigos, o princípio de tudo, é uma ideia �losó�ca; com ela, a Filoso�a começa, porque através dela chega-se à consciência de que o Um é a essência, o verdadeiro, o único que é em si e para si”. A obsessão de Tales pelo elemento líquido também in�uenciou suas ideias sobre o formato do mundo em que vivemos. Para Tales, a Terra era um disco achatado, �utuando em uma vasta massa aquosa. Essa proposta cosmológica, por mais primitiva que soe hoje em dia, signi�cou um avanço em sua época. Os gregos do tempo arcaico acreditavam que a Terra fosse uma espécie de ilha �xa, cercada por um gigantesco oceano. Tales, contudo, a�rmou que a Terra não estava simplesmente cercada por água, mas �utuava nela. Na teoria de Tales, a Terra libertou-se de suas amarras, deixando de ser algo imóvel – um passo na direção certa, portanto. Se Tales deixou obras por escrito, nenhuma delas sobreviveu, mas seus seguidores preservaram suas ideias na forma de citações. O discípulo imediato de Tales foi o conterrâneo Anaximandro, nascido em meados do século 6 a.C. Era um homem de ciência, como o professor: foi o primeiro grego a traçar um mapa geográ�co e introduziu na Jônia o ognômon, um tipo de relógio de sol, de origem babilônica. Além disso, escreveu o que provavelmente tenha sido o primeiro livro em prosa na literatura grega. Antes dele, havia apenas poesia, voltada para temas mitológicos e religiosos. Ou seja, no Ocidente, a prosa e o pensamento �losó�co nasceram abraçados. A obra de Anaximandro perdeu-se ainda na Antiguidade, e dela não sabemos sequer o nome; mas fragmentos sobrevivem em textos de �lósofos posteriores, como Aristóteles. À pergunta levantada por Tales, Anaximandro deu uma resposta mais elaborada: a água é apenas um dos elementos que formam o mundo e, portanto, não pode ser o princípio originário de todas as coisas; a physis do universo deve ser um elemento invisível, que nossos sentidos não podem apreender completamente. A essa misteriosa matéria-prima, Anaximandro denominou ápeiron: uma substância in�nita, sem limites, que existe desde sempre e continuará eternamente existindo. O inde�nível ápeiron seria a unidade original de todas as coisas; mas como os fenômenos individuais surgiriam dessa substância única? Para Anaximandro, isso ocorria por meio de um processo de equilíbrio e desequilíbrio entre forças opostas. O quente e o frio, o seco e o molhado, o líquido e o sólido – tudo isso existiria dentro do ápeiron, em iguais medidas; mas cada força ou elemento tentaria constantemente dominar as outras. Quando o elemento líquido se sobressai, surge a água; quando o elemento quente e seco revida, surge o fogo. Esse jogo seria equilibrado por uma espécie de lei impessoal que regula todo o universo. É o que se apreende de um dos poucos e enigmáticos fragmentos que sobreviveram da obra de Anaximandro: “Àquilo por meio do qual foram gerados, os seres retornam novamente, conferindo g reparações e satisfações às injustiças uns dos outros, conforme a ordenação do tempo”. A injustiça, no caso, é o desequilíbrio entre as forças internas do ápeiron, que voltam a equilibrar-se com o tempo: assim as coisas surgem e desaparecem; a água brota, evapora, volta a brotar; o fogo nasce da palha seca e é apagado pela chuva;a vida surge, a inteligência se desenvolve e se embota, tudo volta a ruir. Se uma das forças ou elementos fosse superior aos outros – a água, por exemplo –, todo o processo cessaria. Por isso, o princípio original tem de ser algo indeterminado. E, como o ápeiron é in�nito, esse processo de “injustiça e reparação” dá origem ao surgimento de mundos igualmente in�nitos; o nosso é apenas um deles. Vale notar que, nesse caso, “mundo” não quer dizer um planeta, mas um sistema cósmico. Na visão de Anaximandro, in�nitos universos emergem e voltam a mergulhar na extensão ilimitada e atemporal do ápeiron – uma imagem de violenta beleza, que deixou suas marcas na história do pensamento. A �loso�a de Anaximandro impressionou �lósofos modernos, como Friedrich Nietzsche, que assim explicou as teorias do milesiano, na obra A �loso�a na época trágica dos gregos: Tudo o que alguma vez veio a ser também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, quer na água, quer no quente e no frio: por toda parte, onde podem ser percebidas propriedades, podemos profetizar o sucumbir dessas propriedades, de acordo com uma monstruosa prova experimental. Nunca, portanto, um ser que possui propriedades determinadas, e consiste nelas, pode ser origem e princípio das coisas; o que é verdadeiramente, conclui Anaximandro, não pode possuir propriedades determinadas, senão teria nascido, como todas as outras coisas, e teria de ir ao fundo. Anaximandro também discordou de Tales quanto ao formato da Terra: acreditava que ela fosse uma espécie de cilindro, semelhante ao fuste de uma coluna. Os humanos viveriam na superfície superior do cilindro; haveria outra região habitada – e por nós totalmente desconhecida – na superfície antípoda. De novo, a ideia pode parecer primitiva; e, de novo, há nela uma secreta grandeza – não na teoria em si, mas na forma como foi elaborada. Uma das características inovadoras dos �lósofos pré-socráticos era a disposição a corrigir e reelaborar as ideias de seus predecessores. Em vez de �xar-se em uma tradição imutável, os estudiosos da physis reinterpretavam uns aos outros – por isso, as ideias que deixaram são tão variadas e surpreendentes quanto o mundo que os cercava. O terceiro representante da escola de Mileto foi Anaxímenes, que viveu na segunda metade do século 6 a.C. Nesse período, o Império Persa, com centro no atual Irã, expandiu-se para a Ásia Menor. A Lídia foi invadida pelos exércitos do imperador Ciro, o Grande; Mileto e outras cidades jônias perderam a independência, passando a integrar uma província do império. Assim como a cidade decaía, o esplendor de seus �lósofos diminuiu: a �loso�a de Anaxímenes foi menos grandiosa que a de Anaximandro e, de certa forma, repetiu a de Tales, com algumas alterações. Para Anaxímenes, o princípio de todas as coisas, em vez da água, era o ar. Os diferentes seres surgem ou deixam de existir segundo um processo interminável de condensação e rarefação. O espírito humano é feito de ar vivo e pensante; o fogo seria uma espécie de ar extremamente rarefeito; condensando-se, o mesmo elemento torna-se água; solidi�cando-se, vira terra. O mundo inteiro seria como uma criatura que respira, inalando e exalando in�nitamente um sopro vital, chamado por Anaxímenes de pneuma. Para o �lósofo, a Terra era semelhante ao tampo circular de uma mesa, �utuando no espaço. Em 499 a.C., Aristágoras, governante de Mileto, liderou uma revolta das cidades jônias contra a Pérsia; os exércitos do imperador Dario, �lho de Ciro, sitiaram a cidade e derrubaram suas muralhas. Segundo Heródoto, todos os homens de Mileto foram mortos; as mulheres e crianças foram escravizadas. E assim o “orgulho da Jônia” pereceu. Mas as ideias de Tales, Anaximandro e Anaxímenes continuaram a ser ensinadas em outras cidades gregas – até chegarem, por um processo gradual, a Atenas. PITAGÓRICOS E PITAGÓRICAS Antes de tomar o rumo de Atenas, contudo, devemos dar uma olhada no sul da Itália. Lá, os gregos também haviam fundado colônias, a partir do século 8 a.C. As mais ricas e poderosas eram Crotona, na atual Calábria, e Síbaris, às margens do Golfo de Taranto; exploradores helênicos também haviam criado povoações na Sicília, como Agrigento e Siracusa. Por conta da fama e prosperidade dessas colônias, a parte meridional da bota italiana mais as ilhas vizinhas �caram conhecidas na Antiguidade como Magna Grécia. Além de enriquecerem por meio do comércio, as cidades gregas na Itália tinham a vantagem de estar bem longe do Império Persa – enquanto as ruínas de Mileto fumegavam, a Magna Grécia chegava ao apogeu. Ali, o solo também se tornou fértil à re�exão �losó�ca, mas havia uma diferença importante em relação à Jônia: os pensadores que �oresceram no sul da Itália tinham um acento místico bem mais pronunciado que seus colegas da Ásia Menor. O fundador da principal escola �losó�ca no sul italiano foi Pitágoras – uma das �guras mais misteriosas e estranhas na história do pensamento. Pitágoras não era nativo da Magna Grécia, mas de Samos, uma ilha da Jônia. Alguns historiadores antigos a�rmam que ele era �lho de um rico mercador; outros, que seu pai era Apolo, deus das artes e da música. Essa confusa neblina de fato e lenda envolve toda a vida do �lósofo. Pouco se conhece com certeza a seu respeito, mas sabemos que, entre 535 e 515 a.C., abandonou a ilha natal, por motivos políticos. E aqui vamos abrir um parêntese para explicar como andava a política das cidades gregas na época. Originalmente, os povos helênicos eram governados por reis hereditários, conhecidos como basileus. Mas, como já vimos, a in�uência dos mercadores erodiu gradualmente o domínio dos aristocratas; nesse processo, muitas cidades passaram a ser governadas pelos novos-ricos, em um sistema conhecido como oligarquia (em grego antigo, “governo dos gordos”). Em alguns casos, contudo, o poder voltava a se concentrar nas mãos de um único homem – que ganhava o título de tirano. A palavra tinha, então, um sentido diferente do que lhe atribuímos hoje: tiranos eram aqueles que tomavam o poder à força – diferentemente dos basileus, que recebiam a coroa no espólio de família. Ambos os tipos de governantes podiam ser igualmente tirânicos, no sentido atual da palavra. Em Atenas, no século 6 a.C., começou a surgir um novo sistema, baseado na participação dos cidadãos em assembleias livres (a democracia ateniense, contudo, tinha lá seus momentos de tirania, como veremos adiante). Pois bem: a ilha de Samos foi uma oligarquia até 535 a.C., quando um certo Polícrates tomou o poder, por meio de um golpe de Estado, tornando-se um dos g mais famosos tiranos da Antiguidade. Era uma espécie de déspota esclarecido: matava opositores sem pruridos e saqueava as cidades vizinhas, mas era um re�nado amante das artes, da poesia e do urbanismo. Construiu um dos maiores aquedutos da Grécia e empregou o grande poeta lírico Anacreonte como cantor o�cial de sua corte. Por algum motivo, contudo, Polícrates e Pitágoras eram inimigos; e por isso o �lósofo embarcou rumo ao sul da Itália em meados do século 6 a.C. Indiretamente, portanto, o ilustrado tirano de Samos foi responsável pela migração do pensamento �losó�co da Jônia para a Magna Grécia. Em Crotona, Pitágoras fundou uma espécie de confraria místico-- �losó�ca. Grande parte de suas doutrinas era de cunho religioso: Pitágoras acreditava, por exemplo, na metempsicose ou transmigração das almas. Todas as coisas que vivem hoje conteriam o espírito de algo que existiu antes; o Universo seria formado por ciclos sucessivos, em que as almas antigas se transferem para novas criaturas, in�nitamente. A maioria dos humanos, ao nascer, esquece as andanças anteriores de sua alma, mas Pitágoras a�rmava ter nascido com um fabuloso talento mnemônico: era capaz de recordar, em sucessão, seis de suas vidas passadas. Além disso, o pensador dizia ter outros poderes semidivinos; uma das frases que os antigos lhe atribuíam era esta, de sucinta, serena e estranhamente convincente megalomania: “Existem homens, existem deuses, e existemseres como Pitágoras”. Segundo relatos antigos, ele pregava tanto para humanos quanto para animais – como faria, séculos mais tarde, São Francisco de Assis. A transmigração das almas é uma doutrina de longa tradição na história do pensamento e ainda hoje é aceita em diversas religiões. A seita pitagórica também tinha, contudo, crenças mais peculiares e aparentemente arbitrárias. Entre os mandamentos de Pitágoras, havia curiosos tabus: seus seguidores abstinham-se de fabricar pão; não deviam jamais tocar em um galo branco; era-lhes vedado caminhar em calçadas; sob hipótese alguma deveriam olhar seus próprios rostos no espelho à luz de uma vela; e era-lhes totalmente proibido comer feijões – não se sabe ao certo a origem dessa proibição alimentar, mas as evidências sugerem que os feijões eram vistos como criaturas sagradas e invioláveis: segundo Aristóteles, Pitágoras via no formato dos grãos g g g um símbolo do universo. Apesar dessas regras herméticas – ou, precisamente, por causa delas –, a seita pitagórica ganhou muitos adeptos: onde existe mistério, o ser humano geralmente vê indícios de verdades ocultas e segue o rastro. Em breve, havia pitagóricos em várias cidades da Magna Grécia, como Metaponto, Síbaris, Régio, Tarento e Siracusa. O poder da religião nascente assustou os não iniciados; em Crotona, muitos temiam que Pitágoras usasse sua in�uência para tornar-se tirano. A doutrina da transmigração das almas era ridicularizada por vários contemporâneos; Xenófanes de Cólofon, outro �lósofo da época, zombou das ideias pitagóricas criando esta anedota: Dizem que Pitágoras andava pela rua, quando ouviu latidos de desespero: era um cachorro, cruelmente espancado pelo dono. Cheio de misericórdia, Pitágoras dirigiu-se ao homem que batia no cachorro e lhe disse: – Pare agora mesmo; pois no corpo desse animal habita a alma de um velho amigo meu. Reconheci-o pelo tom de voz. Por volta de 497 a.C., uma multidão de incréus tocou fogo na casa do �lósofo; segundo alguns, ele morreu no incêndio, junto a muitos seguidores. Outros relatos a�rmam que escapou correndo pelos campos vizinhos, mas deteve-se diante de uma plantação de feijões, incapaz de pisotear os cosmológicos vegetais. A multidão acabou por alcançá-lo e o matou. Há ainda quem diga que o místico conseguiu fugir para a cidade de Metaponto; em protesto contra a perseguição de sua seita, matou-se por inanição. Não deixemos o cunho religioso das ideias pitagóricas ofuscar seu lado especi�camente �losó�co: o homem das seis vidas era certamente um místico, mas seu misticismo tinha um temperamento intelectual. Pitágoras era um estudioso da matemática, e sua resposta para a questão da physis foi diferente de todas as anteriores: para ele, o princípio de todas as coisas eram os números. Pitágoras chegou a essa conclusão meditando sobre a música – lembremos que ele dizia ser �lho de Apolo, o divino tocador de harpa. Para entender a �loso�a pitagórica, façamos um raciocínio relativamente simples: no universo dos sons, existem meros ruídos, cicios e estrondos, mas também existem melodias que encantam nossa mente. Qual a diferença entre o barulho que incomoda ou entedia e a música que embala e enleva? É a estrutura numérica, responde Pitágoras. A harmonia dos números é o que dá forma à confusão dos sons, criando beleza e sentido. E assim acontece com todo o Universo. Para Pitágoras, os números não eram meros símbolos, exprimindo o valor das grandezas, mas entidades reais, cuja combinação formava a alma das coisas. Todas as criaturas existentes seriam imitações, ou mímesis, das estruturas numéricas que alicerçam a realidade. Como Anaximandro, Pitágoras acreditava que o Universo fosse um ápeiron ilimitado, porém os números criavam formas a partir dessa massa sem fronteiras. A matemática impõe delimitações para o ilimitado, assim como a harmonia das notas extrai música da confusão dos sons. Da unidade primitiva, indiferenciada, surgia a pluralidade, num ciclo interminável. Outra contribuição importante de Pitágoras foi a de�nição do ideal contemplativo. O �lósofo comparava o universo humano com uma apresentação das Olimpíadas (essas competições atléticas, importantíssimas na Grécia antiga, ocorriam na cidade de Olímpia desde 776 a.C.). Nos jogos, havia três tipos de pessoas: os comerciantes, que andavam pelas arquibancadas vendendo comida; os atletas, que competiam na arena; e os espectadores, que estavam ali apenas para apreciar a beleza do jogo. Segundo Pitágoras, a terceira categoria era superior às outras duas, pois a mais admirável ocupação humana é contemplar o mundo de forma ao mesmo tempo passional e desinteressada, sem tentar vencer uma competição ou adquirir ganhos materiais. Ou seja, o estágio superior da existência humana é o conhecimento pelo conhecimento, a beleza pela beleza, a arte pela arte. Somente assim a alma pode perceber a harmonia subjacente às coisas e integrar-se a ela. O ideal contemplativo atravessa a história do pensamento e da cultura ocidental: às vezes é defendido, às vezes é atacado. Nos séculos 19 e 20, foi contraposto por escolas como o utilitarismo e o instrumentalismo, segundo as quais a re�exão humana deve ter sempre um sentido prático, de impacto sobre a realidade. No �nal das contas, contudo, o argumento de Pitágoras é mais convincente. O ideal contemplativo foi o que levou à criação da própria matemática: originalmente, a ciência dos números era considerada inútil, um mero exercício intelectual; mas toda a história humana da Antiguidade até g hoje prova o contrário. O fato é que não temos como saber quais conhecimentos serão úteis no futuro: o inventor da primeira ferramenta talvez estivesse apenas lascando pedras num �m de tarde, contemplativamente, quando fez sua descoberta. É impossível ao ser humano direcionar de forma absoluta a história de seu próprio pensamento ao longo dos séculos; dessa forma, o tempo pode acabar provando que o sujeito contemplativo foi mais útil à espécie do que seu colega pragmático. Por �m, vale citar um aspecto pouco conhecido da escola pitagórica: a signi�cativa presença de �lósofas. As mulheres tiveram grande importância no desenvolvimento e na transmissão das ideias de Pitágoras. De acordo com alguns relatos, o pensador teria inclusive baseado parte de suas doutrinas nas ideias de uma enigmática pensadora. É o que sugere este breve e misterioso trecho da Vida dos grandes �lósofos, de Diógenes Laércio: “Pitágoras derivou a maior parte de suas doutrinas éticas a partir dos ensinamentos de Temistocleia, sacerdotisa de Delfos”. Em Delfos, havia um famoso templo de Apolo – às suas sacerdotisas, atribuía-se o dom da clarividência (como veremos mais adiante); e isso, infelizmente, é tudo o que sabemos a respeito da possível mestra de Pitágoras. Sobre as discípulas do �lósofo, contudo, há registros um pouco mais detalhados – entre elas, estava uma certa Teano, �lha de um rico aristocrata de Crotona. Estudou matemática com Pitágoras e, de acordo com alguns relatos, casou-se com o professor. Escreveu várias obras sobre ética e metafísica; entre seus fragmentos, encontra-se este: “Mais vale ser um cavalo louco em disparada do que uma mulher que não re�ete”. O conselho foi acatado pela geração seguinte: Agnotis, Damo e Mia, �lhas de Teano, também se tornaram �lósofas. Como Pitágoras nada deixou por escrito, boa parte do que sabemos a respeito de sua doutrina nos foi legado pelas mulheres de sua família. A ideia de uma harmonia oculta, que se re�ete nas diferentes formas das criaturas, in�uenciou Platão e muitos pensadores posteriores; se não fosse pelas mulheres pitagóricas, portanto, é possível que o conteúdo deste livro fosse bem diferente. HERÁCLITO – 535 A.C. A 475 A.C. A brutal devastação de Mileto não decretou o �m da �loso�a na Jônia. Enquanto Pitágoras pregava suas doutrinas no sul da Itália, as questões levantadas pelos �lósofos milesianos foram revividas em Éfeso, outra cidade grega da Ásia Menor que, no início do século 5 a.C., também caiu sob o domínio do Império Persa;no entanto, mesmo sob jugo estrangeiro, continuou a prosperar. A cidade se manteve neutra durante a Rebelião da Jônia, em 499 a.C.; por isso, foi poupada da destruição. E foi em solo efesiano que surgiu o mais conhecido dos �lósofos pré-socráticos: Heráclito, cujas ideias são ao mesmo tempo uma síntese e uma refutação de todos os que vieram antes. A família de Heráclito era da alta nobreza: seus ancestrais haviam sido os fundadores de Éfeso e, por várias gerações, detiveram o poder de basileus. Contudo, nos séculos 6 a.C. e 5 a.C., a cidade era governada pelos “gordos” – ou seja, os comerciantes ricos. Aristocrata de berço, Heráclito reprovava os caminhos tomados pela pátria. Jamais quis envolver-se em política e, a julgar pelos fragmentos que sobreviveram de sua obra, tinha uma opinião pouco lisonjeira sobre a espécie humana. Na história do pensamento e da literatura, houve muitos misantropos célebres; nas Viagens de Guliver, escritas no século 17, Jonathan Swift argumentou que os cavalos são mais admiráveis que os seres humanos; cerca de cem anos depois, lorde Byron cunhou este verso famoso: “Todos os homens são maus, e meu pior remorso é não ser um cachorro, para poder mordê-los”; o adolescente carrancudo de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, é um exemplo mais recente dessa tendência ao azedume sapiencial. Todos esses misantropos são, de certa forma, herdeiros de Heráclito, o primeiro grande rabugento na história cultural do Ocidente. “Os homens não sabem o que fazem quando estão despertos, da mesma forma que esquecem o que fazem durante o sono”, escreveu a respeito dos seres humanos em geral. Apesar de seu mau humor, Heráclito era admirado pelos concidadãos; um comitê certa vez foi procurá-lo, pedindo que os ajudasse a elaborar novas leis para a cidade. Encontraram-no brincando com um grupo de crianças, junto ao pórtico do templo de Ártemis. Heráclito recusou-se a interromper a brincadeira: “Pre�ro jogar com crianças do que ajudar vocês, bando de perversos, a governar a República”. No �m da vida, resolveu evitar completamente o convívio humano e foi viver sozinho nas montanhas, alimentando-se apenas de ervas e água corrente. Seu temperamento bilioso não poupava os colegas de atividade �losó�ca. Sobre Pitágoras, vociferou: “Ele era um estudioso de muitos assuntos, mas seu conhecimento não passava de artifício e engano”. Nem mesmo os grandes poetas gregos escapavam de seu açoite: “Homero deveria ser tirado de nosso currículo e chicoteado. Hesíodo se faz de inteligente, mas não sabe diferenciar o dia da noite”. Em termos �losó�cos, Heráclito declarava-se um autodidata: dizia ter aprendido consigo mesmo tudo o que sabia. Esse pensador antissocial escreveu um único livro, em prosa, chamado Sobre a natureza, do qual restam alguns pedaços. A obra foi composta em um estilo enigmático, para que apenas criaturas de suprema inteligência pudessem compreendê-lo – por isso, Heráclito �cou conhecido entre os gregos como skoteinós, o Obscuro. Devido a sua linguagem ao mesmo tempo densa e sucinta, as ideias de Heráclito até hoje são motivo de debates: a natureza precisa de seu pensamento varia de acordo com o intérprete. Tales, Anaximandro e Anaxímenes tentaram de�nir a substância original de todas as coisas; Pitágoras a�rmou que tudo o que existe é baseado em estruturas numéricas; para Heráclito, no entanto, o que realmente interessava não era a substância do Universo, mas o processo pelo qual as coisas existem e se transformam. Em vez de decifrar qual elemento presidia a physis, o eremita de Éfeso pretendia captar o princípio intelectual que regia o mundo – princípio que ele chamava de logos, a razão universal que comanda toda a existência. Segundo Heráclito, essa razão se expressa por meio da eterna mudança. O Universo se transforma a todo momento, de forma incessante; nossos sentidos, por serem limitados, percebem as coisas como �xas em si mesmas, mas, na verdade, tudo está em constante mutação. Assim se explicam os dois aforismos mais célebres de Heráclito: “todas as coisas �uem” (Pantarhei) e “ninguém pode se banhar duas vezes em um mesmo rio”. Porque as águas correm incessantemente, o rio em que nos banhamos pela manhã não pode ser o mesmo em que mergulhamos g à noite; além disso, nós também nos transformamos a todo momento; não somos coisa alguma, mas nos tornamos in�nitamente. Por isso, em Heráclito, a verdade não está no Ser, mas no Devir. O Ser, na �loso�a grega, era tudo o que há de imutável nas coisas que existem; já o Devir é o impermanente, o que não é estável. Para Heráclito, essa ausência de estabilidade era a essência do cosmos. O caminho da sabedoria, para o obscuro �lósofo, era compreender e aceitar o Devir. O logos, além de ser o princípio universal, também se manifesta em nossa mente: é a razão humana, que, corretamente utilizada, pode captar o eterno �uxo da mudança. E nisso, para Heráclito, está a imortalidade da alma: ao perceber-se como parte de um processo in�nito, o sábio compreende que sua morte é tão ilusória quanto sua existência. Heráclito concordava com Anaximandro em um ponto: para ele, tudo o que existe é gerado pelo con�ito entre forças opostas. Mas Anaximandro chamava esse con�ito de injustiça e desequilíbrio; já Heráclito acreditava que equilíbrio e con�ito eram a mesma coisa. Não existe existência possível fora da eterna batalha que forma o universo. O conjunto de todas as coisas existentes é como uma chama em perpétua combustão; se deixar de queimar, deixará de ser chama. Um dos fragmentos do Obscuro diz: “Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo, que se acende e se apaga conforme sua medida”. Esse trecho levou alguns intérpretes a a�rmarem que Heráclito via o fogo como elemento primordial de toda a matéria. Outros dizem que ele acreditava em um ciclo universal de con�agração e recriação: de tempos em tempos, o Universo seria destruído por um incêndio cósmico e voltaria a renascer das cinzas. Pode ser, contudo, que o fogo de Heráclito seja exclusivamente uma metáfora para o Devir: a labareda bruxuleia e se contorce o tempo inteiro, mas sem deixar de ser labareda. Só pode existir transformando-se constantemente. Esse sentido também pode ser pressentido em outro fragmento obscuramente belo: “Deus é dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, satisfação e fome; mas ele assume várias formas, como o fogo”. Deus, nesse caso, não é uma divindade pessoal, mas o logos universal, em cuja fogueira todos nós somos chispas. g Conta Diógenes Laércio que, certo dia, após longo exílio nas montanhas, Heráclito retornou a Éfeso, com aparência alquebrada. Estava sofrendo de hidropsia. Os médicos o desenganaram, mas, a essa altura, a vida e a morte lhe eram indiferentes, de modo que o Obscuro simplesmente deitou-se no pavimento de uma praça pública e ali �cou até perder os sentidos. Antes que os concidadãos pudessem levá-lo à sepultura, cachorros sem dono devoraram seu cadáver. A ESCOLA DE ELEIA Heráclito contrariou, com verve, todos os seus antecessores. As teorias do Obscuro seriam igualmente refutadas, quase ao mesmo tempo que eram proferidas. O contraponto de Heráclito foi seu contemporâneo, Parmênides (530-460 a.C.); havia entre ambos uma diferença de apenas cinco anos. Nativo da Magna Grécia, Parmênides produziu um livro também chamado Sobre a natureza; suas ideias poetizadas contrariavam o que Heráclito dissera em prosa. Ambos, no entanto, tinham algo em comum além da idade: seus escritos e seus pensamentos têm um sabor de enigma, que desperta o interesse mesmo em quem discorda do conteúdo. Parmênides nasceu em Eleia, hoje Vaia, no sul da Itália. Na juventude, estudou �loso�a com dois mestres: um deles foi Amínias, seguidor de Pitágoras; o outro foi um certo Xenófanes de Cólofon, oriundo da Jônia, mas que havia fugido da terra natal após a invasão dos persas; como Pitágoras, divulgou na Magna Grécia a �loso�a jônica. Xenófanes seguia à risca a ideia – inauguradapor Tales – de que toda a realidade é regida por um princípio fundamental e único. Sobre isso, proclamou: “Um deus é o supremo entre os deuses e os homens; nem em sua forma, nem em seu pensamento é igual aos mortais”. Como no aforismo de Heráclito, “deus” simboliza aqui um princípio ordenador: Xenófanes quer dizer que tudo o que existe tem uma única origem e explicação. Essa doutrina, elaborada gradualmente desde as origens do pensamento pré-socrático, é conhecida como monismo. Pois bem: Parmênides de Eleia superou o mestre, levando o pensamento monista ao extremo. Se Heráclito dizia que toda a estabilidade é ilusão, Parmênides a�rmava o contrário: ilusória é a mudança. Nossos sentidos são imperfeitos: vemos um broto de árvore saindo da terra e um tronco seco, rachado pelo temporal; vemos a criança que nasce e o cadáver que se putrefaz; e assim temos a impressão de que o Universo é um �uxo incessante de fenômenos. Mas isso é apenas uma aparência, criada por nossas próprias limitações. Se pudéssemos enxergar, ouvir e sentir o universo inteiro de forma imediata e instantânea, perceberíamos que o Devir é uma miragem. Por trás do véu das mudanças, existe o Ser, que é único, imutável e indivisível. Parmênides também contraria a divisão pitagórica entre corpo e alma: ambos seriam uma coisa só. Igualmente, refutou a ideia de que o Universo seja regido por um con�ito entre forças opostas: segundo Parmênides, nada se opõe a coisa alguma, pois tudo existe em um equilíbrio perfeito, que não pode ser perturbado. Tão radical era sua noção de unidade, que ele negou até mesmo a possibilidade do simples movimento. As coisas apenas parecem mover-se ao nosso redor, porque as observamos em momentos sucessivos: se considerarmos o presente absoluto como única realidade, chegaremos à conclusão de que uma coisa só pode estar em um determinado lugar, em determinado instante. O Universo não foi criado e não será destruído: sempre existiu, idêntico a si mesmo. A conclusão pode parecer absurda, já que nega o que nossos sentidos a�rmam; mas o raciocínio de Parmênides é rigoroso. Em primeiro lugar, ele estabelece dois conceitos: o que existe – o Ser – e o que não existe – o Não Ser. Uma coisa não pode ter saído da outra; o Nada não pode ter gerado tudo. Logo, o que existe sempre existiu. O Ser é imóvel e eterno. O Não Ser é a mudança. É o que Parmênides diz nestes versos: Um único caminho nos resta, e é o caminho do Ser. Nesse caminho, encontramos o que não foi criado nem pode ser destruído. Pois o Ser é completo, imóvel e sem �m. Ele não existiu antes, nem existirá depois, mas existe agora, Imediatamente: uma Unidade contínua. Pois qual origem poderia ter o que existe? De que fonte e de que maneira poderia ter se desenvolvido? Não venhas me dizer que o que é saiu do que não é Pois é impossível imaginar-se algo que não exista. E, se o Ser emergiu do Nada, o que o fez vir à tona? Logo, o Ser deve existir plenamente ou não existir de todo. Deves perguntar: tal coisa é ou não é? Se algo existe agora, como pode vir a existir no futuro? Ou como pode ter vindo a existir no passado? Se algo passou a existir, é porque não existia antes; se não existia antes, não pode ter vindo a existir. Por isso, nada muda e nada se extingue. As ideias de Parmênides foram defendidas por seu discípulo, Zenão, quarenta anos mais jovem e também natural de Eleia (por isso, a doutrina do monismo absoluto é conhecida como eleatismo). Parmênides despertou muitas refutações entre os �lósofos da época; para vindicar o mestre, Zenão desenvolveu um método de grande importância na �loso�a posterior: a chamada “dialética erística”. Trata- se de um tipo de argumentação combativa, que parte das premissas do adversário e dela vai extraindo conclusões insustentáveis; a prática também é chamada de “demonstração pelo absurdo”. Ou seja, Zenão analisava os argumentos opostos ao monismo levando-os às últimas consequências, de forma que pareciam negar a si mesmos. Para deixar tudo isso mais claro, vamos destrinchar uma das famosas demonstrações de Zenão: o paradoxo de Aquiles e da tartaruga – vamos por itens, já que o raciocínio de Zenão leva ao absurdo por passos quase matemáticos. 1. Se você acredita que o movimento seja possível, então deve admitir que o espaço é in�nitamente divisível. Do contrário, não se poderia passar de uma fração do espaço a outra. 2. Você também deve admitir que o tempo é in�nitamente divisível. Do contrário, tudo �caria paralisado num mesmo instante. 3. Digamos que o herói Aquiles, famoso por sua rapidez e agilidade, dispute uma corrida com uma tartaruga. 4. A tartaruga parte primeiro, alguns metros à frente de Aquiles. 5. Para alcançar a tartaruga, Aquiles terá de percorrer in�nitas porções de espaço, em in�nitas subdivisões de tempo. 6. Se o tempo é divisível, Aquiles sempre estará em determinada porção do espaço, em determinado instante. 7. Logo, considerando o momento absolutamente presente, Aquiles está sempre parado. 8. O herói jamais alcança a tartaruga. Os paradoxos de Zenão parecem criar uma incongruência entre o raciocínio lógico e todas as informações de nossos sentidos – por isso mesmo, fascinou escritores da literatura fantástica, como Jorge Luis Borges, que dedicou ao assunto um célebre ensaio na obra Outras inquisições. Além disso, o método dialético – que toma as ideias de um interlocutor para mostrar suas fraturas internas – in�uenciaria o homem cujo nome deu origem ao termo “pré-socráticos”. Mas, antes de falar sobre Sócrates, precisamos passar pelos so�stas. “O HOMEM É A MEDIDA DE TODAS AS COISAS” No início do século 5 a.C., a escola de Eleia levou ao extremo a busca por uma unidade oculta atrás das aparências do mundo. Todo excesso gera uma compensação. Depois de Parmênides e Zenão, surgiram �lósofos como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito, que negaram a existência de uma realidade única e descreveram o Universo como um baile de partículas in�nitas, em perpétuo movimento – por isso, foram chamados de atomistas. Já os �lósofos conhecidos como soft istas foram ainda mais longe e mudaram o próprio foco da �loso�a: em vez de explicar o cosmos captando a physis, preocuparam-se exclusivamente com as realidades práticas da vida humana – por exemplo, o uso da linguagem. Para entender quem eram e o que faziam os so�stas, é útil dar uma olhada no panorama político da Grécia naquela época. Como já vimos antes, Atenas vinha desenvolvendo, desde o século 6 a.C., um sistema político chamado “democracia”. Naturalmente, a palavra tinha então um signi�cado diferente do atual: as decisões públicas eram tomadas com base no voto, mas só podiam votar os homens adultos, proprietários de terras, que houvessem servido no exército, o que equivalia de 10% a 20% da população. Além disso, cidadãos endividados e insolventes perdiam o direito ao voto. Mulheres estavam excluídas, assim como os servos – Atenas, por sinal, era uma das cidades gregas que mais utilizavam trabalho escravo. O sistema ateniense era direto, em vez de representativo: mês a mês, todos os cidadãos que se encaixassem nos requisitos reuniam-se em uma Assembleia, ou Ekklesia, onde os assuntos de Estado eram discutidos e submetidos a votação. Qualquer um podia defender seu ponto de vista; a habilidade em realizar discursos engenhosos e convincentes tornou-se a mais apreciada virtude entre todas as classes sociais. Artesãos debatiam seu ofício recorrendo a truques retóricos e exemplos mitológicos; peixeiros vindicavam o preço de suas mercadorias com argumentos re�nados e nem sempre honestos... A agilidade intelectual e a perícia em seduzir por meio das velozes e labirínticas palavras eram as grandes paixões de Atenas. A democracia ateniense era admirada por muitas cidades gregas, enquanto outras – como a taciturna e tradicionalista Esparta – consideravam os atenienses tagarelas engambeladores. Apesar dessas resistências, o novo sistema político foi ganhando força e, com ele, a importância da retórica também se agigantou. Saber elaborar e expressarideias convincentes tornou-se uma necessidade social em boa parte do mundo grego. E é aí que entram os so�stas. No século 5 a.C., o nome não se aplicava exatamente a uma escola �losó�ca, mas a uma pro�ssão. Os so�stas eram intelectuais itinerantes que perambulavam pela Grécia, ensinando diversos assuntos – principalmente, a arte de raciocinar com clareza e falar de forma convincente. Adotaram a dialética, criada por Zenão, e adaptaram-na a suas necessidades. Em seus paradoxos, o seguidor de Parmênides argumentava contra um interlocutor imaginário; os so�stas levaram esse conceito adiante e transformaram a g �loso�a em uma troca de ideias face a face. As preleções sofísticas muitas vezes se transformavam em duelos de veemência e esperteza verbal, o que fazia grande sucesso entre os jovens. O pioneiro dessa nova tendência �losó�ca foi Protágoras, nascido por volta de 490 a.C. em Abdera, no norte da Grécia. Passou a vida perambulando de cidade em cidade e dando aulas sobre a arte de falar bem; seu ensino não era desinteressado: quem quisesse ouvi-lo e aprender com ele tinha de pagar. Essa veia mercantil trouxe má reputação aos so�stas – a�nal de contas, nada estaria mais longe do ideal contemplativo descrito por Pitágoras do que um intelectual que pensa e fala por dinheiro, sem se preocupar com a realidade �nal das coisas. Por isso, a palavra so�sta até hoje tem uma conotação negativa. Escreve Bertrand Russel em Uma história da �loso�a ocidental: Eles não tinham a intenção de ensinar coisas ligadas à religião ou à virtude; ensinavam a arte de argumentar e todos os conhecimentos a ela relacionados. De forma geral, agiam como os advogados de hoje em dia: estavam prontos a argumentar a favor ou contra qualquer opinião e não estavam interessados em apresentar conclusões próprias. Aqueles que viam a �loso�a como um modo de vida, intimamente ligado à religião, �caram chocados; por isso, os so�stas ganharam fama de frívolos e imorais. Apesar da má fama, os intelectuais nômades do século 5 a.C. abriram as portas de uma nova era na �loso�a. Em 432 a.C., Protágoras esteve em Atenas, presidindo uma reunião de so�stas vindos de todas as partes do mundo helênico: a cidade inteira efervesceu com o inquietante rumor de seus argumentos e contra-argumentos. A busca pela unidade cósmica foi colocada entre parênteses; a democracia grega estava mais interessada no mundo dos seres humanos e na melhor forma de viver entre eles (ou in�uenciá-los e governá-los). Essa tendência ao antropocentrismo está expressa na mais famosa frase de Protágoras: Anthropos metro panthon, “O homem é a medida de todas as coisas”. Outro luminar do so�smo foi Górgias (485-380 a.C.). Nascido na Sicília, ele trabalhou como professor de oratória e retórica em Atenas; lá escreveu um livro de título intrigante e conteúdo espantoso: Sobre a não existência. Na obra, Górgias defende o argumento de que nada realmente existe; se algo existisse, não poderia ser conhecido pela mente humana; e, se pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado. Para negar a existência, Górgias utiliza um poderoso truque sofístico: se o universo existe, então ele deve ser ou in�nito, ou limitado. Digamos que seja in�nito; então ele ocupa todo o espaço possível, e não há nada além dele. Assim, o universo existe em lugar nenhum, o que é impensável, pois todas as coisas que existem devem existir em algum lugar. Por outro lado, se o universo é limitado no espaço, então ele deve ter sido gerado em algum momento do tempo. Mas, se foi gerado, o que o gerou? “Nada vem do Nada”, disse Rei Lear, na peça de Shakespeare; o mesmo raciocínio se aplica aqui. Digamos que a existência universal tenha se iniciado em um instante X do passado; antes de X, o que haveria? Se nada havia, nada pode ter havido depois. Se havia algo, então a existência não começou em X e, portanto, não foi gerada no tempo; e assim voltamos à estaca zero. É possível que Górgias tenha composto esse tratado apenas para demonstrar suas habilidades retóricas; mesmo assim, ele é considerado um dos fundadores do niilismo – a doutrina de que não existe um fundamento absoluto para a verdade. Mas o niilismo, por mais rigoroso que se apresente, acaba gerando um efeito de horror ou tédio sobre o intelecto humano: após o so�smo extremo de Górgias, uma série de grandes �lósofos tentaria agarrar a verdade com mãos sôfregas, como quem tenta apanhar um punhado de água. A verdade que buscavam já não dizia respeito apenas ao cosmos, mas também à tal medida de todas as coisas – o ser humano. Essa demanda afoita, de ambições épicas e abrangência total, deu início à Idade de Ouro da �loso�a antiga. 1. Na mitologia grega, criaturas gigantescas com um olho só no meio da testa. 2. Ao longo deste livro, você encontrará muitas histórias extraídas da obra de Diógenes Laércio (século 3 d.C.), Vidas e doutrinas dos �lósofos ilustres. Muitas dessas histórias talvez sejam apenas lendas e anedotas. Mas estão incluídas aqui por um motivo, digamos, antropológico: há algo de essencialmente precioso em saber o que os antigos pensavam sobre Platão, Sócrates, Epicuro etc. Talvez Platão jamais tenha bebido água do mar; talvez os discípulos de Diógenes não tenham se esbofeteado em seu funeral; talvez Dom Pedro I não tenha gritado “Independência ou morte”. Mas a existência dessas histórias signi�ca, em si mesma, alguma coisa. CAPÍTULO 2 O sol vinha raiando sobre a península de Calcídica, no norte da Grécia. No lusco-fusco, os soldados atenienses, acampados nas vizinhanças de Potideia, começavam a acordar. O ano era 432 a.C., e a Grécia estava mergulhada em um con�ito armado entre Atenas e várias cidades- Estados. À margem do acampamento, havia uma �gura imóvel. Era um sujeito feio, de nariz bulboso e olhos esbugalhados de sapo. Tinha o olhar �xo em algum ponto do horizonte. Não fazia qualquer movimento; não produzia som algum. Por volta do meio-dia, os guerreiros do acampamento começaram a comentar entre si: “Olhem lá!” “É Sócrates.” “Está ali parado, pensando, desde o nascer do sol.” Sócrates era famoso por suas esquisitices: desde menino, dizia ouvir vozes; no inverno, caminhava descalço sobre a neve; no verão, tostava sob o sol escaldante do Mediterrâneo, como quem se diverte; e andava sempre a fazer perguntas inconvenientes a quem lhe cruzasse o caminho. Naquele dia, contudo, ele superou a si mesmo. As horas passavam, passavam, o sol �cava cada vez mais tórrido, e, mesmo assim, Sócrates não se mexia. Veio o crepúsculo. Os soldados atenienses começaram a desenrolar seus colchões, ao relento (era verão, e os guerreiros preferiam dormir sob a brisa fresca da noite). Olhando para o vulto do �lósofo, imerso nas sombras crescentes, alguns especularam antes de dormir: “Será que ele vai �car assim a noite inteira?” Ele �cou. Enquanto as horas mortas passavam, a �gura permaneceu imóvel sob as estrelas. Até que o sol voltou a nascer. Só então o pensador chegou a uma conclusão sobre o profundo problema �losó�co que o deixara paralisado (infelizmente, não sabemos sobre o que ele estivera pensando naquelas 24 horas). E saiu andando, com toda a naturalidade, após oferecer uma prece ao sol nascente. Histórias como essa – relatada na obra O banquete, de Platão – �zeram de Sócrates o mais famoso excêntrico na Atenas de sua época. Alguns atribuem a essa �gura de hábitos vagamente amalucados o título de Pai da Filoso�a. Essa opinião está longe de ser um consenso: é certo que houve muitos �lósofos antes dele, como vimos no capítulo anterior, mas o simples fato de seus predecessores serem chamados de pré-socráticos é evidência su�ciente de que aquele sujeito feioso e esquisitão, dado a surtos de imobilidade meditativa, foi um dos principais divisores de águas na história do pensamento. Há quem diga que a revolução representada por Sócrates mudou a �loso�a para pior: alguns o apontam como precursor do absolutismo e dos regimes totalitários, principalmente devido às teorias políticas de seu discípulo Platão (como veremos no próximo capítulo).Outros, pelo contrário, veem nele uma espécie de messias da independência intelectual. E ainda há quem o descreva como uma espécie de relativista pós- moderno avant lalettre. O verdadeiro Sócrates, contudo, sempre foi e continuará sendo um enigma. Isso porque Sócrates pertence a um grupo seletíssimo: como Tales e Pitágoras (e Buda e Jesus Cristo), ele mudou a História sem ter deixado uma única obra por escrito. A maior parte das histórias que conhecemos sobre ele foi relatada por discípulos e admiradores. Platão, que deixou muitas obras sobre Sócrates, foi seu pupilo desde a adolescência; outro aluno afetuoso foi Xenofonte, que escreveu três livros sobre o professor. Até aí, tudo bem: como testemunhas diretas, ambos são (teoricamente) autoridades abalizadas sobre a biogra�a do mestre. Mas há um problema: não sabemos se, em suas obras, os dedicados discípulos estavam relatando histórias verídicas sobre Sócrates ou usando-o como uma alegoria para explicar suas próprias ideias �losó�cas. Para complicar ainda mais as coisas, os dois alunos pintam retratos diferentes do grande personagem. Xenofonte descreve Sócrates como um sujeito tão benevolente e inofensivo que chega a ser um pouco tedioso; é de se duvidar que alguém tão inócuo tenha de fato alterado os rumos da g humanidade. Já o Sócrates de Platão é inquisitivo, perturbador e de uma argúcia quase sobre-humana. E é sobre ele, principalmente, que falaremos nas próximas páginas. Mas tenhamos em mente uma coisa: o personagem que aparece em obras como O banquete e A República pode ser uma mistura de dados reais com vastas licenças poéticas (ou �losó�cas). Seja como for, o Sócrates real talvez seja menos importante que o mito de Sócrates, que moldou parte da civilização posterior. Como escreveu John Burnet na obra From Thales to Plato: “Se o Sócrates de Platão for um personagem �ctício, é ainda assim mais importante que muito homens de carne e osso”. O ESQUISITÃO Sócrates nasceu em 470 a.C. – dez anos após a grande batalha de Salamina, momento de�nitivo nas chamadas Guerras Pérsicas. Após conquistar a Ásia Menor, o Império Persa tentou abocanhar o território da moderna Grécia, em duas invasões sucessivas. Lideradas por Atenas, as cidades-Estados gregas se uniram para resistir ao invasor. O Davi helênico venceu o Golias iraniano – e a vitória abriu as portas para uma era de ouro. Por sua liderança contra os persas, Atenas tornou-se a mais prestigiosa, poderosa e rica das cidades gregas. Pouco a pouco, sua in�uência se transformou em domínio político: Atenas se tornou o centro de um império marítimo que se estendia ao norte da Grécia e partes do mar Egeu. Outras cidades sofriam com os pesados tributos impostos pela mandona democracia ateniense; mas, enquanto o resto da Grécia remoía rancores crescentes, a pátria de Sócrates vivia uma época de cultura borbulhante: artistas, pensadores e cientistas dos quatro cantos do mundo antigo acorriam para lá. Os so�stas faziam sucesso com suas agitadas preleções; o acalorado embate de ideias se espalhava da Assembleia às ruas, casas e banquetes; como disse Isócrates, um famoso orador da época, Atenas era uma cidade “que adorava falar muito”. Foi nesse clima de exaltadas palavras e ideias efervescentes que surgiu o adorado mestre de Platão e Xenofonte; mas a mesma cidade que o criou haveria de condená-lo e destruí-lo. Sócrates era �lho de um certo Sofroniskos, do demo Alopeke – “demos” eram espécies de clãs ou tribos, que formavam as subdivisões da população ateniense. O demo Alopeke era antigo e tradicional: a família de Sócrates acreditava ser descendente de Dédalo, um famoso personagem da mitologia. Sofroniskos não era um homem rico, mas tinha algumas posses – o que quali�cava seus �lhos como cidadãos. Já a mãe de Sócrates, Fenarete, era uma parteira – fato importante, pelo menos do ponto de vista metafórico, como veremos à frente. Por algum tempo, Sócrates dedicou-se à pro�ssão do pai, que era escultor. Desde jovem, contudo, demonstrou certas tendências que o afastavam do trabalho; por exemplo, começou a mergulhar em seus famosos transes de re�exão – o episódio em Potideia foi apenas um entre muitos. Os amigos estavam tão acostumados com esses surtos de paralisia meditativa que preferiam não interferir: simplesmente esperavam que Sócrates despertasse. Além disso, desde menino, ele a�rmava escutar uma voz misteriosa, que lhe cochichava conselhos ao pé do ouvido e que ninguém mais podia ouvir. Sócrates dizia que aquela voz era seu daimon – palavra que nada tem a ver com os demônios cristãos. Os daimones eram, na crença da época, espíritos ou gênios geralmente benévolos, que faziam uma espécie de intermediação entre as divindades e os mortais. O daimon pessoal de Sócrates o abordava nos momentos mais triviais; não ordenava que �zesse coisa alguma, mas o desencorajava a enveredar por certos caminhos e a tomar determinadas atitudes. Entre os conselhos mais importantes que Sócrates dizia ter recebido de seu estranho anjo da guarda, estava este: “Não ouse se meter em política”. Dura proibição para um ateniense. Mas o conselheiro espiritual insistia: “No mundo da política, nenhum homem honesto pode viver muito”. Sócrates, portanto, evitava os acalorados debates da Assembleia ateniense. Em vez de discursar em púlpitos, vagava pelas ruas da cidade, descabelado e maltrapilho – pois vivia na penúria e parecia se orgulhar disso. Além da feiura proverbial, Sócrates tinha um jeitão famosamente destrambelhado. Segundo o dramaturgo Aristófanes – o mais debochado escritor daquela época –, o pensador costumava andar com sacolejos desengonçados, “como se fosse um ganso dos pântanos”. Outros o comparavam aos sátiros – fantásticos habitantes das �orestas, conhecidos por seus hábitos indolentes e sua aparência grotesca. Embora fosse um tanto desinteressado no que diz respeito a ganhar g o pão diário, Sócrates estava longe de ser um moleirão. Durante seu período no exército, fez muito mais do que �car parado, pensando na vida. Além de Potideia, lutou nas batalhas de Délio (em 424 a.C.) e Anfípolis (em 422 a.C.). Seus camaradas o descreviam como um guerreiro valente e temível. Em O banquete, um dos convivas, Alcibíades, relata em entusiásticos detalhes as façanhas bélicas de Sócrates: “No dia do combate, em Potideia, foi ele quem salvou minha pele: eu estava ferido, no campo de batalha, mas ele não me abandonou: ajudou-me a resgatar tanto minha armadura quanto minha vida... E enquanto avançávamos, ele lançava olhares de esguelha aos inimigos, um olhar calmo mas �rme, deixando claro que quem ousasse nos atacar enfrentaria terrível resistência”. Se acaso faltava comida no acampamento, Sócrates suportava a fome com mais galhardia que qualquer outro. Não costumava beber, mas, quando bebia, derrotava todos os companheiros em termos de resistência etílica: ninguém jamais viu Sócrates embriagado. Parecia também invulnerável aos açoites climáticos: “Certa vez, quando estávamos no acampamento em Délio, veio um frio atroz – pois o inverno naquela região é terrível”, conta Alcibíades em O banquete. “A maioria dos soldados não ousava sair das barracas; os que se aventuravam lá fora andavam enrolados em mantos, com as pernas cobertas de couro e lã. Mas Sócrates caminhava serenamente debaixo das intempéries, enrolado apenas em uma capa �na, como é seu costume; e andava descalço sobre o gelo, parecendo mais confortável do que nós, que usávamos botas”. A personalidade de Sócrates, en�m, era uma combinação de estranhas manias e ainda mais estranhas virtudes; e talvez a sua qualidade mais incongruente fosse a modéstia. Num período cheio de personagens megalomaníacos e grandiloquentes, Sócrates cunhou a frase que até hoje é o bordão máximo da temperança intelectual: “Só sei que nada sei”. Lembremos que ele vivia no tempo dos so�stas: questionar o conhecimento humano era parte do cardápio �losó�co da época. Até os quarenta anos, Sócrates viveu tranquilo com a ideia de sua própria ignorância; mas então convenceu-se de que sua missão era provarque todos os outros seres humanos – começando por seus concidadãos atenienses – eram igualmente desprovidos de sabedoria. E, a julgar pelo relato de Platão, essa cruzada intelectual – que acabaria j g levando Sócrates à morte – começou por conta de uma intervenção divina. A SÁBIA IGNORÂNCIA Toda época encontra suas maneiras de lidar com os aspectos obscuros e insolúveis da vida. Hoje, o indivíduo confrontado com as trevas e enigmas do Universo tem a opção de ir ao psicólogo ou pedir uma rodada de cerveja. Na Grécia antiga, a alternativa etílica já estava presente, é claro; mas, em vez de divãs terapêuticos, os gregos recorriam aos oráculos. O mais famoso deles �cava no templo de Apolo, em Delfos. No interior do santuário, uma sacerdotisa – que respondia pelo título de Pitonisa – recebia os �éis no sétimo dia de cada mês. Por um preço razoável, a Pitonisa respondia as perguntas dos atribulados mortais. Acreditava-se que a sacerdotisa encarnasse o deus Apolo; como a mentalidade divina pode ser confusa aos ouvidos humanos, as respostas que dava eram geralmente cifradas e enigmáticas. Certa vez, a Pitonisa recebeu a visita de um certo Querefonte, amigo de infância de Sócrates. Querefonte certamente tinha lá seus assuntos pessoais a tratar com os deuses, mas, por brincadeira, resolveu perguntar: “Ó, Apolo, quem no mundo é mais sábio que o meu amigo Sócrates?”. A resposta da Pitonisa foi direta, mas ao mesmo tempo perturbadora: “Ninguém”. Ao ouvir a história, Sócrates mergulhou em um turbilhão mental. Logo ele, que dizia não saber nada, era apontado pelos deuses como o mais sábio dos mortais! Vejamos o que o próprio Sócrates nos conta, segundo o relato dado por Platão na obra Apologia – preste bem atenção, pois este é um dos parágrafos essenciais na história da �loso�a: Ora bolas, eu tinha certeza absoluta de que não era sábio; tudo o que eu sabia é que não sabia coisa alguma. O que o deus queria dizer, portanto, ao me designar como o mais sábio dos humanos? Os deuses nunca mentem. Por algum tempo, �quei embasbacado, sem saber o que pensar. Então, embarquei em minha busca. Fui conversar com certo cavalheiro, um político, considerado por todos (especialmente, por ele mesmo) como profundamente sábio. Após conversarmos por algum tempo, comecei a perceber que a reputação era imerecida; o sujeito, na verdade, não tinha sabedoria nenhuma. Tentei alertá-lo sobre esse fato, mas ele �cou furioso. Então, fui embora; mas levei comigo essa re�exão: por mais ignorante que eu seja, ao menos sou mais sábio do que esse homem. O mais provável é que nenhum de nós saiba coisa alguma; mas ele pensa saber, enquanto eu estou consciente de que não sei nada. Ou seja: Sócrates chegou à conclusão de que a verdadeira sabedoria começa com a consciência de nossa própria ignorância. O primeiro passo no caminho do �lósofo é sempre incômodo: consiste em questionar todos os conhecimentos herdados, todas as certezas individuais e coletivas, e recomeçar a busca pela verdade de forma implacável, expondo tudo à lâmina de um raciocínio rigoroso. “Desde então”, prossegue Sócrates, “não deixei de examinar meus concidadãos e os estrangeiros que considero sábios. Se me parece que não são tão sábios quanto dizem, realizo o trabalho que o deus me conferiu e lhes revelo sua própria ignorância”. Após a mensagem da Pitonisa, Sócrates convenceu-se de que sua missão era iluminar a mente dos humanos, mostrando-lhes que nada sabiam – pois só assim poderiam vir a saber alguma coisa. Para realizar essa tarefa de demolição e reconstrução, ele recorreu ao método inventado por Zenão e popularizado pelos so�stas, mas utilizou-o à sua maneira e com resultados inéditos. Nasceu assim o diálogo socrático. O VAGABUNDO LOQUAZ Dialética é uma dessas palavras que se escutam com frequência, mas cujo sentido geralmente �ca embotado pela força do hábito e o peso do jargão. Na Antiguidade, contudo, ela tinha um signi�cado claro: era o diálogo enquanto ferramenta �losó�ca. Para entender de que forma Sócrates transformou a história da dialética, vamos fazer uma recapitulação rápida – pois o sentido das coisas �ca mais claro quando elas são comparadas com o que veio antes e depois. No início do século 5 a.C., Zenão de Eleia criou a dialética erística: um tipo de discurso em que o �lósofo antecipa os contra-argumentos de seus adversários e utiliza-os para defender sua própria tese. No caso de Zenão, o debate era apenas imaginário: a palavra �nal �cava sempre com o autor da obra. Depois, veio o diálogo sofístico, que era praticado face a face, entre dois interlocutores reais. Os so�stas não estavam interessados em descobrir grandes verdades; utilizavam o diálogo como ferramenta retórica, para vencer debates e in�uenciar a opinião do público. Aí entra o toque particular de Sócrates: para ele, o diálogo era um método de buscar a verdade por meio de perguntas e respostas. Ao contrário dos so�stas, ele partia do princípio de que a mente humana pode, sim, captar a realidade �nal das coisas – desde que assuma sua ignorância de antemão. Para os so�stas, o mais importante na �loso�a era o uso persuasivo da linguagem – a verdade seria apenas uma questão de perspectiva e o que realmente importava era a habilidade em defender qualquer ponto de vista. Já Sócrates acreditava que a linguagem era uma ferramenta, não um �m em si mesma. E, enquanto Zenão de Eleia usava a dialética com o objetivo de defender um ponto de vista decidido de antemão, os diálogos socráticos têm �nal aberto. Sócrates alimentava a dúvida, para que a verdade não fosse sufocada pelo peso das ideias falsas. A teoria está explicada; mas, na prática, como funcionava o diálogo socrático? Sócrates geralmente começava lançando perguntas aparentemente simples sobre assuntos supostamente básicos: “O que é amor? O que é virtude? O que é educação?”. Em seguida, analisava cada resposta de forma implacável, questionando cada palavra e cada conceito usado por seus interlocutores – mas (e isso é muito importante) o questionamento socrático era sempre feito em tom amigável, sem arrogância, em uma tentativa de construir o conhecimento de forma partilhada, coletiva. Existe no método socrático uma provocação atualíssima, que parece feita sob medida para o nosso século, cheio de som, fúria e desrazão. A arte do diálogo, conforme praticada por Sócrates nas tardes e noites de Atenas, era ao mesmo tempo implacável e civil. Implacável, porque colocava em xeque todas as certezas herdadas, sem pruridos. Civil, porque, se demolia ideias humanas, fazia-o em nome da humanidade, com o intuito de tornar possível uma sabedoria sem pés de barro. A dialética de Sócrates não servia para defender posições arraigadas: lançava-se, cortesmente, contra todas elas. Partia do princípio de que a verdade absoluta não é monopólio de nenhum dos interlocutores, mas, contrapondo-se às aparentes verdades individuais, podia abrir caminho para uma visão mais clara e sólida das coisas. Em outras palavras, para Sócrates, a discordância não era uma força negativa, mas construtiva. ç g Passaram-se 2.400 anos e ainda estamos por assimilar essa lição. Aqueles que ousassem embarcar na afável demolição socrática acabavam com uma impressão inquietante, mas potencialmente salutar: a de que todas as suas certezas eram relativas e, portanto, precisavam ser revistas. O objetivo de Sócrates era exatamente lançar o interlocutor em uma espécie de vazio – mas um vazio onde novas re�exões poderiam surgir, desimpedidas, em livre �uxo. “O alvo do método socrático”, escreve Richard Robinson em Plato’s Earlier Dialectic, “é arrancar os homens de sua sonolência dogmática e despertá-los para a verdadeira curiosidade intelectual”. Para dar um exemplo, vamos dar uma olhada no diálogo Laques, de Platão. Aqui, uma notinha de rodapé: os “diálogos” são, precisamente, as obras em que Platão relata as conversas travadas por seu mestre em ruas ou casas de Atenas. Muitos desses relatos têm o nome de um dos interlocutores interpelados por Sócrates: é o caso de Laques, Mênon,