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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE PSIQUIATRIA PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL SILVANA DO MONTE MOREIRA DISCUSSÃO SOBRE PROLES DE FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS PELA VIA DA ADOÇÃO, SOB A ÓTICA DAS JOVENS E DOS JOVENS ADOTADOS RIO DE JANEIRO 2021 Silvana do Monte Moreira DISCUSSÃO SOBRE PROLES DE FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS PELA VIA DA ADOÇÃO, SOB A ÓTICA DAS JOVENS E DOS JOVENS ADOTADOS Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Atenção Psicossocial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Mestre Profissional em Atenção Psicossocial. Orientadora: Profa. Dra. Maria Tavares Cavalcanti RIO DE JANEIRO 2021 CIP - Catalogação na Publicação Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283. MM838d Moreira, Silvana do Monte Discussão sobre proles de famílias homoafetivas pela via da adoção, sob a ótica das jovens e dos jovens adotados / Silvana do Monte Moreira. -- Rio de Janeiro, 2021. 151 f. Orientadora: Maria Tavares Cavalcanti . Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psiquiatria, Programa de Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial, 2021. 1. Adoção. 2. Homossexualidade. 3. Famílias. 4. Minorias sociais e de gênero. 5. Diversidade. I. Tavares Cavalcanti , Maria , orient. II. Título. AGRADECIMENTOS Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Eu sou amarelo claro Sou meio errado Pra lidar com amor No mundo tem tantas cores São tantos sabores Me aceita como eu sou Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Eu sou ciumento, quente, friorento Mudo de opinião Você é a rosa certa Bonita e esperta Segura na minha mão Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Que o mundo é sortido Toda vida soube Quantas vezes Quantos versos de mim em minh’alma houve Árvore, tronco, maré, tufão, capim, madrugada, aurora, sol a pino e poente Tudo carrega seus tons, seu carmim O vício, o hábito, o monge O que dentro de nós se esconde O amor O amor A gente é que é pequeno E a estrelinha é que é grande Só que ela tá bem longe Sei quase nada meu Senhor Só que sou pétala, espinho, flor Só que sou fogo, cheiro, tato, plateia e ator Água, terra, calmaria e fervor Sou homem, mulher Igual e diferente de fato Sou mamífero, sortudo, sortido, mutante, colorido, surpreendente, medroso e estupefato Sou ser humano, sou inexato Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Eu sou amarelo claro Sou meio errado pra lidar com amor No mundo tem tantas cores São tantos sabores Me aceita como eu sou Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou Eu sou ciumento, quente, friorento, mudo de opinião Você é a rosa certa, bonita e esperta Segura na minha mão Passarinho de toda cor Gente de toda cor Amarelo, rosa e azul Me aceita como eu sou (Renato Luciano. De toda cor) À minha orientadora Professora Maria Tavares Cavalcanti À minha família sem a qual eu não teria motivação para prosseguir na vida Aos companheiros dos grupos de apoio à adoção Aos meus amigos, minhas amigas e minhes amigues da diversidade de ser e de amar Aos jovens que aceitaram participar desse trabalho Ao meu amigo Lindomar Darós que me apoiou e incentivou a cada momento Aos meus colegas de turma que fizeram esse caminhar mais feliz Apesar de tudo estamos vivos Pro que der e vier prosseguir Com a alma cheia de esperanças Enfrentando a herança que taí (Meu deus do céu) Nós atravessamos mil saaras E eu nunca vi gente melhor resistir A tanta avidez, a tanta estupidez Ao cada um por si, ao brilho da ilusão Digo na maior - melhores dias virão É um desejo deste imenso coração E vamos cuidar da úlceras E vamos tratar dos pústulas Justiça remédio sensacional Pra recuperar nossa moral E pra fortalecer o ânimo E pra fortalecer o fôlego Um vinho constituinte popular cai legal (E cai então) (Gonzaguinha. Bom dia) RESUMO MOREIRA, Silvana do Monte. Discussão sobre proles de famílias homoafetivas pela via da adoção, sob a ótica das jovens e dos jovens adotados. Rio de Janeiro, 2021. Dissertação (Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial) – Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021 Nas últimas décadas verifica-se no Brasil a crescente formação de famílias homoafetivas com base na adoção. Adoção é o processo legal de assunção dos direitos e deveres da família biológica pela adotiva. Ainda há escassez de conhecimento de como se dá o processo de filiação à nova família, principalmente na família formada por pessoas do mesmo sexo. O fato de casais do mesmo sexo constituírem prole tem gerado na sociedade civil, no direito, nas ciências sociais e na psicologia questionamentos sobre os pontos que permeiam tais vínculos parentais. A partir da constatação de que essas famílias existem e que sua inserção na sociedade é um fato inconteste, apresentamos uma pesquisa qualitativa envolvendo filhos e filhas com a capacidade civil suprida, de cinco casais homoafetivos, cuja filiação seja decorrente da adoção e realizada com base na Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente. As entrevistas foram realizadas através do aplicativo Zoom, em função da situação de pandemia em que se encontra o mundo, e revelou concepções de família e perspectivas de gênero, que subjazem às demandas formuladas pelos adotantes e passam para a realidade de filhos e filhas que se empoderaram desse lugar em tal configuração familiar. Na perspectiva desses casais, ter um filho ou uma filha é considerado um passo importante na afirmação de sua capacidade de constituir uma família. Nas entrevistas realizadas verificou-se uma visão de família sem qualquer tipo de preconceito ou diferenciação do modelo heteronormativo, onde filhos e filhas se entendem e colocam-se nesse lugar de pertencimento. Os resultados nos trazem a certeza de que pesquisas profundas precisam ser realizadas especificamente com os filhos e filhas na qualidade de sujeitos de direitos cujo instituto da adoção objetiva atender, sempre no superior interesse desses e dessas. Com pesquisa, que se constitui em importante dispositivo para o enfrentamento, inclusive abrangendo crianças e adolescentes em famílias homoafetivas, contemplando aspectos biopsicossociais desses filhos e filhas, conseguiremos romper a barreira do preconceito e da discriminação. Palavras-chave: adoção; homossexualidade; minorias sociais e de gênero; família. ABSTRACT MOREIRA, Silvana do Monte. Discussão sobre proles de famílias homoafetivas pela via da adoção, sob a ótica das jovens e dos jovens adotados. Rio de Janeiro, 2021. Dissertação (Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial) – Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021 In recent decades we have seen in Brazil the growing formation of homo-affective families based on adoption. Adoption is the legal process of assuming the rights and duties of the biological family for the adoptive one. There is still a lack of knowledge on how the process of affiliation to the new family takes place, especially in families formed by people of the same sex. The fact that same-sex couples have offspring has raised questions in the civilsociety, in law, in social sciences, and in psychology about the issues that permeate such parental bonds. Based on the verification that such families exist and that their insertion in society is an undeniable fact, we present qualitative research involving sons and daughters with civil capacity, from five homosexual couples, whose filiation is a result of adoption and based on the Law no. 8069/90 - Child and Adolescent Statute. The interviews were carried out through the Zoom application, due to the pandemic situation in which the world finds itself, and revealed conceptions of family and gender perspectives, which underlie the demands formulated by the adopters and pass on to the reality of sons and daughters who have empowered themselves in such a family configuration. From the perspective of these couples, having a child is considered an important step in the affirmation of their ability to form a family. In the interviews carried out, we verified a vision of family without any kind of prejudice or differentiation from the heteronormative model, where sons and daughters understand and place themselves in this place of belonging. The results bring us the certainty that in-depth research must be carried out specifically with sons and daughters as subjects of rights whose adoption institute aims to attend, always in their best interest. Through research, which constitutes an important device including for coping, research that covers children and adolescents in homo-affective families, contemplating biopsychosocial aspects of these children, will we be able to break the barrier of prejudice and discrimination. Keywords: adoption; homosexuality; social and gender minorities; family. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS a.C. Antes de Cristo ABRAFH Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADO Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ANGAAD Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção APA Associação Americana de Psicologia Art. Artigo CCB Código Civil Brasileiro CDHO Comissão de Direito Homoafetivo CEJA Comissão Estadual Judiciária de Adoção CF Constituição Federal CFM Conselho Federal de Medicina CID-9 Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CID-10 Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CIJ Coordenadoria da Infância e Juventude do Estado CND Comissão Nacional de Adoção CNJ Conselho Nacional de Justiça DJ Dia do julgamento DNA Ácido desoxirribonucleico Dr. Doutor ECA Estatuto da Criança e do Adolescente EGHO Encontro de Grupos Homossexuais Organizados ENEM Exame Nacional do Ensino Médio. GAA Grupos de Apoio à Adoção GGB Grupo Gay da Bahia GRAAU Grupo de Apoio a Adoção em Uberaba HIV Human Immunodeficiency Virus IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Família INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Nacional LGBT+ Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero LGBTQI+ Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero e Queer LINDB Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro MHB Movimento Homossexual Brasileiro MP Ministério Público OAB-RJ Ordem dos Advogados do Brasil secção do estado do Rio de Janeiro OEA Organização dos Estados Americanos OMS Organização Mundial de Saúde ONU Organização das Nações Unidas PLS Projeto de Lei do Senado REsp Recurso Especial SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência SNA Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento SP Estado de São Paulo STF Supremo Tribunal de Federal STJ Supremo Tribunal de Justiça TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TJES Tribunal de Justiça do Espírito Santo TJRJ Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro TJRS Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo UOL Universo Online SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13 1 PARENTALIDADE ................................................................................................ 26 1.1 SOBRE SEXUALIDADES, PARENTALIDADES E LEGALIDADES .................. 26 1.2 CONSECUÇÃO DO AFETO ............................................................................... 34 1.3 AVANÇOS E PRECONCEITOS ......................................................................... 37 1.4 ADOÇÃO ............................................................................................................ 40 1.4.1 A Evolução Histórica da Adoção .................................................................. 41 1.4.2 A Adoção e o Abandono no Brasil................................................................ 44 1.4.3 Do Conceito e da Natureza Jurídica da Adoção .......................................... 48 1.4.4 Legitimidade para Postular a Adoção .......................................................... 48 1.4.5 Consentimento dos Detentores do Poder Familiar ..................................... 51 1.4.6 Concordância do Adotando .......................................................................... 52 1.4.7 Reais Benefícios para o Adotando ............................................................... 53 1.5 ADOÇÃO POR CASAIS HOMOAFETIVOS – RESGATE HISTÓRICO ............. 54 1.6 ADOÇÃO HOMOAFETIVA NA ATUALIDADE ................................................... 58 1.7 ADOÇÃO TRANSAFETIVA ................................................................................ 62 2 CONTAÇÂO DE HISTÓRIAS OU DAS HISTÓRIAS DE FAMÍLIAS ................... 64 2.1 O EUROPEU ....................................................................................................... 66 2.2 REVERENDA ALEXYA, A HISTÓRIA DE UMA FAMÍLIA HOMOTRANSAFETIVA .................................................................................................................................. 67 2.3 A VIDA NA VISÃO DE LINDA ............................................................................ 71 2.3.1 Sobre os pais .................................................................................................. 74 2.4 NOS BAILES DA VIDA DA MENINA BAILARINA ............................................. 78 2.5 NOS CAMINHOS DO PENSAMENTO DA MENINA PENSATIVA ..................... 82 2.6 A MODELO ......................................................................................................... 86 2.7 O ESCRITOR ...................................................................................................... 92 CONSIDERAÇÕES FINAIS É PAU, É PEDRA, É O FIM DO CAMINHO............... 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 117 ANEXO A PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP ......................................... 126 ANEXO B ENTREVISTA SEMI ESTRUTURADA COM JOVENS PROLE DE FAMÍLIAS HOMOAFETIVAS PELA VIA DA ADOÇÃO ......................................... 128 ANEXO C HISTÓRIAS EM QUADRINHOS ............................................................ 129 ANEXO D E-BOOK “QUANTAS FAMÍLIAS TÊM NO MUNDO?” ......................... 134 13 INTRODUÇÃO Minha experiência profissional nas áreas do Direito da Criança – aqui consideradas de 0 a 18 anos incompletos, na forma dos normativos internacionais – e da diversidade sexual e de gênero, notadamente no trabalho em processos de adoção há mais de vinte anos, tem me propiciado a oportunidade de observar e participar das questões relacionadas com o exercício da parentalidade. Em especial, me requerem um olhar para além do jurídico as transversalidades que constituem o modo como chegam ao sistema de justiça às famílias constituídaspela adoção. Entendo que minha atuação profissional como membro fundador da Comissão de Direito Homoafetivo (CDHO) e presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA) da Ordem dos Advogados do Brasil secção do estado do Rio de Janeiro (OAB-RJ), da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH), presidente da Comissão Nacional de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), advogada, mãe por adoção, me qualifique para a realização desta pesquisa. A presente pesquisa delineou-se na perspectiva de entender que as famílias, todas elas, existem dentro de sua pluralidade e que para algumas os caminhos a serem percorridos são mais áridos e tortuosos. A presente pesquisa delineou-se na perspectiva de entender que as famílias, todas elas, existem dentro de sua pluralidade e que para algumas os caminhos a serem percorridos são mais áridos e tortuosos. Caminho pela justificativa e fundamentação teórica, adentrando na metodologia, local da pesquisa, participantes, instrumentos e análise de dados, no capítulo 2, onde o leitor terá uma visão da forma de realização da pesquisa. Passo pela indispensável consecução do afeto, tratando-se do elo formador das famílias. Foco nos avanços e nos preconceitos que permeiam as questões das parentalidade LGBTQIAP+, traçando o percurso das famílias homoafetivas no seu caminho para a legitimação frente ao Estado para o exercício homoparental na sua plenitude. Passamos à adoção como instituto, com as observações de natureza legal, abordando a história da adoção de forma suscinta, sua evolução histórica, sem perder de vista o histórico do abandono no Brasil; passamos ao conceito e à natureza jurídica da adoção, que é medida protetiva de colocação em família substituta que estabelece o parentesco civil de primeiro grau entre adotantes e adotados; à legitimidade para postular a adoção, ao consentimento dos detentores do poder familiar, sobre a 14 concordância do adotando – sujeito de direitos a quem a adoção deve atender -, daí a abordagem dos reais benefícios que a adoção traz para o adotando, fechando com a adoção por casais homoafetivos realizando um necessário resgate histórico até a atualidade, perpassando brevemente pela adoção transafetiva. Nessa parte o leitor e a leitora poderão assimilar e compreender o modo como a pesquisa foi construída, a partir de quais pontos e apercebendo-se da visão particular da pesquisadora. A abordagem histórica da adoção e de suas diversas finalidades ao longo dos séculos, passando para o fechamento com o direito na relação de cuidados e proteção de crianças e adolescentes, o percurso longo e sofrido da homoparentalidade que encontra, em 2011, seu reconhecimento na esfera jurídica, mas que continua rotineiramente a lutar pelo seu não apagamento, usando o termo mais adequado e moderno para a invisibilização dos seres diversos, dos afetos transversais e que não seguem a regra da heteronormatividade e do binarismo. Adentro então, no segundo capítulo, na contação de histórias. Não há nada mais adequado do que o título contação de histórias e muito bem poderia começar com “era uma vez” e, eventualmente, findar com “e foram felizes para sempre”. O que faço é contar histórias de 5 jovens filhos e filhas de pais e mães do mesmo sexo, famílias homoparentais que passaram a exercer a parentalidade adotiva enquanto seus filhos e filhas ainda eram crianças, ou seja, adoções judiciais realizadas na forma do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990). A contação se faz com músicas iniciais que traduzem um pouco as personagens, todas as melodias escolhidas de conformidade com a natureza e singularidades de cada um e cada uma e do bojo das famílias, tal qual Paula e Bebeto de Milton Nascimento. Contar histórias é algo que aprendi ou apreendi ainda no curso de letras, que me deu algo que considero um dom: gostar de escrever. Trago a história não contada do Europeu, onde não pude concluir com um happy end ou não, porque isso ficou no campo da imaginação de que esteja feliz, bem-sucedido em algum lugar da Europa, ou não, como no famoso romance aberto. Passo a Alexya, mulher trans, seu marido e um filho e duas filhas, a partir de sua própria visão e não como fruto da pesquisa. Sigo com a música para trazer Linda, menina negra, empoderada, adotada por dois pais juntamente com seus três irmãos. Linda conta seus segredos no balanço da música escolhida para homenageá-la. E vamos para Bailarina que se encontra envolta em um mundo cor-de-rosa, traspassado pelo azul de seus pais e irmão. Não há aqui conotação de “meninas vestem rosa e meninos vestem azul”, mas sim a vontade de 15 brincar com as cores que terminam, sempre, em um belo arco-íris. Bailarina é aquela que podemos definir com o foram felizes para sempre, pois esse é o sentimento que expressa, afinal, todo mundo tem perebas, só a bailarina que não tem. Passamos para Pensativa, filha de duas mães, negra, consciente de sua negritude, com mais três irmãos. Para Pensativa é um momento que nos leva a emoção, pensamento positivo que faz bem ao coração. Em seguida encontramos a Modelo, filha de duas mães divorciadas, negra, vaidosa, empoderadíssima não apenas com relação à postura antirracista, mas, também, com relação à LGBTfobia. A modelo realmente não anda, ela desfila. Ela é top, capa de revista. É a mais mais, ela arrasa no look. Tira foto no espelho, pra postar no Facebook. Continuo a contação com o Escritor, jovem negro, gay, adotado por dois pais. Escritor tem dois irmãos não naturais entre si. Escreve pelo exemplo de seus pais, ambos acadêmicos. Escritor empunha a bandeira da diversidade, traz questionamentos, daí seu espírito em ebulição. É necessário quebrar os padrões, é necessário abrir discussões. Alento pra alma, amar sem portões; Amores aceitos sem imposições, Singulares, plural. Fecho com música a quinta e última contação de histórias de vidas. Nas considerações finais, faço alusão à música de Antonio Carlos Jobim, eternizada na Voz de Elis Regina: É PAU, É PEDRA, É O FIM DO CAMINHO... (Águas de Março), oportunidade na qual me debruço sobre o meu próprio lugar de fala. E busco inspiração na fala de Darós1: Assim, aposto no devir, inclusive no devir família, em seu constante vir a ser... Considero ainda que os encontros com a Professora Orientadora produziram fortes efeitos no delineamento da metodologia da pesquisa realizada. Existem distintos posicionamentos sobre as particularidades da forma de parentar homoafetiva e seus impactos psicológicos nas crianças perfilhadas. Existem, ainda, raras pesquisas científicas sobre a questão focada nas filhas e filhos de casais homoafetivos. Ou seja, como se portam as crianças, adolescentes e jovens que têm dois pais ou duas mães? As filhas e filhos por adoção judicial estão confortáveis com o modelo parental de inserção? Quais são as dificuldades experimentadas? Parte da maior visibilidade de pessoas LGBT+ como pais e mães resulta de uma crescente aceitação pública para essa realidade. Busco partir de situações de estabelecimento 1 DARÓS, L. E. S. http://ppfh.com.br/wp-content/uploads/2018/05/Tese-NORMALIZADA-1.pdf 16 de maternidade ou paternidade com pessoas casadas ou em união estável2. Desejo também apreender as experiências de jovens que são filiados por casais homotransafetivos. Isto porque devido a minha experiência profissional com pessoas homotransafetivas, pude observar que, majoritariamente, buscam por perfis de crianças e adolescentes tidos como “inadotáveis”. Na minha percepção, grande parte dos casais homotransafetivos, por terem sofrido agruras e se mantido à margem da sociedade, teriam uma capacidade maior de parentar aquelas crianças e adolescentes que também não são vistos pela grande maioria dos habilitados, ou seja, que estão “dentro do armário” dainvisibilidade. Esse é um sentimento pessoal baseado na prática. Mas, é necessário pontuar que o desejo e o exercício da parentalidade de recém-natos saudáveis, são realidades existentes entre os casais homotransafetivos, não sendo, portanto, uma regra absoluta a adoção de “invisíveis”. Na minha percepção, grande parte dos casais homotransafetivos, por terem sofrido agruras e se mantido à margem da sociedade, teriam uma capacidade maior de parentar aquelas crianças e adolescentes que também não são vistos pela grande maioria dos habilitados, ou seja, que estão “dentro do armário” da invisibilidade. Esse é meu sentimento, baseado na em minha prática profissional. Mas, é necessário pontuar que o desejo e o exercício da parentalidade de recém-natos saudáveis, são realidades existentes entre os casais homotransafetivos, não sendo, portanto, uma regra absoluta a adoção de “invisíveis”. Partindo da prática profissional onde os filhos e filhas já são, em pequena parte, adultos, procurei aquelas e aqueles em que atuei direta ou indiretamente das adoções. Explicando: diretamente para aqueles que atuei como advogada do processo de adoção; indiretamente por conhecer e acompanhar o procedimento mesmo sem atuar no caso. Sendo assim, a proposta é perceber as experiências de subjetivação dos jovens e das jovens que foram adotadas por famílias não normativas. 2WESTON, K. Families we choose: lesbian, gays, kinship. New York: Columbia University Press, 1991. HAYDEN, C. Gender, genetics and generation: reformulating biology in lesbian kinship. Cultural Anthropologie, v. 10, n. 1, p. 41-63, 1995; DUNNE, G. A. Opting into motherhood: lesbians blurring the boundaries and transforming the meaning of parenthood and kinship. Gender & Society, v.14, n. 1, p. 11-35, 2000; HAIMES, E.; WEINER, K. 'Everybody's got a dad. Issues for lesbian families in the management of donor insemination. Sociology of Health and Illness, v. 22, n. 4, p. 477-499, 2000.LUCE, J. Beyond expectation: lesbian/bi/queer women and assisted reproduction. Toronto: University of Toronto Press, 2010; DARÓS, L. E. S. Adoção judicial de filhos e/ou filhas em conjugalidades LGBTTIQ – rupturas com a heteronormatividade. Curitiba: Editora Appris, 2021. 17 O momento político atual, no meu perceber, tem gerado um enorme receio na população LGBT+, que tem se retraído em seus projetos parentais por temor que os filhos venham a ser perseguidos por terem duas mães ou dois pais, por exemplo. Não se trata de não buscarem mais a parentalidade adotiva, mas de analisarem mais profundamente a questão. Baseando-me em Zambrano 3 , utilizarei o termo homoparentalidade e em Darós4, adoção por casais não normativos, sem perder de vista as singularidades de cada modo de ser da existência. Faz-se necessário colocar em análise as especificidades que atravessam os arranjos familiares possíveis. Os processos de adoção são todos eles complexos e singulares, dificílimo trabalhar friamente sem que ocorra envolvimento emocional com os adotantes ou com os filhos e filhas. Minha aposta ético-político-metodológica constitui-se a partir da ruptura com o conceito de neutralidade, uma vez que todos estamos implicados. No lugar de afirmar uma farsa que é a premissa da neutralidade, ouso afirmar a necessidade da análise de implicações tanto da escolha do tema a ser pesquisado quando do caminhar metodológico. No Brasil, o reconhecimento de direitos para a população LGBT+ ainda se encontra em uma fase muito embrionária. Vemos, a cada dia, que tais direitos podem ser amputados. No caso específico da adoção, os proponentes de projetos de lei5 que visam proibir a adoção por casais homoafetivos têm em mente o direito dos adotantes (adultos) e não das crianças de terem uma família e terem respeitados os princípios insertos no artigo 227 da Constituição Federal (CF)6. A razão de buscar a pesquisa dentro do universo homotransafetivo, no presente momento sociopolítico do país, visa problematizar a ideia de que filhos de casais LGBT+ tendem a ter algum tipo de patologia de ordem social ou psíquica. Sendo assim, pretendo, por meio de entrevistas com esses jovens, buscar apreender seus processos de subjetivação, os olhares sobre suas mães e pais, sobre a adoção e 3ZAMBRANO, E. Parentalidades “impensáveis”: pais/mães, homossexuais e travestis. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 12, n. 26, p. 123-147, jul./dez. 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ha/v12n26/a06v1226.pdf. Acesso em: 01 mar. 2021. 4DARÓS, op.cit. 2021. 5 PL 4.508/2077. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=420940. Acesso em: 01 mar.2021. 6 BRASIL. Constituição Federal de 1988. art. 227. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 01 mar. 2021. 18 sobre a família. Nesta perspectiva, a pesquisa objetivou conhecer a questão social e jurídica de adoção de um ponto de vista dos jovens e das jovens que se tornaram filhos e filhas pela adoção judicial por casais que rompem com a tríade heterossexualidade-casamento-filiação 7 , ou seja, a adoção de crianças e adolescentes, hoje jovens, por modos de se ser família que não atendem à heteronormatividade, pontuando a situação atual dessas filhas e filhos adotados por casais LGBT+. Logo, a relevância do trabalho reside nas razões e no sentir dos jovens por meio do uso de informações construídas diretamente com eles. As jovens e os jovens adotados precisam ser vistos como participantes ativos do processo, ao invés de meros coadjuvantes. Além disso, esta pesquisa justifica-se socialmente porque traz para discussão aspectos nem sempre considerados por aqueles responsáveis pela formalização do processo de adoção e através dela podem entender como é sua vivência no processo de filiação, sendo importante não apenas pelas questões já mencionadas, mas por abordar outras que ainda necessitam de aprofundamento e divulgação. Devem incentivar a realização de novas pesquisas incluindo crianças e adolescentes, assim como a visão dos pais quanto aos filhos e às filhas que, por sua vez, também rompem com os critérios da normatividade. Em termos pessoais, as vulnerabilidades como um todo sempre tiveram papel preponderante, as exclusões e invisibilidades jamais permitiram que me aquietasse diante de injustiças. Sempre optei por dar voz a crianças e adolescentes invisibilizados, literalmente varridos para debaixo do tapete da sociedade. Assim, como lutar por todas as letras do LGBTQIAP+ ao infinito. Não posso, no exercício pleno da minha cidadania, calar-me diante do genocídio de crianças e adolescentes negros de periferia, do extermínio de crianças, adolescentes e jovens LGBTQIAP+ e muito menos diante daqueles que desejam suprimir os poucos direitos que tais sujeitos conquistaram a duras penas. O objetivo geral desta pesquisa consiste em colocar em análise a situação dos filhos e das filhas de famílias homoafetivas constituídas pela adoção judicial. Como objetivos específicos, temos: 7ÁRAN, M. Políticas do desejo na atualidade; o reconhecimento social e jurídico do casal homossexual. In: PRATA, Maria Regina. Sexualidade. Rio de Janeiro: Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, 2010. 19 •Situar as famílias pesquisadas em recortes éticos, sociais e econômicos, assim como de gênero e formação; •Analisar de que forma os jovens e as jovens vivenciam a parentalidade homoafetiva; •Analisar de que forma os filhos dessas famílias homoafetivas se comportam nessa formação familiar que foge a heteronormatividade •Analisar noções conceituais importantes para se pensar a adoção homoafetiva no Brasil; •Pensar as concepções de parentalidade, filiação, infância e sexualidade; •Obter dados para fundamentar a assertiva de que casais homoafetivos buscam parentar os perfis menos procuradose com menos visibilidade; •Obter informações sobre o estado de felicidade de filhos e filhas já adotados por famílias homoafetivas. O presente trabalho consiste em uma pesquisa qualitativa, a partir de entrevistas abertas e a posterior narração das histórias a mim contadas durante os encontros destinados às entrevistas, ou seja, trata-se de uma pesquisa voltada aos aspectos da parentalidade homotransfetiva, considerando a reflexividade enquanto pesquisador dos vieses que perpassam tal forma constitutiva de família, e utiliza-se do ideário de Rey (2005), ao dizer que o conhecimento é construção e produção humana, tendo, assim, caráter construtivo-interpretativo. Assim trata o autor: A epistemologia qualitativa defende o caráter construtivo interpretativo do conhecimento, o que de fato implica compreender o conhecimento como produção e não como apropriação linear de uma realidade que se nos apresenta. A realidade é um domínio infinito de campos interrelacionados independente de nossas práticas; no entanto, quando nos aproximamos desse complexo sistema por meio de nossas práticas, as quais, neste caso, concernem à pesquisa científica, formamos um novo campo de realidade em que as práticas são inseparáveis dos aspectos sensíveis da realidade. São precisamente esses os aspectos suscetíveis de serem significados em nossa pesquisa8 . O autor trata a Epistemologia Qualitativa como um método que não traz preocupação específica com determinados aspectos geralmente focados na pesquisa Quantitativa, tais como a generalização dos resultados e o tamanho da amostragem, dando maior peso a outros aspectos, tais quais: 8 REY, F. G. O compromisso ontológico na pesquisa qualitativa. In. REY., F. G. Pesquisa Qualitativa e Subjetividade: os processos de construção da informação. São Paulo, Pioneira Thomson Learning, 2005. p. 5. 20 [...] a legitimização do singular como instância de produção do conhecimento científico, [...] o valor singular está estreitamente relacionado a uma nova compreensão acerca do teórico, no sentido de que a legitimação da informação proveniente do singular se dá através do método teórico que o pesquisador vai desenvolvendo no curso da pesquisa9. A Epistemologia Qualitativa como possibilidade de estudar a subjetividade, tanto individual como social, surge como um caminho que assim foi concretizando-se, e com isto, a superação de diferentes limitações resultantes de modelos hegemônicos foi possível a partir da junção de uma nova base epistemológica, em que se uniram novos recursos teóricos da Teoria da Subjetividade numa perspectiva cultural histórica. Assim, com base na análise das citadas informações singulares e com o objetivo de conhecer como se constituem as famílias homotransafetivas reconfiguradas a partir da adoção, com o intuito de conhecer os agora jovens que foram inseridos em tais famílias ainda crianças, busco o universo onde atuo como advogada nas adoções e pessoas com as quais tenho contato através das várias redes LGBT+ que componho, além da própria militância pela causa da adoção. O presente estudo identifica e analisa dados que não podem simplesmente ser mensurados em termos numéricos, como exemplo a observação e análise de sentimentos, percepções, intenções, comportamentos, adequações etc. Os resultados serão apresentados a partir do enfoque do público pesquisado, com rompimento da pretensa noção de neutralidade da pesquisadora na relação com um dado objeto a ser desvelado. Esta pesquisa objetiva compreender fenômenos e descrevê-los de acordo com o ponto de vista dos sujeitos, no caso, pessoas que foram adotadas por famílias homoparentais enquanto eram crianças; sendo uma pesquisa com abordagem qualitativa, através de 5 (cinco) histórias. Nesta perspectiva metodológica, as pesquisas adquiriram contribuições originais e, assim, ampliam nosso conhecimento, são apresentadas as etapas a serem seguidas nesta abordagem, elucidando-as com alguns exemplos de parte de entrevistas realizadas numa pesquisa que teve como objetivos verificar a situação atual de pessoas adotadas por famílias homoafetivas, além de desenvolver e validar um modelo teórico representativo dessa experiência. A pesquisa qualitativa permite a elaboração de questões que buscam verificar o estágio atual das famílias não normativas já constituídas, buscando quebrar 9 Ibidem. p. 6 21 preconceitos, paradigmas e “lendas urbanas”, rompendo com a perspectiva de coleta de dados e investir na produção de dados com os sujeitos partícipes do processo de investigação10. As pessoas entrevistadas relataram suas experiências individuais na constituição parentalidade-filiação, permitindo-me elaborar questões e relatar tais experiências de cunho individual, através de dados obtidos por meio de entrevistas abertas, pela descrição estrutural de suas experiências, baseadas em “análises reflexivas, interpretações ou histórias dos participantes da pesquisa” 11 , além de conversar com os pais ou mães, eventualmente através da leitura do próprio processo de adoção. No que tange aos procedimentos metodológicos foi realizado levantamento bibliográfico sobre adoção de crianças por casais que rompem com o modelo heteronormativo, no sentido de produzir diálogos possíveis, à semelhança do trabalho levado a termo por Uziel (2007) 12 em processos referente à homoparentalidade adotiva de homossexuais masculinos solteiros e em Darós (2021) 13 que contou diversas histórias de famílias não normativas, que adotaram judicialmente seus filhos. Buscarei, ainda, romper as fronteiras dos saberes instituídos sendo necessário, muitas vezes, uma aproximação entre diferentes disciplinas, tais como Direito, linguística, Literatura, Psicologia, Antropologia, Filosofia, Sociologia, História e Serviço Social, baseando-me em Darós (2021)14. Igualmente ressalto que trabalho em uma perspectiva transdisciplinar, em que não há hierarquizações entre os saberes. Tentarei evitar termos eminentemente jurídicos, mas até por vício profissional posso cair nessa armadilha. Esther Maria de Magalhães Arantes15 traz no início de seu texto “Mediante quais práticas a Psicologia e o Direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar”, duas inserções totalmente adequadas ao rumo do presente trabalho: O que vem a ser a Psicologia? Para que ela serve?” Ante a nossa confusão, perplexidade e demora, Cláudio Ulpiano nos disse: “- Depende das forças que se apoderam dela! Coloquem suas forças em batalha para produzirem 10 KASTRUP, 2005 apud DARÓS. op. cit. 2016. p. 28. 11 HOLANDA. op. cit. 2006. 12 UZIEL, A. P. Homossexualidade e adoção. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. 13 DARÓS. op. cit. 2021. 14 DARÓS. op. cit. 2021. 15 ARANTES, E. M. M. Mediante quais práticas a Psicologia e o Direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. [s.d.]. Disponível em: http://www.aasptjsp.org.br/. Acesso em: 15 jun. 2021. 22 uma Psicologia afirmativa”. Sobre o tema do debate de hoje, “Psicologia e Direito: um encontro possível?” eu gostaria de refletir sobre algumas preocupações que tenho com esse encontro. Que encontro é esse? O que se pretende encontrar, quando se fala em Direito e Psicologia? A Psicologia deseja encontrar qual Direito? Utilizo-me de entrevistas escritas realizadas pelo aplicativo WhatsApp e tele presenciais pelo aplicativo Zoom com os jovens e as jovens que aceitaram participar desta pesquisa. Quanto às etapas: 1) A abertura de diálogo com os jovens e as jovens que aceitarem participar da pesquisa, sendo a etapa seguinte, a partir da identificação das pessoas que aceitaram essa participação, foi composta de perguntas a serem dirigidas aos filhos e filhas dessas famílias homoconjugais; 2) conversa com os pais para a verificação do interesse em participar da pesquisa. A partir da assinatura do Termo de ConsentimentoLivre e Esclarecido (TCLE), apresentado no Anexo A, realizei as entrevistas propriamente ditas. Pretendo com esta pesquisa dar visibilidade ao exercício materno-paterno-filial em arranjos familiares que rompem com os marcos do patriarcado, a partir do exercício do cuidado com a infância. Foco nas vidas de jovens que já encontram com suas adoções judiciais concluídas. A ideia foi entrevistar diferentes jovens percorrendo diversas etapas de suas experiências de vida: dizerem de suas origens e a percepção que têm da intervenção estatal da retirada de suas famílias de origem ou de suas entregas; a chegada na família; a adaptação; a convivência. Para tanto, realizei os encontros com os jovens através de conversas, contando as histórias de vida a partir das narrativas das/dos protagonistas, possibilitando afirmar uma família outra que não exclusivamente aquela delineada pelo patriarcado e pela heteronormatividade 16 (BENTO, 2006; BUTLER, 2003). Busquei apreender seus processos de subjetivação, os olhares sobre suas mães e seus pais, sobre a adoção e sobre suas famílias. Desta forma, a pesquisa tem como objetivo lançar um olhar sobre a questão social, jurídica e emocional da adoção homoparental de um ponto de vista das pessoas adotadas por famílias que rompem com a perspectiva fundada na tríade 16BENTO. op. cit. 2006. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. 23 heterossexualidade-casamento-filiação17, ou seja, a adoção de crianças por modos de ser família que não atendem à heteronormatividade18 As metodologias utilizadas partiram do próprio percurso enquanto pesquisadora, sem que as direções fossem pré-determinadas, diferentemente de uma dissertação eminentemente jurídica. Não busquei a realização de uma pesquisa aberta através dos formulários públicos geralmente utilizados, e sim a partir daquelas adoções a mim relacionadas pelo trabalho e/ou pelo afeto. Explico: Linda, atuei em seu processo de adoção; Escritor, atuei em seu processo de adoção e, posteriormente, no dos irmãos; Modelo, atuei no processo de adoção do irmão caçula; Bailarina, atuei no processo de adoção do irmãos caçula e, Pensativa, sou amiga das mães. Minha vida pessoal e profissional é atravessada pelas vulnerabilidades do ser humano, tanto que coordeno um curso de pós-graduação em direito das vulnerabilidades. Dentre essas parcelas vulneráveis da população cresceu a preferência, inicialmente, por crianças e adolescentes e, quase que simultaneamente, pela população LGBT+. Pontuo que minha pretensão original era de tratar do universo de crianças e adolescentes adotados judicialmente por casais homo e transafetivos, contudo o caminhar da pesquisa estabeleceu jovens com a capacidade civil suprida, excluindo, nesse momento do estudo, as famílias homotransafetivas. Pretendia, também, antes do nosso estágio pandêmico, viajar para ter conversas reais com as jovens e com os jovens entrevistados, o que foi impossível. Dessa forma, a presente dissertação traz uma contação de histórias de vidas de cinco jovens e de suas famílias Posso afirmar que foi um caminhar metodológico feliz, mas a construção não foi fácil, talvez em função da formação jurídica, mas, acredito, que eu tenha conseguido sobrevoar de forma razoável pelos vários saberes. O presente estudo foi realizado em uma instituição pública de Ensino Superior, no município do Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, envolvendo jovens residentes em vários locais do Brasil e no exterior. A escolha do locus deu-se em razão da existência de pessoas perfilhadas pela adoção já com a capacidade civil suprida, evitando questionamentos possíveis quanto à realização com crianças e 17 ÁRAN. op. cit. 2005. 18 BENTO. op. cit. 2006; BUTLER. op. cit. 2006. 24 adolescentes. Participaram da pesquisa 5 (cinco) jovens cuja filiação deu-se pela via da adoção judicial enquanto eram crianças. Assim, participaram desta pesquisa 4 (quatro) mulheres e 1 (um) homem, sendo 3 (três) filhos de casais formados por homens e 2 (dois) filhos de casais formados por mulheres. Devido ao sigilo da pesquisa, os jovens, assim como seus pais e mães, tiveram seus nomes modificados. Os codinomes são inspirados na realidade de cada jovem, nas aptidões e sonhos de cada um. As entrevistas foram realizadas em fevereiro e março de 2021 partindo de perguntas previamente enviadas. As respostas foram rápidas, e as conversas muito prazerosas. As conversas duraram entre 45 minutos e 1 hora, abrindo espaço para que se expressassem da melhor maneira sobre seus sentimentos. As entrevistas foram realizadas a partir de questionário semiestruturado – conforme Anexo B - pelos aplicativos WhatsApp e Zoom Meeting. Entrevistar é apreender narrativas com o objetivo de obtenção de matéria para conhecimento e análise de um determinado processo social do sujeito entrevistado, auxiliando os estudos acerca da identidade, inclusive da memória cultural. Nas palavras de Muylaert (201419): As entrevistas narrativas se caracterizam como ferramentas não estruturadas, visando a profundidade, de aspectos específicos, a partir das quais emergem histórias de vida, tanto do entrevistado como as entrecruzadas no contexto situacional. Esse tipo de entrevista visa encorajar e estimular o sujeito entrevistado (informante) a contar algo sobre algum acontecimento importante de sua vida e do contexto social (1). Tendo como base a ideia de reconstruir acontecimentos sociais a partir do ponto de vista dos informantes, a influência do entrevistador nas narrativas deve ser mínima. Nesse caso, emprega-se a comunicação cotidiana de contar e escutar histórias. Jovchelovich e Bauer (1) ainda alertam para a importância de o entrevistador utilizar apenas a linguagem que o informante emprega sem impor qualquer outra forma, já que o método pressupõe que a perspectiva do informante se revela melhor ao usar sua linguagem espontânea. Essas asserções se assentam na compreensão de que a linguagem empregada constitui uma cosmovisão particular e, portanto, é reveladora do que se quer investigar: o “aqui” e o “agora” da situação em curso Durante as entrevistas, de forma simultânea, fiz anotações sobre as falas pontuando aquelas com maior ênfase e onde ocorreram as demonstrações de sentimentos de forma mais expressiva. Em alguns casos foram verificados os processos de adoção em si, casos nos quais, como advogada, mantenho os arquivos por mim escritos quando do ajuizamento das ações. 19 MUYLARTE, C.J. et ali. Entrevistas narrativas: um importante recurso em pesquisa qualitativa. Rev Esc Enferm USP 2014; 48(Esp2):193-199 www.ee.usp.br/reeusp, Acesso 19 Jul 2021. 25 As entrevistas passaram pela transcrição e inserção no texto histórico dos relatos familiares – textos obtidos em processos originalmente ajuizados por mim como advogada dos pais ou das mães – e, posteriormente, incluído o texto referente à entrevista com os(as) jovens. Para os jovens e as jovens para os(as) quais não atuei no processo de adoção, a partir de relatos históricos dos pais e das mães, fazendo o fecho com a entrevista do(a) jovem. Houve dificuldade na localização de jovens em idade adulta para a participação na pesquisa, pois a grande maioria dos filhos e filhas de casais homoparentais ainda se encontra na adolescência. 26 CAPÍTULO 1 PARENTALIDADE 1.1 Sobre sexualidades, parentalidades e legalidades Homoafetividade é o termo escolhido para tratar relações afetivas entre casais do mesmo sexo – remonta à Grécia Antiga, e inspirou outras culturas, culminando sua influência na conhecida expressão “amor grego”20. Foi com o advento do cristianismo que se reforçou a dicotomia prazer/pecado, favorecendo o surgimento da intolerância social em relação às práticas homossexuais e em relação às pessoasque as praticavam21. A sexualidade humana sempre foi algo contido, escondido, conforme nos ensina Foucaut22: Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos sujeitaríamos ainda hoje. A pudicícia imperial figuraria no brasão da nossa sexualidade contida, muda, hipócrita. Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo, as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce, tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade. Eram frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados como século XIX. Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre risos dos adultos: os corpos “pavoneavam”. A Medicina, notadamente a Psiquiatria, teve papel preponderante na formação de crenças estereotipadas acerca da homossexualidade. Durante um longo período – demasiado, inclusive – em seus códigos internacionais de doenças, a Medicina classificava a homossexualidade como homossexualismo, tipificando-a como desvio ou transtorno sexual23. O sufixo ismo, de origem grega, denota, dentre outras coisas, “condição patológica”, ou seja, uma doença. A Sexualidade, a partir de Freud e de sua revelação do inconsciente, passou a ter, no início do século XX, uma dimensão de maior amplitude. Nos séculos XX e XXI os questionamentos cresceram junto com a maior visibilidade da expressão individual 20SOUZA, I. M. Homossexualismo, uma construção reconhecida em duas grandes civilizações. In: Instituto Interdisciplinar de Direito de Família (IDEF) (Coord.).Homossexualidade − Discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Editora Juruá, 2001. p. 101-113. 21GRAÑA, R. B. É a homossexualidade um problema "clínico"? In: IDEF. Homossexualidade − discussões jurídicas e psicológicas. Curitiba: Editora Juruá, 2001. p. 157-168 22FOUCAUT, M. História da sexualidade I – a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda, 1979. p. 9 23DIAS, M. B. União homoafetiva – o preconceito & a justiça. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 27 da sexualidade, da orientação sexual e da própria identidade de gênero, conforme nos ensina Jorge (2007)24. Trata-se, na psicanálise, do advento de um novo conceito de sexualidade. Freud fala de uma “teoria da sexualidade”, na qual os autores só expunham longamente seus casos clínicos sem qualquer teorização a respeito deles. Antes de Freud, não há propriamente um conceito clínico sobre a sexualidade. A degenerescência de Krafft-Ebing e a psicologia associativa de Binet, que se opunha a ela, são duas concepções extremamente simplistas, que apenas aplicam a antiga dicotomia médica hereditário/adquirido aos problemas levantados pela sexualidade. Mas nenhum conceito emana dessas discussões que os sexólogos freudianos empreenderam. O mérito desses autores foi, em primeiro lugar, o de ter aberto o diálogo sobre a sexualidade para o campo da ciência, e, em segundo, o de ter tornado evidente, com seus trabalhos, a enorme frequência das chamadas “aberrações sexuais”. Não é à toa que este é o título do primeiro ensaio que abre a obra de Freud, fazendo referência aos autores mais importantes de sua época que tratavam do assunto. É sobre eles que Freud vai instaurar um corte. Este corte é conceitual e tem um nome: pulsão25. As letras que indicam a enormidade de orientações sexuais e identidades de gênero passaram das famosas LGBT, para LGBTQI+, atualmente LGBTQIAP+ indicando o “mais” que não se trata de uma identificação estanque, e que a partir da saída do exílio da heteronormatividade, as letras tendem ao infinito, assim como infinitos somos em nossas próprias individualidades. Essa denominação LGBTQI+ é utilizada para denominar Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros, Queer, Intersexo, Assexual e Pansexual. Sendo utilizada desde meados dos 1990, a sigla é considerada uma adaptação de LGB, em inglês, e GLS, no Brasil, utilizada desde então para substituir o termo “gay” ao fazer referência à comunidade LGBT no fim dos anos 198026. A teoria psicanalítica da sexualidade humana caminha pelos estudos do desejo e do pertencimento, analisado em conjunto com os fenômenos de ordem sexual e 24JORGE, M. A. C. A teoria freudiana da sexualidade 100 anos depois (1905-2005). Psyche (São Paulo), São Paulo, v. 11, n. 20, p. 29-46, jun. 2007. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141511382007000100003&lng=pt&nrm=i so. Acesso em: 02 mar. 2021. 25 Ibidem 26 MOVIMENTO LGBT: o que é, história e muito mais. 6 maio 2021. Disponível em: https://www.stoodi.com.br/blog/atualidades/movimento-lgbt-o-que-e/. Acesso em: 28 fev. 2021. 28 afetiva. Todos, nós humanos, somos seres essencialmente desejantes e nossos desejos se expressam com o outro, com o mundo27, assim fala do desejo: Segundo Rajchman (1993, p.47), a psicanálise lança seu olhar para o problema moderno "de haver algo em nosso desejo que vai além do que dirigiria para o que pensamos querer para nós". Esse imprevisto que nos interpela vindo de nós mesmos não pode ser conhecido de antemão, de forma que não podemos, através do conhecimento, formular um princípio que oriente nossas ações, "é que a lei do desejo não constitui um princípio geral de que sejamos desconhecedores; ao contrário, ela reside, precisamente, nos efeitos de ocorrências que não podemos situar dentro de nenhuma regra geral”28. A partir da publicação de “Psychopatia Sexualis”, de Kraft-Ebing, em 1886, os pensamentos e direcionamentos no campo da medicina foram influenciados. Kraft- Ebing considerou as relações homossexuais como perversas, uma vez que não objetivavam a procriação, sendo tal conduta decorrente da “degeneração do sistema nervoso central ou de indicadores de doença cerebral hereditária29. Em 1973, a associação entre homossexualidade e patologia foi abandonada pela Associação Americana de Psiquiatria e, em 1990, pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O Conselho Federal de Medicina (CFM), por sua vez, realizou a adequação em 1985, retirando a homossexualidade da condição de “transtorno sexual”. Importante mencionar que se tratou de uma vitória dos movimentos sociais30. Desde dezembro de 1973, a homossexualidade deixou de ser classificada como transtorno mental pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), sendo retirada do Manual de Diagnóstico e Estatística de Desordens Psiquiátricas; em 1975, a Associação Americana de Psicologia adotou o mesmo procedimento, deixando de considerar a homossexualidade como doença, distúrbio ou perversão. No Brasil, em 1985, o Conselho Federal de Medicina (CFM) deixa de considerar a homossexualidade como desvio sexual, esclarecendo aos médicos, em particular aos psiquiatras, que homossexualismo não pode ser aplicado nem sustentado como diagnóstico médico. A 43ª Assembléia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), no dia 17 de maio de1990, retirou a homossexualidade da sua lista de doenças ou transtornos mentais, suprimindo-a do Código Internacional de Doenças (CID- 10), a partir de 199331. 27SILVA, M. M. Para além da saúde e da doença: o caminho de Freud. Ágora, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, dez 2009. doi.org/10.1590/S1516-14982009000200007. Acesso 15 mar. 2021. 28Ibidem. 29GRAÑA, op. cit. 2001. 30GONÇALVES, A. O. Religião, política e direitos sexuais: controvérsias públicas em torno da “cura gay”, Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 39, n. 2, p. 175-199, 2019. 31 CFP (Conselho Federal de Psicologia). Nota Pública – Comissão Nacional de Direitos Humanos apoia decisão do CFP, 06/08/2009. Disponível em: https://site.cfp.org.br/nota-pblica-comisso- nacional-de-direitos-humanos-apia-deciso-do-cfp/. Acesso em: 30 jul. 2021. 29 Segundoa antropóloga Regina Facchini, com os primeiros indícios de abertura política no final da década de 1970 e início da década de 1980, o Movimento Homossexual Brasileiro (MHB), impulsionado pela fundação e atuação do grupo Somos - Grupo de Afirmação Homossexual e, posteriormente, pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), começou a se organizar para reivindicar, por meio de ações políticas, direitos universais e civis plenos. Foi neste momento que o ativismo homossexual iniciou a luta pela revogação do Código de Saúde do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Nacional, o INAMPS, que seguia a orientação do Código Internacional de Doenças em classificar a homossexualidade como desvio e transtorno sexual32. A título de ilustração do envolvimento político em relação ao tema, destaca-se a realização do I Encontro de Grupos Homossexuais Organizados (EGHO) e o I Encontro Brasileiro de Homossexuais, organizado pelo grupo Somos, em São Paulo, em 1980. Com a participação de organizações homossexuais em nível nacional, firmou-se o compromisso das organizações e grupos participantes na ação pela alteração do código de doenças referentes a transtornos sexuais e a proposta de extinção do parágrafo 302.0 da CID-9 da OMS. Com a dissolução do grupo Somos-SP em 1983, as deliberações apanhadas não foram levadas adiante. Entre 1981 e 1985 a campanha pela despatologização foi articulada principalmente pelo Grupo Gay da Bahia, tendo como principal liderança o antropólogo Luiz Mott. Em 1985, a campanha pela despatologização e pela extinção do parágrafo 302 contava com o apoio de diversas organizações e associações científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Antropologia, a Associação Brasileira de Estudos Populacionais, a Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais, a Associação Brasileira de Psiquiatria, 308 políticos, além de mais de 16 mil assinaturas de cidadãos brasileiros de todo o país33. Após intensos debates e negociações, em 9 32FACCHINI, R. Histórico da luta de LGBT no Brasil. Psicologia e diversidade sexual. In: Psicologia e diversidade sexual. 6. ed. São Paulo: CRPSP, 2011. 33 CARNEIRO, A. J. S. Salvador dos homossexuais: militância homossexual e homossociabilidade na Bahia nos anos 1980. Temporalidades – Revista Discente do Programa de Pós-Graduação em História da UFMG. v. 7, n. 3, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/5593/3526. Acesso em: 20 jan. 2021. 30 de fevereiro de 1985 o Conselho Federal de Medicina atendeu às reivindicações e retirou a homossexualidade do código 302. A CID-9 inclui a "Homossexualidade" como sub-categoria (302.0) da categoria "Desvios e Transtornos Sexuais" (302), no Capítulo dos "Transtornos Mentais" (Capítulo V).34 Com a extinção do parágrafo 302, o Código de Saúde do INAMPS, seguido o mesmo posicionamento pela OMS, em maio de 1990, a luta institucional contra a patologização parecia ser uma causa ganha, de modo que as frentes de atuação do movimento LGBT foram direcionadas a outros setores. No entanto, em 11 de julho de 1998, oito anos após a OMS retirar a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças, o jornal Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada “Encontro em Minas quer ‘curar’ homossexuais, que versava sobre o 3º Encontro Cristão sobre Homossexualismo promovido pela organização Interdenominacional Exodus Brasil. De acordo com a matéria, o objetivo do encontro, ocorrido em Viçosa, Minas Gerais, seria “oferecer saídas a homossexuais que desejam retornar ao heterossexualismo”35. O Conselho Federal de Psicologia, em 1999, através da Resolução CFP n° 001/99, assevera: “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”, estabelecendo orientações para nortear a prática dos psicólogos em suas práxis. Desde então a “cura gay” passou a ser banida (CFP, 1999), por mais que presente até os dias de hoje. Da referida Resolução, transcrevemos: Art. 2° - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento, para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas. Art. 3° - os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados. Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades. Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a 34 PC/CFM/Nº 05/1985 PROCESSO CONSULTA CFM-CONS. Nº 32/84, Consulta referente à orientação para a correta aplicação da CID, questão a que interessa o pleito formulado pelo auto- denominado "GRUPO GAY DA BAHIA". Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/BR/1985/5_1985.pdf. Acesso em 30 jul. 2021. 35BIANCARELLI, A. “Encontro em Minas quer ‘curar’ homossexuais”. Folha de São Paulo, 11 de jun. 1998. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff11069830.htm. Acesso em: 09 mar. 2021. 31 reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica36. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi alterado em 2009 pela Lei 12.010, que ficou conhecida como a Lei Nacional da Adoção e em 2017, pela Lei nº 13.509, denominada Lei dos Prazos, dentre outras várias alterações. O aludido Estatuto, mesmo antes das alterações referidas, afirmava ser o acolhimento institucional ou familiar medida provisória e excepcional, constituindo-se, deste modo, instrumento legal suficiente para atender aos direitos humanos de crianças. Contudo, inúmeras delas ficaram, e ficam, acolhidas até a maioridade. Segundo Lourau, “isto tem conexão com uma miríade de instituídos atinentes aos (des)cuidados com a infância, considerando as referências teóricas da análise institucional”37. A partir das alterações legislativas supracitadas (2009 e 2017) crianças não poderiam, em tese, permanecer em situação de acolhimento, familiar ou institucional, por período superior a dois anos (2009)38 e dezoito meses (2017)39, excetuando-se àquelas situações, baseadas em parecer técnico fundamentado das equipes interprofissionais dos programas de acolhimento (familiar ou institucional) e das Varas com Competência em Infância, Juventude e Idoso (VIJI), bem como de promoções ministeriais e decisões dos juízes, as quais também têm que expressar os motivos da continuidade do acolhimento. Assim, passados mais de vinte e oito anos, o Congresso Nacional, provocado por movimentos da sociedade civil organizada e pelo próprio Ministério da Justiça, produziu alterações no ECA, no tocante à convivência familiar e comunitária e nos prazos que afetam drasticamente o transcorrer saudável da infância. Em 1 de junho 2021, são 4.956 crianças disponibilizadas à adoção, ou seja, com a ação de destituição do poder familiar com trânsito em julgado, enquanto o 36CONSELHO FEDERAL DE PSICOLLOGIA. Resolução CFP n° 001, de 22 de março de 1999. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf. Acesso em: 09 mar. 2021. 37 LOURAU, R. Análise Institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ, 1993. 38 BRASIL. Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Dispõe sobre adoção; altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm.Acesso em: 15 jun. 2021. 39 BRASIL. Lei n. 13.509, de 22 de novembro de 2017. Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2017/lei/l13509.htm. Acesso em: 15 jun. 2021. 32 número total de crianças acolhidas é de 30.27240. Os números não fecham não em razão, apenas, do perfil dos 32.876 habilitados, e sim em função da extrema morosidade da máquina do judiciário que leva até 7,6 anos para destituir o poder familiar, enquanto o próprio ECA determina que a tramitação total da ação seja de 120 dias. As alterações legislativas, notadamente a que culminou com a promulgação da Lei nº 13.509/2017, surgiram do próprio executivo através do lançamento de pesquisa pública do Ministério da Justiça com proposição de Anteprojeto de Lei de alteração ao ECA, com base, inclusive, na demora exacerbada dos processos de adoção. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (ANGAAD), dentre outras entidades formadoras da rede de proteção à criança, atuaram ativamente nas etapas que se sucederam, seja na realização de audiências públicas, seja como consultores convidados pelo próprio Ministério da Justiça. A adoção judicial é o processo legal que consiste no ato de se incluir espontaneamente como seu filho uma criança disponibilizada para esse tipo de inserção familiar, desde que respeitadas as condições jurídicas para tal, passando a existir laços de parentalidade e filiação sem qualquer tipo de diferenciação quanto à parentalidade natural de filho das próprias entranhas. Essa parentalidade constitui-se por sentença, sendo um meio possível de propiciar filiação às crianças que não podem, por motivos diversos, conviver com seus genitores ou família extensa. Considero que a partir do ECA, transformações ocorreram no que se refere à possibilidade de se adotar filhas e filhos no Brasil. Quanto à adoção por casais LGBT+, há que se considerar – agora mais que nunca – o terreno instável que permeia tal possibilidade, posto que a interpretação do texto constitucional sobre a necessidade de haver a diferença de sexo para se considerar a formação de uma união estável constitui-se em premissa para magistrados e promotores públicos Brasil afora41, não obstante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2011, sobre a constitucionalidade das uniões estáveis homoconjugais. Faz-se necessário considerar que o reconhecimento da constitucionalidade das uniões estáveis homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal é, ainda, recente, e não 40BRASIL. CNJ. SNA. op. cit. jun. 2021. 41 DIAS. op. cit. 2009. 33 se consubstancia em Lei, por mais que exista projeto de Lei denominado Estatuto das Famílias, proposto pelo IBDFAM, PLS 470/201342 da ex-senadora Lídice da Mata, e que não se confunde com o nefasto Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal Anderson Ferreira. Deste modo, há que se colocar em análise, não apenas do ponto de vista do Direito, mas em uma dimensão ético-política-social-psicológica, como se situam as famílias homoafetivas no momento atual. Os mesmos dilemas ético-políticos-social-psicológicos precisam ser enfrentados também nos processos de adoção, guarda e tutela, uma vez que apenas divergem acerca da natureza jurídica dos vínculos, não dos afetos que circulam entre crianças e adultos que se relacionam. O tema da pesquisa realizada surgiu a partir do REsp do STJ Superior Tribunal de Justiça (STJ – REsp n. 889.852/RS – 4ª Turma – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – DJ: 27 abr. 2010) que traz em seu bojo estudos da Universidade de Virgínia, da Universidade de Valência e da Academia Americana de Pediatria, que assim indicam43: •“ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar, quanto na circunstância de amar e servir”; •“nem sempre, na definição dos papéis maternos e paternos, há coincidência do sexo biológico com o sexo social”; •“o papel de pai nem sempre é exercido por um indivíduo do sexo masculino”; •os comportamentos de crianças criadas em lares homossexuais “não variam fundamentalmente daqueles da população em geral”; •“as crianças que crescem em uma família de lésbicas não apresentam necessariamente problemas ligados a isso na idade adulta”; •“não há dados que permitam afirmar que as lésbicas e os gays não são pais adequados ou mesmo que o desenvolvimento psicossocial dos filhos de gays e lésbicas seja comprometido sob qualquer aspecto em relação aos filhos de pais heterossexuais”; •“educar e criar os filhos de forma saudável o realizam semelhantemente os pais homossexuais e os heterossexuais”; •“a criança que cresce com 1 ou 2 pais gays ou lésbicas se desenvolve tão bem sob os aspectos emocional, cognitivo, social e do funcionamento sexual quanto a criança cujos pais são heterossexuais”. Assim, as noções de família, de possibilidades e competências para o cuidado de crianças, a colocação no lugar de filho, o exercício pleno da parentalidade é tão 42 BRASIL. Senado Federal. PLS n. 470, de 2013. Dispõe sobre o Estatuto das Famílias e dá outras providências. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg- getter/documento?dm=4590857&ts=1594021233924&disposition=inline. Acesso em: 15 jun. 2021. 43BRASIL. STJ. op. cit. RE n. 889.852 RS 2006/0209137-4. R 34 bem realizado por casais héteros como por casais homotransafetivos. A ideia é, então, apreender o que os filhos e as filhas dessas famílias têm a dizer sobre o assunto. Bailey et al. em pesquisa realizada no Departamento de Psicologia da Universidade Americana Northwestern verificaram que mais de 90% dos filhos de pais homossexuais são heterossexuais44. Já, Zambrano ressalta que, na conjuntura da adoção, os pontos mais importantes encontram-se nas relações socioafetivas 45 . “Entre esses aspectos, sobressaem a capacidade de cuidar e a qualidade dos relacionamentos, que funcionam como protagonistas da boa parentalidade”46. O ECA afirma o direito à convivência familiar de crianças, o que implica em enfrentar as questões que acabam por infringir a milhares de crianças a condição de acolhidas. Não há que se falar em novos arranjos familiares, pois famílias constituídas por modos de se ser família que rompem com a tríade mãe-pai-filho existem no curso da história. Todavia, os arranjos familiares considerados desviantes não reivindicavam ao Estado a chancela de família. Não apenas existiam famílias homoconjugais, mas, muitas delas tinham filhos, naturais ou adotivos. Desta feita, a novidade estaria na busca pelo reconhecimento do estatuto de família dos arranjos que não se enquadravam no padrão heteronormativo47. 1.2 Consecução do Afeto Passadas as questões médicas e psicológicas, em um breve histórico, seguimos para a consecução do afeto, que, segundo Maria Berenice Dias, dá base às famílias homoafetivas por terem “mútua assistência afetiva”48. O afeto, pois, é o fio condutor dos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, sendo o alicerce para a constituição da família. É também de Dias, inclusive, a autoria do termo homoafetivo, em sua visão de ativista pela causa LGBT+, além de doutrinadora das áreas dos direitos das famílias, 44 BAILEY, J. M. et al. Sexual orientation of adult son of gays father. Developmental Psychology, Leicester, v. 35, n. 1, p. 124-129, 1995. 45 ZAMBRANO. op. cit. 2006. 46 ARAÚJO, L. F. A.; OLIVEIRA, J. S. C. A adoção de crianças no contexto da homoparentalidade. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 60, n. 3, 2008. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/2290/229017563006.pdf. Acesso em: 01 jun. 2021. 47DÁROS. op. cit. 2021. 48 DIAS, 2009, loc.cit. 35 da mulher e da criança. Para ela o fundamento do relacionamento entre duas pessoas não é mais a “função procriacional”, mas sim a vivência autêntica desse afeto mútuo49. Darós50, por sua vez, critica o termo ao entender que: (...) o neologismo referido é uma tentativa de dessexualizar homossexuais, no intuito de lhes garantir direitos. Direitos esses que deveriam ser garantidos a quaisquer pessoas, independentemente de orientação sexual e identidade de gênero. Atrelado a essas questões, pontuamos o papel da sexualidade nos âmbitos público e político. A homoafetividade questiona a formulação de direitos que têm como base o exercício da sexualidade dos indivíduos, e que, ao mesmo tempo, contribui para excluir esses mesmos sujeitos do direito fundamental à liberdade e, portanto, do direito de exercer sua forma de expressão do corpo e do afeto. Como sujeitos sociais que são, os sujeitos homoafetivos reivindicam para si o direito de constituírem família, o direito à cidadania e o direito ao exercício da educação e da socialização de seus filhos, quer biológicos, quer adotivos51. Os mitos de que as crianças/adolescentes adotados por casais homoafetivos, ainda designados na grande maioria da literatura pátria como “pares homoafetivos”, não teriam as necessárias “referências” comportamentais e seriam, também, incentivados a exercerem a sexualidade nos moldes familiares, como se ocorresse uma forma de estímulo a também serem homoafetivos, não possuem fundamentos reais. Uma vez que sujeitos homoafetivos são filhos de relacionamentos heterossexuais, não existe uma relação direta entre tais aspectos52. Em meio a todas essas questões de natureza, inclusive, dogmáticas, observa- se o constante aumento do número de crianças e adolescentes inseridas no SNA – Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, no aguardo de uma família. As crianças acolhidas não são as de perfil padrão dos habilitados brasileiros, pois a criança real não guarda similaridade com a criança idealizada. Em 01 de junho de 2021, o número total de crianças acolhidas, no Brasil, é de 30.272, sendo que apenas 4.956 estão disponíveis à doção, ou seja, apenas 16,37% estão disponíveis, enquanto o restante 49 IDEM, Ibidem. 50 DARÓS, L. E. S. Adoção judicial de filh@s por casais homossexuais: a heteronormatividade em questão. 2016. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e Formação Humana) -Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: http://ppfh.com.br/wp- content/uploads/2018/05/Tese-NORMALIZADA-1.pdf. Acesso em: 20 dez. 2020. 51 MELLO, L. Outras famílias: A construção social da conjugalidade homossexual no Brasil. Cadernos Pagu, v. 24, n. 1, p. 197-225, 2005. 52 DIAS, op. cit., 2009. 36 continua no limbo. Do total acolhido, 18.382 têm a partir dos 9 anos de idade; 9.716 têm irmãos; 21% são pardos; 6,5% são pretos; 13,9% são brancos; 58,1%, têm etnia não informada e 50,1% são do sexo masculino53. Segundo Lidia Weber, tais crianças têm dificuldades de inserção social e no estabelecimento e na manutenção de vínculos afetivos, além de terem a formação de uma autoimagem negativa, ocasionando problemas nas esferas do desenvolvimento humano e psicossocial de suas vidas54. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)55 determina em seu artigo 4º que toda criança e todo adolescente possuem o direito à “convivência familiar e comunitária”. Tal inserção é advinda de princípios constitucionais insertos no artigo 227 da Constituição Federal, norteando, dessa forma, a necessidade humana de vínculos afetivos e sociais, além dos direitos à saúde, educação, cultura, lazer, dentre outros. Portanto, a convivência familiar deve ser estabelecida a todas as crianças, independentemente da orientação sexual da família adotante, vez que a modalidade de família adotiva é a única e derradeira possibilidade dessas crianças serem parte de uma família e ocuparem o lugar de filho ou filha que lhes é de direito. Os critérios para a seleção do que venha a ser uma família ideal e apta para adotar são grandes e perpassam por uma análise acurada dos pretendentes e independe de sexo, gênero ou estado civil. Os pretendes à parentalidade responsável passam por preparação que, a depender da comarca, vão de 3 a 10 encontros em Grupos de Apoio à Adoção – GAA; juntam todos os documentos pessoais, atestados de sanidade física e mental, certidões cíveis e criminais; são submetidos a estudos psicológicos e sociais; passam pelo crivo do Ministério Público, para, ao final, serem inseridos, quando da prolação da sentença, no já citado Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Para Weber, torna-se necessário ampliar e superar os debates concernentes à adoção, à família e à orientação sexual56. A adoção é um ato jurídico, um processo judicial com todas as suas intercorrências, guiadas pelo ECA, pelo Código Civil e pelo 53 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Sistema Nacional de Adoção. 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/. Acesso em: 01 jun. 2021. 54 WEBER, L. N. Aspectos psicológicos da adoção. Curitiba: Juruá, 2007. 55 BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 20 jan. 2021. 56 WEBER, op. cit. 2007. 37 Código de Processo Civil, mas ainda alicerça o parentesco com base no fator biológico, em detrimento da dimensão afetiva manifestada pelas partes envolvidas57. Maria Berenice Dias assevera – o que é uma realidade escancarada, que muitos não querem enxergar – que famílias homoafetivas existem desde sempre, que casais formados por pessoas do mesmo sexo têm filhos58. Contudo, o preconceito ainda existe e, pelo que se verifica, aumenta nos tempos atuais. O preconceito foi entendido ora como disposição da personalidade59, ora como “estilo cognitivo” 60 . A questão, contudo, deve ser analisada sob os aspectos psicossociais, já que envolve questões de ordem política e ideológica 61 . Como sublinham Camino, Silva e Machado62, a partir desse enfoque psicossocial, verifica- se que o preconceito parte de grupos majoritários (proprietários do poder político), mediante comportamentos de discriminação em relação aos grupos minoritários. Numa interpretação livre e pessoal verifico que o preconceito parte dos que entendem ter poder – e alguns efetivamente o tem –, em face daqueles em situação de vulnerabilidade. Traduzindo para uma linguagem clara e coloquial, o preconceito é utilizado para extirpar seus próprios demônios, sendo uma atitude covarde dos que detém a força física ou o poderio socioeconômico-político. Essa é uma rápida pontuação pelo momento de conservadorismo que passa o mundo globalizado em pleno século XXI. 1.3 Avanços e Preconceitos Como bacharela em Letras, verifico que a sociedade acompanha a arte ou a arte acompanha a sociedade, numa montanha russa de luzes e trevas, que, ao pontuarmos nos estilos literários, tornam-se claras as diferenças que marcam os estilos. Por exemplo, o Barroco, movimento que tem início na Europa, nos séculos XVII e XVIII (primeira metade) e no Brasil tem o seu início em 1601, com a publicação 57 DIAS, op. cit. 2009. 58 DIAS, M. B. Filhos do afeto. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. 59 ADORNO, T. W. et al. The authoritarian personality. New York: Harper and Row, 1950. 60 GAERTNER, S. L.; MCLAUGHLIN, J. P. Racial stereotypes: associations and ascriptions of positive and negative characteristics. Social Psychology Quarterly, v. 46, n. 1, p. 23–30, 1983. doi.org/10.2307/3033657. 61BILLIG, M. Racismo, prejuicios y discriminacion. In: MOSCOVICI, S. (ed.). Psicologia social II: pensamiento y vida social. Barcelona: Paidós, 1984. p. 575-600. 62 CAMINO, L., SILVA, P., MACHADO, A. As novas formas de expressão do preconceito racial