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Indaial – 2021 Igreja antIga à Prof. ª Priscilla da Silva Góes 2a Edição HIstórIa da Contemporânea Elaboração: Prof. ª Priscilla da Silva Góes Copyright © UNIASSELVI 2021 Revisão, Diagramação e Produção: Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI Impresso por: G598h Góes, Priscilla da Silva História da igreja antiga à contemporânea. / Priscilla da Silva Góes – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 207 p.; il. ISBN 978-65-5663-674-0 ISBN Digital 978-65-5663-669-6 1. História da igreja. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 270 Prezado acadêmico, Estamos iniciando a disciplina História da Igreja, que tem como objetivo fazer um apanhado dos principais momentos de mudança no cristianismo, desde a morte de Jesus Cristo até o século atual. Como você deve ter percebido, trataremos aqui de muitos temas, que incluirão diversos personagens, filosofias, artes, tragédias, superação. Enfim, assim como conhecer a história política e social é fundamental para nossa formação, conhecer a história do cristianismo é fundamental para entendermos seu papel na formação do mundo atual. Nossa disciplina envolve um tempo histórico extenso, mais de dois mil anos, e com várias mudanças. Por esse motivo, nosso material não tem como abordar todos os acontecimentos com profundidade. Então, desafiamos você, caro acadêmico, a usar esse material como uma bússola que vai lhe orientar nos principais fatos, conceitos e personagens, para que você possa se aprofundar, posteriormente, a partir de outras leituras acadêmicas. Ao ler a história do cristianismo, devemos também ter em vista que cada religião é um produto humano, ou seja, seu desenvolvimento, formas de pensar, filosofias, dentre outros aspectos, fazem parte de um contexto social, político e econômico. Neste livro, trataremos da vivência religiosa não como algo sobrenatural, mas, ao contrário, como um fenômeno humano. Portanto, a fé e as discursões sobre transcendência ou sobre Deus não farão parte desse material. O que você encontrará aqui serão as discussões acadêmicas feitas por historiadores sobre as diversas fases da história da Igreja cristã. Vejamos, então, o que estudaremos nessa disciplina: Na Unidade 1, abordaremos as duas primeiras fases históricas, ou seja, o cristianismo na Idade Antiga e na Idade Média. Essa unidade busca compreender os primeiros passos do cristianismo após a morte de Jesus, como ele se espalhou e se consolidou até chegar ao patamar de religião oficial de Roma. A partir daí, abordaremos questões referentes aos grupos considerados heréticos, que foram perseguidos dentro do cristianismo. Conheceremos, também, como se deu o desenvolvimento do cristianismo no período Medieval, que teve como resultado a cristianização da Europa. Veremos sobre a influência cristã na arte e, também, o funcionamento da Inquisição. Conheceremos, ainda, os grupos considerados hereges desse período. APRESENTAÇÃO Em seguida, na Unidade 2, estudaremos as mudanças ocorridas no cristianismo devido às ideias renascentistas, que culminaram na Reforma Protestante. No contexto da Reforma, conheceremos os principais grupos reformistas e suas disputas perante as igrejas oficiais. Conheceremos, ainda, como se deu a luta do catolicismo perante o avanço protestante. Veremos também como ocorreu a influência do pensamento iluminista nas questões referentes ao cristianismo. Por fim, na Unidade 3, aprenderemos como a Revolução Francesa modificou as relações entre Igreja e Estado, além do avanço de diversos grupos protestantes tanto na Europa quanto na América. Estudaremos as relações entre a escravidão e as igrejas cristãs, além das mudanças ocorridas na sociedade e seu reflexo nas questões religiosas. Com relação ao catolicismo, veremos o despertar de mudanças significativas nos ritos e nas relações da igreja católica com os demais grupos cristãos, após o Concilio do Vaticano II. Bons estudos! Prof.ª Priscilla da Silva Góes Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos. GIO QR CODE Olá, eu sou a Gio! No livro didático, você encontrará blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que você poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina. A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um novo visual – com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada também digital, em que você pode acompanhar os recursos adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente, apresentamos também este livro no formato digital. Portanto, acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Preparamos também um novo layout. Diante disso, você verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os seus estudos com um material atualizado e de qualidade. ENADE LEMBRETE Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conheci- mento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa- res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confira, acessando o QR Code a seguir. Boa leitura! SUMÁRIO UNIDADE 1 - HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA E MEDIEVAL ................................................... 1 TÓPICO 1 - OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO ..................................................................3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................3 2 O INÍCIO DO CRISTIANISMO ...............................................................................................4 3 INFLUÊNCIAS SOFRIDAS PELO CRISTIANISMO E A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO ......... 7 4 HERESIAS: A LUTA INTERNA DO CRISTIANISMO.............................................................9 4.1 O GNOSTICISMO .................................................................................................................................... 9 4.2 O MONTANISMO .................................................................................................................................. 13 4.3 O ARIANISMO ....................................................................................................................................... 14 4.4 O DONATISMO ...................................................................................................................................... 14 4.5 O PELAGIANISMO ............................................................................................................................... 14 5 A FORMAÇÃO DO CÂNON SAGRADO ............................................................................... 15 6 A FORMAÇÃO DA HIERARQUIA ECLESIÁSTICA CATÓLICA............................................ 17 7 O CRISTIANISMO E O PODER TEMPORAL EM ROMA ...................................................... 20 8 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS DA ANTIGUIDADE ....................................... 22 RESUMO DO TÓPICO 1 .........................................................................................................27 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 28 TÓPICO 2 - O CRISTIANISMO NO PERÍODO MEDIEVAL ..................................................... 31 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 31 2 O PODER PAPAL .............................................................................................................. 32 3 A QUESTÃO ICONOCLASTA ............................................................................................. 34 4 O CISMA DO ORIENTE ...................................................................................................... 36 5 OS MONASTÉRIOS: A FUGA DO MUNDO ......................................................................... 38 6 A REFORMA MONÁSTICA E A REFORMA GREGORIANA ................................................ 40 7 A MÚSICA NA IGREJA ...................................................................................................... 42 8 AS CRUZADAS ................................................................................................................. 44 9 O GRANDE CISMA PAPAL ................................................................................................ 46 10 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS MEDIEVAIS ............................................... 48 RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................................ 50 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................. 51 TÓPICO 3 - AS HERESIAS MEDIEVAIS E A INQUISIÇÃO ................................................... 53 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 53 2 AS HERESIAS MEDIEVAIS ............................................................................................... 53 2.1 OS ALBIGENSES OU CÁTAROS .........................................................................................................54 2.2 OS VALDENSES ...................................................................................................................................56 2.3 JOHN WYCLIFFE ................................................................................................................................. 57 2.4 JOHN HUSS ........................................................................................................................................58 2.5 OS BEGUINOS .....................................................................................................................................59 3 A INQUISIÇÃO MEDIEVAL ................................................................................................ 60 LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................................ 64 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................................ 69 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................................70 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................73 UNIDADE 2 — O CRISTIANISMO NA IDADE MODERNA ....................................................... 77 TÓPICO 1 — AS MUDANÇAS RELIGIOSAS NA IDADE MODERNA .......................................79 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................79 2 O RENASCIMENTO CULTURAL E CIENTÍFICO: REAÇÕES DA IGREJA .......................... 80 3 A INQUISIÇÃO MODERNA ................................................................................................ 86 3.1 ESTATUTOS DE PUREZA DE SANGUE ............................................................................................ 91 RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................................ 92 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 93 TÓPICO 2 - PERÍODO DE REFORMAS ..................................................................................95 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................95 2 A REFORMA PROTESTANTE .............................................................................................95 2.1 O LUTERANISMO ..................................................................................................................................96 2.2 HULDRYCH ZWINGLI .........................................................................................................................101 2.3 O CALVINISMO ...................................................................................................................................103 2.4 OS ANABATISTAS..............................................................................................................................105 2.5 JACÓ ARMÍNIO ..................................................................................................................................108 2.6 O ANGLICANISMO ..............................................................................................................................110 2.7 O PURITANISMO .................................................................................................................................113 2.8 JOHN KNOX E A REFORMA NA ESCÓCIA ....................................................................................114 2.9 OS QUACRES ......................................................................................................................................115 2.10 OS RANTERS .....................................................................................................................................118 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................120 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................ 121 TÓPICO 3 - AS MUDANÇAS NA RELIGIÃO EUROPEIA APÓS A REFORMA ......................123 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................1232 A CONTRARREFORMA CATÓLICA ..................................................................................123 3 O JANSENISMO ...............................................................................................................126 4 O ILUMINISMO E A QUESTÃO RELIGIOSA ...................................................................... 127 5 AS MISSÕES DA ÁSIA......................................................................................................129 6 O PIETISMO ..................................................................................................................... 131 7 O METODISMO .................................................................................................................132 8 O GRANDE AVIVAMENTO NA AMÉRICA DO NORTE .......................................................134 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................138 RESUMO DO TÓPICO 3 ...................................................................................................... 144 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................145 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 147 UNIDADE 3 — A IGREJA NA IDADE CONTEMPORÂNEA ................................................... 151 TÓPICO 1 — A REVOLUÇÃO FRANCESA: O INÍCIO DO ESTADO LAICO E AS MUDANÇAS RELIGIOSAS ..........................................................................................153 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................153 2 A REVOLUÇÃO FRANCESA E A IGREJA ........................................................................154 3 O MOVIMENTO EVANGÉLICO .......................................................................................... 157 3.1 A COMUNIDADE DE CLAPHAM ...................................................................................................... 157 4 O MOVIMENTO DE OXFORD ............................................................................................159 5 A INFLUÊNCIA DE WILLIAM CAREY NAS MISSÕES PROTESTANTES ..........................160 6 O CRISTIANISMO NA AMÉRICA DO NORTE NO SÉCULO XIX: O AVIVAMENTO E A QUESTÃO ESCRAVISTA .................................................................... 161 7 AS MISSÕES CRISTÃS NA ÁFRICA NO SÉCULO XIX ......................................................164 8 A TEOLOGIA LIBERAL PROTESTANTE ...........................................................................166 RESUMO DO TÓPICO 1 .......................................................................................................169 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................170 TÓPICO 2 - O CRISTIANISMO NO MUNDO INDUSTRIALIZADO ....................................... 173 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 173 2 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E OS MOVIMENTOS CRISTÃOS ....................................... 174 3 O EVANGELHO SOCIAL NA AMÉRICA ............................................................................ 176 4 A INFALIBILIDADE PAPAL E O CONCÍLIO DO VATICANO I ........................................... 177 5 O MOVIMENTO FUNDAMENTALISTA PROTESTANTE.................................................... 179 6 O MOVIMENTO DA NEO-ORTODOXIA ............................................................................. 179 7 O PENTECOSTALISMO ...................................................................................................180 8 O NEOPENTECOSTALISMO ............................................................................................182 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................184 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................185 TÓPICO 3 - A IGREJA CATÓLICA NO SÉCULO XX ............................................................187 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................187 2 O CONCÍLIO DO VATICANO II ..........................................................................................187 3 A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA ...................................................................................189 4 O MOVIMENTO CARISMÁTICO ........................................................................................ 191 5 A IGREJA ORTODOXA NO SÉCULO XX ...........................................................................192 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................195 RESUMO DO TÓPICO 3 ...................................................................................................... 202 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................... 203 REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 205 1 UNIDADE 1 - HISTÓRIA DA IGREJA ANTIGA E MEDIEVAL OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer a formação das principais doutrinas cristãs; • entender os conflitos entre judeus e cristãos e, posteriormente cristãos e Império Romano; • examinar o processo para que o cristianismo se tornasse oficial no Império Romano; • estudar as principais ideias consideradas heréticas pela ortodoxia cristã; • identificar os principais teólogos cristãos dos primeiros séculos. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO APÓS A MORTE DE JESUS TÓPICO 2 – O CRISTIANISMO NO PERÍODO MEDIEVAL TÓPICO 3 – AS HERESIAS MEDIEVAIS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1! Acesse o QR Code abaixo: 3 OS PRIMÓRDIOS DO CRISTIANISMO 1 INTRODUÇÃO Então, Jesus aproximou-se deles e disse: ‘Foi-me dada toda a autoridade no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos (Mateus 28:18-20). Estimado acadêmico, provavelmente você já deve conhecer o texto anterior. Tais palavras, segundo a tradição cristã, foram ditas por Jesus aos seus discípulos antes de sua partida da terra. Esse texto ainda hoje tem sido pregado como uma verdadeira ordenança aos cristãos. Imaginemos, então, o impacto dessas palavras na vida dos discípulos, futuros apóstolos, logo após a separação deles do seu Mestre. Imaginemos, ainda, o impacto dessa pregação dentro do contexto judaico, cuja comunidade encontrava-se dividida entre os que seguiam Jesus, como Messias, e os que rechaçavam os ensinamentos de Jesus. Com o Mestre morto, as autoridades judaicas que não concordavam com sua doutrina passaram a atacar ainda mais os cristãos. Nessa época, surgiram os primeiros mártires, mas, também, o início da expansão do cristianismo. E a expansão foi intensa. Os discípulos, animados pela ideia da parúsia, que seria o retorno de Cristo, faziam com que a mensagem cristã se difundisse não só entre os judeus, mas também por províncias romanas que tinhauma religiosidade completamente diferente tanto do judaísmo quanto do cristianismo. Essa religiosidade diversa do império romano foi chamada pelos cristãos de paganismo. Portanto, caro acadêmico, iniciaremos nossos estudos da história da igreja procurando entender os primeiros passos do movimento que convencionou-se chamar de Cristianismo. Abordaremos, neste tópico, os principais conflitos com o judaísmo e a religiosidade romana, assim como os conflitos internos do cristianismo e sua luta para consolidar uma doutrina ortodoxa. Veremos, também, como o cristianismo passou de uma religião perseguida à religião estatal. Por fim, conheceremos os principais nomes dos teólogos que ajudaram a igreja no fortalecimento de sua doutrina. TÓPICO 1 - UNIDADE 1 4 2 O INÍCIO DO CRISTIANISMO No século I, os judeus tinham seu território ocupado pelos romanos. O Império Romano estabeleceu seu domínio por várias regiões como Grécia, Egito, Palestina, dentre outras. A dominação romana obrigava que seus súditos pagassem impostos e proibia que fizessem revoltas, pois o exército estava pronto para combater qualquer tentativa de rebelião. Com a morte de Jesus, seus seguidores, cuja maioria, até então, era composta de judeus, liderados pelos discípulos, passaram a disseminar seus ensinamentos. Tais ideias geraram divergências entre os grupos judaicos que acreditaram que, com a morte do líder, seus ensinos sucumbiriam mais facilmente. A aceitação ao cristianismo, porém, ocorreu rapidamente por outras regiões do império romano, para judeus e não-judeus. A partir disso, surgiu um problema interno relacionado à aceitação do cristianismo por pessoas que não tinham a cultura e a religião judaica. Ritos judaicos comuns aos primeiros seguidores passaram a ser vistos, pelos devotos não judeus, como desnecessários. Assim, ocorreu o processo de separação entre o cristianismo e o judaísmo. Inicialmente, o cristianismo era uma das faces do judaísmo. Os cristãos iam as sinagogas e ao Templo. No entanto, pouco a pouco, foi crescendo a relutância judaica contra a disseminação do cristianismo . Vejamos o que diz o historiador das religiões Eliade: Por outro lado, cumpre ter em conta que os primeiros cristãos, judeus de Jerusalém, constituíam uma seita apocalíptica dentro do judaísmo palestino. Estavam na espera iminente da segunda vinda de Cristo, a parúsia; o que os preocupava era o fim da história, e não a historiografia da espera escatológica. Além disso, como era de prever, em torno da figura do mestre ressuscitado cristalizou-se bem cedo toda uma mitologia que lembra a mitologia dos deuses salvadores e do homem divinamente inspirado (theîos ántropôs). Essa mitologia, [...] é particularmente importante: Ajuda-nos a compreender a dimensão religiosa específica ao cristianismo e também sua história posterior. Os mitos que projetaram Jesus de Nazaré num universo de arquétipos e figuras transcendentais são tão ‘verdadeiros’ quanto seus gestos e palavras: esses mitos confirmam, de fato, a força e a criatividade de sua mensagem original. É aliás, graças a essa mitologia e simbologias universais que a linguagem religiosa do cristianismo torna-se ecumênica e acessível para além do seu foco de origem (ELIADE, 2011a, p. 296). Percebemos então que, para os discípulos que recentemente haviam perdido a convivência com Jesus, a expectativa do retorno deste era esperada para ao quanto antes, colocando o foco na ideia apocalíptica. A pregação sobre os feitos de Jesus e o seu retorno passa a ser a ênfase na pregação dos primeiros cristãos. Esse discurso encontrou eco nas comunidades não judaicas com muita força. Enquanto o cristianismo era rechaçado pelos judeus, passou a ter adesão dos não judeus, como explica Eliade (2011a, p. 301): 5 É na diáspora que se desenvolve a cristologia. O título ‘filho do homem’ – que em grego já não tem sentido – é substituído por ‘filho de Deus’ ou ‘Senhor’ (Kúrios); o termo “messias” é traduzido para o grego (Khristós) e acaba por transformar-se em nome próprio: Jesus Cristo. Portanto, com a ampliação do cristianismo para os domínios pagãos, houve uma nova forma de vivenciar o cristianismo. A partir disso, novos conflitos surgiram. O apóstolo Paulo é considerado o principal agente propagador do cristianismo, inclusive entre populações não judaicas. Ele implantou igrejas em várias regiões, dentre elas: Ásia Menor, Grécia e Macedônia. Porém, foi em Antioquia, na Síria, que se estabeleceram as primeiras comunidades cristãs de origem pagã, sendo nela utilizada pela primeira vez a expressão “cristãos”, para designarem os seguidores de Jesus (ELIADE, 2011a). Após a adesão de vários gentios ao cristianismo, os judeus-cristãos se desentenderam com os novos convertidos, principalmente devido à não observância da circuncisão. Assim, foi convocado o primeiro concílio, realizado em Jerusalém (Atos 15), no qual foi decidido que os pagãos que se convertessem não precisariam seguir todos os ritos judaicos, somente “abster-se das carnes sacrificadas a ídolos, bem como do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas” (ELIADE, 2011a, p. 304). Na década de 60 d.C., teve início a ruptura da relação entre judeus e cristãos. Com a destruição do Templo em Jerusalém e a expulsão dos judeus do império romano, o cristianismo continuou ganhando adeptos entre os gentios. No segundo século, porém, os cristãos foram perseguidos dentro dos domínios romanos, tendo em vista, principalmente, a não aceitação pela adoração aos imperadores romanos (ELIADE, 2011a). Havia rejeição aos cristãos não somente por parte da cúpula romana, mas, também, pela sociedade em geral. De acordo com Shelley (2004), alguns fatores contribuíram para essa hostilidade aos cristãos por parte dos romanos. A acusação de ateísmo é um desses fatores. Como o cristianismo não fazia uso de imagens para representar seu Deus, eles eram tidos pelos romanos como ateus. Outro fator importante era que os judeus receberam do império romano uma espécie de imunidade nas questões de seu culto. Assim, enquanto o cristianismo estava sob a tutela do judaísmo, ele não era perseguido pelos romanos, pois os judeus eram vistos mais como um grupo fechado, no qual não havia a ênfase no proselitismo. Quando, gradualmente, o cristianismo foi se separando do judaísmo e, assim, adotando uma abordagem mais proselitista, o governo romano passou a ver o cristianismo como uma possível ameaça à ordem pública. Também, como dito, os cristãos se opuseram ferrenhamente aos deuses adorados pelos romanos e gregos. Tal rejeição ocorria em festas ou demais ambientes sociais, nos quais os cristãos se recusavam a comer alimentos que haviam sido consagrados aos deuses pagãos. 6 Além disso, outros traços culturais foram rechaçados pelos cristãos, como, por exemplo, as batalhas de gladiadores. Outra razão para os romanos não se agradarem do cristianismo eram as recorrentes denúncias de que, nos cultos cristãos, havia orgias e prática de canibalismo. Quanto ao canibalismo, Shelley (2004) explica que pode ter sido devido a uma má interpretação do rito eucarístico, em que o pão e o vinho são chamados de o sangue e o corpo de Cristo. Ele ressalta, também, que, aos cristãos, eram imputados os motivos para quaisquer desgraças que ocorressem em Roma. Eram verdadeiramente os “bodes-expiatórios” (SHELLEY, 2004). Seguiu-se, então, uma hostilidade para com os cristãos, que saiu da esfera social e passou a ser parte da política de Estado de muitos imperadores romanos (SHELLEY, 2004). Segundo Eliade (2011a), o cristianismo era clandestino em Roma e, os imperadores passaram a publicar alguns decretos anticristãos. O imperador romano Nero (54-68) fomentou uma perseguição acirrada em que “[...]muitos cristãos chegaram a ser crucificados. Alguns eram costurados na pele de animais selvagens e depois cachorros enormes eram atiçados contra eles, que então eram despedaçados. Mulheres eram amarradas a touros furiosos e arrastadas até a morte” (SHELLEY, 2004, p. 47). Em 202, o imperador Septímo Severo proibiu que os cristãos fizessem proselitismo. Já Décio, em 250, deu ordens para que todos os cidadãos romanos fizessem oferendas aos deuses pagãos. Alguns cristãos, com medo das perseguições, aderiram ao edito, mas muitos se opuseram. O clima de perseguição foi intenso até 258, em que os cristãos gozaram de um breve período de paz. Foi então que, no governo do imperador Diocleciano (244-311), ocorreu a perseguição mais longa e sangrenta (ELIADE, 2011a). Nem sempre o estado romano combateu o cristianismo. Houve épocas de calmaria e outras de perseguição mais intensas. Em tais períodos, surgiram pensadores cristãos que tentar mostrar que as ideias do cristianismo não iam de encontro aos ideais sociais dos romanos. Tais homens foram chamados de apologistas. Esta foi a tentativa de fazer com que o cristianismo pudesse viver pacificamente em Roma. Todavia, segundo Eliade (2011a), os apologistas não tiveram sucesso nessa fase e, aos cristãos, era imputado tudo de ruim que acontecesse em Roma. O termo pagão foi dado pelos cristãos para categorizar os adeptos da religiosidade greco-romana. Tanah é o termo em hebraico que diz respeito a totalidade da Bíblia hebraica. NOTA 7 3 INFLUÊNCIAS SOFRIDAS PELO CRISTIANISMO E A SEPARAÇÃO DO JUDAÍSMO Caro acadêmico, devemos ter em vista que toda religião surge em um contexto histórico, político e social. É importante entendermos esses aspectos ao tratarmos de qualquer fenômeno religioso. Assim sendo, veremos agora algumas das influências que o cristianismo teve nos seus primórdios. Vejamos o que o professor Theissen (2009, p. 97, 98) explica: Sob a ótica histórica, o etos cristão primitivo está situado entre o judaísmo e o paganismo. É o etos de um grupo que provém do judaísmo, mas que encontrou a maioria de seus seguidores no paganismo. Ele se diferencia do etos judaico apenas de forma gradual. Ele intensifica e radicaliza os princípios ali existentes, certamente com uma tendência a superá-los mediante uma ‘justiça melhor’ (Mt 5,20). Essa ‘tendência de superação’ é levada adiante no ambiente pagão. Os primeiros cristãos querem corresponder, de maneira exemplar, a muitas normas do mundo pagão circundante. [...] O cristianismo primitivo introduz no mundo pagão dois valores oriundos da tradição judaica, os quais, dessa forma, são novos: O amor ao próximo e humildade (ou a renúncia ao status). Ao lado de uma acomodação dos valores e normas do mundo pagão (com pretensão de superioridade), surge, por conseguinte, a consciência de uma antinomia em relação a ele. Paralelamente à pretensão de cumprir melhor do que todos os demais as normas comuns do mundo ambiente, surge uma consciência contracultural de que a religião cristã primitiva mostra-se quase como uma ‘religião-de-excêntricos’. Portanto, para entender o cristianismo em suas origens, é fundamental ter em vista as características principais da religiosidade judaica na época de Cristo, assim como aspectos da religiosidade romana. E, da mesma forma que o cristianismo incorporou traços do paganismo, também contribuiu para mudanças na estrutura desta última tradição, assim como valores judaicos foram assimilados pelo cristianismo e transportados para a sociedade pagã. Uma das alterações empreendidas pelo cristianismo, em relação ao judaísmo, foi o rompimento com um importante rito praticado pelos judeus: o sacrifício no Templo de Jerusalém. Com a destruição do Templo, os judeus pararam de realizar os rituais de sacrifícios e dedicaram-se nas sinagogas aos estudos da Torá, do Midrash e do Tamuld. Porém, até hoje, boa parte da comunidade religiosa judaica espera poder retomar os sacrifícios quando o Templo for reerguido. O cristianismo, entretanto, reelaborou a ideia do sacrifício por meio de Jesus. A morte de Cristo é considerada o ápice de todos os rituais realizados no Templo. Foi o ato mais importante para a humanidade, pois, por meio dele, não há mais necessidade da utilização de animais para o sacrifício. Desse modo, a mensagem da morte e ressurreição de Jesus tornou-se o ponto principal do cristianismo e sua principal ruptura com o judaísmo, então, a simbologia ritualística adotada pelo cristianismo foi modificada (THEISSEN, 2009, p.171). A mudança do ritual foi uma quebra no paradigma do mundo religioso antigo, tendo em vista que tanto a religião romana quanto as outras religiões do mundo antigo usavam o sacrifício de animais como o principal rito realizado. 8 Nessa fase, o cristianismo inaugurou uma nova forma de expressão ritual, muito mais simbólica, a eucaristia. O momento eucarístico consiste em um ato de transubstanciação, em que duas substâncias terrenas, o pão e o vinho, são transformadas, respectivamente, no corpo e no sangue de Cristo. Esse ato substituiu a imolação de animais. Além da ceia eucarística, o batismo é outro principal rito simbólico praticado por essa nova comunidade religiosa. O batismo representa a introdução à nova jornada religiosa e a eucaristia é a promoção da contínua comunhão entre os fiéis, ao reviverem o sacrifício sagrado feito por Jesus Cristo (THEISSEN, 2009). Outra alteração que a inclusão de não-judeus ao cristianismo trouxe diz respeito aos espaços de culto. Os espaços de cultos judaicos não poderiam ser frequentados por quem não fosse judeu. A partir disso, surgiu a necessidade de reuniões somente entre cristãos, o que gerou o afastamento mais intenso entre cristianismo e judaísmo. Ademais, os cristãos trouxeram uma nova visão sobre espaço de culto, em que o templo passa a ser a pessoa, não o local. Com isso: A ideia de que a comunidade – isto é a congregação e pessoas – é o templo de Deus, favoreceu também o surgimento das igrejas domésticas. As casas particulares constituíram-se no lugar de reunião e de culto das comunidades cristãs durante séculos [...] até que a própria expansão missionária tornou necessário buscar espaços mais amplos para as reuniões (ESTRADA, 2005, p. 159). Foi, então, no final do século I e início do II que o cristianismo começou a traçar sua organização de forma mais estruturada, buscando, em especial, a divulgação de suas ideias (ESTRADA, 2005). Assim sendo, o caráter universalista do cristianismo foi criando forma. Tal fato levou um tempo para acontecer pois, inicialmente, a mensagem vinha diretamente do único líder: Jesus. Após a morte de Jesus e principalmente depois de Pentecostes, o cristianismo passou a ter vários líderes, e em vários lugares pois o cristianismo se expandiu (JOHNSON, 2001). O encontro com contextos culturais e religiosos diversos e o afastamento temporal com os primeiros discípulos que haviam ouvido, de perto, a mensagem de Jesus geraram diversas interpretações das ideias cristãs, surgindo, então, a luta entre a ortodoxia e o que ficou caracterizado como heresia. Para conhecer mais dos conflitos entre cristãos, judeus e pagãos, vejam o filme Alexandria (Ágora), dirigido por Alejandro Amenábar, maiores informações em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-134194/. DICA 9 4 HERESIAS: A LUTA INTERNA DO CRISTIANISMO Caro discente, devemos ter em vista que, com a destruição do Templo, a separação entre cristianismo e o judaísmo ocorreu com maior veemência, como já discutimos. O cristianismo foi se ampliando nos domínios romanos e, com isso, ficava cada vez mais difícil manter um cristianismo centrado em umaúnica forma de pensar. Foi assim que interpretações diversas começaram a ocorrer, fazendo com que um grupo tomasse para si o direito de se definir como ortodoxia, ou seja, os que receberam os ensinos dos primeiros apóstolos e repassaram de forma “correta”. As ideias que surgiram e que não estavam de acordo com tal ortodoxia passaram a ser tratadas como heresias e rechaçadas pelo grupo dominante. Dentre as principais questões levantadas, estavam as seguintes: se realmente houve a ressurreição de Cristo; se Jesus veio em carne ou somente em espírito; se haverá ressurreição e juízo final; se as mulheres poderiam fazer parte da liderança, entre outros pontos. De acordo com Johnson (2001), a igreja cristã não conseguiu se expandir com ideias uniformes devido, principalmente, à tradição oral, tendo em vista que o cânon considerado sagrado levou um tempo para ser compilado e, mesmo depois de pronto, não era disponível para todos, sendo assim: “cada igreja tinha sua própria ‘história de Jesus’, e todas haviam sido fundadas por um membro do bando original, que passara a tocha adiante para um sucessor designado, e assim por diante” (JOHNSON, 2001, p. 59). Tendo em vista tal realidade, veremos, a seguir, alguns desses movimentos considerados heréticos e seus impactos na cristandade dos primeiros séculos. 4.1 O GNOSTICISMO A luta contra o gnosticismo perdurou durante anos no cristianismo, se estendendo até o período do Medievo. Um dos principais aspectos defendidos por esse movimento era a crença não só na ideia do bem e do mal, mas também na existência de um código secreto na religião que só seria revelado a alguns. Ao aceitar tais ideias, o indivíduo, que antes “dormia”, “acordava” por meio da gnose, passando a conhecer a verdade (JOHNSON, 2001). Vejamos a explicação de Johnson: O gnosticismo é uma religião do ‘conhecimento’ – é esse o significado da palavra – que afirma deter uma explicação interna para a vida. Daí ele ter sido, e, na verdade, ser ainda, um parasita espiritual, valendo- se de outras religiões como ‘portadoras’. O cristianismo prestava-se muito bem a esse papel. Tinha um fundador misterioso, Jesus, que misteriosamente desaparecera, deixando para trás um conjunto de ditos e seguidores para transmiti-los; e claro que além dos ditos públicos haviam os ‘secretos’, transmitidos geração a geração por membros da seita. Assim, certos grupos gnósticos aproveitaram-se de pedaços do cristianismo, mas tendiam a isolá-los de suas origens históricas (JOHNSON, 2001, p. 60). 10 A partir do excerto, vemos que o gnosticismo não surgiu no cristianismo. As suas ideias já se encontravam em outras religiões antigas e, uma vez que o cristianismo foi se expandindo a diferentes povos, tais ideias passaram a ser internalizadas no cristianismo, afastando-o, inclusive, de seu contexto judaico. Tal questão foi importante para a adesão das ideias gnósticas cristãs por gregos, principalmente. No contexto do Novo Testamento, vemos que o próprio apóstolo Paulo combateu veementemente o gnosticismo (JOHNSON, 2001). O gnosticismo cristão teve vertentes diferentes, porém, algumas ideias foram comuns. A teologia cristã foi desenvolvida visando combater o que era considerado heresia. Sendo assim, o gnosticismo foi, sem dúvida, o seu principal rival na Idade Antiga. Vejamos como Shelley explica alguns dos pensamentos gnósticos: O relacionamento da série de emanações variava nas diferentes escolas gnósticas. Mas elas concordavam em que, de alguma forma, a luz pura do paraíso na alma do homem acabou envolvida pela desagradável questão da matéria e tinha de ser redimida. Os gnósticos gostavam da ideia de o bom Deus ter enviado Cristo, e, por isso, pensavam que a última divindade enviara ao mundo um de seus ‘poderes’ subordinados, chamado ‘Cristo’, para libertar o homem das correntes da matéria. Mas Cristo não poderia ter contato real com a matéria. Portanto, no batismo de Jesus de Nazaré, ou nessa época, Cristo desceu para dele; na prisão de Jesus, ou nessa ocasião, ele se retirou. Quem foi açoitado e assassinado não foi o Cristo (SHELLEY, 2004, p. 59). Por meio de tais percepções, vemos que o campo do pensamento gnóstico afastava a ideia de Jesus Cristo fazer parte da Trindade, tendo os mesmos atributos de Deus. Além disso, a encarnação de Cristo era colocada como errônea, ou, em alguns casos, como tendo sido substituída em determinadas horas, como o excerto exposto. Um dos exemplos de grupos cristãos com ideias gnósticas foi conduzido por Marcião (85-160). Ele era um grego que fora para Roma por volta de 120, convertido ao cristianismo, dizia ser da escola de Paulo e procurava divulgar o cristianismo. Ele ficou conhecido como um exímio heresiarca em seu período, fundando ideias que ficaram conhecidas como marcionismo. Marcião concordava que os ensinos do apóstolo Paulo eram os mais próximos do que Jesus havia pregado, porém, sobre os escritos sagrados, ele renunciou todo o Antigo Testamento e, do Novo testamento, aceitou apenas parte do evangelho de Lucas e Atos e os escritos paulinos. Com isso, ele rompia radicalmente com o fio de ligação entre judaísmo e cristianismo (JOHNSON, 2001; ELIADE, 2011a). Para ele, o Deus do Antigo Testamento era: “monstruoso, cruel, sangrento, patrono de rufiões como Davi” (JOHNSON, 2001, p. 61). 11 Marcião foi denunciado como herege, excomungado e nenhum dos seus livros chegou aos nossos dias. Suas principais ideias, assim como as de outros considerados hereges, chegaram até nós por meio dos escritos que o acusavam (JOHNSON, 2001). Assim, é importante entendermos que, muitas vezes, essas acusações não correspondiam à verdade do pensamento do acusado. Apesar de toda rejeição, Marcião fundou uma igreja e conseguiu com que parte da comunidade cristã da Bacia do Mediterrâneo aderisse suas ideias. A sua igreja, inclusive, conseguiu angariar uma boa quantia financeira. Porém, ela não passou do século III (ELIADE, 2011a). Vejamos uma síntese do seu pensamento: Marcião compartilha o essencial do dualismo gnóstico, sem, entretanto, incluir as implicações apocalípticas. Seu sistema dualista contrapõe a lei e a justiça, instituídas pelo Deus criador do Antigo Testamento, ao amor e ao Evangelho revelados pelo Deus bom. Este último envia seu filho, Jesus Cristo, para libertar os homens da escravidão da lei. Jesus reveste um corpo capaz de sentir e sofrer, embora não seja material. Em sua pregação, Jesus exalta o Deus bom, mas evita esclarecer que não se trata do Deus do Antigo Testamento. Por outro lado, é pela pregação de Jesus que Javé é informado da existência de um Deus transcendente. Vinga-se entregando Jesus a seus perseguidores. Mas a morte na cruz traz a salvação, pois, com seu sacrifício, Jesus resgata a humanidade do Deus criador. No entanto, o mundo continua sobre o domínio de Javé, e os fiéis serão perseguidos até o fim dos tempos. Só então é que o Deus bom se dará a conhecer: receberá os fiéis em seu Reino, enquanto o resto dos homens, bem como a matéria e o Criador, serão definitivamente destruídos (ELIADE, 2011a, p. 327). Na explicação de Eliade, conseguimos perceber os elementos do gnosticismo no pensamento de Marcião. O dualismo muito presente, principalmente na ideia do Deus bom versus Deus mau. O dualismo está presente, também, na ideia de que Cristo não veio em carne, mas em um corpo diferenciado, como um espírito. Um dos grandes críticos de Marcião foi Tertuliano (160-220). Enquanto o primeiro enfatizava Deus como o princípio do amor, sendo este suficiente, ao segundo importava fazer uso do temor a Deus, pois somente se obedece e se respeita a quem se teme, vejamos: A controvérsia de Marcião e Tertuliano nos proporciona um vislumbre, talvez pela primeira vez, de doistipos básicos de cristianismo: o otimista racional, que crê que o princípio do amor seja suficiente, com o homem tendo um desejo essencial de praticar o bem, e o pessimista, convencido da corruptibilidade básica das criaturas humanas e da necessidade do mecanismo de danação (JOHNSON, 2001, p. 62). Outro ponto crucial nos ensinos de Marcião, que muitos gnósticos aceitavam também, era a oposição ao casamento. Ele defendia que o casamento fora um ato criado pelo Deus do Antigo Testamento que visava à procriação, portanto, não deveria ser realizado. Porém, outras vertentes gnósticas não se opuseram ao casamento e, em alguns casos, praticavam também orgias. 12 Outro grupo que difundiu as ideias gnósticas dentro do cristianismo foram os Valentinianos, liderados por Valentino (100-160). Eles acreditavam que o verdadeiro ser do indivíduo é o espiritual, em contraponto ao carnal. O espiritual estaria adormecido, preso nesse mundo, porém, a partir da gnose, haveria a salvação quando esse ser estivesse livre da prisão carnal. Nessa concepção, as ideias contrastantes/dualistas estão sempre presentes: “espírito/matéria, divino (transcendente)/antidivino; o mito da queda da alma (alma = espírito, parcela divina), ou seja, a encarnação em um corpo (assimilado a uma prisão); e a certeza da libertação (a ‘salvação’) obtida graças à gnose” (ELIADE, 2011a, p. 324). A gnose cristã seria o ensinamento que Jesus deixou para alguns escolhidos e estes foram divulgando a outros. Os gnósticos, portanto, fariam parte de uma casta separada que seria salva, os santos (ELIADE, 2011a). Valentino foi um dos grandes pensadores e divulgadores do gnosticismo cristão do século II (MATIAS, 2011). Ele chegou, inclusive, a se candidatar ao cargo de bispo em Roma, mas não chegou a ser escolhido. Segundo Matias (2011, p. 2482), “Valentino afirmava que aprendeu seus ensinamentos secretos com Teúdas, um dos discípulos de Paulo, os seguidores de Valentino afirmavam que somente os seus evangelhos e revelações continham tais ensinamentos”. Temos, aqui, uma das principais filosofias do gnosticismo, que consistia em ideias escondidas, reveladas somente a um grupo de seguidores. Um fator curioso da história de Valentino era que ele e seus seguidores não queriam o afastamento da igreja, tendo lutado por muito tempo contra a expulsão deles do meio considerado ortodoxo (MATIAS, 2011). Outro fator relevante dos movimentos tidos como seitas gnósticas era de que se diferenciavam do cristianismo mais geral quanto à universalidade do ensino, tendo em vista que eles preconizavam um conhecimento secreto, revelado aos seus. Além disso, suas reuniões poderiam ser feitas em qualquer espaço, não havendo uma complexidade em seu culto (MATIAS, 2011). Também, os grupos gnósticos eram constantemente acusados de estarem na igreja somente para atrair outros cristãos as reuniões, em que as ideias gnósticas eram ensinadas. Para o grupo dos Valentinianos, a humanidade estaria dividida em três categorias: os choics, que seriam as pessoas que só se preocupavam com as coisas terrenas, cotidianas; os psíquicos, que englobavam os religiosos em geral e, os pneumos que seriam os gnósticos (MATIAS, 2011). Portanto, a função do terceiro grupo seria desvelar a verdade para que outros pudessem “acordar” e obter a salvação, juntando-se ao terceiro grupo. Outro movimento importante ficou conhecido como docetismo. Tal grupo também defendia que Cristo não veio à terra em carne, pois seria uma humilhação, assim como seria uma humilhação morrer na cruz. Segundo eles, Cristo apenas teve uma aparência de homem. Segundo o docetismo, a crucificação teria sido feita por outra pessoa (ELIADE, 2011a). 13 4.2 O MONTANISMO Segundo Estrada (2005), o movimento montanista surgiu no século II, fundado por Montano da Frígia, que era auxiliado por Priscila e Maximila. Além de ter produzido escritos, eles tinham uma concepção de cristianismo voltada à escatologia e aos carismas. Uma das suas principais divergências com relação aos outros grupos cristãos era de que os carismas tinham sido esquecidos por eles, vejamos: “O movimento era composto por carismáticos, que eram arrebatados pelo Espírito e enriquecidos com uma infinidade de êxtases, oráculos, visões e profecias” (ESTRADA, 2005, p. 271). Além disso, o montanismo aceitava a participação feminina de modo ativo, pregava a importância do celibato e, assim, não encorajava o casamento, pois a necessidade maior era se preparar para o fim dos tempos. Tais posturas foram severamente criticadas por muitos grupos de cristãos, apesar de sua vasta difusão em diversas igrejas do Ocidente. Os montanistas foram duramente perseguidos por bispos, e, por isso, estes eram chamados de “assassinos de profetas” (ESTRADA, 2005, p. 272). Ao final do século, com o movimento consolidado, várias de suas igrejas faziam concorrência com a igreja considerada oficial, ao passo que esta não mediu esforços na realização de concílios e excomunhão de quem seguia os ensinamentos do montanismo. Um dos seus mais conhecidos seguidores foi o teólogo Tertuliano, e, segundo ele, tais concepções não eram novas, pois estavam seguindo os ensinamentos de Cristo e o que acontecera com a descida do Espírito Santo. Todavia, era uma forma de vida que procurava ser mais perfeita, devido à severidade de suas práticas (ESTRADA, 2005, p. 273). O movimento durou até o século IV. Sobre Tertuliano, Paul Johnson (2001) comenta: O caso de Tertuliano oferece um vislumbre precioso, sob alguns aspectos único, do funcionamento da Igreja primitiva. Aqui estava um grande estadista da igreja, homem de impecável retidão e fé ardorosa, abraçando a heresia. Sua aderência, assim, solapa por completo os ataques ortodoxos a moral e ao comportamento público dos montanistas, proporciona, de qualquer modo, um selo de aprovação ética para o movimento (JOHNSON, 2001, p. 66). Portanto, vemos que as heresias não chamavam a atenção somente de pessoas iletradas, mas também de intelectuais da igreja. Nesse caso, o fervor religioso dado por meio dos êxtases, a busca por uma vida santa, acabou trazendo para o meio do montanismo um teólogo tão apreciado pela ortodoxia cristã como Tertuliano. 14 4.3 O ARIANISMO No século IV, outro grupo tentou abalar os alicerces do que ficou conhecido como ortodoxia cristã. Um sacerdote de Alexandria, Ário, passou a questionar a ideia da Trindade. Ele negou “[...] a consubstancialidade das três pessoas divinas. Para ele, Deus é único e incriado; o filho e o Espírito Santo foram criados mais tarde pelo pai, e, portanto, lhe são inferiores” (ELIADE, 2011a, p. 355). Claro que essas declarações foram rejeitadas pela igreja, tendo repercutido negativamente e sendo considerada tão errônea essa ideia, que foi convocado o concílio de Niceia para dar conta do assunto. 4.4 O DONATISMO As ideias donatistas tiveram início em Cartago, por volta do ano 332, com o bispo Donato e foram consideradas heréticas. Eles também foram considerados como um dos primeiros movimentos cismáticos, ou seja, que quiseram se separar da Igreja. Um dos primeiros desentendimentos ocorreu em virtude do acolhimento que a Igreja deu a algumas pessoas que haviam sido consideradas traidoras, pois, em um momento de perseguição, essas se apartaram do cristianismo. Um desses “traidores” foi colocado como presbítero-supervisor da região de Cartago, no Norte da África. Tal decisão não foi aceita pela igreja no norte da África e eles escolheram outra pessoa como presbítero-supervisor. Essa atitude gerou um clima de cisão. Segundo Johnson (2001, p. 104) “era um movimento de homens pobres liderados por um clero puritano” e, ainda: “Para Agostinho, [...] eles eram agentes da anarquia e do horror social, ‘hordas ensandecidasde homens abandonados’. Segundo ele, celebravam seus mártires promovendo distúrbios, em meio a bebedeiras”. Agostinho de Hipona foi um duro crítico deste movimento. Estando do lado católico, considerava os donatistas como hereges. Outro ponto defendido pelos donatistas é que eles esperavam que cada igreja local tivesse autonomia e que não precisassem seguir as ordens da igreja de Roma. Além disso, eles prezavam pela separação entre igreja e Estado (SANTOS, 2016). Porém, como o cristianismo conseguiu a adesão do Império Romano por meio do Edito de Milão, era mais fácil manter a igreja sendo governada a partir de Roma do que mantê-la independente, ou seja, cada cidade com seus líderes. 4.5 O PELAGIANISMO Atribui-se a Pelágio ser o criador das ideias pelagianas. Este teria nascido por volta do ano 350 e falecido em 428. Não se sabe ao certo onde nasceu, e foi morar em Roma no ano 405. Praticante do ascetismo, Pelágio considerava que o pecado 15 ocorria pela vontade do homem, assim, o salvar-se dependia somente do homem, não concordando, então, que a Graça de Deus é que salva (SILVA, 2014). Vejamos um dos seus argumentos: Pelágio afirmava categoricamente que o dogma do livre arbítrio era um absurdo. As passagens bíblicas do Gênesis deviam ser relidas, pois não era possível que o pecado de um ser humano, atavicamente, atravessasse toda a história. Cada indivíduo, necessariamente munido das orientações da Igreja e praticando os exercícios espirituais, de per si, era capaz de ‘combater’ o pecado (SILVA, 2014, p. 51). Assim, é possível perceber que o que propunha Pelágio ia de encontro a um dos principais dogmas do cristianismo, ou seja, a Graça de Deus é que salva e que todo o homem é pecador. Para o cristianismo, foi o sacrifício de Cristo que concedeu a salvação ao homem. Ele também atacava a questão do pecado original, não acreditando que as crianças tivessem pecados, por isso, não concordavam com o batismo de crianças. A forma de pensar de Pelágio se espalhou e ele conseguiu vários adeptos e, no Sínodo de Cartago (397) que suas doutrinas foram condenadas como heréticas. 5 A FORMAÇÃO DO CÂNON SAGRADO A expressão “Cânon sagrado”, que hoje faz referência aos escritos bíblicos, é derivada da palavra grega kanon (reta). Ela foi usada para os textos sagrados com o intuito de simbolizar a régua, ou o padrão que os cristãos deveriam seguir (BRUCE, 2011). Após a morte de Jesus, seus discípulos, que mais tarde ficaram conhecidos como apóstolos, passaram a divulgar os feitos de Jesus em diversas localidades, muitas vezes por meio de cartas que eram lidas por diferentes igrejas, servindo para instruir os cristãos. Depois da morte dos apóstolos que haviam vivido com Jesus, a tornou-se muito necessária a leitura de seus testemunhos, para que a mensagem de Jesus não se perdesse ou fosse deturpada. Caro acadêmico, estudamos, no subtópico anterior, os conflitos internos que o cristianismo estava vivendo com relação às heresias, principalmente ao gnosticismo. Tais conflitos foram a mola propulsora da escrita apologética dos pais da igreja, como ficaram conhecidos os primeiros teólogos cristãos, e, também, foi colocada a importância de se decidir quais livros entrariam ou não no compêndio final do que veio a ser a Bíblia cristã. Várias discussões a esse respeito ocorreram. Veremos, a partir de agora, os principais fatores que levaram a igreja cristã a aceitar alguns livros como inspirados e dignos de entrar no cânon sagrado e outros não. O termo “bíblia” fazia referência ao conjunto de livros, passando a representar o livro sagrado (SHELLEY, 2004). Como Jesus nasceu e pregou no meio judaico, os Escritos que eram sagrados para o judaísmo entraram no cânon cristão. Mesmo com a discordância de alguns grupos, principalmente dos gnósticos, como já pontuamos, 16 aceitar os escritos do Antigo testamento fazia sentido, pois eles ratificavam a importância do Messias para o mundo, que os cristãos afirmavam ser Jesus. Sem o Antigo Testamento, o peso da vinda do Messias não seria tão enfático. O próprio Jesus, a todo instante, retomava as passagens do Tanah, mostrando que as profecias se cumpriam de acordo com a caminhada dele. Portanto, o Antigo Testamento passou a ter um novo significado para a cristandade, pois ele foi completado pelos escritos dos seguidores de Jesus, que se convencionou chamar de Novo Testamento. Porém, vale lembrar que, para os judeus, o termo “Antigo/Velho” testamento não é bem-visto, pois, para eles, nada ficou velho, pois é esse escrito que para eles é sagrado. Sobre a aceitação do Tanah, vejamos o que diz Shelley: Quando os cristãos reivindicaram o uso do Antigo Testamento, não definiram quais os livros que essa reivindicação incluía. Naquele tempo, os cristãos divergiam sobre a inclusão ou exclusão dos chamados apócrifos na lista de livros do Antigo testamento. O termo aplica-se a dose ou quinze livros, dependendo de como são agrupados, os quais são aceitos pelos católicos romanos como canônicos e rejeitados pela maioria dos protestantes (SHELLEY, 2004, p. 68). Sobre a aceitação dos livros que não estavam no cânon judaico, Agostinho de Hipona foi a favor, e, assim, eles passaram a fazer parte do cânon católico. Na época da Reforma Protestante, essa questão foi revista e, com isso, alguns reformadores preferiram deixar somente os livros que constavam no cânon judaico (SHELLEY, 2004). Vejamos, também a explicação de Johnson: Em geral, a figura determinante na evolução do cânon foi Eusébio, cujo objetivo era associar o mais intimamente possível a doutrina e estrutura de facto da igreja a suas credenciais documentais; após sua morte, documentos úteis que ele considera duvidoso, foram aceitos como canônicos, o processo, estando praticamente concluído em 367, quando Atanásio apresentou uma lista de suas Cartas Pascais. Nessa época, o Novo Testamento, aproximadamente como conhecemos hoje, havia sobrepujado, em grande parte, as antigas escrituras hebraicas como o principal instrumento doutrinário da igreja. Era uma ferramenta que fora moldada na Igreja e não o contrário (JOHNSON, 2001, p. 72). Percebemos, na fala de Johnson (2001), que a compilação do cânon bíblico foi feita de acordo com as premissas do setor da Igreja que tomava para si a função de guardiã da ortodoxia. A controvérsia maior aconteceu na compilação do Novo Testamento. Um dos critérios adotados foi perceber se era um escrito já lido nas igrejas cristãs de diferentes localidades (SHELLEY, 2004). Outro fator importante apontado por Shelley (2004) é se o livro foi ou não escrito por algum apóstolo ou por alguém que convivera com um apóstolo. A autoridade dos apóstolos era evidenciada, pois foram eles que conviveram com Jesus e, portanto, tinham a essência do cristianismo exposta em seus escritos. 17 6 A FORMAÇÃO DA HIERARQUIA ECLESIÁSTICA CATÓLICA Caros alunos, como já expusemos, após a morte dos apóstolos, outros seguidores passaram a assumir a liderança nas diversas cidades onde o cristianismo conseguiu chegar. Com o passar do tempo, tais lideranças, que foram chamadas de bispos, passaram a responder pelo cristianismo, como líderes que descendiam da tradição dos apóstolos. Com a expansão do cristianismo no Império Romano, o bispo de Roma passou a ter um papel de destaque dentro do cristianismo. Essa força foi ampliada ainda mais quando houve a necessidade de combater o que era considerado heresia. Além das heresias, a igreja cristã não tolerava comportamentos que não correspondessem a uma moralidade rígida, como nos lembra Shelley (2004, p. 81): “[...] essas comunidades cristãs tentaram regular sua vida em comum pelos princípios da mais estrita moralidade, nãotolerando membros pecaminosos no meio delas. Os pecadores obscenos eram expulsos do meio da igreja”. Lembremos que, no contexto social greco-romano, a moralidade era totalmente diferente do que preconizava o cristianismo. As questões relacionadas à admissão ou não de alguém que houvesse cometido algo considerado como um pecado grave dentro da igreja passavam pelo bispo local. Havia muita discussão entre os bispos e teólogos sobre quais tipos de erros poderiam ser perdoados: “Calixto (217-222) readmitiu os membros arrependidos que tinham cometido adultério. Para ele, a igreja era como a arca de Noé. Nela, podiam ser encontrados tanto os animais puros como os impuros” (SHELLEY, 2004, p. 81). Calixto ainda atribuiu à igreja, pela primeira vez, a função das chaves dadas a Pedro por Cristo (SHELLEY, 2004). Com o cânon bíblico formado, era necessária também sua explicação. Caro acadêmico, analise, então: se a igreja já procurava combater o que era considerado heresia, agora com o Novo Testamento já compilado, quem você acha que teria a responsabilidade de explicar/decodificar o que dizia o livro sagrado? Claro que a igreja tomou para si essa responsabilidade. Tal questão foi consolidada, posteriormente, na ideia de que a Igreja Católica tem sua base na Bíblia e na Tradição, pois é ela que autentica a forma de interpretar a Bíblia. A questão da interpretação da Bíblia foi crucial para que houvesse um clero unificado dentro do cristianismo (JOHNSON, 2001). [...] a autoridade do bispo foi, então, escorada na compilação de listas episcopais remontando às origens apostólicas. Todas essas Igrejas produziram seus levantamentos e nenhuma delas, isoladamente, tinham que arcar com o ônus de provar que sua doutrina era a pregada a princípio. Assim, as Igrejas instituíram a intercomunhão e a defesa mútua contra a heresia, com base no episcopado monárquico e sua genealogia apostólica (JOHNSON, 2001, 73). 18 Outra mudança importante ressaltada por Johnson (2001) foi que somente um bispo poderia consagrar outro. Com a escolha de um cânon único, o fortalecimento dos bispos, principalmente o de Roma, as heresias sendo combatidas e o cristianismo se expandindo, a igreja foi conseguindo se consolidar no Império Romano. Além disso, com o aumento da intelectualidade se convertendo ao cristianismo, o credo e a teologia se solidificaram e conquistaram, posteriormente, outras regiões. O controle do clero nos assuntos religiosos ficava cada vez mais latente. Temia- se que mais heresias nascessem, se espalhassem e, com isso, dividissem a comunidade cristã. Os cultos, que durante muito tempo eram celebrados em casas ou em catacumbas, precisavam de espaços maiores, pois o número de fiéis era cada vez mais crescente. Assim, com reuniões em locais mais amplos, dirigidas pelo bispo, manter a doutrina mais coesa seria mais fácil. Além disso, como o batismo e a eucaristia passaram a ser os principais ritos, eles deveriam ser celebrados pelo bispo. Estada (2005), explica que o culto sofreu influências judaicas, mas aos poucos foi tomando uma forma própria. Os sacerdotes aumentavam seu poder, enquanto o papel dos leigos foi diminuindo. Somente no século IV é que a liturgia começou a ser oficializada. Antes disso, cada região cultuava de acordo com sua cultura (ESTRADA, 2005, p. 372). O papel do bispo também foi mudando, como explica Estrada (2005, p. 376): “O incremento do número de membros da Igreja contribuiu para a burocratização do bispo, para seu distanciamento do culto e para a dissolução do estreito vínculo existente entre o bispo e seu presbitério”. O autor também ressalta que o formato de bispo atualmente, que está distanciado do povo, lotado em uma cúria, com tarefas mais burocráticas, foi algo implementado no período medieval, e esse modelo suscita, constantemente, desagrado entre alguns teólogos católicos (ESTRADA, 2005). Vejamos, a seguir, a importância que os bispos passaram a ter para o cristianismo: Os bispos pregavam, instruíam a congregação, batizavam os catecúmenos, impunham penitências aos pecadores, sustentavam os princípios ortodoxos contra os heréticos, ordenavam presbíteros e diáconos e participavam dos concílios. Aos poucos, vão adquirindo também capacidade jurídica sobre os membros do seu clero e os leigos da sua congregação, um privilégio que, mais tarde, será ratificado e expandido pela legislação imperial. No IV século, à medida que avança o processo de cristianização nos meios urbanos, a autoridade episcopal passa a ser exercida também em assuntos que dizem respeito ao funcionamento do corpo cívico, como, por exemplo, a administração da justiça, a organização do abastecimento de víveres em tempos de escassez, a defesa da cidade contra as investidas dos bárbaros e a representação do povo junto à corte. A partir de então, as tarefas do bispo se deslocam do âmbito da ecclesia para o da civitas, o que lhe confere a capacidade de, em muitas circunstâncias, interpelar o próprio imperador sobre a sua conduta pública e privada. Os bispos se tornam, desse modo, agentes políticos extremamente influentes, cuja posição é reforçada pelo apoio que amiúde lhes tributa a população urbana, sempre pronta a tomar a defesa do seu líder espiritual (SILVA, 2010, p. 115). 19 A partir da citação anterior, observamos como, aos poucos, a cúpula religiosa passou a influenciar também a organização estatal. Além do bispo, outro cargo relevante dentro da Igreja cristã foi o de diácono, que respondia aos bispos e presbíteros. Com o passar do tempo, sua função passou a ser de auxiliar do bispo (ESTRADA, 2005). Quanto mais aumentava o número de adeptos ao cristianismo, mais aumentava também o clero. Em Roma, ele passou a ser dividido da seguinte maneira: Os diáconos e subdiáconos encarregavam-se da atenção aos pobres. [...]. A ‘diocese’ era uma unidade administrativa política. Diocleciano dividiu o império em 12 dioceses, que abrangiam várias províncias, e que equivaliam, em termos eclesiásticos, aos patriarcados. Por outro lado, o território do bispo, inicialmente, era a ‘paróquia’, e somente a partir do século XIII se impôs o termo ‘diocese’ (ESTRADA, 2005, p. 406). Caro acadêmico, deu para notar que, com o crescimento do cristianismo, foi se tornando necessário organizar não só a doutrina, tendo em vista as heresias, mas também a funcionalidade de cada cargo na igreja. Para tal formação, foi incorporado muito das características administrativa de Roma. A estrutura foi sendo ampliada na Idade Média e Moderna, até termos a forma atual. Veremos, agora, como foi estruturado o cargo mais elevado da igreja, o de pontífice. É sabido que o cargo de pontífice é, para a Igreja Católica, equivale à sucessão do apóstolo Pedro, tendo em vista a passagem dos evangelhos em que Jesus teria deixado a chave da igreja para Pedro (Mateus 16:16-19). Porém, a formalidade do papado e sua sucessão ocorreu posteriormente. O aspecto da preponderância do papa em relação aos bispos e demais cargos eclesiásticos não foi aceito unanimemente. Foram feitas várias discussões internas para que o cargo e suas funções fossem plenamente aceitos. Porém, como já vimos, a Igreja em Roma passou a usufruir de um status importante perante a comunidade cristã. Ela acreditava ser o polo em que a ortodoxia cristã foi preservada, além de ser a capital do império romano e, poderiam contar com um poderio econômico também. Estrada comenta: “Roma começa a tornar-se uma instância por meio da qual se recorre quando há conflitos nas igrejas do Ocidente. No século III, há intervenções que denotam sua autoridade na igreja latina, embora só intervenha em casos excepcionais, tendo necessidade de aceitar a independência de bispos” (ESTRADA, 2005, p. 452).Inicialmente, a igreja em Roma procurava não intervir em outras igrejas, a não ser se visse que era necessário. A igreja do norte da África procurava andar livre da igreja de Roma, porém, com as mudanças históricas ocorridas nessa região, decorrentes das invasões bárbaras, que praticamente acabaram com o cristianismo na região, o papado ganhou mais força em Roma (ESTRADA, 2005). Sobre a função do papa, o autor ainda expõe: Não se pode esquecer que o bispo de Roma possui três âmbitos distintos de autoridade: enquanto bispo de uma igreja local, a romana, enquanto patriarca do Ocidente (onde ele exerce uma autoridade semelhante à dos bispos de Alexandria e de Antioquia em seus patriarcados) enquanto primaz da Igreja universal. Sua autoridade 20 em Roma é indiscutível, uma vez que se impôs a ideia segundo a qual cada Igreja deve ter somente um bispo, contra as pretensões dos antipapas. Sua primazia no Ocidente também se desenvolve progressivamente, mais na prática do que na teoria, sendo cada vez mais frequente o recurso a ela quando há enfrentamentos entre as Igrejas ou conflitos episcopais (ESTRADA, 2005, p. 452). Ainda de acordo com Estrada (2005), foi no Concílio de Niceia (325), realizado no governo de Constantino, que ficou decidido que as [...] “Igrejas de Alexandria, Antioquia e Roma eram as principais e exerciam um controle sobre as demais Igrejas em seu âmbito territorial” (ESTRADA, 2005, p. 453). Com isso, a igreja de Jerusalém perdeu de vez sua importância oficial perante as outras. Nessa fase, o cristianismo com o modelo romano começava a ganhar um peso de universalidade. Nessa época, o papa ainda não possuía o poder e prestígio que conhecemos. Estudaremos essa questão no tópico sobre o cristianismo na Idade Média. Vemos, então, que Roma possuía vários atributos para que o cristianismo lá se consolidasse, e ela passou a ser referência para outras regiões. Com a subida de Constantino ao poder, a igreja deixou de sofrer com as perseguições imperiais e, o clero teve acesso, pela primeira vez na história cristã, ao imperador romano. Abordaremos essa questão no próximo subtópico. 7 O CRISTIANISMO E O PODER TEMPORAL EM ROMA Caro acadêmico, já comentamos a respeito da perseguição do Império Romano aos cristãos nos primeiros séculos. É comum dizer que, nessa época, quanto mais perseguido, mais o cristianismo crescia. E não só crescia, mas também se estruturava, hierarquizava e consolidava sua base teológica e os livros canônicos. Pois bem, foi no século IV que ocorreu uma mudança radical na estrutura romana, que foi o Edito de Milão, decretado pelo imperador Constantino. Vejamos a explicação do professor Carlan: Reunidos em Milão, em 313, Constantino e Licínio assinam o Edito de Milão. Em resumo, o documento declarava que o Império Romano seria neutro em relação ao credo religioso, acabando oficialmente com toda perseguição sancionada oficialmente, especialmente ao Cristianismo. A aplicação do Edito fez devolver os lugares de culto e as propriedades que tinham sido confiscadas dos cristãos e vendidas em praça pública. O Edito deu ao Cristianismo (e a todas as outras religiões) o estatuto de legitimidade, comparável com o paganismo e, com efeito, desestabeleceu o paganismo como a religião oficial do Império Romano e dos seus exércitos (CARLAN, 2011, p. 28). Foi com esse edito que o cristianismo gozou de paz no império, mas esse não foi o único feito de Constantino para o cristianismo. Naquele momento, o cristianismo estava de mãos dadas com o Estado romano. Sobre as mudanças implementadas por Constantino, Shelley (2004) ressalta: 21 A partir de 312, ele favoreceu abertamente os cristãos. Permitiu que os ministros cristãos usufruíssem da mesma isenção de impostos que os sacerdotes pagãos; aboliu as execuções realizadas por meio de crucificação; pôs fim às batalhas dos gladiadores como punição para crimes; e, em 321, tornou feriado o dia de domingo. Graças a sua generosidade, surgiram prédios suntuosos de igrejas como prova de seu apoio ao cristianismo (SHELLEY, 2004, p. 105). A conversão de Constantino ao cristianismo não foi aceita por todos. Há quem ressalte que foi a penas uma cartada política. Constantino passou a usar seu poder como imperador para interferir nos assuntos cristãos, inclusive convocando o Concilio de Niceia, considerado de extrema importância para a cristandade. O Concílio de Niceia ocorreu, dentre outros fatores, em virtude das ideias do arianismo, que já estudamos no Subtópico 4.3. Foi nesse concílio que o arianismo foi combatido como heresia, e a questão da Trindade foi firmada na doutrina cristã. O imperador Constantino se fez presente no concílio e “[...] no seu discurso, Constantino expressava o desejo da união da Igreja, deixando de lado as diferenças que por ora se manifestava na separação entre arianos e antiarianos” (SILVA, 2017, p. 31). Caro acadêmico, a esta altura você pode estar se perguntando: O que mudara? Por que a partir de então o império romano se voltou com benevolência ao cristianismo? Pois bem, Johnson (2001) faz uma explanação interessante a respeito da adesão do estado romano ao cristianismo. Segundo ele, o cristianismo da época de Constantino (século IV) já possuía uma elite intelectual responsável por sua doutrina, além de uma sólida estrutura hierárquica, como já estudamos, e um alto poder proselitista, que já havia se disseminado por todo império. Portanto, “era católico, ecumênico, ordenado, internacional, multirracial e cada vez mais legalista. “ao atacá-lo e enfraquecê-lo, o império estava se debilitando” (JOHNSON, 2001, p. 93). A situação do cristianismo em Roma chegou a um patamar que se tornava insustentável continuar a perseguição. Outro imperador que conseguiu um feito talvez ainda maior do que Constantino, com relação às leis no Império Romano e o cristianismo, foi o imperador Teodósio, o Grande (379-395). Indo além do Edito de Milão, ele implementou o Edito de Tessalônica, pelo qual o cristianismo passava ser a religião oficial do Império Romano. Perceba, acadêmico, como o cristianismo saiu da marginalidade em Roma e, em pouco mais de trezentos anos, conseguiu subir ao patamar de religião oficial do Império. O poder da igreja foi, a partir de então, ligado à política estatal, e essa ligação se efetivou não somente em Roma, como também nos demais estados que formaram a Europa Medieval e Moderna. Nesse sentido, Eliade (2011a) nos lembra: “[...] o cristianismo converte-se em religião de Estado e o paganismo é definitivamente proibido; os perseguidos transformaram-se em perseguidores” (ELIADE, 2011a, p. 356)”. 22 Com a ascensão do cristianismo ao posto de religião oficial, muitos grupos cristãos acabaram achando que era seu direito pôr fim às religiosidades diferentes que ainda existiam no Império. Eliade (2011a) relata que surgiu, ainda no século IV, um grupo, dentre outros, que foi responsável por alguns levantes contra populações religiosas, a saber, os monges. Os monges cristãos surgiram em meio ao desejo de se abster ao máximo da vida considerada mundana, e se separar dessa para servir a Deus. Os lugares escolhidos para isso eram afastados das cidades, geralmente nos desertos ou grutas. Vejamos o relato de Eliade (2011) sobre a influência que esses monges começaram a ter na sociedade cristã, ainda na Idade Antiga: Cerca do final do século IV, desde a Mesopotâmia até o norte da África, assiste-se a uma onda de violência perpetrada pelos monges: em 388, incendeiam uma sinagoga em Calinico, perto do Eufrates, e aterrorizam as aldeias sírias onde haviam templos pagãos; em 391, o patriarca de Alexandria, Teófilo, convoca-os para ‘purificar’ a cidade do Serapeum (Serapeu), o grande templo de Serápis. Na mesma época, penetraramà força nas casas dos pagãos para nelas procurar ídolos. E, em 415, um grupo de monges fanáticos comete um dos mais odiosos crimes registrados na história: lincham Hipátia, a nobre filósofa de Alexandria [...] (ELIADE, 2011a, p. 357). Caro acadêmico, vemos, com este excerto, que o cristianismo, ao se filiar ao governo romano, adotou os mesmos métodos de violência que os romanos anteriormente perpetraram contra eles. Durante muitos anos, essa foi uma marca do cristianismo. Os conflitos envolvendo religião serão mais acirrados nos próximos capítulos da história, dos quais trataremos nos tópicos seguintes. Outra questão importante que ocorreu no governo de Teodósio foi o fato de ele atribuir à igreja em Constantinopla o mesmo poder da igreja em Roma (ESTRADA, 2005). Lembremos que o Império Romano foi dividido em 395 em Império Romano do Ocidente, com a capital em Roma, e Império Romano do Oriente, com a capital em Constantinopla, que ficou conhecida como Império Bizantino. O imperador Teodósio II concedeu a Constantinopla, no ano 421, no Oriente, os mesmos direitos dos quais desfrutava Roma no Ocidente. Isso foi confirmado e ampliado no âmbito jurisdicional pelo cânon 28 do Concílio de Calcedônia, no ano de 451, apesar dos protestos contrários por parte de Roma (ESTRADA, 2005, p. 454). A disputa do poder da igreja entre Roma e Bizâncio só foi resolvida no Cisma do Oriente, que estudaremos no próximo tópico. A partir de agora, veremos um resumo dos principais pensadores cristãos do período da História Antiga. 8 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS DA ANTIGUIDADE Prezado acadêmico, fizemos até aqui um panorama geral dos quase quatro primeiros séculos do cristianismo, período que, no campo da História, equivale à Idade Antiga. O cristianismo, nessa época, teve alguns nomes relevantes. Homens que se dispuseram a estudar e auxiliar a igreja nascente na consolidação de sua doutrina. 23 Abordaremos, agora, de forma breve, os principais pensadores dessa fase do cristianismo. Nosso intuito, aqui, é apresentar um cenário panorâmico desses pensadores e teólogos. Devemos fazer uma ressalva importe quanto às datas de nascimento desses eruditos. Por vezes, são datas aproximadas, pois, nem sempre os historiadores conseguiam ter certeza do ano exato do nascimento. Esperamos que sua curiosidade seja aguçada a procurar outras leituras desses personagens. Um dos nomes de grande impacto no século IV foi Atanásio (296-373). Ele foi um dos grandes divergentes das ideias arianas no Concílio de Nicéia (HURLBUT, 2007). O arianismo, como estudamos, estava no centro dos debates do cristianismo nesse momento. Nascido em Alexandria, conhecia o grego e era um estudioso da Bíblia. Um dos legados de Atanásio foi na questão educacional. Ele foi enfático em defender que a educação fosse baseada nos valores cristãos e não dos pagãos, como nos explicam Mello e Silva: Essa proposta formativa, que tinha como fundamento a busca pelas verdades cristãs, representava uma nova concepção da natureza humana: o homem é imagem de Deus. Diferente dos gregos e romanos, cuja concepção estava fundamentada na capacidade racional de entendimento e na participação do indivíduo na vida política, os cristãos compreenderam o homem a partir de uma nova cidadania, a celeste. Os esforços por eles realizados tinham o propósito de ajustar a vida segundo a crença na salvação, por isso, propuseram uma educação que os preparassem para essa finalidade (MELLO; SILVA, 2012, p. 14). Foi exilado algumas vezes e, mesmo assim, teve uma vasta produção literária. Foi um ferrenho opositor dos cultos pagãos, principalmente dos sacrifícios. Ele defendia que os homens eram iguais e que não deveriam ter apegos materiais, valorizando o espírito ao invés do corpo. Em sua obra ‘Contra os pagãos’, Atanásio atacou as práticas considera- das pagãs, tais como a idolatria e os sacrifícios, que ainda permaneciam vivas em sua época. Para o pensador cristão, era necessário mostrar aos adeptos desses cultos, a superficialidade e as contradições de suas crenças. Ele parece acreditar que as crenças se originavam em parte na ignorância humana e em parte no desconhecimento dos chamados textos sagrados (MELLO; SILVA, 2012, p. 2). Segundo Atanásio, os seres humanos estavam longe de Deus porque se detinham em buscar os prazeres. Essa busca desenfreada trazia sofrimento, porém, ao buscar o conhecimento de Cristo, a questão dos prazeres seria resolvida. Por isso, ele propôs mudanças na formação educacional, em que os cristãos “rejeitaram a especulação filosófica do paganismo e afirmaram a fé em Cristo e a observância de seus mandamentos” (MELLO; SILVA, 2012). Um outro clérigo importante nesse contexto foi Ambrósio de Milão (340- 397). Proveniente de Augusta dos Tréveros, atual território alemão que, na época, era dominado por Roma, Ambrósio de Milão foi professor de Agostinho de Hipona. De família nobre, recebeu uma boa educação das letras e educação religiosa. Seguiu os passos do 24 pai, tornando-se um funcionário imperial. Foi eleito bispo antes mesmo de ser batizado, o que, segundo o Concílio de Niceia, não era mais permitido. Depois de batizado, assumiu a igreja de Milão. Foi uma figura que teve destaque não somente no campo teológico, mas também na política (COELHO, 2020). Vejamos o que diz a professora Pohlmann a respeito do papel de Ambrósio no tocante à relação Estado e Igreja: Logo, ao elaborar teorias para amparar o governo imperial, Ambrósio participava ativamente da vida política romana. Postura que aproximava o bispo da cidade de Milão do líder político dos romanos, o imperador. Sendo assim, notamos que a vida religiosa de um homem conhecido como um dos ‘Pais da Igreja’ ocidental estava fortemente entrelaçada a sua atuação política (POHLMANN, 2013, p. 52). Usando desse vínculo com o Estado, Ambrósio procurou combater as ideias arianas. Ele se via constantemente em conflito com os seguidores dessa doutrina. Ele era um defensor da teologia praticada em Niceia e foi responsável por vários escritos importantes para a Igreja. Abordaremos, agora, a vida de João Crisóstomo (345-407), que ficou conhecido como grande orador e chegou a ser bispo de Constantinopla, todavia, acabou em exílio (HURLBUT, 2007). Admirador da vida monástica, era muito crítico quanto ao modo de vida dos clérigos que fugissem do rigor moral que ele considerava digno para um cristão. Por causa disso, foi acusado de “exigir dos seus sacerdotes uma disciplina severa e que frequentemente os acusava de corrupção e incompetência, tendo, inclusive, expulsado muitos das fileiras da ecclesia” (SILVA, 2010, p. 117). Outro ponto de destaque na vida de Crisóstomo foi a preocupação com os doentes, tendo construído hospitais, além de ter diminuído os gastos com a casa episcopal e acabado, também, com os banquetes eclesiásticos (SILVA, 2010). Apesar disso, questões políticas entre Crisóstomo e a imperatriz Eudóxia levaram-no a ser exilado. Seguindo a lista dos eruditos cristãos, não podemos deixar de falar de Jerônimo de Estridão (340-420). Considerado um dos maiores letrados da Igreja de seu tempo, tinha uma paixão pela vida ascética, por isso, passou boa parte da sua vida em um monastério. Seu maior feito “foi a tradução da Bíblia para o latim, obra que ficou conhecida como Vulgata Latina, isto é, a Bíblia autorizada pela igreja católica romana” (HURLBUT, 2007, p. 117). Foi, também, fundador de monastérios femininos e masculinos. A erudição do monge Jerônimo chamou atenção das autoridades eclesiásticas do Ocidente do Império. Com isso, novamente Jerônimo se aproximou da cidade de Roma na busca de apoio de líderes cristãos e de um público-alvo para poder exercer seus trabalhos como monge e asceta. Destarte, nadécada dos anos 380, o bispo de Roma, Dâmaso, convidou o monge Jerônimo para auxiliar em um Sínodo na cidade de Roma e para trabalhos junto ao entendimento mais aprofundado das escrituras (COELHO, 2019, p. 7). 25 Jerônimo, quando foi residir em Roma, passou a ter ajuda de mulheres cristãs, que, inclusive, cediam suas casas para debates teológicos. Graças a esse auxílio financeiro, ele conseguiu implementar monastérios, nos quais muitas dessas mulheres ingressaram e doaram seus bens para caridade (COELHO, 2019). Da mesma forma que Agostinho, Jerônimo combateu o pelagianismo, principalmente em seu escrito Dialogus Adversus Pelagianus. Eles chegaram a trocar cartas sobre as ideias pelagianas, e, em suas discussões concluíram que tais ideias não poderiam fazer parte da ortodoxia cristã (COELHO, 2019). Para finalizar nossa lista dos principais eruditos cristãos da antiguidade, vamos falar de Agostinho de Hipona (354-430), provavelmente o nome mais conhecido dessa lista. Agostinho nasceu em Tagaste, na atual Argélia, e se converteu ainda jovem, por influência de sua mãe. Exímio escritor, foi o autor de diversos livros, entre eles Confissões, texto em que fala de sua vida antes da conversão. Foi bispo no Norte da África, em Hipona, e seu legado filosófico transcendeu a Idade Antiga, influenciando o mundo Medieval depois dele (HURLBUT, 2007). Antes de sua conversão, Agostinho adotou as ideias do maniqueísmo, que frisava a concepção do bem e do mal. Pela influência da pregação do bispo Ambrósio, aceitou o cristianismo e foi batizado em Milão. Ele passou a ser bispo em Hipona e sempre procurou se posicionar nas questões referentes às heresias (SHELLEY, 2004). Um dos debates que Agostinho se envolveu foi sobre a heresia donatista, a qual já estudamos. Ele divergia dos donatistas, pois, diferente deles, acreditava que até “[...] o dia do julgamento, [...] a igreja deveria ser uma multidão mista. Tanto pessoas boas como más nela se encontram. Para apoiar sua ideia, citava a parábola de Jesus sobre o joio e o trigo [...]” (SHELLEY, 2004, p. 145). Para os donatistas, a igreja teria que ser santa e bastante disciplinada, principalmente os que a lideravam. Além disso, Agostinho não concordava com as ideias donatistas referentes aos sacramentos, segundo as quais, estes, quando empregados por sacerdotes indignos, não teriam efeito. Já Agostinho defendia que os sacramentos teriam poder, porque este viria de Deus (SHELLEY, 2004). Outra heresia que teve a atenção de Agostinho foi o pelagianismo. Como já estudamos, Pelágio se opôs à concepção católica de pecado original, alegando que quase todos indivíduos pecam, porém, é possível que haja pessoas sem pecado (SHELLEY, 2004). Tais posturas eram criticadas veementemente por Agostinho, pois: Na visão de Agostinho, o pecado de Adão teve enormes consequências. Seu poder de agir corretamente se perdera. Em resumo, ele morrera espiritualmente – e, portanto, fisicamente. Mas ele não estava sozinho em sua ruína. Agostinho acreditava que toda a raça humana estava ‘em Adão’ e compartilhava seu pecado. A humanidade tornou-se uma ‘massa de corrupção’, incapaz de qualquer ato bom (salvação). Todo indivíduo, da primeira infância à idade avançada, não merece nada além da condenação eterna (SHELLEY, 2004, p. 147). 26 Na concepção agostiniana, o ser humano não pode fazer nada de bom, porém, isso ocorre em virtude da Graça de Deus que lhe foi concedida. Porém, essa Graça é ofertada a alguns, por meio de Jesus, através do batismo (SHELLEY, 2004). Em virtude disso, segundo Agostinho, nenhum ser humano, por seus próprios esforços, tem força para ser salvo. A salvação, portanto, está condicionada à Graça de Deus. Estimado acadêmico, nosso estudo até aqui procurou mostrar os principais fatos e personagens da igreja cristã após a morte de Jesus Cristo. Você já deve ter percebido que as mudanças ocorridas foram complexas, e que é importante que o estudo transcenda este material. Busque outros textos acadêmicos para fortalecer seus conhecimentos. Comece pelo tema que mais chamou sua atenção. Essa é uma parte fundamental para o processo ensino-aprendizagem! Nosso estudo procurou mostrar como o cristianismo se espalhou pelos domínios de Roma; os principais conflitos foram ocasionados pelas diferenças em relação aos preceitos dos judeus, fato que provocou o primeiro tipo de perseguição sofrida pelos cristãos. Além disso, os cristãos também sofreram perseguição por parte do Império Romano, inclusive, vários imperadores fizeram leis que dificultavam a existência do cristianismo. Nesse ínterim, o cristianismo se fortalecia, se expandia e se consolidava, lutando contra os seus “inimigos” internos, ou seja, as doutrinas que foram consideradas heréticas. Para combater as heresias, a igreja atuou por meio de excomunhões, exílios e concílios. Os movimentos heréticos não se extinguiram nesse período. No mundo medieval, novas ideias surgiram e outras foram retomadas, mas isso estudaremos nos próximos tópicos. Outro fator importante que estudamos foi a transição pela qual o cristianismo passou, isto é, de uma religião párea, da sociedade romana, para uma religião oficial. Em decorrência disso, ela passou a ser uma ferramenta estatal de controle e perseguição, não só no mundo antigo, mas até no período moderno. Por fim, conhecemos os principais representantes da igreja que foram considerados eruditos e importantes para o desenvolvimento da doutrina e apologética cristã. Eles foram os principais responsáveis por trazer a erudição para o meio da igreja cristã. No próximo tópico, estudaremos as principais mudanças ocorridas no seio do cristianismo, que o tornaram a principal religião da Europa. Veremos seus domínios na cultura, arte, literatura, música e nos governos. Caro acadêmico, nossa jornada está apenas começando. Ainda há muita história para ser conhecida. Sigamos nessa viagem! No Tópico 2, estudaremos como o cristianismo se consolidou na Europa; o início do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição e a primeira divisão do cristianismo, que gerou a Igreja Ortodoxa. ESTUDOS FUTUROS 27 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • O cristianismo, passou por mudanças devido a contatos com povos de religiosidades diferentes. Tais contatos trouxeram, por vezes, debates a respeito das principais doutrinas que a igreja deveria seguir. • O cânon bíblico (Antigo e Novo Testamento) antes de ser consolidado gerou uma série de discursões sobre quais livros deveriam ser acrescentados aos livros judaicos. • As principais ideias consideradas heréticas pela ortodoxia cristã, principalmente o gnosticismo, arianismo, donatismo e o montanismo. • As perseguições que os cristãos sofreram, primeiro pelos judeus, depois pelos romanos e, posteriormente, a aliança feita com o Império Romano por meio dos Edito de Milão e de Tessalônica, que mudou a história não só de Roma, como, posteriormente, da Europa. • Os principais eruditos da igreja cristã do primeiro século: Atanásio, Ambrósio, João Crisóstomo, Jerônimo e Agostinho de Hipona. RESUMO DO TÓPICO 1 28 1 Os três primeiros séculos do cristianismo foram marcados por conflitos entre cristãos e judeus, cristãos e pagãos e até mesmo entre os próprios cristãos. Somente no século IV, no governo de Constantino foi que surgiu uma época de relativa paz aos cristãos do império romano. Quanto a essa época, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Foi nessa época que o imperador Constantino convocou o Concílio de Niceia. Um dos pontos trados nesse concílio foi o gnosticismo cristão. Foi nesse concílio que o gnosticismo foi tratado com heresia. b) ( ) O cristianismo permaneceu nas regiões de predominância judaica até o Edito de Milão, pois era mais fácil a conversão de judeus do que degentios e, assim, eles evitavam as mortes pelos romanos. c) ( ) As perseguições dos judeus aos cristãos acabaram depois da expulsão dos judeus do império Romano. Sem a tutela do judaísmo, os cristãos passaram a ser alvo do governo romano principalmente por causa do seu proselitismo feroz e por não aceitarem realizar oferendas aos deuses pagãos e ao imperador. d) ( ) O século IV foi o período de maior intensidade na perseguição aos cristãos, feitas pelo Império Romano. Ela só veio ter fim no governo de Constantino, com o Edito de Tessalônica. 2 Desde o século I, o cristianismo passou a ter dificuldades para consolidar sua doutrina. Vários grupos começaram a surgir divulgando ideias que, para o cristianismo que se considerava ortodoxo, foram consideradas heresias. Tendo em vista o que estudamos das heresias na igreja cristã da Idade Antiga, analise as sentenças a seguir: I- O Arianismo consistia na ideia de que os judeus não poderiam se tornar cristãos, pois, eles condenaram Jesus a morte e continuaram perseguindo os cristãos. II- O gnosticismo pregava que a Trindade não era coexistente e que o Deus Pai era superior ao Filho e ao Espírito Santo. III- As ideias gnósticas se espalharam entre os cristãos. Dentre outras coisas, eles pregavam que Cristo não veio em corpo e que a gnose seria a salvação para a pessoa, pois, esta “acordaria” do seu engano. Além disso, criam na ideia do Deus bom, no Novo Testamento e Deus Mal, do Antigo testamento. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 29 3 O século IV foi responsável por uma série de mudanças no cenário religioso do Império Romano, tanto para os cristãos, quanto para os pagãos. Tendo em vista tal período, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O Concílio de Nicéia convocado por Constantino, decidiu que as igrejas de Antioquia, Roma e Alexandria tinham supremacia decisória sobre as demais. Inclusive, a igreja em Jerusalém deveria obediência a elas. ( ) Somente no século IV foi que o cristianismo deixou de ser perseguido no Império Romano, em virtude do Edito de Milão que foi complementado posteriormente pelo Edito de Tessalônica. ( ) No final do século IV, muitos grupos cristãos passam a aterrorizar comunidades pagãs, inclusive incendiando sinagogas e destruindo templos pagãos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) V – V – V. d) ( ) F – F – V. 4 O início do cristianismo e sua expansão se deu a base de disputas religiosas. Explique os principais conflitos existentes entre os cristãos e os judeus e entre os cristãos e os romanos nesse período. 5 Durante os três primeiros séculos da história do cristianismo, alguns nomes se destacaram por terem sido responsáveis por ajudar a formar a doutrina católica e, por lutarem contra as doutrinas heréticas. Um desses nomes foi Agostinho de Hipona. Escreva sobre as doutrinas heréticas que ele combateu. 30 31 CRISTIANISMO NO PERÍODO MEDIEVAL 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, estudamos, no Tópico 1, o desenvolvimento do cristianismo na Antiguidade e, agora, daremos continuidade ao assunto apresentando os principais fatos ocorridos na Idade Média. Vamos, primeiramente, entender o contexto histórico, para depois adentrarmos propriamente na questão religiosa. Roma foi a civilização no mundo Antigo que mais povos conseguiu conquistar. Sua história nesse período foi marcada por três fases: monarquia, república e império. Sua expansão teve início ainda ano período republicano, mas, foi no Império (27 a.C. - 476 d.C.) que ela mostrou mais enfaticamente seu poderio militar, pelo menos inicialmente. No governo do imperador Teodósio (379-395), além do Edito de Tessalônica que oficializou o cristianismo em todo Império, ele tomou outra decisão que acarretou uma mudança drástica para Roma, que foi a divisão do Império entre seus dois filhos: Arcádio, que ficou com o Império Romano do Oriente e Honório, com o Império Romano do Ocidente. O primeiro teve sua capital em Constantinopla, gerando o que veio a ser conhecido com Império Bizantino, e o segundo, em Ravena, depois em Milão. Pouco tempo depois dessa divisão, a Roma Ocidental passou a sofrer ataques dos povos bárbaros. O guerreiro Átila, o Huno, invadiu essa parte de Roma em 452. Com o ataque, muitas pessoas fugiram. O papa Leão conseguiu convencê-lo a não invadir Roma. O invasor saqueou as riquezas de Roma por cerca de quinze dias. Tudo o que seus soldados capturaram, e que pertencia às igrejas, Átila mandou que fosse devolvido (SHELLEY, 2004). Posteriormente, Roma sofreu outro ataque. Em 455, os povos Vândalos cercaram Roma. O imperador Maximus tentou fugir e foi morto. Com a desorganização do exército romano, Genserico, rei dos vândalos, invadiu a Roma Ocidental sem muito esforço. O papa Leão novamente interveio em favor de Roma e pediu ao rei rival para que não incendiasse Roma. Novamente a cidade foi saqueada e pessoas foram levadas como escravas (SHELLEY, 2004). Notemos aqui que, apesar dos saques, o papa conseguiu fazer com que a vida dos romanos fosse poupada, assim como a cidade. Somente em 476 é que Roma Ocidental foi finalmente conquistada pelos povos germânicos. Muitos desses germânicos já eram cristãos, porém pela vertente do arianismo, considerada herética. UNIDADE 1 TÓPICO 2 - O 32 Com a invasão da Roma Ocidental, boa parte da população teve que fugir e pedir abrigo fora da cidade de Roma. Foi o início de uma nova organização social, chamada de feudalismo, que se espalhou por várias partes da Europa, devido às diversas conquistas bárbaras. As relações sociais ficaram então envoltas no laço de suserania e vassalagem. O suserano, ou senhor feudal, era o dono de terras que, em troca de favores, doava um pedaço de sua terra ao vassalo. Além disso, havia os servos, que residiam e trabalhavam no território do suserano em troca de serviços que deveriam prestar a ele. Caro acadêmico, perceba que o cristianismo conseguiu sobreviver mesmo depois da queda do Império Romano do Ocidente. O papa ficou mais forte e conseguiu fazer aliança com os reinos. Assim, o cristianismo se propagou pela Europa. Agora você deve estar se perguntando: e o cristianismo na parte Oriental? Pois bem, como a Roma Oriental durou muito mais tempo que a Ocidental, o cristianismo lá se desenvolveu de uma forma diferenciada. Esse será um dos assuntos que abordaremos a partir de então. Acadêmico, no Subtópico 2, abordaremos a consolidação do poder papal; o desenvolvimento e diferenças da igreja no Oriente e Ocidente, que levou ao Cisma do Oriente. Estudaremos também o papel dos monastérios e das ordens religiosas em progresso; as Cruzadas; a Inquisição e os principais pensadores cristãos medievais. 2 O PODER PAPAL Estimado acadêmico, a preponderância do papa sobre os demais bispos ocorreu gradativamente. Essa questão foi um entrave para a igreja situada no Oriente, pois esta não aceitava que o centro da cristandade fosse Roma apenas. Como já vimos, Teodósio elevara o status de Constantinopla administrativamente como de igual valor à Roma. Porém, nas questões religiosas, Roma procurava manter a hegemonia. Esse embate foi intenso, pois, com a queda do Império Romano do Ocidente em 476, Constantinopla reivindicava ainda mais a supremacia nos assuntos religiosos. Estrada (2005) explica que foi nesse contexto que a “teologia de direitos” se tornou vigente, formulando a primazia do papa sobre os patriarcas e os bispos. Os patriarcas eram as autoridades máximas no cristianismo Oriental. O poder era Povos bárbaros era o modo como os romanos se referiam em relação aos povos que viviam em suas fronteiras.Eram formados por sociedades diferentes, dentre elas os Unos, Godos, Ostrogodos, Visigodos, Francos, Anglos, Saxões, dentre outros. NOTA 33 dividido entre cinco patriarcas que ficavam em regiões diferentes do Império. Constantinopla tendia a diminuir as ordens do papa em seu território, priorizando as decisões do patriarca. O papa era visto por eles como uma figura de “honra e de autoridade moral” (ESTRADA, 2005, p.455). O império romano fez uma série de intervenções no sentido de resolver as questões da supremacia da igreja romana ou de Constantinopla, dentre elas: Em 378, o imperador Graciano afirmou que as decisões da parte Ocidental caberiam à igreja de Roma, e da parte Oriental, à igreja de Constantinopla. Porém, em 445, o imperador Valentiano III, “imperador do Oriente, proclama em 445 a primazia do bispo de Roma sobre a Igreja universal, enquanto seu colega Teodósio II, imperador do Oriente, só o reconhece como patriarca do Ocidente e o adverte que não se misture nos assuntos das Igrejas Orientais” (ESTRADA, 2005, p. 455). Alguns concílios ocorreram para tentar dirimir esse problema, porém, não chegaram a um acordo quanto à sucessão de Pedro. Com relação ao título, a expressão “pontífice máximo” (ou sumo pontífice) foi usada pela primeira vez pelo papa Leão I (ESTRADA, 2005). O mesmo papa ainda foi enfático ao afirmar que o cargo que ocupava era herança de Pedro. Mais tarde, o papa “Gelásio I (492-496) afirmou que o papa tem autoridade até sobre os concílios e proibiu qualquer apelação contra as decisões da igreja de Roma” (ESTRADA, 2005, p. 458). Sobre a expressão “papa”, Shelley comenta A palavra papa por si só não é crucial na criação da doutrina de primazia papal. Originalmente, o título ‘papa’ expressava o cuidado paternal de todos os bispos do rebanho. Começou a ser reservado para o bispo de Roma apenas no século VI, muito depois da reivindicação de primazia (SHELLEY, 2004, p. 153). Com a cristianização dos povos bárbaros, o poder do papa foi se ampliando e as alianças entre os reinos bárbaros e o cristianismo começaram a ocorrer. O apoio do papa ao reinado de Pepino, o Breve, que era “prefeito de palácio” no reino Franco e deu um golpe, proclamando-se rei franco e iniciando a dinastia dos Carolíngios, gerou um fortalecimento para o papado em Roma. Em troca do apoio do papa, o rei concedeu terras ao redor de Roma para a igreja. Os carolíngios, sob o comando do filho de Pepino, Carlos Magno, defenderam a igreja dos povos Lombardos, que, apesar de serem cristãos, tentavam pegar terras que haviam sido dadas à igreja. Em agradecimento, o papa Leão III consagrou Carlos Magno como Imperador do Ocidente. Com essa aliança, a igreja em Roma se fortaleceu sem precisar recorrer ao Império Bizantino. Foi a partir desse apoio que começou. [...] assim a época dos papas reis que tentaram ampliar seus territórios, os quais até o século XVI foram chamados de ‘patrimônio de são Pedro’. Os papas escreviam aos reis francos como se fossem o próprio são Pedro que devesse ser defendido e protegido (ESTRADA, 2005, p. 462). 34 A partir do século IX, o poder papal estava consolidado. Eles “cunharam moedas com a esfinge papal (desde 1048) e criaram uma chancelaria e corte pontifícia. Começaram também a outorgar títulos nobres e a mudar de nome quando, em fins do século X, tomaram posse do trono pontifício” (ESTRADA, 2005, p. 463). Com esse poder consolidado, o papa se tornou a pessoa responsável, nas cerimônias, por colocar a coroa real nos reis e imperadores, enquanto estes deveriam aderir a genuflexão diante do papa. Progressivamente, a ideia do poder papal como o regente da igreja universal foi consolidada. O bispo se tornou uma espécie de empregado papal e, inclusive, sua nomeação dependia da vontade papal. Assim sendo, a igreja na Idade Média ganhou uma formatação completamente diferente da igreja na Antiguidade. 3 A QUESTÃO ICONOCLASTA Caros estudantes, como já dissemos, toda religião nasce em um determinado contexto sociopolítico e, ao ser ampliada para diferentes culturas, ocorrem fusões e justaposições de elementos, valores, enfim, ocorrem mudanças! Às vezes, algumas estas não são aceitas por algumas pessoas que ocupam, no âmbito religioso, posições de lideranças. Outras vezes, as mudanças são apoiadas e celebradas pelos líderes. Uma das mudanças que ocorreram no cristianismo foi a adesão do uso de imagens para representar mártires, Cristo, os apóstolos e outros personagens bíblicos. A religião judaica se opôs ferozmente ao uso de imagens, e até hoje não as permite. Vimos que, nos primeiros anos do cristianismo, esse exemplo de não aceitação do uso de imagens foi seguido. Porém, com os novos contatos que o cristianismo foi tendo com outros povos, as imagens foram sendo introduzidas nos cultos, não só imagens como também relíquias, que seriam os objetos que haviam sido usados pelos apóstolos, santos e até mesmo por Cristo. Foram atribuídas a essas relíquias, juntamente com as imagens, poderes milagrosos como curas. Agostinho de Hipona foi um dos que inicialmente se opuseram ao culto aos mártires e ao comércio de relíquias. Porém, ele mudou de opinião, pois, segundo ele, tinha visto os milagres operados pelas relíquias de Estevão, quando chegaram à Hipona (ELIADE, 2011b).Mesmo assim, alguns bispos não concordavam com o uso de relíquias e imagens, por considerarem que eram heranças do paganismo. Como nos apresenta Eliade (2011b, p. 59), “O culto [das imagens e relíquias] alcança enorme popularidade no século VI. No Império do Oriente, essa devoção excessiva torna-se às vezes embaraçosa para as autoridades eclesiásticas”. Com o passar do tempo, vários intelectuais foram se dedicando a compor uma teologia que abarcasse o uso de tais símbolos no culto. Um dos principais argumentos é de que elas tinham um caráter pedagógico, pois boa parte da população era analfabeta, e o uso de tais símbolos como imagens, pinturas e ícones ajudava na compreensão 35 dos feitos dos mártires e de Cristo (ELIADE, 2011b). Tais cultos se expandiram por toda a cristandade, como explica Eliade: “Durante o reinado dos primeiros carolíngios (740- 840), grande número de santos e mártires romanos foi transportado para o Ocidente. Presume-se que, por volta do final do século IX, todas as igrejas possuíam (ou deveriam possuir) relíquias” (ELIADE, 2011b, p. 61). Com a aceitação popular do uso de relíquias e imagens, outro aspecto interessante foi a demanda por peregrinações aos cemitérios onde as pessoas consideradas mártires e santas haviam sido enterradas. Seus túmulos se destacavam dos demais e atraíam multidões. Assim, o anúncio de milagres em torno dessas figuras ajudava a espalhar o costume de usá-las em cultos. Vejamos a explicação de Eliade: “Os fiéis oravam, prosternavam-se diante dos ícones, beijavam-nos, levavam-nos para desfilar por ocasião de certas cerimônias. Durante esse período, cresce o número das imagens milagrosas – fonte de poder sobrenatural – que protegiam as cidades, palácios e exércitos” (ELIADE, 2011b, p. 65). Todavia, apesar da aclamação popular, o culto às imagens sofreu algumas tentativas de proibição. Leão III, imperador no século VIII, não aceitava o uso de ícones e imagens. Ele mandou que elas fossem retiradas das igrejas, o que levantou a fúria popular. O governante afastou o patriarca que não aceitou seu comando e colocou outro favorável à sua decisão (SHELLEY, 2004). O termo iconoclasta, então, passou a referir aos que queriam destruir as imagens. Outro golpe contra as imagens foi dado quando o imperador Constantino V proibiu seu uso. Lembremos que era uma fase em que não havia separação entre o poder religioso e o Estado. Segundo Eliade (2011b), o posicionamento de Constantino V foi referendadopelo sínodo iconoclasta de Constantinopla no ano de 754. Posteriormente, no sínodo de 815, o mesmo posicionamento foi mantido, principalmente considerando errado representar Cristo. Entretanto, outros representantes da igreja que não concordavam com essa postura iconoclasta passaram a defender com ímpeto o uso das imagens. Afirmavam que a imagem era apenas uma representação e não o Ser; que por Jesus ter se tornado homem, a ideia do Antigo Testamento de não fazer representação foi rompida; que os ícones seriam recipientes da energia divina, dentre outros argumentos (ELIADE, 2011b). Porém, posteriormente, a adesão do cristianismo as imagens foi ganhando força, como nos explica Shelley (2014): O último período da controvérsia iconoclasta é longo e complicado. Com a ajuda do patriarca Tarásio (784-806), o sétimo Concílio Geral de 350 bispos se reuniu em Nicéia em 787, e condenou todo o movimento iconoclasta [...]. O iconoclasmo, contudo, não foi facilmente eliminado. Fortes tendências iconoclastas permaneceram na Ásia Menor e entre a classe militar. Mas, no decorrer do século XIX, o calor da controvérsia foi diminuindo. Um sínodo convocado em 843 depôs João Gramático, 36 elegeu Metódio patriarca, condenou todos os iconoclastas e confirmou as disposições do sétimo concílio. As igrejas ortodoxas ainda hoje celebram todos os anos, no primeiro domingo da Quaresma, a Festa da Ortodoxia, comemorando o triunfo dos ícones (SHELLEY, 2014, p.169). Caro acadêmico, até aqui, já vimos que muitas mudanças foram acontecendo no cristianismo. Ocorreram vários debates, disputas para que a doutrina fosse formada e posta em prática por todos. A questão das imagens foi novamente retomada na época da Reforma Protestante. 4 O CISMA DO ORIENTE Caro acadêmico, você já deve ter notado que as relações entre a igreja romana do Oriente e do Ocidente eram carregadas de disputas e discordâncias sérias quanto à forma de ser cristão. O principal ponto de embates era a questão da primazia papal. Enquanto o Ocidente lutava para tornar a figura do papa mais imponente e importante, a igreja Oriental colocava sua confiança nos patriarcas e olhava o papado do Ocidente apenas como um cargo honroso, como já comentamos. Além disso, a questão cultural também separava as duas realidades. Com o passar do tempo, o império Bizantino foi moldando uma forma de ser católico que se diferenciava do modo Ocidental. Uma das questões que destacaremos aqui se deu com relação aos ícones. Nós já vimos que há várias diferenças entre a igreja cristã antiga, que estudamos no primeiro capítulo, para a igreja medieval. Uma das diferenças está no uso das imagens e ícones. A utilização dessa forma de acessório nas igrejas não foi uma decisão pacífica, como já estudamos. Durante os primeiros séculos o uso de imagens não foi aceito no seio cristão. Porém, devido ao contato com diferentes culturas, teólogos, padres e as pessoas em geral passaram a achar que era importante a utilização de imagens e ícones pelo cristianismo, assim como faziam outras religiões. O cristianismo Ocidental acabou preferindo o uso de imagens, tanto de mártires quanto de Cristo e dos apóstolos. Já a igreja Oriental fazia uso dos ícones, que consiste em pinturas em alto relevo em suas igrejas. 37 FIGURA 1 – ÍCONE BIZANTINO NA TRANSYLVANIA, ROMÊNIA FONTE: <https://shutr.bz/3Cb2XV8>. Acesso em: 29 mar. 2021. O cristianismo Oriental, atualmente, compreende quinze igrejas diferentes, concentradas em sua maioria no Leste da Europa (SHELLEY, 2004). Cada uma tem um patriarca responsável por uma determinada área. Elas se diferem pela forma da missa e cultura. Uma das características que as unem é a importância que elas dão aos ícones. E o que seriam os ícones? Eles se diferem das imagens e estatuetas que encontramos na maioria das igrejas católicas brasileiras. Os ícones, segundo Shelley, são: [...] caracterizados pela auréola dourada em cima de sua cabeça. Eles são fundamentais para se entender a ortodoxia. O crente ortodoxo que entra em sua igreja para assistir a um serviço, por exemplo, vai primeiro ao iconostasis, a parede de quadros que separa o santuário da nave. Lá, ele beija os ícones antes de tomar acento em meio à congregação (SHELLEY, 2004, p. 162). Vemos como os ícones são fundamentais para os ritos em uma igreja Oriental. Nessa perspectiva, assim como os seres humanos são a imagem de Deus, o homem teria, então, o ícone de Deus nele (SHELLEY, 2004). A ideia Ocidental é de que a imagem de Cristo, que foi o homem perfeito, seja restaurada entre os homens, por meio da igreja, que é invisível. Nisso, a teologia do Oriente se difere da do Ocidente, pois, para a igreja romana, quando um fiel comete um pecado, ele faz as devidas penitências que o padre, na confissão, lhe orienta, e completa sua “sentença” pagando no purgatório, até alcançar a salvação (SHELLEY, 2004). Outra diferença importante entre as duas igrejas diz respeito ao posicionamento do imperador Constantino e sua conversão. Para os ocidentais, ele fora um marco extremamente positivo, pois o cristianismo deixou de ser perseguido e se aliou ao Estado. Já para os orientais, essa aliança com o Estado não trouxe benefícios, pois a religião não era mais livre dogmaticamente como no mundo Antigo, tendo que fazer alianças e barganhas com os imperadores (SHELLEY, 2004). 38 Com a mudança da capital de Roma para Constantinopla, a igreja lá instalada passou a conceber que, assim como Jerusalém havia deixado de ser o centro do cristianismo, passando a ser Roma, agora, Roma deixara de ser o centro religioso, passando a ser Constantinopla. Era assim que a igreja Oriental se via no contexto cristão (SHELLEY, 2004). Em Bizâncio, no governo de Justiniano (527-565), uma mudança importante ocorreu. Ele outorgou para si o título de cesaropapista, ou seja, ele possuía o poder de “césar”, imperador e de “papa”, em claro embate com a igreja Ocidental. Ele impulsionou a arte bizantina, de uma forma que se afastava dos modelos Ocidentais. Segundo Shelley (2004, p. 166), Justiniano “definia a missão do pio imperador como a ‘manutenção da fé cristã em sua pureza e a proteção da Sagrada Igreja Católica e Apostólica contra qualquer perturbação’”. O rompimento definitivo entre a igreja Ocidental, também conhecida como a parte latina, e a Oriental, conhecida como grega, só ocorreu em 1054, quando o mensageiro do papa deu a excomunhão para o patriarca de Constantinopla. Em retaliação, o patriarca também expediu a excomunhão para o papa (HURLBUT, 2007). Portanto, esse episódio marcou a ruptura que ficou conhecida como o “Cisma do Oriente”, surgindo então a Igreja Católica Apostólica Romana, com sede em Roma e a Igreja Ortodoxa, com sede em Bizâncio. 5 OS MONASTÉRIOS: A FUGA DO MUNDO Os monastérios cristãos tiveram origem no final da Idade Antiga e se consolidaram como uma prática cristã na Idade Média. A figura do eremita, ou seja, aquele que vivia uma vida acética, em busca de uma vida separada do mundo cotidiano, geralmente retirando-se em direção ao deserto, surgiu principalmente no Egito, (SHELLEY, 2004). Para a tradição cristã, Antônio, nascido por volta de 250, é considerado o primeiro monge, que “aos 20 anos de idade, distribuiu seus bens e logo passou a viver solitariamente em uma sepultura” (SHELLEY, 2004, p. 133). Após ele, outros seguiram seu exemplo em diversas partes. A partir disso, mudanças aconteceram e, “por volta do ano 320, um ex-soldado chamado Pacômio instituiu o primeiro monastério cristão (SHELLEY, 2004, p. 134). A ideia era fazer reunir os que sentissem tal vocação e, assim, pudessem viver juntos. Pacômio foi responsável por estabelecer um regramento para os monges, com muita oração, trabalho e disciplina,além disso, todos deveriam se vestir da mesma forma (SHELLEY, 2004). Tal estilo de vida monástica ficou conhecido como cenobitismo. Essa nova forma de ascetismo propiciou que as mulheres também optassem por essa forma de vivenciar o cristianismo. Segundo Shelley (2004), foi a partir daí que o cristianismo em geral viu a vida monástica como algo moderado, e não com a radicalidade dos primeiros ascetas. 39 Para ingressarem nesse estilo de vida, os monges deveriam fazer os votos de “pobreza, castidade e obediência” (SHELLEY, 2004, p. 135). A ideia era se separar da família, dos amigos, do conforto, para poder se conectar a Deus, em um autoexílio, tendo em vista usar de meios que a cristandade em geral não usaria, como o autoflagelo (GOMES, 2001, p. 87). Outro personagem importante para mudanças na forma de vida nos monastérios foi Benedito, que, em 529, fundou a ordem dos Beneditinos. Ele foi responsável por fazer um sistema de regras que ficou famoso por vários monastérios na Europa. A ideia dele era trazer a disciplina e mudar a forma com que alguns monges eram vistos, de maneira indigna (SHELLEY, 2004). Quem liderava o monastério era o abade e todos deviam-lhe obediência. O monastério beneditino que fosse sincero no cumprimento dos propósitos de seu fundador era um ‘pequeno mundo m si mesmo, em que os monges viviam uma vida intensa, mas não sobrecarregada, que compreendia cultos, trabalho intenso na oficina e no campo, e leitura séria’. Cada monastério beneditino, portanto, incluía uma biblioteca; e apesar do próprio Benedito não ter se pronunciado a respeito dos clássicos, os monges beneditinos copiaram e leram as mais importantes obras da literatura da Antiguidade Latina. Devemos a eles a preservação das obras dos fundadores da igreja latina e as obras primas da literatura romana (SHELLEY, 2004, p. 138). Foi nos monastérios que a cultura literária no medievo foi conservada. Os monges foram responsáveis por guardar, preservar e copiar os textos da Antiguidade. Os scriptorium eram verdadeiras bibliotecas usadas pelos monges copistas. Também foram os monges responsáveis por criar a notação musical, por meio de regras rígidas. Se hoje podemos conhecer a música a partir da Idade Média, devemos agradecer ao trabalho dos monges medievais. Segundo Estrada (2005), entre os séculos VIII e IX, os monastérios eram concedidos como feudos, e os serviços feudais eram cobrados. Aos poucos, o papado foi conseguindo doações de terras, o que fez com que os monastérios ficassem livres da dependência feudal. Outra ordem religiosa criada no período medieval, que serviu para melhorar a questão da disciplina beneditina, foi a dos cistercienses (1098). Seu criador foi São Roberto e dedicou-se, sobretudo, às artes e às cópias de manuscritos antigos (HURLBUT, 2007). Além dela, os franciscanos, ordem fundada por Francisco de Assis em 1209, teve bastante relevância no cenário medieval (HURLBUT, 2007). Por pregar que a igreja deveria ser pobre, ela esteve, inclusive, sob a mira papal, porém, conseguiu se firmar na igreja. Foi uma ordem que se propagou rapidamente pela Europa. Sua ênfase maior era o cuidado com os outros, principalmente com os pobres. 40 Em 1215, foi erigida a ordem dos dominicanos, que teve como fundador São Domingos. Tanto os franciscanos quanto os beneditinos ficaram conhecidos como ordens mendicantes, pois seu sustento vinha de esmolas que lhes eram dadas. Além disso, ambas as ordens não se rendiam à vida reclusa dos monastérios, mas sim andavam à procura de converter pessoas e de enfrentar o que a igreja considerava heresia (HURLBUT, 2007). 6 A REFORMA MONÁSTICA E A REFORMA GREGORIANA Caro acadêmico, como vimos anteriormente, a igreja enfrentava um problema, pois os senhores feudais acabavam exercendo influências sobre os monastérios, já que muitos deles eram parte dos feudos. Além disso, as lutas entre império e o papado eram intensas, pois, segundo Estrada (2005), o papa era subserviente ao imperador pelos laços da suserania e vassalagem. Porém, o papa possuía a maior parte da Itália, o que gerava confrontos diretos entre os poderes religioso e civil. O principal problema ocorria porque o imperador queria interferir nas questões religiosas, inclusive na sucessão papal, na indicação dos bispos, entre outras questões. Assim, tanto os monges quanto o papado procuraram meios para se livrar da subserviência do imperador e dos senhores feudais. Em 910, a ordem dos Beneditinos de Cluny, cidade francesa, começou a questionar a subserviência da igreja aos leigos, como os imperadores e senhores feudais. Eles acreditavam que deveriam ser subservientes somente ao papado. Eles desejavam [...] a abolição da simonia, a compra ou venda de ofício religioso [...]. Certas 300 casas cluníacas foram libertadas do controle leigo e, em 1059, o próprio papado despediu-se da interferência secular com a criação do Colégio dos Cardeais, que, daquela época em diante, passou a eleger os papas (SHELLEY, 2004, p. 203). Com essa decisão sobre a eleição papal, a interferência do imperador nesse quesito foi abolida. No século XI, subiu ao papado Gregório VII (1073-1085), e ele foi responsável por dar continuidade às mudanças na igreja, as quais ficaram conhecidas como a “reforma gregoriana”. Com relação às mudanças, Estrada sintetiza: O papa é o único a ter o direito de usar insígnias imperiais, de que lhe beijem os pés todos os príncipes, de depor imperadores e de desligar o juramento de fidelidade dos súditos dos maus príncipes. Á sede de São Pedro foram submetidos todo principado e todo poder do mundo Foi no período Medieval que surgiram as Universidades. Inicialmente vinculadas às igrejas cristãs, sua base de ensino era o latim, grego, filosofia, teologia e música. NOTA 41 Há muitos filmes ambientados no mundo Medieval. Assista ao filme Irmão sol, irmã lua, de Franco Zeffirelli, o qual conta a história dos primeiros anos da vida de São Francisco de Assis. NOTA inteiro. Consequentemente, Gregório VII depôs e excomungou o imperador, fomentou os vínculos de vassalagem de numerosos reinos com Roma, dentre eles o da Espanha e proibiu que qualquer cargo eclesiástico fosse outorgado por um leigo [...] O papa não pode ser julgado por ninguém, ninguém pode apelar de suas decisões e os assuntos importantes de cada igreja devem ser apresentados a ele, pois a igreja romana nunca errou e, segundo a Escritura, nunca irá se equivocar (ESTRADA, 2005, p. 476-478). Perceba, acadêmico, que a igreja pretendia, cada vez mais, influenciar os reinos e não ser influenciada. Essas reformas promovidas pelo papa Gregório VII ajudaram a consolidar o poder religioso na parte Ocidental da Europa. A partir disso, a igreja ficou mais forte para negociar com os futuros reis alianças nas quais ela se beneficiaria e, em contrapartida, ajudaria a sustentar o poder real perante o povo, ou seja, “a ordem, a justiça e a submissão a Deus passava pela obediência ao papa, que transformou em critério eclesiológico absoluto” (ESTRADA, 2005, p. 478). A ideia de Gregório VII era que toda a cristandade estivesse sob os auspícios do papa, pois, segundo ele, o poder papal era superior aos dos reis e imperadores (SHELLEY, 2004). Em 1122, um documento importante resolveu a questão entre imperadores e o papa, foi a Concordata de Worms. Agora, “a igreja mantinha o direito de eleger a autoridade de um ofício eclesiástico, mas apenas na presença do imperador ou de seu representante” (SHELLEY, 2004, p. 204). A Igreja e o Estado buscaram andar juntos, tentando resolver seus atritos, para que ambos os poderes fossem aceitos e obedecidos pelos súditos. Então, caro acadêmico, a hierarquia e a força que o papa possui hoje no segmentodo catolicismo romano foram obtidas em um longo processo de negociações, entraves e discordâncias. Abordaremos, ainda, nos próximos subtópicos, outros conflitos de reinos que não aceitaram o domínio de Roma em suas questões religiosas. Vemos, com isso, que a autoridade papal foi, durante muitos anos, contestada. Porém, ela se manteve firme e é aceita atualmente de uma forma mais pacífica dentro do catolicismo. Outro ponto importante que devemos chamar a atenção aqui é a relação entre Igreja e Estado. Na atualidade da cultura Ocidental, os países primam pela democracia e pelo Estado laico, que seria a separação entre religião e governo. Porém, no período Medieval, não existiam tais ideias. Os poderes temporal e religioso viviam de desentendimentos, disputas e alianças. O processo da tentativa de separar religião e Estado só começou a acontecer a partir da Revolução Francesa, que estudaremos no terceiro tópico. 42 7 A MÚSICA NA IGREJA Os ritos em vigor na Igreja Romana foram se constituindo no decorrer dos séculos. Em sua construção, encontramos a colaboração de várias culturas, notadamente a judaica e a greco-romana. Aos poucos, a maneira própria de se celebrar foi se cristalizando. Com o passar do tempo, a Igreja passou a apresentar os ritos aprovados, publicados em livros sob sua autoridade, já mesmo nos primeiros séculos do cristianismo. FIGURA 2 – EXEMPLO DE CANTOCHÃO FONTE: <https://shutr.bz/3CbC4Qy>. Acesso em: 29 de mar. 2021 Na Figura 2, temos um exemplo de partitura de canto gregoriano, também chamado de cantochão, ou “canto do chão”, por apresentar somente uma linha melódica. É interessante notar a presença do latim, que é a língua oficial da igreja católica ainda na atualidade. Outro elemento que chama a atenção é a iluminura. Esse tipo de ilustração era muito comum nos monastérios. Percebemos, também, a forma da escrita musical que deu origem à partitura atual. O canto gregoriano foi, durante muito tempo, considerado o canto oficial da Igreja Católica. Em sua composição havia um arcabouço teológico, pois ele não estava na missa apenas para deixá-la mais bonita. O canto litúrgico é parte constitutiva do próprio rito celebrado. Dessa forma, podemos dizer que, no espírito litúrgico da Igreja Católica, não se canta “na” Missa, e sim “a” Missa. Segundo Henry Raynor (1986), na história da música no início da Europa cristã a Igreja aparece como protagonista. A notação musical, inclusive, passou a ser criada nos mosteiros devido à importância que a música exercia nas missas. Houve, portanto, a necessidade de criar métodos de unificação do canto para que pudesse ser entoado 43 corretamente por todos. Os cânticos faziam parte do culto cristão desde os primórdios do cristianismo. Eles se desenvolveram até tomar a forma de uma espécie de melodia chamada cantochão. Santo Ambrósio (339-378) ajudou a elaborar uma série de regras para manter um estilo adequado ao canto de hinos sacros. A música que obedece a essas regras é chamada “Canto Ambrosiano". Foi a primeira forma sistematizada do cantochão. O Cantochão é um tipo de música vocal, exclusivamente eclesiástica, executada por coros masculinos em uníssono ou em solo, sem acompanhamento instrumental, durante a celebração de cerimônias religiosas católicas. É uma música de entonações, sem compasso ou harmonia definidos. Sua fase de apogeu foi na alta Idade Média. O papa Gregório I, o Grande (540-604), fez do cantochão o canto oficial da igreja romana (canto Gregoriano), sendo praticado até hoje em algumas igrejas. A partir de então, o padrão da missa romana tornou-se o modelo da Europa. Em primeiro lugar, ele é um canto em uníssono. Isso era extremamente importante, pois havia uma necessidade de passar a ideia da unidade da igreja católica representando o corpo de Cristo na terra. O canto deveria ser entoado por todos para manifestar não a voz de um crente individual, mas de toda a igreja. Segundo Raynor (1986, p. 27), “a música deveria ser a voz de uma igreja universal”. O canto era visto como um elemento de purificação da alma e sua elevação. Ele deveria representar o louvor a Deus e estar isento de tudo que pudesse despertar os sentidos e as paixões humanas. A música herdada dos gregos e hebreus foi modificada e simplificada, tirando os instrumentos, tornando-se monódica. A igreja tendia a ver os instrumentos musicais como concernentes a cultura pagã e por tanto, não poderiam fazer parte dos ritos cristãos. A voz humana era o único instrumento capaz de louvar a Deus. [...] A igreja romana não era hostil apenas ao uso de instrumentos na igreja; era hostil a todo instrumento musical; procurava destruir toda a geração de artistas ambulantes que divertiam o público e tudo fez para impedir a música e danças seculares. Tentava impor um novo modo de vida a um mundo pagão e não podia poupar esforços para destruir o que restasse do passado (RAYNOR, 1986, p. 34). Ao longo da Idade Média, a Igreja Católica lutou de todas as formas para combater as ideias religiosas que iam de encontro às suas doutrinas, para que, assim, pudesse se tornar hegemônica, principalmente no mundo europeu. A sua influência se estendeu a áreas como arquitetura, pintura, escultura, música e em todos os espaços do cotidiano. Para que o cristianismo católico obtivesse uma adesão da população, era de fundamental importância que ele estivesse presente nas mais diversas áreas que abrangem a vida do homem. Devido à expansão do cristianismo, várias pessoas que passavam a fazer parte dessa religião traziam para dentro da igreja costumes “mundanos”, que iam de encontro aos ideais católicos. Era muito fácil para um fiel religioso entrar em contato com os cantos profanos, porque estes faziam parte das festas em família, dos banquetes, sempre acom- panhado por muitos instrumentos musicais. Com frequência, os padres atacavam essas festas e suas músicas, pois as declaravam cheias de promiscuidade e falta de moralidade. 44 Danças, coros, cantos pagãos, palavras desonestas, excesso de orgias de toda a natureza, seduções diabólicas de todo o gênero: daí vos conta do que estas bodas estão compostas. [...] São Crisóstomo repetirá que, enquanto estão cantando cantos imorais, o demônio é celebrado nos teatros; frequentemente os designará como cantos satânicos. Deste modo, a renúncia ao diabo e a todas as suas obras, que o cristão promete na fonte batismal, deve incluir também a renúncia a estes espetáculos e cantos (BASURKO, 2005, p. 121 e 128). Outro fator relacionado à música dessa época e que não devemos desprezar é o afastamento da mulher no meio musical da igreja. Era também uma forma de oposição ao estilo de festas pagãs, nas quais o coro feminino era bastante explorado, vejamos: “Decreta-se que as mulheres não devem falar na igreja nem sequer em voz baixa nem devem cantar sozinhas nem tomar parte das respostas, mas estarão em silêncio, orando a Deus” (BASURKO, 2005, p. 55). A mulher, na concepção católica, não poderia ocupar espaço algum no rito da missa. A preocupação em manter a “pureza” do culto pelos padres medievais não existia apenas nos valores externos dos cantos considerados profanos, mas também no modo de cantar dentro da igreja. O canto daria prazer aos fiéis, porém, era necessário que o foco do culto não fosse desvirtuado pelos deleites carnais. Caro acadêmico, percebemos que, no mundo medieval, o canto deveria ser posto como uma maneira de adoração a Deus e, portanto, houve toda uma forma de explicação de como esse canto deveria acontecer. Deveria estar afastado de valores “mundanos”, pois a música, assim como outros tipos de arte utilizados pela igreja medieval, deveria ser o canal para adoração e não simplesmente para a contemplação. 8 AS CRUZADAS Caro acadêmico, você já deve ter ouvido falar no movimento das cruzadas, que foi um verdadeiro levante da cristandade contrao avanço do islã na região de Jerusalém. O islamismo é uma religião fundada por Maomé na região da Arábia, no século VI, e, devido ao seu caráter altamente proselitista, passou a empreender uma verdadeira jornada rumo à islamização dos povos. Para se ambientar ao mundo medieval, nada melhor que ouvir alguns cantos gregorianos. Para ouvi-los, acesse os seguintes links: https://youtu.be/wcCcUEYzGyo. https://youtu.be/krWODCyGz1Q. https://www.youtube.com/watch?v=aqsIq2jSvE0. DICA 45 O cristianismo, que também tinha um caráter proselitista, entrou em conflito algumas vezes com o islamismo, na tentativa de levar cada qual a sua religião a ser aceita. Um desses conflitos ocorreu por cerca de duzentos anos e ficou conhecido como Cruzadas, um termo que fazia referência às cruzes que os combatentes cristãos levavam, como uma lembrança a ordem de Cristo de carregar a sua cruz. Eliade (2011b) observa que esse movimento teve um caráter escatológico, tendo em vista que, por ser Jerusalém considerada cidade santa que Cristo restauraria e chamaria de Nova Jerusalém, ela deveria permanecer sob o domínio cristão até que o Messias retornasse. O autor também retoma a ideia dos iluministas Hume e Voltaire que caracterizaram esse movimento como “fanatismo e loucura” (ELIADE, 2011b, p. 95). As cruzadas tiveram início em 1095, quando o papa Urbano II ordenou que os cristãos pegassem em armas e lutassem contra os “invasores” de Jerusalém, cidade considerada santa para os cristãos, pois foi onde Jesus Cristo passou boa parte de sua vida. Foram sete movimentos cruzadísticos oficiais, porém, por vezes, houve movimentações populares para lutar em Jerusalém. Antes mesmo que a primeira cruzada estivesse saindo rumo ao encontro dos islâmicos, um grupo de cerca de quarenta mil pessoas, liderados por um monge, Pedro, o Eremita, se dirigiu ao oriente na tentativa de combater os “infiéis”. Porém, com uma população sem vínculos militares, a catástrofe foi inevitável, fazendo com que muitos dos cristãos fossem mortos ou vendidos como escravos (HURLBUT, 2007). Segundo Hurlbut (2007), a primeira cruzada oficial foi a mais exitosa das sete. Além de realizar massacres entre os judeus no Reno (ELIADE, 2011b), com cerca de 275 mil guerreiros europeus, conseguiu conquistar Jerusalém, em 1099, quando foi estabelecido um governo no estilo feudal. O reino implantado ali não subsistiu durante muito tempo, e uma das causas foi a distância do mundo europeu e o cerco dos sarracenos. Outra cruzada aconteceu entre 1147 e 1149, pois as notícias eram de que os sarracenos estavam ameaçando conquistar Jerusalém e que já tinham conseguido dominar cidades próximas. Os intentos dos cruzados não foram alcançados, porém, eles conseguiram adiar um pouco o domínio de Jerusalém (HURLBUT, 2007). A terceira cruzada contou com a liderança de imperadores importantes, mas não teve grandes conquistas. Já a quarta cruzada tomou um rumo bem diferente, pois os cruzados se dirigiram para Constantinopla e tomaram a cidade. Cabe lembrar que, a essa altura, já havia ocorrido a divisão do cristianismo e a região de Constantinopla não era pertencente ao catolicismo romano. Segundo Eliade (2011b, p. 97), 46 [...] os cruzados, em vez de tomarem o rumo da Terra Santa, ocuparam Constantinopla, trucidaram parte da população e saquearam os tesouros da cidade. O rei Balduíno de Flandres é proclamado imperador latino de Bizâncio, e Tomás Morosini passa a ser o patriarca de Constantinopla. O governo latino nessa região durou cinquenta anos e, após sua saída, o império Bizantino não foi mais o mesmo, o que facilitou a sua conquista posteriormente (HURLBUT, 2007). As outras cruzadas não obtiveram o êxito que desejavam. Aos poucos, o contato entre a Europa e o Oriente foi dando espaço à ampliação do comércio, e o islamismo se expandiu para outras regiões. Além disso, o mundo feudal sofreu fortes abalos, vindo a ruir posteriormente, dando lugar aos reinos absolutistas. 9 O GRANDE CISMA PAPAL O final do século XVIII e início do XIV trouxe para a igreja romana uma disputa entre papas. Nesse período, as disputas entre os governos inglês e francês resultaram na eleição de dois papas. Vamos entender como isso aconteceu. De acordo com Shelley (2004), Eduardo I estava governando a Inglaterra, enquanto a França era governada por Felipe, o belo. Eles estavam disputando entre si territórios e, para conseguirem ser bem-sucedidos, teriam que conseguir mais dinheiro para as guerras e, nessa disputa, cada qual teve a ideia de fazer com que a igreja em seu território pagasse impostos. A igreja viu essa questão como uma afronta e o papa ameaçou os governantes de excomunhão, caso fosse levada adiante a questão dos impostos. Os governantes não se intimidaram com as ameaças papais. Se a excomunhão ocorresse, a igreja inglesa não poderia contar mais com a proteção que os reis lhes garantiam e as terras da igreja seriam confiscadas. Já o governante francês proibiu a saída de recursos para Roma. O papa, então, não levou adiante a excomunhão e usou o pretexto do “ano santo” para continuar as relações cordialmente com os dois países. Antes desse desentendimento, o papa Bonifácio VIII havia decretado que o ano de 1300 seria comemorativo, ou seja, o “Ano Santo”, devido a mais um centenário do nascimento de Cristo. Sendo assim, esse ano em especial, seria concedido aos cristãos o perdão total dos pecados, mas somente aos que fossem às igrejas em Roma de São Pedro e São Paulo. Essa peregrinação atrairia os fiéis e suas doações a Roma (SHELLEY 2004). Porém, a trégua durou pouco. Em 1301, o rei francês prendeu o bispo, o que gerou um conflito entre o papa e Felipe. O rei convocou uma assembleia e, por meio dela, garantiu apoio para se opor ao papado. Um tempo depois, o Papa “Bonifácio emitiu a Unam sanctam, a mais extrema asserção do poder papal em toda a história da igreja. Dessa vez, Bonifácio foi inquestionavelmente claro ao declarar: “É absolutamente necessário que todo ser humano esteja subordinado ao pontífice romano” (SHELLEY 2004, p. 246). 47 O rei francês, em resposta, se uniu ao advogado William de Nogaret e começou a tramar retirar o papa do poder. Para isso, alegou diversas coisas: “ilegalidade de sua eleição, como também heresia, simonia e imoralidade” (SHELLEY 2004, p. 246). Os franceses se deslocaram até o papa, que estava passando uns dias na cidade de Anagni, e o prenderam. Não se sabe se chegou a ser torturado pelos franceses. A população da cidade conseguiu capturar o papa dos franceses, porém, como já era muito idoso, não aguentou o desgaste e morreu. Foi escolhido, então, um sucessor para o trono papal, que morreu pouco tempo depois. Após isso, o colégio responsável pela escolha do novo papa escolheu um papa francês, o papa Clemente V, que não aceitou governar a partir de Roma, ficando em Avignon, na França. Alguns territórios germânicos, porém, não aceitaram essa mudança da sede papal. Em 1377, então, o papado voltou a se instalar em Roma, com Gregório XI, porém, assim que ele faleceu, a nova eleição foi de um papa italiano, apesar de a maioria dos cardeais que o escolheram serem franceses. Essa atitude teria sido para acalmar os anseios dos romanos, que não tinham um papa de lá há algum tempo. Quando o novo papa foi coroado como Urbano VI, ele passou a tomar decisões consideradas ditatoriais, “em agosto, repentinamente, os cardeais informaram a Europa que o povo de Roma forçara a eleição de um apóstata para a cadeira de Pedro e os procedimentos, portanto, eram inválidos” (SHELLEY 2004, p. 249). Todavia, o papa eleito não se intimidou e escolheu um corpo novo de cardeais que o apoiou. Em represália, os franceseselegeram outro papa, Clemente VII, que passou a governar da cidade francesa. A cristandade católica passou, então, a ter dois papas. Esse período ficou conhecido como Grande Cisma do Papado: “Cada papa tinha seu próprio Colégio de Cardeais, garantindo, dessa forma, a escolha papal de seu agrado. Cada papa alegava ser o verdadeiro Vigário de Cristo, com o poder de excomungar qualquer um que não o reconhecesse” (SHELLEY 2004, p. 249). Essa situação fez a Europa se separar no quesito de qual papado iria apoiar ou obedecer, se o que estava em Roma ou em Avignon. Para acabar com essa duplicidade de papas, foi proposto um concílio geral em 1395. Essa postura gerou outro debate, pois somente o papa poderia convocá-lo. Somente em 1409 foi que os cardeais concordaram que deveria ser feito o concílio e acabaram por decidir que os dois papas deveriam ser depostos. Eles escolheram outro nome para o cargo, o Papa Alexandre V. Todavia, os dois papas se recusaram a abandonar seus postos, ficando então a igreja com três papas (SHELLEY, 2004). Para resolver essa nova situação, outra reunião foi convocada: 48 Em 1414, o santo imperador romano promoveu na cidade alemã de Constance a mais expressiva reunião da igreja de sua época. Mesmo a igreja ortodoxa grega enviou representantes. Pela primeira vez a votação aconteceu em bases puramente nacionais. No lugar de tradicional assembleia de bispos, o concílio incluiu representantes leigos e foi organizado como uma convenção de “nações” (alemã, italiana, francesa e inglesa; a espanhola entrou depois). Cada nação tinha um voto. [...]. Por fim, em 1417, o concílio conseguiu que um titular papal fosse posto de lado, depôs outros dois e escolheu um novo Vigário de Cristo, Martinho V (SHELLEY 2004, p. 251). A decisão do Concílio de Constance recolocou um papa como governante da igreja, porém, o papa Martinho V passou a ser contra a ideia do Concílio de ser um órgão que tirasse o poder do papado. A ideia era de que haveria reuniões do Concílio, o que não foi aceito pelo papa e, considerado heresia (SHELLEY 2004, p. 251). 10 OS PRINCIPAIS PENSADORES CRISTÃOS MEDIEVAIS Caro acadêmico, trataremos agora brevemente, dos principais pensadores cristãos do período medieval. Aqui é o ponto de partida para que você pesquise mais a respeito desses homens e suas influências para a cristandade. Começaremos essa jornada expondo Anselmo de Aosta (1033-1109), também conhecido como Anselmo de Bec, Anselmo de Cantuária, Santo Anselmo ou como o segundo Agostinho. Nascido na região da atual Itália, foi bispo, monge, abade e primaz na igreja inglesa. Por questões políticas travadas contra o imperador, sofreu exílio por alguns anos (HURLBUT, 2007). Sua principal contribuição foi o pensamento “conhecido pelos escolásticos como argumento único (argumentum unicum) ou simplesmente razão de Anselmo (ratio Anselmi)” (STREFLING, 2009, 138). Santo Anselmo continuou e desenvolveu o método rigoroso de Lanfranco, utilizando largamente a dialética na exposição da doutrina revelada em obediência ao princípio augustiniano da fé à procura da inteligência (fides quaerens intellectum). A sua síntese doutrinal impõe-se na história do pensamento, tanto pela variedade dos temas abordados - inteligência da fé, existência e atributos de Deus, criação, rectidão, verdade e justiça, graça e liberdade etc., como pela profundidade e originalidade com que são estudados. Toda a sua obra reflete o esforço do crente que procura descobrir o rosto de Deus tanto no mistério da sua vida íntima como nas criaturas, que são sua imagem ou ainda nos acontecimentos providenciais da história. A palavra de Deus é assumida como fonte primeira e critério último de toda a especulação anselmiana [...] (FREITAS, 2008, p. 3). Além de consagrado filósofo, Anselmo foi importante também nas questões monásticas. Assumiu a função de arcebispo da Cantuária e tentou promover uma maior liberdade para a Igreja inglesa. Essa postura lhe reservou, inclusive, o exílio. 49 Outro pensador importante desse período foi Pedro Abelardo (1079-1142). Além de se dedicar à teologia e à filosofia, “pode ser considerado o fundador da Universidade de Paris, que foi a mãe das universidades europeias” (HURLBUT, 2007, p. 172). Foi professor e chegou a ser abade. Quanto aos escritos, foram muito importantes no campo da lógica. O uso crítico da filosofia associado à leitura teológica contribui para uma boa compreensão da verdade frente às realidades não cristãs. Abelardo defende o uso das Sagradas Escrituras e dos escritos dos pais da igreja contra o discurso meramente retórico imposto aos fiéis por muitos religiosos. Os escritos dos santos seriam para ele modelos inteligentes e maduros de escrita (DIEBE, 2014, p. 19). Além de escritos filosóficos relacionados à lógica, Abelardo foi responsável por obras de teologia, ética e, também, poemas. Todavia, a forma de Abelardo ensinar não foi bem-vista em certo momento de sua vida, o que lhe rendeu duas condenações em concílios (DIEBE, 2014) Como último pensador dessa lista, devemos destacar a importância de Tomás de Aquino (1225-1274). Italiano, Aquino fez parte da ordem dos dominicanos e foi o mais importante representante do pensamento escolástico. Este movimento passou a reger as ideias da igreja no medievo e se baseava nas ideias de Aristóteles. O pensamento de Aquino divergiu do pensamento de Agostinho de Hipona, que se baseava mais nas ideias de Platão. “Ele foi chamado de ‘doutor universal’, ‘doutor angélico’ e ‘príncipe da Escolástica’” (HURLBUT, 2007, p. 173), e sua forma de pensar acabou influenciando a igreja nesse momento, superando o pensamento agostiniano. Dentro da ordem dos dominicanos, Aquino atuou em cargos importantes, ajudando, inclusive, nos estudos da Ordem, chegando a ser assessor da cúria. Durante o período que ministrava aulas, pensando em auxiliar aos alunos para terem uma melhor compreensão da teologia, escreveu o que passou a ser sua obra mais conhecida, a Summa theologiae. Sua produção foi vasta, sendo um dos teólogos que mais escreveu. Suas principais obras foram compostas de sínteses teológicas, questões disputadas, comentários bíblicos, tratados, comentários sobre o pensamento de Aristóteles, dentre outras (BONI, 2018). Ao final do tópico, você encontrará um excerto de uma das obras de Tomás de Aquino. Um filme clássico sobre o período Medieval é Em nome de Deus, de 1988, com direção de Cliver Donner. O filme conta a história de Pedro Abelardo, que teve grande importância para a universidade medieval. Disponível em: https://bit.ly/3zXg26p. Acesso em: 15 jun. 2021. DICA 50 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • O poder e a autoridade que o papa tem no catolicismo atual é resultado de discussões e conflitos. • Foi na Idade Média que o cristianismo sofreu seu primeiro rompimento, o Cisma do Oriente. • Ocorreu um movimento de ampliação dos monastérios e o surgimento de novas ordens religiosas católicas. • A expansão do cristianismo entre os povos “bárbaros”, formando novas comunidades cristãs, principalmente na Europa. • Houve diversas lutas entre o cristianismo e o islamismo, principalmente nas Cruzadas, • Os monastérios foram importantes para a salvaguarda dos livros e desenvolvimento musical. 51 1 Considere o seguinte trecho do discurso do papa Urbano II no momento da convocação da cristandade para lutar nas Cruzadas. “Por isso eu vos apregoo e exorto, tanto aos pobres como aos ricos – e não eu, mas o Senhor vos apregoa e exorta – que como arautos de Cristo vos apresseis a expulsar esta vil ralé das regiões habitadas por nossos irmãos, levando uma ajuda oportuna aos adoradores de Cristo. Eu falo aos que estão aqui presentes e o proclamo,aos ausentes, mas é o Cristo quem convoca [...]. Se os que forem lá perderem a sua vida durante a viagem por terra ou por mar ou na batalha contra os pagãos, os seus pecados serão perdoados nessa hora; eu o determino pelo poder que Deus me concedeu [...]” (SÁNCHEZ, 2000, p. 83). Sobre o movimento das Cruzadas, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Os cruzados foram pessoas que lutavam a favor do fim das heresias que assolavam o cristianismo medieval. b) ( ) As Cruzadas foram um breve levante da cristandade contra o avanço do islamismo em Jerusalém, sem ter, contudo, interferências mais sérias na Europa Medieval. c) ( ) Foi um movimento que uniu fé, política, fanatismo cristão, incentivado principalmente pela igreja, na luta por fazer de Jerusalém uma cidade cristã, se opondo ao avanço do islamismo. d) ( ) Oficialmente, foram sete cruzadas realizadas para a expulsão dos islâmicos da região de Jerusalém. Todavia, a sexta cruzada acabou tendo um caráter diferenciado, pois os cruzados fizeram um levante em Constantinopla, deixando-a sobre o domínio dos latinos. 2 Os monastérios constituem uma parte relevante para a vida do cristianismo. Seu início remonta ainda a Idade Antiga, sendo que, no período medieval, houve uma ampliação do número de monastérios e de monges. Tendo em vista o que estudamos da consolidação da vida monástica. Analise as sentenças a seguir: I- Os monastérios surgiram no período Medieval e a primeira ordem criada foi a dos franciscanos, que, por seu cuidado com as pessoas e contra as riquezas, se tornou muito popular entre os pobres. II- O monastério na região de Cluny ajudou a igreja na reforma efetuada no cristianismo medieval, no que diz respeito a interferência do poder secular nas questões da igreja. III- Os beneditinos foram a primeira ordem monástica, e a que procurou levar seriedade ao movimento no seio da igreja. Porém, por disputas com as demais ordens que surgiram como os franciscanos e dominicanos, ela foi extinta na Alta Idade Média. AUTOATIVIDADE 52 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 A Idade Média foi um período muito intenso para a cristandade. Ela foi responsável por trazer transformações profundas na mentalidade europeia, de se relacionar com o sagrado. As mudanças nem sempre eram pacíficas, pois, sempre havia os que iam de encontro a elas. Sendo assim, muitas vezes debates e conflitos ocorriam internamente. Uma das questões bastante discutida foi se o cristianismo poderia ou não usar imagens para representar Cristo ou os mártires. Sobre essas disputas, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O movimento iconoclasta se deu pela disputa entre as igrejas Oriental e Ocidental, pois, a igreja latina era a favor do uso das imagens e a igreja grega não. ( ) O imperador Leão III foi a favor dos ícones nas igrejas. Ele fez leis para que os iconoclastas fossem excomungados. ( ) Foi no século IX que o movimento iconoclasta foi condenado e, o uso das imagens e ícones puderam ser retomados e largamente usados nas igrejas. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 Desde o mundo Antigo que o cristianismo buscou uma unificação das suas ideias. Porém, as diferenças entre as igrejas Oriental e Ocidental foram se acentuando, até que o rompimento ocorreu, causando o primeiro cisma no cristianismo. Explique os principais motivos para o rompimento que ficou conhecido como “Cisma do Oriente”: 5 Temos na doutrina católica um conjunto de ideias que foram frutos de diversos debates até que fossem consolidadas. Uma das questões que esteve presente no contexto medieval foi com respeito ao uso ou não de imagens e ícones nas Igrejas, principalmente na crise Iconoclasta. Explique como essa questão foi resolvida pela Igreja: 53 TÓPICO 3 - AS HERESIAS MEDIEVAIS E A INQUISIÇÃO 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, no Tópico 2, nós vimos que, na mudança da cultura Antiga para a Medieval, o cristianismo tomou novos rumos para suas práticas. Expandiu ainda mais seu campo de atuação e se tornou presente em toda Europa. Porém, nem tudo foi ganho. O cristianismo viu surgir uma nova religião que arrebanhou países inteiros, o islamismo, que abalou por diversas vezes a hegemonia que o cristianismo tentava impor. Todavia, o cristianismo, apesar da ruptura sofrida, se consolidou, principalmente com as alianças com reis, imperadores e senhores feudais. Tais laços ajudaram a religião a ser imposta como única que se deveria ser seguida na Europa. Porém, muitos povos não eram tão receptivos assim quanto a abdicarem de seus hábitos, que o cristianismo considerava pagãos, para viverem um cristianismo de fato. Portanto, mesmo quando os seus líderes aceitavam o cristianismo, mantendo alianças com o papado, nem sempre a população aceitava de bom grado mudar seus hábitos religiosos. Por vezes, a tentativa era de mesclar os costumes pagãos com o cristianismo. Tendo em vista tais questões, estudaremos, agora, as heresias medievais e as medidas que Igreja católica tomou para combatê-las ao fundar o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Conheceremos as principais características das heresias medievais, que se diferenciavam dos movimentos heréticos que já estudamos no mundo Antigo. Conheceremos os pormenores da Inquisição e como ela se tornou a arma no combate às heresias. 2 AS HERESIAS MEDIEVAIS Caro acadêmico, temos procurado apresentar a você, até agora, os principais caminhos que o cristianismo escolheu ao se portar como uma religião universal. Porém, um dos principais entraves encontrados foram as chamadas heresias. Já vimos que a igreja tomou para si a responsabilidade de dizer como as escrituras seriam interpretadas. Quando alguma dúvida surgia, sínodos e concílios eram convocados para resolver a questão. Quando um grupo insistia em uma ideia que não estava de acordo com os resultados de tais concílios, ela acabava sendo considerada heresia. Devemos, primeiramente, entender que, no período medieval, a heresia não era uma ideia propagada por um indivíduo. Ela até poderia começar com uma pessoa, porém, a forma de pensar deveria se espalhar. Portanto, era importante que um grupo UNIDADE 1 54 tivesse levantado as ideias discrepantes. Outro ponto importante que devemos considerar ao estudarmos essa temática é a diferença entre herege e infiel. O herege era um cristão, porém, ele era tido como alguém que está distorcendo os ensinos da igreja. Já o infiel era alguém de outra religião, como, por exemplo, os judeus e os islâmicos (QUEIROZ, 1988). Sendo assim, para ser considerada herege, era preciso que a pessoa fosse batizada. O herético, portanto, não era alguém que abandonava a fé, mais sim aquele que escolhia caminhos diferentes do que lhe era religiosamente imposto. Na mentalidade medieval, era importante que as pessoas seguissem as ordenanças da igreja para que a ordem do mundo não fosse desfeita. Para o clero, as heresias causavam uma quebra da ordem da autoridade por Deus imposta, de obediência à igreja. O bom cidadão era aquele que não discutia com a autoridade que representava Deus na terra, portanto, era alguém que não poderia ter escolhas (QUEIROZ, 1988). Sobre as diferenças entre as heresias medievais e da antiguidade, Queiroz nos esclarece: Há um fator, entretanto, que separa completamente a heresia medieval da antiga. A heterodoxia dos primeiros séculos do cristianismo tendia a ser mais intelectualizada, circunscrevendo-se a debates teológicos nos meios eclesiásticos. A heresiamedieval desencadeia-se por razões de ordem moral e infiltra-se em todos os meios sociais. No entanto, vários itens de composição de heresias antigas reaparecem na Idade Média. Entre eles, o segredo pelos sacramentos, pela hierarquia eclesiástica, pela cruz, pelo casamento, pela carne (QUEIROZ, 1988, p. 24). Entre as heresias antigas que foram revitalizadas no medievo, estavam o maniqueísmo, em 1018, e o docetismo, em 1022, em Orleans, encabeçado por clérigos. Com o avanço do cristianismo entre os povos que passaram a ser chamados de europeus, que antes tinham religiões diversas, muitas ligadas à natureza, e que tinham padrões de comportamento diferentes dos cristãos que avançavam, principalmente no campo sexual, a adesão ao cristianismo ocorreu como uma simbiose. Em alguns momentos, ritos e práticas que eram considerados pagãos, se encontravam e se misturavam ao cristianismo. Daí, o clero agia para “purificar” tais ambientes, nem que seja por meio da força. Veremos, a partir de agora, alguns dos principais grupos considerados heréticos nesse período. 2.1 OS ALBIGENSES OU CÁTAROS Os cátaros foram o grupo de heréticos medievais que mais conseguiram fiéis. A propagação de suas ideias foi considerada como uma das mais perniciosas que a Igreja oficial teve que combater. Com algumas influências gnósticas, eles formaram um grande séquito e uma estrutura organizacional que se tornou difícil para a Igreja combater. Além da Inquisição, foram utilizados o exército e até mesmo cruzadas contra eles (FABEL, 1976). 55 A igreja cátara era formada por um bispo e seus auxiliares, os Crentes, que era a maioria dos fiéis, e os Perfeitos, que eram os considerados de alto nível, pois já haviam passado pelo rito do consolamentun, no qual eles eram elevados de posição no grupo. Segundo Fabel (1976, p. 41), “os Perfeitos dedicavam-se à contemplação e esperava- se que mantivessem o mais elevado nível moral, cabendo aos Crentes fornecer-lhes alimentos”. Os Perfeitos eram proibidos de quaisquer relações sexuais e não poderiam ter nenhum contato com mulher. Além disso, o casamento era considerado uma tática do Deus do mal para prender as pessoas à terra, já que filhos seriam gerados, o que faria com que a elevação da humanidade demorasse ainda mais. Se o aspirante a Perfeito fosse casado, ele teria que renunciar sua esposa antes do rito (FABEL, 1976). Todavia, aos Crentes, a questão do ato sexual não era proibida, desde que não gerassem filhos. Constantemente, a igreja católica acusava os cátaros de serem promíscuos, porque não seguiam a mesma lógica sexual que eles (QUEIROZ, 1988). Sobre sua doutrina, apesar de haver diferentes concepções entre os cátaros, no geral, eles criam que havia o Deus perfeito e bom e o Deus mal. Portanto, o Deus bom não poderia ter criado o mundo, pois há o mal no mundo. Assim sendo, o nosso mundo foi criação do Deus mal (FABEL, 1976), vejamos: A criação do homem era explicada da seguinte forma: Lúcibel, após ter criado a terra, decidiu povoá-la e constituir uma milícia para combater o deus-bem. Penetrou no céu, seduziu alguns anjos pela concupiscência e para prendê-los à terra deu-lhes um corpo. Depois disso, induziu-os ao pecado carnal, ligando-os à condição humana. Possuía uma reserva de anjos decaídos que forneciam alma a cada novo corpo que nascia. Do mesmo modo que, na doutrina cristã, o homem estaria condenado desde o nascimento; mas, segundo o catarismo, o pecado original era determinado pelo céu (FABEL, 1976, p. 53, 54). Os cátaros ainda eram contra os símbolos cristãos, como a cruz, e criam que Jesus, em seu corpo, era apenas aparente, já que, por ser o enviado do Deus bom, não poderia pisar de fato nesse mundo que pertencia ao Deus mal. O Deus mal seria o Deus do Antigo Testamento, pois, ele que procurou matar o enviado do Deus do bem, que era Jesus (FABEL, 1976). Também não aceitavam João Batista, pois consideravam-no filho do diabo (QUEIROZ, 1988). Além disso, não concordavam com a ideia de purgatório e infernos, pois a alma seria purificada aqui mesmo, mas só conquistada depois que não fizesse mais parte desse mundo, pois teria se livrado do mal que há aqui. Alguns cátaros, inclusive, cometiam suicídio para poder ascender mais rapidamente, porém, não era uma prática referendada. Eles também criam na questão da transmigração das almas, que ficavam voltando à terra, podendo vir tanto como pessoa, quanto como animais. Já os Perfeitos eram aqueles que já haviam cumprido seu tempo de transmigração, por isso, iriam para o céu (QUEIROZ, 1988). Posteriormente, alguns cátaros mudaram de ideia quanto a Cristo e passaram a considerá-lo como Deus e humano “[...] sua missão na terra teria sido salvar, pela pregação, os anjos caídos. Cátaros moderados chegavam até a acreditar nos milagres 56 de Cristo; os mais radicais viam nisso somente truques de magia. O único e verdadeiro milagre seria o despertar da alma” (QUEIROZ, 1988, p. 55). Quanto aos hábitos alimentares, como os cátaros criam na ideia da metempsicose, até mesmo como na forma animal, eles se abstinham de comer carnes, pois acreditavam que ela poderia conter alguma parte da alma de alguém, que ficaria presa no corpo, sem poder retornar. Também não se alimentavam dos derivados de carne, porém, não tinham problemas em comer peixes, pois acreditavam que eles eram gerados espontaneamente pelas águas. Quanto à questão do mandamento de “não matar”, eles levavam tão a sério que era relacionado aos animais, pelo mesmo motivo já explicado, pois eles poderiam carregar a alma de alguém (QUEIROZ, 1988, p. 55). A reação da igreja contra os cátaros foi intensa e envolveu o exército. Foram várias investidas em diferentes cidades e muitas pessoas foram mortas, como relata Queiroz: [...] em 1219, as tropas francesas massacraram 5000 pessoas em Marmande. [...]. A crueldade da guerra era extrema. Arnoldo Aiméry escreve exultante para o papa, narrando que os cruzados, na miraculosa captura de Béziers, haviam matado 15000 pessoas de todas as idades – a igreja da cidade, onde os heréticos haviam se refugiado, fora queimada com todos dentro. Essa barbárie tinha por finalidade assustar outras cidades do sul e forçar sua rendição (QUEIROZ, 1988, p. 69). Após vários levantes e ao início do Tribunal da Inquisição, os cátaros foram morrendo ou se rendendo, e o movimento enfraqueceu até chegar ao fim. Temos, assim, o desfecho de um dos principais grupos que defendiam ideias destoantes da ortodoxia no período Medieval. 2.2 OS VALDENSES De acordo com Queiróz (1988), o grupo dos “pobres de Lyon”, que ficou conhecido como “Valdenses”, surgiu a partir das ideias de Pedro Valdês, um homem rico que se dedicou ao estudo da Bíblia e disse ter sido “iluminado” por ela. Ele se separou da mulher, deixando com ela parte das suas posses e a outra parte ele usou para ajudar aos pobres em 1173. Conseguiu discípulos e se dispôs a pregar, o que não foi bem-visto pela igreja pois, não tinha permissão para tal. Foi expulso da cidade de Lyon, apesar de ter pedido apoio ao papa, o que não conseguiu. O movimento cresceu e, segundo Falbel (1976), uniu-se ao movimento de tecelões, os Humilhados de Lombardia, que ficava em Milão. Os que não quiseram unir- se aos Valdenses formaram uma nova ordem religiosa. Os que se uniram aos Valdenses “foram excomungados no concílio de Verona, juntamente com outros grupos como os arnaldistas e os cátaros [...]” (QUEIROZ, 1988, p. 29). 57 Por divergências internas, o grupo se separou entre: os franceses, que não comungavam de algumas questões referentes ao clero, mas continuavam participando das missas, e os italianos que não quiseram mais estar subordinados a igreja (QUEIROZ, 1988). A vertente italiana se difundiu largamente. Os principais pontos da pregação dosValdenses que eram vistos como heresias pelos católicos eram: a pena de morte não poderia ser aplicada pelo Estado; não deveriam ser feitos juramentos, pois a Bíblia os condena; quanto aos sacramentos, estes poderiam ser feitos por leigos. E, talvez, a assertiva mais enfatizada era: “a Igreja Romana não é a Igreja de Cristo” (FABEL, 1976, p. 63). Esse grupo sobreviveu às perseguições e, atualmente, ainda tem remanescentes no território italiano, agora, como protestantes (HURLBUT, 2007). 2.3 JOHN WYCLIFFE Wycliffe (1328-1384) foi um clérigo inglês que começou a discordar de algumas posturas da igreja católica. Sua ênfase foi dada principalmente na questão da autoridade da igreja romana para com a Inglaterra. Sua intenção era que a igreja inglesa tivesse mais autonomia, chegando a chamar de anticristos os papas de Roma e Avignon. Além disso, ele desenvolveu outras ideias que foram de encontro a algumas questões da doutrina católica. Suas principais críticas eram sobre a transubstanciação, que, segundo a teologia católica, no momento eucarístico os elementos do pão e vinho se transformam no corpo e sangue de Cristo. Já para Wycliffe, a eucaristia era apenas simbólica. Além disso, Wycliffe queria que o rito da missa fosse mais simples e chegou a traduzir a Bíblia para o inglês, o que não agradou o clero pois, segundo a tradição da igreja, a Bíblia não deveria ser traduzida para a língua comum (HURLBUT, 2007). Wycliffe desafiou todas as práticas e crenças medievais: perdões e indulgências, absolvições, peregrinações, a adoração de imagens, a adoração dos santos, o tesouro de seus méritos estarem nas reservas dos papas e a distinção entre pecado venial e mortal. Manteve a crença no purgatório e na extrema-unção, embora admitisse que procurara em vão na Bíblia pela instituição da extrema-unção (SHELLEY, 2004, p. 257). Wycliffe defendia a supremacia das Escrituras e não dos escritos dos teólogos da Igreja. Segundo ele, toda teologia deve encontrar seu respaldo na Bíblia. As ideias defendidas por Wycliffe foram muito importantes para um movimento posterior, a Reforma Protestante, que ocorreu com Martinho Lutero, no século XVI. Inicialmente, Wycliffe fora amparado pela nobreza inglesa, que achava interessante a ideia de uma igreja mais nacional. Quando suas críticas à ideia da transubstanciação ficaram mais intensas, ele foi abandonado por muitos nobres. O reitor da cidade de Oxford, onde ele ensinava, o proibiu de proferir palestras e, “o arcebispo de Canterbary, Willian Courtenay, 58 organizou um outro conselho que condenou dez das doutrinas de Wycliffe por considerá- las heréticas. Em 1382, o reformador encontrava-se completamente silenciado em Oxford” (SHELLEY, 2004, p. 258). Antes do seu silenciamento, ele enviou sacerdotes a pregar para pessoas mais humildes, obtendo um vasto apoio nas comunidades do campo. O curioso é que a igreja não levantou um processo inquisitorial contra ele, apenas foi afastado da universidade. Porém, seus seguidores foram enxotados de Orxford, caso não quisessem abandonar as ideias consideradas errôneas. Vejamos o que explica Azevedo, em sua tese de doutorado sobre Wycliffe: Por seu pensamento dissonante da ortodoxia católica ele é conhecido como um dos maiores filósofos e teólogos de sua época, ou então como o maior dos hereges ingleses da segunda metade do século XIV, sendo que alguns dos que combateram as suas ideias chegaram a definir que desde o nascimento de Jesus nenhum outro herege mais pernicioso teria surgido. Após sua morte um grupo de seguidores de suas ideias continua a perpetuá-las por mais um século, são os chamados Lolardos. Muito embora muitos autores façam uma diferença entre ‘Wyclifistas’ e ‘Lolardos’ uma vez que nem todos os seguidores de Wycliffe sejam Lolardos (AZEVEDO, 2010, p. 32, 33). Wycliffe, apesar de ter morrido sem sofrer um processo inquisitorial, teve, posteriormente, seus ossos desenterrados e queimados, em uma ação da Inquisição. Essa prática era comum, como veremos posteriormente, quando tratarmos do assunto referente à Inquisição. As ideias dele influenciaram outros, como John Huss, que estudaremos a seguir, e Martinho Lutero, sobre o qual trataremos nos próximos capítulos. 2.4 JOHN HUSS Caro acadêmico, no subtópico anterior, conhecemos as ideias de Wycliffe. Elas foram as bases da pregação de John Huss (1369-1415), que morava na Boêmia e fazia parte do Sacro Império Romano Germânico. Ele defendia, dentre outras coisas, a pobreza para clero, a predestinação e também portava-se contra a hierarquia eclesiástica (SHELLEY, 2004). Suas ideias foram bem recebidas entre as camadas mais pobres e os artesãos. Huss se dirigiu ao Concílio de Constance, no qual iria se discutir a questão dos dois papas, e acabou sendo preso pela Inquisição. Após cerca de oito meses preso, sofreu como sentença a morte na fogueira (QUEIROZ, 1988). Após sua morte, que não foi bem recebida pelos seus seguidores, o movimento não acabou. Segundo Queiroz (1988), o movimento hussita dividiu-se em duas vertentes principais: a dos mais radicais, que estavam em Praga e eram liderados por Nicolau de Dresden e João Zeliv, e o grupo chamado de Calistinos, ala mais moderada. Eles ainda estavam ativos na época da Reforma Protestante e, claro, se uniram ao movimento. 59 2.5 OS BEGUINOS Os grupos dos beguinos, também chamados de “Irmãos Pobres da Penitência da Ordem de São Francisco”, tiveram sérios embates com a igreja católica. O movimento em questão defendia que a igreja deveria ser pobre e não somente andar com os pobres. Sua principal fonte de inspiração foram os escritos de Pedro João Olivi (1248-1298), principalmente os comentários sobre o livro bíblico do Apocalipse, que foi considerado herético pela igreja (FALBEL, 1976). Nessa seita, também tiveram espaço as mulheres, chamadas de beguinas, que, segundo Fabel (1976, p. 81): “sob a direção de uma mestra, levavam uma vida em comum, sem votos propriamente ditos, dentro de ‘cortes de beguinas’, dedicando-se a oração, ao trabalho manual, a assistência aos enfermos, ao cuidado dos cadáveres e a educação das crianças”. Esse grupo teve origem ainda no século XII, espalhando-se por algumas regiões europeias como França, Países Baixos, dentre outros. Segundo Fabel (1976), muitas passaram a ser influenciadas por seitas panteístas, o que provocou a perseguição contra elas. Quanto àquelas que se mantiveram com uma forma de pensar considerada mais ortodoxa, a igreja permitiu que continuassem funcionando. Já com relação à parte masculina, os beguinos: [...] surgiram por volta de 1220 nos Países Baixos. Atuavam na assistência aos enfermos e no sepultamento dos mortos, e difundiram-se tão extensamente quanto as beguinas. Bem cedo desviaram de suas tendências iniciais e se tornaram suspeitos de heresias, de modo que desapareceram antes do século XVI (FABEL, 1976, p. 82). Os beguinos defendiam a pobreza, pois, segundo eles, Jesus e os discípulos foram os pobres perfeitos, por não terem bens, e os verdadeiros cristãos deveriam seguir seus exemplos. Portanto, eram contra o luxo e a ostentação do clero. Eles aceitavam a regra de São Francisco e diziam que era a mesma de Cristo. Outro ponto curioso era que os que se chegassem a eles, para viver em suas comunidades, não poderiam possuir qualquer bem. Sobre Pedro João Olivi, eles o tinham como um “anjo do Apocalipse” (FALBEL, 1976, p. 89). Suas críticas mais duras foram com relação ao papado. Vejamos alguns dos adjetivos usados pelo grupo para representar o papa: “[...] símbolo do Anticristo, [...] lobo rapace que deveria ser evitado pelos fiéis; profeta tortuoso e cego, sumo-sacerdote Caifás, que que condenara Cristo; de javali da floresta, besta feroz que destrói o muro da igreja de Deus” (FALBEL, 1976,p. 91). Claro que, com tais declarações, as perseguições a eles não seriam poucas. A Inquisição atuou contra o grupo com veemência, e levou centenas a fogueira. 60 3 A INQUISIÇÃO MEDIEVAL Caro acadêmico, você já deve ter percebido que esse tema geralmente chama muito a atenção das pessoas em geral. É comum a associação da Inquisição com fogueiras e a suposição de que todos os acusados acabavam morrendo, tostando em praça pública. Apesar da morte pelo fogo ter sido uma prática, ela não se aplicava a todos os casos. Veremos, a partir de agora, como a Inquisição funcionava e, para isso, utilizaremos os dois principais escritos que serviam de guia para os Inquisidores: O Martelo das feiticeiras (ou Martelo das bruxas), de Heirich Kramer e James Sprenger, e o Manual dos Inquisidores, de Nicolau Eymerich e Francisco de La Peña. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi criado pela Igreja católica romana para auxiliar no combate as heresias. Ele passou por diversas reestruturações e contava, inicialmente, com bulas papais, que deveriam ser seguidas pelos inquisidores. Com o tempo é que foram criados manuais mais específicos como o Manual dos Inquisidores (1376) e o Martelo das feiticeiras (1486). Segundo Shelley (2004), a Inquisição teve início em 1184, ao chamar bispos para inquirir sobre as crenças, porém, posteriormente, foram tomadas medidas mais precisas para o combate às heresias: “Em 1215, o Quarto Concílio Lanterano, sob a liderança de Inocêncio III, estabeleceu para a punição estatal dos hereges os confiscos de suas propriedades, excomunhão para aqueles que não agissem contra os hereges [...]” (SHELLEY, 2004, p. 239). Posteriormente, houve a permissão para torturas, e o poder do tribunal foi dado aos Dominicanos (SHELLEY, 2004). O combate as heresias foi o ponto norteador da Inquisição. Para que ela fosse bem-sucedida, deveria contar com o apoio estatal, cedendo a guarda necessária a igreja para cumprir as prisões e sentenças mais drásticas. Trataremos, agora dos principais pontos de como deveriam funcionar os diversos tribunais instaurados, segundo o Manual dos Inquisidores. O Diretorium Inquisitorum, ou Manual dos Inquisidores, foi escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e ampliado por Francisco de La Peña, em 1578, época em que a Inquisição sofreu um renovo para combater as ideias protestantes. Aqui, trataremos dos primeiros passos da Inquisição, e voltaremos, no próximo capítulo, a falar dessa temática, que passou por mudanças significativas. Primeiramente, falaremos das condenações de um herege. Como já explicamos, o herege era uma pessoa que havia recebido o batismo católico e passava a crer e disseminar ideias que destoavam da ortodoxia católica. A inquisição não tinha poder sobre pessoas de outras religiões, que não haviam sido batizadas no catolicismo, como os judeus e os islâmicos. Estas pessoas eram chamadas de infiéis, não de hereges. Todavia, caso a pessoa tivesse recebido o batismo cristão e se convertesse a outra religião, aí sim, ela poderia ser presa pela Inquisição. 61 Como já expusemos, nem todos os processados tinham a pena da fogueira. Esse era o último recurso contra o considerado herege. O processo era longo, e o réu tinha várias audiências antes do veredito final. Quando se iniciava o processo, o réu era levado à presença dos inquisidores e era dito que ele confessasse. Porém, ele não sabia do que estava sendo acusado, pois isso era revelado alguns dias depois da prisão. Essa tática era utilizada para que a pessoa, tomada pelo desespero, falasse tudo que poderia ter feito de “errado”. A partir do momento que ela dissesse que não tinha mais o que confessar, e, se ela não tivesse falado o que os inquisidores quisessem ouvir, eles liam suas “culpas”. Após isso, o processo tomava outro rumo menos “benevolente”, pois, o réu era pressionado a confessar. E como a mesa inquisitorial chegava a essas “provas” contra o acusado? Por meio de denúncias, geralmente. Amigos, parentes, vizinhos, conhecidos, todos deveriam denunciar, caso houvesse algo suspeito, pois, se não fizessem, poderiam ser considerados cúmplices do herege. Caso o réu não confessasse, mas houvesse muitas acusações contra ele, ele poderia ser considerado como um “negativo”, ou seja, era culpado, porém negava durante os interrogatórios. O “afirmativo” era aquele que não escondia que andava nos “erros” da heresia. Mesmo que o réu confessasse suas culpas logo de início e fizesse a relação de todos que andavam com ele e compactuavam de suas heresias, ele não teria a sentença dada rapidamente. Segundo o Manual do Inquisidor, o réu deveria ficar pelo menos um ano nos cárceres, seja para se “arrepender” por completo do que fizera, quanto para denunciar todos seus cúmplices. Caso a pessoa não confessasse após vários interrogatórios, o réu era enviado para a tortura. Essa pessoa deveria ser acompanhada por um médico, que diria até quando ela poderia aguentar sem morrer. Era sempre advertido à pessoa processada que, se ela viesse a morrer em interrogatório era culpa dela mesma, pois não havia colaborado com os inquisidores. Os instrumentos de tortura usados variavam conforme a região. No caso da Inquisição portuguesa, os comumente usados eram o potro, em que o indivíduo era esticado sobre uma mesa, e a polé, em que ele era pendurado pelos braços e caía rapidamente, causando o deslocamento dos membros superiores. Caso o acusado resistisse ao tormento sem confessar e não tivesse um número de acusações que os inquisidores achassem convenientes, ele seria liberado com outras penas. Porém, se ele passasse pelo tormento e, não aguentando a dor, confessasse, mesmo que não fosse culpado, o processo teria outro rumo. Caso o réu mostrasse à Mesa inquisitorial que estava arrependido, poderia se livrar do fogo se fosse o primeiro julgamento dele. Caso ele não demonstrasse arrependimento pelos seus “erros”, iria para a fogueira. Vejamos um trecho do Manual sobre a questão da tortura: Se o réu não confessar, ordenarão aos carrascos para que tirem as suas roupas – o que farão imediatamente, sem brincadeiras, como se estivessem tomados de emoção. Enquanto é despido pelos carrascos, pedirão a ele que confesse. Se continuar a resistir, será levado num canto, completamente nu, por esses fiéis idôneos, que lhe suplicarão cada vez mais. Começam a dizer-lhe, ao mesmo tempo que suplicam, 62 que, se confessar, terá sua vida poupada, se jurar que nunca mais vai cometer tais crimes. [...] Se não conseguir nada através desses meios, e se as promessas se revelarem ineficazes, executa-se a sentença e tortura-se o réu da forma tradicional, [...] mais fracos ou mais violentos; de acordo com a gravidade do crime. [...] Se, depois de ter sido convenientemente torturado, não confessar, vão lhe mostrar os instrumentos de um outro tipo de tortura, dizendo-lhe que vai passar por todos eles, se não confessar (EYMERICH, 1993, p. 154, 155). Quando o réu confessava durante a tortura, ele deveria ser levado para outro local e, depois, teria que continuar sua confissão sem o tormento, para que fosse válida sua confissão. Todo o processo era conduzido para que o réu confessasse e mostrasse arrependimento. Na mentalidade da igreja, esse processo de confissão-arrependimento era necessário para que o réu pudesse voltar ao seio da igreja e não ser excomungado. A morte pelo fogo acontecia de duas formas: caso não se arrependesse pelas heresias, seria queimado vivo. Se recebesse a sentença da morte pelo fogo, mas demonstrasse arrependimento, seria garroteado, ou seja, enforcado e depois queimado. Todo processo era feito pelos membros da igreja que fossem escolhidos como inquisidores. A sentença da morte na fogueira não era aplicada pela igrejae sim pelo “braço secular”. Portanto, quando a sentença final era dada como “relaxado ao braço secular”, queria dizer que foi sentenciado à fogueira. Outra penalidade eram os trabalhos nas galés, que é a parte inferior das caravelas, onde os condenados tinham que remar. Era uma situação de trabalho muito difícil, que gerava sérios problemas de saúde para os condenados. Havia ainda uma sentença muito aplicada, o “degredo”. Essa pena consistia na expulsão da pessoa do local de origem e ela teria que morar em outra região, geralmente inóspita. A sentença poderia ter um prazo para que o réu retornasse ou poderia ser perpétua. Outro ponto interessante consistia no confisco de bens. Tudo que pertencia ao acusado era confiscado e dividido entre a igreja e o governo. Além dessas, a pena mais branda era o uso do hábito penitencial, ou sambenito, que era uma roupa especial que o sentenciado deveria usar toda vez que saísse de casa. O seu uso poderia ser por um determinado tempo ou perpétuo. Um detalhe importante diz respeito ao caso em que o acusado morria durante o processo. Este não era interrompido, e, caso ao final sua sentença fosse de culpado, seus restos mortais eram desenterrados e queimados junto a um boneco ou pintura em um pano, representando-o. Além disso, os seus bens não ficariam para os herdeiros, mas sim para o Tribunal e o governo. Quando alguém conseguia fugir dos cárceres, era considerado culpado. Caso não fosse pego, era dada a sentença de morte em efígie, em que se erguia um boneco que o representava e era queimado. Se fosse pego, o processo continuava, porém, dificilmente teria um destino diferente da fogueira. 63 No decorrer do processo, era concedido ao réu um advogado de defesa, chamado de procurador. Porém, segundo o Manual dos Inquisidores, seu papel era ajudar ao réu a fazer a confissão. O tempo do encerramento do processo variava conforme a vontade do réu em “cooperar” com a Inquisição. Houve casos que duraram mais de cinco anos, outros bem menos, porém, dificilmente alguém sairia do cárcere em menos de um ano. Quando a pessoa que conseguiu passar pelo processo inquisitorial e sua penalidade fosse branda e, por algum motivo, posteriormente voltasse a ser processada, ela era considerada como “relapsa”, e seria condenada à pena máxima. Após as sentenças escolhidas, os réus eram levados para um grande espetáculo, em praça pública ou na igreja principal, chamado de “auto-de-fé”, em que as penalidades dos réus eram lidas e, quando havia, a morte pela fogueira era realizada publicamente. Para os fiéis que assistissem aos autos-de-fé eram concedidas indulgências. Os que manifestassem apoio às vítimas eram também presos. Todo o espetáculo era feito com o intuito de servir de exemplo para os demais para que não seguissem os caminhos dos hereges. Quanto ao livro Malleus Maleficarum, em português, o Martelo das Feiticeiras, sua ênfase é na questão da feitiçaria, ou bruxaria. Ele “ensina” aos inquisidores como reconhecer uma bruxa ou bruxo e como deveria lidar com ele durante o interrogatório. A questão do imaginário sobre a feitiçaria foi muito intensa na Idade Média e na Idade Moderna. Devemos compreender, ao estudarmos essa temática que, feitiçaria foi a expressão usada para rotular e criminalizar práticas religiosas de grupos que tinham costumes diferentes dos cristãos. A cristianização de várias partes da Europa, como vimos, não ocorreu necessariamente porque as massas se converteram. Muitas vezes, os governantes aceitavam o cristianismo, como alianças e, as pessoas acabavam sendo obrigadas a aceitar também. Fazer parte do cristianismo era uma das formas de ser cidadão. Todavia, as práticas religiosas acabavam aparecendo, vez ou outra, fundidas ao cristianismo. Muitas delas deram origens a diversas heresias, outras eram consideradas feitiçaria e eram fortemente rechaçadas pela igreja. Na próxima unidade, voltaremos a falar da Inquisição. As mudanças que ocorreram na sociedade europeia devido à Reforma Protestante acabaram acarretando alterações significativas no funcionamento do referido Tribunal. Caro acadêmico, chegamos ao final do período Medieval e, agora, o próximo passo é fazer a leitura de alguns documentos histórico sobre os assuntos estudados. Será um bom exercício para reforçarmos o aprendizado sobre o pensamento religioso dos períodos que estudamos. Boa leitura! 64 O EDITO DE MILÃO, MARÇO DE 313 Imperador Constantino Nós, Constantino e Licínio, Imperadores, encontrando-nos. em Milão para conferenciar a respeito do bem e da segurança do império, decidimos que, entre tantas coisas benéficas à comunidade o culto divino deve ser a nossa primeira e principal preocupação. Pareceu-nos justo que todos, cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua preferência. Assim Deus que mora no céu ser-nos-á propício a nós e a todos nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a existência de anteriores instruções relativas aos cristãos, os que optarem pela religião de Cristo sejam autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e que ninguém absolutamente os impeça ou moleste. Observai outrossim, que também todos os demais terão garantida a livre e irrestrita prática de suas respectivas religiões, pois está de acordo com a estrutura estatal e com a paz vigente que asseguremos a cada cidadão a liberdade de culto segundo sua consciência e eleição; não pretendemos negar a consideração que merecem as religiões e seus adeptos. Outrossim, com referência aos cristãos, ampliando normas estabelecidas já sobre os lugares de seus cultos, é-nos grato ordenar, pelo presente, que todos que compraram esses locais os restituam aos cristãos sem qualquer pretensão a pagamento. As igrejas recebidas como donativo e os demais lugares que antigamente pertenciam aos cristãos deviam ser devolvidos. Os proprietários, porém, podiam requerer compensação. Use-se da máxima diligência no cumprimento das ordenanças a favor dos cristãos e obedeça-se a esta lei com presteza, para se possibilitar a realização de nosso propósito de instaurar a tranquilidade pública. Assim continue o favor divino, já experimentado em empreendimentos momentosíssimos, outorgando-nos o sucesso, garantia do bem comum. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2. ed. São Paulo: Aste, 1963, p. 44. LEITURA COMPLEMENTAR 65 EDITO DE TESSALÔNICA Imperador Teodósio I Queremos que as diversas nações sujeitas a nossa Clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo- apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo pontífice Dámaso e por Pedro, Bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina dos apóstolos e; o ensino do Evangelho, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos aos seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos cheios de tolices, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação é, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes comum. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2. ed. São Paulo: Aste, 1963, p. 51, 52. A INQUISIÇÃO EPISCOPAL E O PODER SECULAR Dos decretos do Quarto Concilio de Latrão, 1215 [A Igreja no século doze foi perturbada por várias espécies de heresias, sendo as mais perigosas as dos albigensese valdenses. Os primeiros eram maniqueus na teoria e rigorosamente ascéticos na prática, embora seus adversários os acusassem de excessos antinomianos. Os valdenses começaram tentando recuperar o que pensavam ter sido a simplicidade da Igreja apostólica. Mas eles, como tantos outros grupos que começaram com o mesmo propósito, tendiam a um sectarismo intransigente. O Terceiro Concilio de Latrão em 1179, sob Alexandre III, pediu o auxílio do poder secular: “Embora a disciplina da Igreja não leve a efeito retribuições cruentas, contentando-se com o julgamento sacerdotal, ela, contudo, é ajudada pelos regulamentos dos príncipes católicos, de modo que os homens frequentemente busquem o remédio salutar por temor de incorrerem em castigos corporais. Por conseguinte, decretamos que (os albigenses) e os que os sustentam, dando-lhes apoio, estão sob anátema, e proibimos sob pena de anátema que alguém ouse abrigá-los em sua casa ou em seu país, de ajudá-los ou de ter negócios com eles” (cap. 27, Mansi XXII.231; Denzinger, n.° 401). Inocêncio III deu início em 1208 à cruzada contra os albigenses, mas não conseguiu extirpar a heresia; em 1220 a inquisição papal foi confiada aos frades e imposta às cortes episcopais]. 66 Hereges convictos devem ser entregues a seus superiores seculares ou a seus agentes para o devido castigo. Se forem clérigos, primeiramente devem ser destituídos. Os bens dos leigos serão confiscados; os dos clérigos serão aplicados nas igrejas das quais recebiam seus subsídios. Se um senhor temporal negligencia em cumprir o pedido da Igreja de purificar sua terra da contaminação da heresia, será excomungado pelo metropolitano e pelos outros bispos da província. Se deixa de se emendar dentro de um ano, o fato deve ser comunicado ao sumo pontífice que declarará seus vassalos livres do juramento de fidelidade e oferecerá suas terras aos católicos. Esses exterminarão os hereges, serão donos da terra sem discussão, e a preservarão na verdadeira fé. Os católicos que tomarem a cruz e se devotarem ao extermínio de hereges gozarão da mesma indulgência e privilégio dos que se dirigem à Terra Santa. Determinamos, além disto, que cada arcebispo ou bispo, em pessoa ou através de seu arcediago ou outras pessoas capazes e dignas de confiança, visitará cada uma de suas paróquias nas quais se diz que há hereges; fá-lo-á duas vezes ou, pelo menos, uma vez por ano. Obrigará três ou mais homens de boa reputação, ou se for necessário toda a vizinhança, a jurar que se qualquer um deles souber de algum herege, ou de alguém que frequente reuniões secretas, ou de pessoa que pratica coisas e costumes diferentes dos que são comuns aos cristãos, que o comunicarão ao bispo. O bispo deve chamar os que forem acusados para que se lhe apresentem; e, a não ser que se purifiquem da acusação, se incorrerem no erro anterior, receberão o castigo canônico. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2. ed. São Paulo: Aste, 1963, p. 181,182. AS CRUZADAS O CONCÍLIO DE CLERMONT: URBANO II (1095) Considerando as exigências do tempo presente, eu Urbano, tendo, pela misericórdia de Deus a tiara pontificial, pontífice de toda a terra, venho até vós, servidores de Deus, como mensageiro para desvendar-vos o mandato divino [...] é urgente levar com diligência aos nossos irmãos do Oriente a ajuda prometida e tão necessária no momento presente. Os turcos e os árabes atacaram e avançaram pelo território da România até a parte do Mediterrâneo chamada o Braço de São Jorge, e penetram mais a cada dia nos países dos cristãos; eles os venceram sete vezes em batalha, matando e fazendo grande número de cativos, destruindo as igrejas e devastando o reino. Se vós deixardes isto sem resistência, estenderão os seus exércitos ainda mais sobre os fiéis servidores de Deus. 67 Por isso eu vos apregôo e exorto, tanto aos pobres como aos ricos – e não eu, mas o Senhor vos apregoa e exorta – que como arautos de Cristo vos apresseis a expulsar esta vil ralé das regiões habitadas por nossos irmãos, levando uma ajuda oportuna aos adoradores de Cristo. Eu falo aos que estão aqui presentes e o proclamo aos ausentes, mas é Cristo quem convoca [...]. Se os que forem lá perderem a sua vida durante a viagem por terra ou por mar ou na batalha contra os pagãos, os seus pecados serão perdoados nessa hora; eu o determino pelo poder que Deus me concedeu [...]. Os que estão habituados a combater maldosamente, em guerra privada, contra os fiéis, lutem contra os fiéis, lutem contra os infiéis, e levem a um fim vitorioso a guerra que devia ter começado a tempo. Os que até agora viviam em brigas se convertam em soldados de Cristo. Os que até agora eram mercenários por negócios sórdidos, ganhem no presente as recompensas eternas. Os que se fatigaram em detrimento de seus corpos e de suas almas, se esforcem no presente por uma dupla recompensa [...]. De um lado estarão os miseráveis, do outro as verdadeiras riquezas, aqui os inimigos de Deus, lá os seus amigos. Alistem-se sem demora; que os guerreiros arrumem os seus negócios e reúnam o necessário para prover às suas despesas; quando terminar o inverno e chegar a primavera, que eles se movam alegremente para tomar a rota sob o comando do senhor [...]. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2. ed. São Paulo: Aste, 1963, p. 83, 84. O PODER SECLUAR E ESPIRITUAL EM SANTO TOMÁS DE AQUINO (1235-1255) [...] O poder espiritual e o secular são ambos derivados do poder divino; e, portanto, o poder espiritual na medida em que foi estabelecido por Deus, a saber: nas coisas referentes à salvação da alma, e por isso o poder espiritual deve, em tais assuntos, ser obedecido preferentemente ao secular. Mas naquelas coisas que se referem ao bem- estar civil, o poder secular deve ser obedecido preferencialmente ao espiritual, de acordo com o dito em Mateus 22, 21: ‘Dai a César o que é de César’. A menos que o poder secular esteja unido com o espiritual, como no caso do Papa, que detém ambos, o espiritual e o temporal, porque ele é sacerdote e rei; sacerdote eterno, segundo a ordem de Melquisedec, mas rei de reis e mestre daqueles que tem o domínio (dominus dominantium). O poder secular é submetido ao espiritual como o corpo à alma e não usurpa o julgamento, pois o poder espiritual se introduz nas coisas temporais, pelo menos naquelas nas quais esse poder lhe é submetido ou que lhe são entregues pelo poder secular. FONTE: PEDRERO-SÁNCHEZ, M. G. História da idade média: textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 137. 68 QUESTÃO VI DO MARTELO DAS FEITICEIRAS Sobre as bruxas que copulam com demônios. Por que principalmente as mulheres se entregam às superstições diabólicas Há também, a respeito das bruxas que copulam com Demônios, muitas dificuldades ao considerarem-se os métodos pelos quais tal abominação é consumada. Da parte do Demônio: primeiro, de qual dos elementos que compõem o corpo ele se utiliza; segundo, se o ato ´sempre acompanhado da injeção do sêmen recebido de outro homem; terceiro, quando ao momento e ao lugar, ou seja, se pratica o ato mais frequentemente em determinado momento do que em outro; quarto, se o ato não é visível aos que estão perto. Da parte das mulheres, cumpre indagar se apenas as que foram concebidas dessa forma obscena são frequentemente visitadas pelos Demônios, ou se o são pelas parteiras por ocasião de seu nascimento; e, por fim, se o deleite com o ato venéreo é de algum tipo mais fraco. Não poderemos aqui responder a todas essas questões por estarmos empenhados tão somente num estudo geral e porque na Parte II desta obra todas serão explicadas separadamente (no capítulo IV da questão I, no qual se faz menção a cada método em separado). Vamos nos deter porora, no problema das mulheres; e, em primeiro lugar, tentaremos explicar porque essa perfídia é mais encontrada nas pessoas do sexo frágil e não em homens. Nossa primeira indagação será de caráter geral – quanto as condições gerais das mulheres; a segunda será particular – quanto ao tipo de mulher que se entrega a superstição e à bruxaria; e por fim a terceira, específica as parteiras, que superam todas as demais em perversidades. FONTE: KRAMER, H.; SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. Tradução de Paulo Fróes. 2 ed. Rio de Janeiro: BestBolso, 2015, p. 119, 120. RESUMO DO TÓPICO 3 69 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • A igreja romana ampliou o combate na luta contra as heresias, principalmente com a criação do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. • Os dois principais guias para os inquisidores foram o “Manual dos Inquisidores” e o “Martelo das feiticeiras”, que continham as principais instruções de como proceder em casos, principalmente de heresias. • As ideias de John Wycliffe e John Huss, condenadas pela Igreja como heresias, serviram de base para a posterior Reforma Protestante, com Martinho Lutero. 70 1 Desde a expansão do cristianismo, houve a preocupação com a disseminação de ideias que foram consideradas heréticas. No Mundo Medieval, os movimentos heréticos foram ampliados, ou seja, novas ideias surgiram e, com elas, novas formas de combatê-las. Tendo em vista tal contexto, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Apesar de muitas ideias heréticas novas no Medievo, percebe-se que alguns conceitos heréticos da Antiguidade ainda estavam presentes. b) ( ) Percebe-se que, no Medievo, o poderio da Igreja estava consolidado com novos movimentos monasteriais e o papado fortalecido. Com isso, as pregações e o ensino da ortodoxia acabavam auxiliando para que não houvesse disseminação de heresias. c) ( ) Com o surgimento do Tribunal da Inquisição do Santo Ofício, os movimentos heréticos foram freados, e, em alguns anos, totalmente combatidos. d) ( ) O fenômeno das heresias medievais, diferentemente do que ocorreu na Antiguidade, atingiu prioritariamente as classes mais pobres. 2 O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi um órgão criado pela igreja para combater as heresias, ainda no período Medieval. Sobre o Tribunal do Santo Ofício, analise as sentenças a seguir: I- Foi um tribunal eclesiástico, que contou com o apoio do poder temporal, inclusive para aplicar as sentenças mais drásticas. II- A força da Inquisição estava não só nas prisões, como também no espetáculo feito aos sentenciar os réus, além do aparato do medo e das denúncias. III- A Inquisição foi um Tribunal formado para combater as heresias medievais. Sua atuação foi eficaz e pouco tempo depois não foi mais necessária sua atuação. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição foi o órgão criado pela Igreja católica romana para processar as pessoas que eram acusadas de heresias. Partindo do que estudamos sobre tal tribunal, avalie os itens: AUTOATIVIDADE 71 ( ) A tortura foi largamente empregada pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, principalmente no início do processo, tendo em vista amedrontar os réus. ( ) A Inquisição Medieval tinha como liderança o papa e os reis de cada país, pois, não havia separação entre religião e Estado nessa época. ( ) A Inquisição foi um período que durou cerca de seiscentos anos, e teve início ainda no período Medieval. Seu poder de atuação era restrito aos católicos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 As heresias estiveram presentes desde o momento inicial de expansão do cristianismo. No período medieval, ela esteve mais ampliada, pois o alcance do cristianismo se deu no território europeu, que já contava com diversas religiosidades ligadas principalmente a natureza. Muitas vezes, os posicionamentos heréticos começavam, ou eram endossados por representantes eclesiásticos. Escreva as principais ideias defendidas por John Wycliffe que foram consideradas herética pela Igreja. 5 Para combater as heresias, a Igreja católica adotou uma série de medidas desde a antiguidade. No medievo, esse combate contou com a organização do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Explique, de forma sucinta, como funcionava este tribunal. 72 73 REFERÊNCIAS AZEVEDO, L. V. de. As obras inglesas de John Wycliffe inseridas no contexto religioso de sua época: da suma teológica de Aquino ao concílio de Constança, dos espirituais fransciscanos a Guilherme de Ockham. 2010, 493f. Tese (Doutorado em História Social) – Departamento de História. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-14062011- 135520/publico/2010_LeandroVilleladeAzevedo.pdf. Acesso em: 18 jun. 2021. BASURKO, X. 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Valério. São Paulo: Paulinas, 2009. (Coleção Cultura Bíblica). 77 O CRISTIANISMO NA IDADE MODERNA UNIDADE 2 — OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • definir os principais pontos do Renascimento Cultural e Científico e seu impacto nas questões religiosas; • identificar os principais movimentos da Reforma Protestante; • caracterizar os principais desafios do catolicismo perante o protestantismo; • identificar os aspectos do Iluminismo e sua influência no campo religioso. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer dela, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – AS MUDANÇAS RELIGIOSAS NA IDADE MODERNA TÓPICO 2 – PERÍODO DE REFORMAS TÓPICO 3 – AS MUDANÇAS RELIGIOSAS APÓS A REFORMA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 78 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 2! Acesse o QR Code abaixo: 79 TÓPICO 1 — AS MUDANÇAS RELIGIOSAS NA IDADE MODERNA UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, estudamos, na Unidade I, as principais mudanças ocorridas no cristianismo na Europa no período Medieval. Foi uma época de profundas mudanças sociais e políticas. O sistema feudal era majoritário na Europa e os reis eram grandes senhores feudais. O catolicismo romano se expandiu, inclusive, expulsando comunidades islâmicas de regiões como a Península Ibérica, no conflito que ficou conhecido como Guerra de Reconquista. Antes disso, promoveu as cruzadas, na tentativa de expulsar os muçulmanos da cidade de Jerusalém. A partir disso, houve uma abertura comercial e o recuo do islamismo na Europa, porém, o avanço em outras regiões. Nesse ínterim, a Europa passou pela peste negra, que dizimou cerca de um terço da população, e, com o aumento do comércio e a diminuição dos números de servos nos feudos, o sistema que estava consolidado começou a ruir. Os comerciantes chamados de burgueses, pois viviam nos burgos, que eram as feiras, estavam necessitando de medidas estatais para auxiliar no comércio. A principal questão era a normatização do dinheiro. Era necessário que os territórios definissem suas moedas para que o comércio fosse facilitado. Além disso, as questões nacionais foram ganhando força, desfavorecendo o sistema de divisões por feudos. Sendo assim, os reis, em alguns territórios, conseguiram concentrar mais poderes, em detrimento dos senhores feudais. Este cenário favoreceu o surgimento das primeiras Monarquias Nacionais: França, Inglaterra, Espanha e Portugal. Todavia, cabe lembrar que os territórios da atual Itália e a Alemanha só passaram pela unificação no século XIX. Não é nosso intuito explicar como esse fenômeno ocorreu, porém, é importante entendermos essa mudança sociopolítica, já que ela afetou, também, a forma com que a igreja católica passou a exercer seu domínio na sociedade. O período do absolutismo monárquico não alcançou os países citados na mesma época. Eles tiveram que enfrentar disputas internas e externas para se consolidarem. Após alcançarem o patamar de nação unificada, algumas características se fizeram presentes, como: com o poder nas mãos dos reis, apoiados pela nobreza e pelo clero; todos os governos se declararam cristãos católicos, e, em contrapartida, seus 80 súditos também eram. Somente a Inglaterra optou por um sistema de governo no qual o monarca não era absoluto, já que escolheram a monarquia parlamentarista, em que o rei tinha seu poder controlado pelo Parlamento. Porém, a relação entre rei e parlamento nem sempre foi harmônica,principalmente após a Reforma Protestante. Para completar o aparato de mudanças, em 1492, as caravelas espanholas chegaram à América. Esse evento mudou completamente a história, não só dos povos europeus, como dos povos das terras que passaram a ser chamadas de América. As expansões marítimas favoreceram a abertura das rotas comerciais, intensificando as relações sociais e econômicas entre o Ocidente e o Oriente, favorecendo a inserção, na América, da cultura, da religião e da forma de governo europeus. A religião, principalmente nas Américas espanholas e portuguesa, foi um dos principais meios utilizados no processo de colonização europeia na América. Caro acadêmico, tendo em vista essa contextualização histórica, trataremos agora, neste tópico, de alguns aspectos do Renascimento Cultural e Científico e suas relações nas questões religiosas, além das mudanças ocorridas com relação à Inquisição e a formação da Inquisição Ibérica. Já no Tópico 2, estudaremos como ocorreu a Reforma Protestante e os principais grupos surgidos, que passaram a rivalizar com a Igreja católica no mundo Europeu. No Tópico 3, veremos como foi a reação católica em relação ao protestantismo, no movimento conhecido como Contrarreforma. Estudaremos, também, como ocorreu o desabrochar de outros grupos protestantes. Além disso, veremos como as ideias Iluministas influenciaram o cristianismo. 2 O RENASCIMENTO CULTURAL E CIENTÍFICO: REAÇÕES DA IGREJA O período conhecido como Renascimento Cultural e Científico compreendeu os séculos XV e XVI. Teve início nas cidades italianas, que já vivam um intenso comércio, e se expandiu para diversas cidades europeias. Foi uma época de grandes mudanças sociais e invenções, como a bússola, o astrolábio, o relógio e, talvez a mais importante, a imprensa. Nesse período, houve um verdadeiro florescer das artes nos campos da pintura, escultura e arquitetura. Nomes como Leonardo da Vinci (1452-1519), Rafael Sanzio (1483-1520) e Michelangelo Buonarroti (1475-1564), tão conhecidos, fizeram dessa época um marco para a História da Arte Ocidental. A Figura 1 e a Figura 2 apresentam pinturas que demonstram as principais características do Renascimento. 81 FIGURA 1 – TETO DA CAPELA SISTINA, MICHELANGELO, 1512 FIGURA 2 – A ESCOLA DE ATENAS, RAFAEL, 1510 FONTE: <https://bit.ly/3NlvSe6>. Acesso em: 23 jun. 2022 FONTE: <https://bit.ly/3yhpG2G>. Acesso em: 16 abr. 2021 82 Na Figura 1, a pintura de Michelangelo faz um relato das histórias bíblicas. Em uma sociedade em que a maior parte da população era analfabeta, contar as histórias sagradas pelas imagens era importante. É possível observar os destaques do corpo humano em cada representação, diferente do que ocorreu com a arte do período Medieval. Essa foi uma das maneiras de expressar a ideia antropocêntrica, tão apregoada no Renascimento. A pintura mostra, também, o resultado dos vários estudos do corpo humano realizado pelos artistas. Na segunda obra, apresentada na Figura 2, Rafael rememorou a filosofia e arquitetura gregas. Muitos pintores nesse período utilizaram da história e mitologia grega para compor suas obras, retomando, assim, a cultura clássica. Nessa etapa do Livro Didático, trataremos de algumas ideias renascentistas que foram responsáveis por mudanças na forma de pensar do Ocidente e que colaboraram com o pensar religioso. Dentre tais ideias estão as humanistas, que foram aderidas nos currículos das universidades, como explica o professor Sevcenko (1988): Iniciou-se, assim, um movimento cujo objetivo era atualizar, dinamizar e revitalizar os estudos tradicionais, baseado no programa dos studia humanitatis (estudos humanos), que incluíam a poesia, a filosofia, a história, a matemática e a eloquência, disciplina esta resultante da fusão entre a retórica e a filosofia. Assim, num sentido estrito, os humanistas eram, por definição, os homens empenhados nessa reforma educacional, baseada nos estudos humanísticos. Mas o que tinham esses estudos de tão excepcional, a ponto de servirem para reformar o predomínio cultural inquestionável da Igreja e reforçar toda uma nova visão do mundo? Ocorre que esses studia humanitatis eram indissociáveis da aprendizagem e do perfeito domínio das línguas clássicas (latim e grego), e mais tarde do árabe, hebraico e aramaico. Assim sendo, deveriam ser conduzidos, centrados exclusivamente sobre os textos dos autores da Antiguidade clássica, com a completa exclusão dos manuais de textos medievais. Significava, pois, um desafio para a cultura dominante e uma tentativa de abolir a tradição intelectual medieval e de buscar novas raízes para a elaboração de uma nova cultura (SEVCENKO, 1988, p. 13, 14). O empenho dos estudiosos humanistas estava concentrado em um retorno aos estudos dos clássicos da antiguidade em contraste com o pensamento dos filósofos medievais. Para isso, foi imprescindível a retomada dos estudos das línguas clássicas, principalmente o grego e o latim. O hebraico também foi retomado, tendo em vista o estudo da Bíblia. Portanto, um novo perfil de estudantes foi responsável por revitalizar a compreensão do mundo greco-romano, principalmente no que diz respeito à filosofia e às artes. Caro acadêmico, devemos lembrar, porém, que a igreja católica ainda estava como centro da cultura e do modo de pensar na Europa. Ela atuava junto aos reis absolutistas, na busca de hegemonia religiosa. Sendo assim, você já deve ter percebido que as ideias renascentistas nem sempre foram bem recebidas pela igreja. Todavia, é 83 importante lembrar que os estudiosos da Renascença não eram necessariamente contra o cristianismo. Ao contrário, eles prezavam pela religião. Entretanto, a interpretação dada sobre os limites do clero na vida das pessoas, das artes e da ciência é que passaram a ser contestados. Por isso mesmo é que as perseguições foram constantes, vejamos alguns exemplos: O respeito à individualidade deles e à originalidade de pensamento nunca foi uma conquista assegurada. A vida sempre lhes foi cheia de perseguições e riscos iminentes: Dante e Maquiavel conheceram o exílio, Campanella e Galileu foram submetidos a prisão e tortura, Thomas Morus foi decapitado por ordem de Henrique VIII, Giordano Bruno e Etiene Dolet foram condenados à fogueira pela Inquisição, Miguel de Servet foi igualmente queimado vivo pelos calvinistas de Genebra, para só mencionarmos o destino trágico de alguns dos mais famosos representantes do humanismo [...] (SEVCENKO, 1988, p. 16). Um dos representantes do Renascimento mais conhecidos da área científica foi Galileu Galilei (1564-1642). Ele foi processado pela Inquisição por defender a ideia de Nicolau Copérnico (1473-1543), relacionada ao Heliocentrismo, que afirma ser o sol o centro do sistema solar, tendo os astros girando ao seu redor. Ele chegou, inclusive, a alertar a Igreja de que era um risco ela não aceitar que estaria errada quanto à afirmação do pensamento geocêntrico. Tal ideia era a favor da Terra como centro do universo, tendo os astros girando ao redor dela. Todavia, para que não tivesse a penalidade máxima da Inquisição, Galilei teve que, publicamente, negar a veracidade de seus estudos (BAIARDI, 2011). Galileu se considerava um fiel católico e defendia que a Bíblia não continha erros, porém, algumas das interpretações feitas pela igreja poderiam ser equivocadas. Além disso, Galileu também defendia que a Bíblia não deveria ser interpretada literalmente. Quanto às questões da ciência, sua posição era de que ela não poderia sofrer influências externas, inclusive da religião (BAIARDI, 2011). Para conhecer mais dos processos inquisitoriais envolvendo Galileu Galilei, leia o artigo do professor Amílcar Baiardi (2011), disponível em: https://bit.ly/3HMbJga.Amplie seus conhecimentos da relação da impressa na Renascença, lendo o artigo de Ribeiro, Chagas e Pinto, disponível em: https://bit.ly/3xLCGvL. DICA 84 Lembremos, caro acadêmico, que a Inquisição atuava com força e com o aval dos reis. Sendo assim, a liberdade de expressão que fugisse do pensamento da Igreja não era permitida. Outro fator relevante no período renascentista se deu por meio da maior divulgação do conhecimento, em virtude do surgimento da imprensa, como já ressaltamos. Os livros, antes feitos à mão, levavam muito tempo para serem confeccionados, o que os tornavam caros e de difícil acesso e circulação. Com a invenção da imprensa de tipos móveis por Gutemberg (1400-1468), foi possível o avanço de ideias divergentes com mais rapidez. Contudo, não devemos achar que era tão ágil como foi após a Revolução Industrial. Devemos lembrar, também, que o índice de analfabetismo era muito alto, porém, entre a população que tinha acesso à educação, houve um aumento no contato e na circulação das ideias renascentistas. FIGURA 3 – MODELO DA IMPRENSA DE GUTEMBERG FONTE: <https://bit.ly/39Naz7v>. Acesso em: 17 jun. 2021 85 FIGURA 4 – TIPOS MÓVEIS FONTE: <https://bit.ly/3tWAWia>. Acesso em: 17 jun. 2021 A possibilidade de publicação e disseminação dos impressos em larga escala ocasionou uma revolução social: “O barateamento dos livros e a liberdade de acesso aos escritos e à informação [...] contribuíram de maneira considerável para a transição de pensamento teocêntrico passando para um modelo antropocêntrico de pensar” (RIBEIRO; CHAGAS; PINTO, 2007) E, no cenário religioso, tal mudança trouxe preocupação para a igreja, que tinha mais um campo para vigiar. Veremos, no Tópico 3, como ela fez para conter as publicações que não estavam de acordo com sua doutrina. Quanto ao desenvolvimento da teologia cristã na Renascença, alguns pensadores foram muito importantes, entre eles Lorenzo da Valla (1407-1457), que conseguiu comprovar que alguns “documentos” que a igreja utilizava haviam sido falsificados, como, por exemplo, um texto atribuído a Constantino. Ele também ajudou a elaborar técnicas de estudo da literatura sagrada. Para isso, era importante que o estudioso dominasse as línguas antigas. O estudo da literatura antiga foi intensificado pelos principais pensadores italianos, como Marcilio Ficino (1433-1499) e Pico della Mirandola (1463-1494), que “os tratavam como chaves para o futuro, cotejavam e deles se valiam como padrões de avaliação do ensino convencional no Ocidente” (JOHNSON, 2001, p. 322). Esses estudiosos foram fundamentais para as mudanças no ensino desse período. Ao mesmo tempo, todo o espectro da erudição hebraica, que se havia mantido intocado na Espanha por séculos, foi disponibilizado para o Ocidente por Mirandola, que uniu a teosofia cabalística judaica à cosmologia neoplatônica. Seu discípulo, o hebraísta Johann Reuchilin, produziu a primeira gramática hebraico-cristã em 1506 e procurou impedir a destruição desses primeiros livros judaicos pela Inquisição dominicana. Assim, o Novo Ensino entrou 86 em conflito, pela primeira vez, com a igreja estabelecida. Mas o choque era inevitável. Agora, os homens tinham condições de estudar os textos gregos e hebraicos no original e compará-los com a versão recebida em latim, tratada como sacrossanta no Ocidente por séculos (JOHNSON, 2001, p. 322-323). Tais estudos foram importantes também para rever, inclusive, a tradução da Bíblia conhecida como Vulgata, na qual Valla conseguiu apontar alguns erros (JOHNSON, 2001). O estudo mais intenso e a articulação com conhecimento da Antiguidade acarretaram uma reformulação no ensino, a qual foi fundamental para o posterior desenvolvimento da Reforma Protestante. 3 A INQUISIÇÃO MODERNA Caro acadêmico, vimos que a Europa estava passando por mudanças religiosas, políticas e sociais intensas, no final do século XV. A Inquisição estava ampliando seu domínio, sendo instituída em diversos países. Todavia, apesar de Roma ser a sede geral da Igreja e comandar o Tribunal do Santo Ofício, ela precisava da ajuda dos governantes para que seu poder se efetivasse. Nem sempre essas relações eram harmoniosas, por isso, cada país acabava fazendo leis sobre o papel do catolicismo na vida da sociedade e como se daria o domínio da Inquisição em seu território. Estudaremos, agora, como funcionou, na Península Ibérica, o Tribunal do Santo Ofício, pois ele se tornou como um dos principais tribunais inquisitoriais e, diferente de outras regiões, ele atuou com uma grande interferência do estado, em detrimento de Roma. Durante a Idade Média, a Península Ibérica foi o local da Europa com uma maior convivência pacífica entre cristãos, judeus e islâmicos. Os judeus não conseguiram ter o domínio político da região, mas os islâmicos, sim. Tal fator fez com que guerras fossem realizadas para acabar como domínio islâmico no território, e estabelecesse o cristianismo como liderança política e social. Tal feito só foi possível quando houve a unificação da Espanha (NOVINSKY, 1982). Um bom filme para entendermos a mentalidade Medieval em contraponto com a Renascentista é O nome da rosa, dirigido por Jean-Jacques Annaud. Ele é baseado no livro de mesmo nome, de Umberto Eco: https://www. adorocinema.com/filmes/filme-2402/. Há, também, a série lançada em 2019: https://www.adorocinema.com/series/serie-22858/. DICA 87 Na Espanha, a Inquisição teve início em 1478, no governo dos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, conhecidos como os reis católicos. Eles haviam conseguido unificar o território, o que causou uma perseguição intensa a quem não fosse cristão. Contudo, com a Inquisição instalada no reino, a vida das pessoas que não eram católicas não foi alterada. Caro acadêmico, você deve estar lembrado que a Inquisição só poderia atuar entre os cristãos, ou seja, os que já haviam recebido o batismo. Por isso, os reis usaram da tática de expulsão do território, para os que não se convertesse. A Inquisição espanhola teve a intensa participação do Estado durante o seu funcionamento. Ela é considerada a mais sangrenta das Inquisições, como explica Green: A Inquisição atingiu o ápice da violência na Espanha, nos primeiros cinquenta anos após sua criação, em 1478, período em que, segundo estimativas, cerca de 50 mil pessoas foram julgadas e uma parcela significativa desse número foi queimada na fogueira na condição de relaxados. Em alguns anos, como em 1492, 2 mil pessoas podem ter sido ‘relaxadas’ e outras 2 mil podem ter tido suas efígies queimadas. Aproximadamente setecentas pessoas foram mortas só em Servilha entre 1481 e 1488, e outras cinquenta em Cidade Real entre 1483 e 1484. Cerca de 10% da população de Toledo foi julgada pela Inquisição entre 1486 e 1499, e 3% foi ‘relaxada’ em vida ou em efígie. Enquanto isso, no reino de Aragão, aproximadamente mil pessoas foram ‘relaxadas’ entre 1485-1530 (GREEN, 2011, p. 32, 33). O ano de 1492 trouxe mudanças para os espanhóis, pois eles conseguiram consolidar a unificação, ao expulsar os últimos mouros de Granada, e, conseguiram chegar à América, mudando completamente as relações entre os povos do mundo. Outro passou foi dado, entretanto, em 31 de julho de 1492, quando foi assinado o Decreto de Alhambra, ou Édito de Granada, que expulsava os judeus da Espanha. Quem quisesse permanecer no território espanhol deveria se converter ao cristianismo e, claro, viver como cristão. Os judeus que aceitaram, ficaram conhecidos como conversos. Muitos judeus fugiram para outros países, principalmente Portugal. No caso da Inquisição portuguesa, o seu alvo principal foram os cristãos-novos acusados de práticasjudaizantes. Estes eram judeus que tiveram que aceitar a fé cristã católica ou fugir de Portugal, quando o rei D. Manuel I (1469-1521) decretou, em 1496, que no reino português não poderia haver judeus. Esse decreto foi uma pressão feita pelos reis católicos da Espanha, ao monarca português. Aos judeus foi dado um prazo de dez meses para sair do reino ou se batizarem. Porém, antes de findar o prazo, o rei, temendo a saída em massa dos judeus, ordenou o batismo forçado. Sobre esse assunto, vejamos a explicação de Wilke: O desenrolar final da conversão forçada é relatado por Abraão Saba, que foi dela testemunha. Enquanto estava com dez mil outros judeus comprimidos no pátio do edifício e provavelmente na Praça do Rossio, o rei ordenou que os mantivessem fechados, sem comida e sem água. Ao fim de quatro dias, apenas 40 judeus teriam resistido; o rei mandou-os prender. Samuel Usque, concordando com fontes cristãs, dá uma versão bastante diferente, e afirma que outras coacções foram 88 impostas aos prisioneiros para que se tornassem cristãos. Os soldados e os clérigos uniram-nos de água batismal a força, arrastando-os pelos cabelos e pela barba até às igrejas. O único meio de se subtraírem a essa brutalidade foi então o suicídio. Alguns saltaram pelas janelas do edifício d’Os Estaus, ou precipitaram-se nos poços. A maioria tornou- se cristã, como escreveria o humanista português Jerônimo Osório, por ‘um ato iníquo e injusto cometido contra as leis e contra a religião’, pois forçando os judeus a fingir uma fé que abominavam, o rei deu azo ‘a que, pela simulação religiosa, a religião fosse indignamente profanada’ (WILKE, 2009, p. 67). Após esse processo de conversão forçada, uma vez “cristãos”, eles estariam subordinados à Igreja católica e, se fossem pegos realizando práticas que fugissem do padrão aceito pela religião dominante, poderiam ser processados pela Inquisição. Ao obrigar esses judeus a abraçarem uma fé na qual eles não tinham interesse, a vigilância passou a ser intensa para que eles não tivessem as práticas da sua antiga religião. Alguns cristãos-novos procuravam praticar o judaísmo clandestinamente. A esse judaísmo camuflado os estudiosos deram o nome de criptojudaísmo. O início da Inquisição no solo português foi solicitado ao papa por D. João III em 1531, que reinou em Portugal entre 1521 e 1557. O papa Clemente VII constituiu o tribunal com a bula Cum ad nihil magis, em dezembro do mesmo ano. Porém, tal decisão foi revista após um ano. Em 1536, o papa Paulo III voltou a autorizar o estabelecimento do tribunal em Portugal, porém de uma forma restrita, não podendo, por exemplo, confiscar bens durante dez anos. Inicialmente, a Inquisição esteve limitada, sendo que, em 1539, o rei D. João III concedeu ao seu irmão, D. Henrique, o cargo de inquisidor. A partir do seu comando, tal tribunal passou a agir mais violentamente, tendo sido o primeiro auto- de-fé realizado, em 1540. Outros tribunais foram instaurados no Reino português nas cidades de Évora, Coimbra, Lamego, Porto e Tomar (WILKE, 2009). O papa, no entanto, não satisfeito com os desmandos dos tribunais portugueses, proibiu novamente que esses funcionassem, em 22 de setembro de 1544. Todavia, em 16 de julho de 1547, a Inquisição em Portugal foi reinstalada e um perdão geral foi concedido aos cristãos-novos, promovendo-se a libertação dos presos nos cárceres inquisitoriais. O perdão Geral era uma medida que o papa tomava, na qual era concedido o perdão a todos que estivessem nos cárceres inquisitoriais. A partir disso, a Inquisição portuguesa passou a ser dividida em duas partes: Lisboa, que comandava o Centro-Norte, e Évora, o Sul do Reino. Outros tribunais foram criados depois, um em Goa, na Índia, em 1560; outro em Coimbra, no ano de 1565. No ano de 1568, por meio de uma carta papal, todas as graças concedidas aos cristãos- novos foram desfeitas, e a Inquisição Portuguesa passou a agir com menos restrições de Roma (WILKE, 2009). Os moldes da Inquisição portuguesa foram baseados na espanhola. Cada país acabava criando regras específicas para o funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, pois, devemos lembrar que religião e política não estavam separadas nessa época. 89 Caro acadêmico, como já estudamos, havia dois livros principais que direcionavam o funcionamento da Inquisição em qualquer país: O Manual do Inquisidor, escrito por Nicolau Eymerich, em 1376, e ampliado, em 1578, por Francisco de La Peña, e o Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum), escrito por Heinrich Kramer, em 1486. Esses dois livros trazem as principais ideias de quem deveria passar pelo tribunal inquisitorial. O primeiro, de forma mais genérica, aponta as principais características do inquisidor, o que eram as heresias, como deveria ser a tortura etc. Já o segundo trata sobre quem eram as bruxas/bruxos (ou feiticeiras) e como os inquisidores deveriam agir. Porém, em Portugal, outros documentos trataram do funcionamento da Inquisição. Os Regimentos Inquisitoriais foram os principais, porém, eles sofreram algumas mudanças durante os anos. Temos, então, os Regimentos dos anos: 1552, 1613, 1640 e 1774. Além deles, havia o Monitório do Inquisidor Geral, que era uma espécie de resumo do Manual do Inquisidor, em que eram apontadas as principais práticas que deveriam ser denunciadas e/ou confessadas. Esse documento era afixado nas igrejas quando a inquisição chegava em alguma cidade. Além desses documentos que eram mais específicos para ao trabalho da Inquisição, havia, também, o conjunto das leis portuguesas, conhecidas como Ordenações, que tratavam de todos os aspectos da vida dos portugueses e, claro, também abordava aspectos religiosos. As Ordenações sofreram algumas mudanças a depender dos reis que governassem o país. Foram elas: As Ordenações Afonsinas (1500-1514), Manuelinas (1514-1603) e Filipinas (1603-1774). Quando não havia um tribunal inquisitorial em alguma cidade do reino e havia muitas denúncias de práticas consideradas desviantes da fé, era enviado um inquisidor, ou alguém com este poder, para fazer a Visitação. Na ocasião em que o inquisidor estivesse lá, ele deveria colher as denúncias, fazer interrogatórios, mas só poderia aplicar penas leves. Caso as acusações fossem mais graves, ele deveria encaminhar para o Tribunal mais próximo. No caso do Brasil, ocorreram três visitações. Todos os casos relativos ao Brasil Colonial foram julgados pelo Tribunal de Lisboa. No geral, os “crimes” mais comuns apurados pela Inquisição foram: • Práticas judaizantes: pessoas que eram acusadas de realizarem algum tipo de práticas judaicas. Os alvos principais dessa acusação eram ao cristãos-novos. • Sodomia: a homossexualidade foi um dos aspectos que mais ganhou repercussão em Portugal, só “perdendo” para os cristãos-novos (MOTT, 1992, p. 704). • Bigamia: quando uma pessoa era casada e contraía outro matrimônio, sendo que o seu primeiro cônjuge ainda estava vivo. Isso ocorreu muito com os colonos que vieram à América portuguesa. Muitos que já eram casados em Portugal e vinham para a colônia 90 acabavam contraindo novo matrimônio e, claro, não diziam que já eram casados. Era comum que, quando pegos, eles alegassem que achavam que suas esposas haviam morrido, pois alguém havia falado a eles. • Solicitantes: era quando os padres eram acusados de obterem favores sexuais nos confessionários, de forma consensual ou não. • Feitiçaria: pessoas acusadas de fazerem sortilégios, pacto com o diabo, entre outros. Porém, os casos de feitiçaria foram menos comuns na Península Ibérica. • Havia, ainda, a perseguição às pessoas que disseminassem ideias de outras vertentes religiosas, como o islamismo, o luteranismo ou o calvinismo. Além disso, quem fosse pego portando algum livro proibido também seria preso.A sentença do processo não era dada de maneira rápida, como já estudamos anteriormente. Havia casos em que a pessoa passava mais de dez anos nos cárceres. De acordo com o manual do inquisidor, no caso de alguém que fosse preso e que confessasse logo, porém não se arrependesse, a pena não poderia ser dada de imediato. A pessoa deveria ser mantida pelo menos um ano presa, para que os inquisidores pudessem ajudá-la a se arrepender, pois, segundo o manual, era mais importante levá- la ao arrependimento (EYMERICH, 1993, p. 154). Além do que, se morto logo, ele poderia ser considerado um mártir para seus seguidores. Era importante que os inquisidores conseguissem extrair do réu quem eram seus cúmplices, mesmo que não conseguissem que ele viesse a se arrepender. FIGURA 5 – RÉPLICA DO POTRO, INSTRUMENTO DE TORTURA FONTE: <http://www.museudainquisicao.org.br/acervo/potro/>. Acesso em: 24 maio 2021. Para conhecer as ordenações portuguesas, visite os seguintes links. Ordenações Afonsinas: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas. Ordenações Manuelinas: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/manuelinas/. Ordenações Filipinas: http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/ordenacoes.htm. DICA 91 3.1 ESTATUTOS DE PUREZA DE SANGUE Os Estatutos de Pureza de sangue iniciaram na Espanha em 1449, e, em Portugal, o processo discriminatório foi paulatino, tendo-se iniciado, sobretudo, nas ordenações religiosas (SARAIVA, 1994, p. 113). Sobre esse tema, Carneiro (1988) nos apresenta um panorama das leis portuguesas nas quais se excluía à participação de cargos públicos e de ordens religiosas pessoas que tivessem em sua ascendência familiar algum tipo de “sangue infecto”, ou seja, mouro, judeu, cigano, negro, indígena, mulatos e cristão-novo (CARNEIRO, 1988, p. 12). O mito da pureza de sangue afirmava a linhagem “pura” como sendo a linhagem de Jafé, um dos filhos de Noé e a linhagem impura a dos descendentes de outro filho de Noé, Sem, dando origem à linhagem semítica. Por isso, os cristãos-novos estavam incluídos na linhagem impura, pois, mesmo tendo aceitado o cristianismo, continuavam semitas, ou seja, impuros (CARNEIRO, 1988). Portanto, para uma pessoa conseguir ter algum cargo nos governos da Espanha ou de Portugal ou fazer parte de alguma ordem religiosa, deveria comprovar que sua linhagem era “pura”, ou seja, se não havia ascendentes familiares de nenhuma categoria marcada como sangue infecto. Os estatutos de pureza de sangue no reino português só deixaram de existir no período da administração pombalina, em 1773 (CARNEIRO, 1988). Alguns documentários sobre a Inquisição: O martelo das feiticeiras, produzido pela National Geografic. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bt1NddkM_UE. A estrela oculta do sertão. Elaine Eiger; Luize Valente. Brasil: Fototema, 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zM6dRc5mrtM&t=24s. Caminhos da memória: a trajetória dos judeus em Portugal. Elaine Eiger; Luize Valente. Brasil: Fototema, 2002. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JNuz7wEd7Lw. A santa visitação. Elza Cataldo. Brasil: Persona Filmes, 2006. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kTICGiqp2vA. Alguns filmes sobre a temática da Inquisição: O poço e o pêndulo. Stuart Gordon. EUA. 1991. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KLaKml78-Tk&t=1043s. O judeu. Jom Tob Azulay. Brasil/Portugal. 1995. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UvB2LD9PGjI&t=133s. Sombras de Goya. Miloš Forman. Espanha/EUA. 2007. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-jioJBfDn5c. DICA 92 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • O sistema feudal dominante no Medievo deu lugar, na Idade Moderna, às monarquias absolutistas cristãs. • O Renascimento Cultural e Científico foi, em certo ponto, combatido pela Igreja. Mesmo assim, ele trouxe contribuições para o cristianismo, principalmente na questão educacional pautada pelo humanismo. • A Inquisição atuou com mais ênfase, expandido seu domínio em diferentes países, principalmente após a Reforma Protestante. • No contexto da Inquisição Ibérica, o catolicismo perseguiu com mais ênfase os islâmicos e judeus, expulsando de seus territórios, ou pela conversão forçada. 93 1 Confira o trecho a seguir e, em seguida, responda à questão proposta. “Em 1615 começam a se acumular denúncias e depoimentos formais contra Galileu, a exemplo das do padre Tomaso Caccini, que continha detalhes e envolvia os discípulos de Galileu [...]. No seio da própria igreja havia vozes favoráveis a Galileu como a do vigário Attavanti e do padre Mihelangelo Buonarroti. [...] De outro lado, a concorrer para a animosidade estava o fato de Galileu, na condição de católico, entender que era sua missão flexibilizar a interpretação da Igreja sobre Copérnico, para que a autoridade desta não fosse atingida quando se tornasse irreversível a aceitação universal do heliocentrismo” (BAIARDI, 2011, p. 7). Vários representantes do Renascimento Cultural e Científico tiveram suas publicações tiradas de circulação pela Igreja, além de muitos sofrerem processos pelo Tribunal do Santo Ofício da Inquisição. Sobre esse assunto, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) No período renascentista, houve um empenho dos estudiosos humanistas com o retorno aos estudos dos pais da igreja da antiguidade, em detrimento dos filósofos medievais. Para isso, foi imprescindível a retomada dos estudos das línguas clássicas, principalmente o grego e o latim. b) ( ) Os cientistas da Renascença se envolveram em lutas contra o domínio da religião católica, proclamando o ateísmo e o cientificismo no lugar no cristianismo. c) ( ) Apesar do ambiente cultural favorável à busca de novos conhecimentos que o Renascimento propiciou, havia fatores que impediam um linear avanço da ciência nos Estados cuja influência católica era muito grande, como a constante fiscalização, por parte da Igreja, do que era proposto pelos cientistas. d) ( ) Um dos representantes do Renascimento mais conhecidos da área científica foi Galileu Galilei. Ele foi processado pela Inquisição por defender o pensamento de Nicolau Copérnico, o Geocentrismo, que afirma ser a terra o centro do sistema solar. 2 O Tribunal do Santo Ofício, criado no período Medieval, adentrou a Idade Moderna com mais força. Sobre esta instituição, analise as sentenças a seguir: I- A Inquisição na Península Ibérica teve a intensa participação do Estado durante o seu funcionamento, fazendo com que o papado não tivesse sobre ela tanta autoridade. II- No caso da Inquisição portuguesa, seus alvos principais foram os mouros e os cristãos-novos acusados de práticas judaizantes. III- O criptojudaísmo consistiu na prática do judaísmo por judeus convertidos ao catolicismo em Portugal. AUTOATIVIDADE 94 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 A Inquisição teve diferentes formas de atuação, a depender da época e do país. Tendo em vista o que estudamos da Inquisição Ibérica, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas. ( ) Em Portugal, os crimes que mais tiveram sentenciados pela Inquisição fora a bruxaria e o luteranismo. ( ) Visando a agilidade no processo inquisitorial, quando o réu confessava, logo sua pena era lida e o processo encerrado. ( ) Os Estatutos de Pureza de Sangue visavam separar a sociedade espanhola e portuguesa em puros e impuros. Os considerados “sangue infecto” eram os mouros, judeus, ciganos, negros, indígenas, mulatos e cristãos-novos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a)( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 Uma das principais características do Renascimento Cultural e Científico foi a adesão ao Humanismo, principalmente no campo educacional. Explique em que consistia o humanismo e qual o impacto para aquela sociedade. 5 Confira o trecho a seguir e, em seguida, responda à questão proposta. “Uma das melhores razões para se concentrarem na Inquisição em Portugal e na Espanha é o fato de que se trata de uma história de poder e abuso de poder [...]. Durante o estabelecimento da Inquisição em Portugal, o papado foi sempre mais benevolente do que o governo português [...]” (GREEN, 2011, p. 24). As inquisições ibéricas se diferenciaram das instaladas em outros países. Com base no que foi estudado, explique o que diferenciou a Inquisição em Portugal e Espanha dos demais países. 95 PERÍODO DE REFORMAS 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, estudamos até aqui os principais passos do cristianismo e sua luta contra as ideias consideradas heréticas. Porém, em 1517, um novo cisma ocorreu dentro da cristandade, com o monge Martinho Lutero (1483-1546) expondo seu pensamento a respeito das vendas de indulgências. É importante lembrarmos que, politicamente, Igreja e Estado caminhavam juntas nos países europeus, mesmo nos locais onde a unificação ainda não havia ocorrido, como nas atuais Alemanha e Itália. A força do papado estava mais consolidada e o catolicismo tornava-se hegemônico em países como Espanha e Portugal, na medida em que conseguiu expulsar os mouros e judeus de seus territórios. Todavia, o período em que antecedeu a Reforma Protestante foi marcado por uma igreja que descuidou, em alguma medida, do seu clero. Era comum que muitos padres tivessem amantes, filhos, o que era proibido, todavia, acontecia sem maiores punições. No tocante à teologia, alguns abusos ocorriam, como nas questões da venda de indulgências e de relíquias consideradas sagradas. Tendo em vista esse cenário, estudaremos a partir de agora como ocorreu o segundo cisma católico, a partir de Martinho Lutero. Neste tópico, abordaremos o início da Reforma Protestante e seus desdobramentos nas questões religiosas, políticas e sociais. Veremos os principais conflitos entre católicos e protestantes, e, também, os conflitos dentro do protestantismo. 2 A REFORMA PROTESTANTE Caro acadêmico, abordaremos, agora, os principais aspectos do movimento da Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero. Esse foi o segundo rompimento que ocorreu com a Igreja Católica. Várias igrejas surgiram a partir dele, e desenvolveram doutrinas diversas. O protestantismo abalou a hegemonia do catolicismo romano na Europa Ocidental e na América. UNIDADE 2 TÓPICO 2 - 96 2.1 O LUTERANISMO Para entendermos o processo que levou a formação da igreja luterana, de acordo com Eliade (2011), faz-se necessário conhecer um pouco da vida de Martinho Lutero, pois foram suas inquietações e experiências que o fizeram questionar alguns aspectos da doutrina aceita pela Igreja católica. Personagem central no movimento reformista, nasceu em Eisleben, no atual território alemão. Aos 22 anos, ingressou para a ordem dos agostinianos, na cidade de Erfurt, e, em 1507, ordenou-se sacerdote. A partir daí, iniciou como professor na universidade de Erfurt e Wittenberg. Lutero passou por período de busca espiritual intensa. Foi a Roma e ficou transtornado pelo que considerou “decadência da Igreja” (ELIADE, 2011, p. 225), em virtude da vida desregrada em que muitos sacerdotes viviam. Outra questão que o atormentava era a ideia de um Deus vingativo, punitivo, mesmo quando pensava na figura de Jesus, como nos explica o historiador Lucien Febvre: [...] tudo, até as obras de arte nas capelas ou nos pórticos das igrejas, falava ao jovem Lutero de um Deus terrível, implacável, vingativo, que contabilizara rigorosamente os pecados de cada um para jogá- los na face aterrorizada de miseráveis fadados à expiação. Doutrina atroz, do desespero e dureza; e qual o pobre alimento de uma alma sensível, impregnada de amor e ternura? [...] Assim, depois de entrar no convento para ali descobrir a paz, a ditosa certeza da salvação, Lutero só encontrou a dúvida e terror. Em vão, para desarmar a ira atroz de um Deus enfurecido, redobrava as penitências, mortíferas para seu corpo, irritantes para sua alma (FEBVRE, 2012, p. 30, 31). O relato de Febvre sobre a angústia de Lutero é importante para percebermos como sua inquietude interior foi o impulso para o estudo da teologia. Febvre (2012) relata que, ao meditar sobre a justiça de Deus, Lutero passou a compreender de forma diferente a relação de Deus com a humanidade, vejamos: [...] compreendeu o monge que a justiça de que falava São Paulo, a justiça que o evangelho revelava ao homem, era ‘a justiça em que vive o justo, por dom de Deus, se tiver fé’, a justiça passiva dos teólogos, ‘aquela mediante a qual Deus em Sua misericórdia, nos justifica por meio da fé, segundo o que está escrito: “o justo viverá pela fé”. [...] ‘Imediatamente, senti que renascia. As portas se abriram de par em par. Entrei no paraíso. As Escrituras inteiras me revelavam outra face’ (FEBVRE, 2012, p. 34, 35). Foram seus estudos da carta aos Romanos, a qual ele considerava o texto mais importante da Bíblia, que Lutero chegou à conclusão de que é a fé em Jesus que salva, e esta salvação só pode ser concedida por Deus e de forma gratuita. “Lutero elaborou essa descoberta em seu curso de 1515, desenvolvendo o que ele chamava de uma ‘teologia da cruz’” (ELIADE, 2011, p. 225). Essa visão foi sendo desenvolvida por ele em seus estudos, ensinos e sermões. Observemos que ela contrasta com importância dada a questão das obras e dos ritos, além das indulgências que eram tão divulgadas pela Igreja. O dinheiro e os bens adquiridos por meio das indulgências eram usados para sustentarem conventos, monastérios, construções de igrejas, dentre outras coisas. Era uma entrada de renda significativa para Roma e os Estados. 97 O desgosto de Lutero com a venda de indulgências ficou mais latente com as pregações do dominicano Tetzel, no território alemão. A ênfase nas indulgências era para angariar fundos para a construção da basílica de São Pedro (SHELLEY, 2004). Em 31 de outubro de 1517, Lutero tornou públicas as suas teses que iam de encontro a ideia das indulgências. Enviou uma carta ao papa Leão X procurando explicar seus motivos, e este o convocou para ir a Roma se desculpar. Lutero conseguiu, pela influência de Frederico III, eleitor da Saxônia, que seu caso fosse julgado no território germânico (ELIADE, 2011), e não se retratou. Em 1519, Lutero atacou a questão do primado papal e o papa lançou a bula Exsurge Domine, que até aceitava alguns pontos das teses de Lutero, todavia, exigia que Lutero se retratasse com relação à maioria das ideias apresentadas. Lutero não aceitou a determinação papal e queimou a bula. A partir disso, seus escritos passaram a criticar outras questões da doutrina católica, como a supremacia papal em relação as reuniões dos concílios, as diferenças entre leigos e o clero, manifestando a ideia do sacerdócio universal e, passou a aceitar como sacramento somente o batismo e a eucaristia (ELIADE, 2011). Nessa fase, “Lutero passou de sua primeira convicção – a de que a salvação se dá somente pela fé em Cristo – para a segunda: a de que as Escrituras, e não os papas e os concílios, fornecem as diretrizes da fé e do comportamento cristão” (SHELLEY, 2004, p. 268, 269). Pela atitude de Lutero, o próximo passo seria o início de um processo pela Inquisição contra ele, porém, o príncipe Frederico III o escondeu em seu castelo em Wartburg durante cerca deum ano. Nesse período de reclusão, Lutero traduziu a Bíblia para o alemão, algo que era totalmente proibido pela igreja católica (SHELLEY, 2004). A Igreja Ocidental não aceitava que versões da Bíblia, traduzidas ou não, estivessem disponíveis ao público em geral. Como ela tomava para si a tarefa de interpretar os escritos sagrados, dar acesso a Bíblia poderia gerar interpretações heréticas. Vejamos o comentário de Johnson a esse respeito: Após os valdenses, as tentativas de estudar a Bíblia constituíam prova circunstancial de heresia – a pessoa poderia ir para a fogueira só por isso [...] A partir de fins do século XIV, a disponibilidade da Bíblia para o público tornou-se o objeto central das disputas entre a Igreja e sus críticos, tais como os wycliffistas e hussitas. Nenhuma Bíblia popular era permitida pelas autoridades, exceto na Boêmia – que na verdade, havia rompido com Roma, por volta de 1420; por outro lado, essas versões vernáculas jamais foram suprimidas de forma eficaz (JOHNSON, 2001, p. 329). O estudo da Bíblia era um dos pontos principais levantados pelos reformistas a partir de Lutero. Portanto, tornou-se fundamental disseminar os escritos nas línguas populares. Para que isso fosse feito, era necessário um conhecimento amplo das línguas em que a Bíblia fora escrita. 98 FIGURA 6 – BÍBLIA DE LUTERO EXPOSTA NA BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO FONTE: <https://bit.ly/3Ac0I33>. Acesso em: 24 maio 2021. Ao sair da reclusão, Lutero se deparou com um movimento em curso, que queria mudanças mais estruturais no território germânico. Suas ideias de reforma religiosas foram vistas por alguns camponeses, liderados por Thomas Müntzer (1489- 1525), como o início para mudanças mais profundas, como a tomada das terras da igreja católica e sua divisão entre os menos favorecidos. As revoltas se espalharam e Lutero escreveu contra os revoltosos, como explica Shelley (2004, p. 272): “Em 1525, os príncipes e nobres reprimiram as revoltas, o que custou 100 mil vidas de camponeses. Os que sobreviveram consideram Lutero um falso profeta. Muitos deles voltaram ao catolicismo ou se interessaram por formas ainda mais radicais da Reforma”. Retomaremos a questão desses movimentos mais adiante. Em 1522, Lutero voltou a Wittenberg, onde passou a reformular a liturgia da igreja. O reformador contou com o apoio de duques e príncipes germânicos. Segundo Shelley, “[...] ele aboliu o ofício de bispo por não encontrar base para tal nas Escrituras. A igreja precisava de pastores, não de dignatários. A maioria dos ministros da Saxônia e arredores abandonou o celibato” (SHELLEY, 2004, p. 271). Outros acontecimentos importantes para o rompimento com o catolicismo romano ocorreram quando Filipe Melanchthon (1497-1560), auxiliar de Lutero no movimento reformista, foi o responsável por produzir o documento apresentado aos líderes do Sacro Império Romano Germânico sobre as doutrinas da nova igreja. Esse documento ficou conhecido como Confissão de Augsburgo, e ainda é um documento relevante para a igreja Luterana. Todavia, ainda não havia um consenso sobre esse novo formato de cristianismo, e não se sabia como ele seria aceito nas diversas regiões. O próprio imperador do Sacro Império Romano Germânico, Carlos V (1500-1558), não se mostrou favorável à separação com Roma, vejamos a explicação de Shelley: 99 Depois de 1530, o imperador Carlos V deixou clara sua intenção de reprimir a crescente heresia. Em sua defesa, os príncipes luteranos uniram-se em 1531 na Liga Schmalkald, e entre 1546 e 1555 irromperam esporadicamente uma ou outra guerra civil. Os combatentes firmaram um compromisso na paz de Augsburgo (1555) que permitia a cada príncipe decidir a religião de seus súditos (SHELLEY, 2004, p. 274). A paz de Augsburgo foi o acordo que trouxe mudanças profundas para o território alemão. Os príncipes deste território poderiam decidir sobre a religião dos seus súditos. O luteranismo passou a ser amplamente difundido. Ele se tornou uma religião estatal, assim como era o catolicismo. Na vida de Lutero, mudanças importantes aconteceram, quando seus escritos chegaram de forma escondida, ao mosteiro Sistersinianas Trono de Maria, em Nimbschen. Lá, algumas freiras passaram a ler as obras de Lutero e escreveram para ele pedindo ajuda. Lutero, com o apoio de alguns amigos, conseguiram ajudar cerca de doze monjas a fugirem. Essas mulheres encontravam-se em uma situação complicada, pois suas famílias não queriam recebê-las, tendo em vista que o ato delas era considerado escandalosos. Tampouco elas poderiam ficar nos monastérios masculinos. Foi assim que pensaram, então, em arranjar casamento para elas (ULRICH, DALFERTH, 2017). Um dessas mulheres, Katharina Von Bora (1499-1552), foi acolhida pela família de Lucas Cranach (1472- 1553) e, posteriormente, casou-se com Lutero. Lutero continuou escrevendo, geralmente, para combater alguma ideia, e acabava indo além nas questões teológicas. Entre seus alvos, estavam algumas ideias de Tomás de Aquino (1225-1274) e de Ockham (1285-1347). Vejamos: Segundo o ensinamento da Igreja medieval, ilustrado sobretudo por Tomás de Aquino, o fiel que praticava o bem num estado de graça contribuía para sua própria salvação. Por outro lado, cuidavam os numerosos discípulos de Ockham que a razão e a consciência, dons de Deus, não foram anulados pelo pecado original; por conseguinte, aquele que faz o bem segundo sua tendência moral natural recebe a graça como recompensa [...]. Nos Argumentos contra a teologia escolástica, Lutero atacou vigorosamente essa doutrina. A vontade humana por sua própria natureza, não é livre para fazer o bem. Depois da queda, já não se pode falar em ‘livre arbítrio’, pois o que desse momento em diante domina o homem é seu egocentrismo absoluto e a busca furiosa de suas próprias satisfações (ELIADE, 2011, p. 228, grifos do original). A teologia de Lutero se aproximava do pensamento de Agostinho, assim como ocorreu, posteriormente com Calvino. Nas questões de razão e fé, Lutero se opunha à visão de que houvesse uma harmonia entre elas. Lutero defendia que a Igreja precisava de uma reforma em sua teologia e não nas questões morais. Essa reformulação ocorreria pelo estudo acurado das línguas antigas para poder auxiliar no estudo das Escrituras (MCGRATH, 2007, p. 66). 100 Um dos conflitos de ideias no qual Lutero se envolveu foi com Erasmo de Roterdã (1466-1536), teólogo, escritor e um dos grandes nomes do Renascimento cultural. Inicialmente, quando Lutero expôs as 95 teses, Erasmo sugeriu a Igreja que não o condenasse, mas que dialogasse. Essa postura não foi bem-vista nem pela Igreja, nem por Lutero, pois ambos impunham que ele definisse de qual lado estava. Antes mesmo de Lutero, Erasmo já criticava algumas posturas da Igreja e falava da necessidade de mudanças. Vejamos algumas questões levantadas por Erasmo. Erasmo recusava-se a contribuir para a fragmentação da comunidade cristã; abominava a guerra, a violência verbal e a intolerância religiosa. Clamava por uma forma radical do cristianismo ocidental e pronunciara-se não só contra as indulgências, a indignidade dos sacerdotes, a imoralidade dos bispos e cardeais e a impostura dos monges, como também contra o método escolástico e o obscurantismo dos teólogos. Acreditava em uma educação mais racional e lembrava sempre o grande proveito que o cristianismo pode tirar da assimilação da cultura clássica. Seu ideal era a paz, tal como havia sido pregada por Cristo: somente ela podia assegurar a colaboração entre as nações europeias (ELIADE, 2011, p. 228, 229). Perceba, caro acadêmico, que o pensamento de Erasmo convergia em vários aspectos com o que pregava Lutero. São notórias, também,as influências do pensamento renascentista, como já estudamos. Essa recusa em nortear sua vida religiosa nos preceitos Medievais, direcionados pelo método escolástico, era uma das bases da educação humanista a qual já nos referimos. Inicialmente, Erasmo até defendeu Lutero, porém, como os discursos do reformador passaram a ser mais contundentes, o rompimento se concretizou e Erasmo passou a tecer críticas a ele. O principal ponto de divergências dos dois foi a questão do livre arbítrio, que Erasmo defendia e Lutero, não (ELIADE, 2011). Apesar dos esforços de Erasmo em manter a unidade cristã e o diálogo de ideias, seus livros foram considerados perigosos, sendo proibidos pela Igreja no Concílio de Trento, o qual estudaremos na próxima Unidade (JOHNSON, 2001). Uma das polêmicas envolvendo as posturas de Lutero se deu em torno de um dos seus escritos “dos judeus e suas mentiras”, em que ele conclama um levante contra os judeus, como foi feito nos países ibéricos. Sua postura sobre as revoltas anabatistas também são alvo de críticas. Todavia, sua grande contribuição ao pensamento religioso tornou-se seu principal legado. Acadêmico, confira algumas dicas de filmes sobre Lutero e sua história nos links a seguir: • Martinho Lutero. Direção de Irvring Pichel. Alemanha: 1953. Disponível em: https://filmow.com/martinho-lutero-t26173/ficha-tecnica/. • Luther. Direção de Eric A. Stillwell. Alemanha: 2003. Disponível em: https://filmow.com/lutero-t1843/ficha-tecnica/. DICA 101 2.2 HULDRYCH ZWINGLI Representante importante da Reforma Protestante, Zwingli (ou Ulrico Zuínglio) (1484-1531), iniciou um movimento de mudanças na Igreja na cidade de Zurique, na mesma época em que Lutero desenvolvia suas ideias em Wittemberg. Antes da unificação, o território da atual da Suíça era a Confederação Helvética, formada por estados independentes. Zwingli foi a figura responsável por disseminar as ideias da Reforma pela Confederação, abrindo o caminho para Calvino posteriormente (MAINKA, 2001). Em 1506, Zwingli foi ordenado sacerdote católico na cidade de Glarus. Considerava-se fiel ao papa, e também à sua terra, chegando a lutar contra a dominação francesa no território. Todavia, passou a ser fortemente influenciado pelas ideias de Erasmo de Roterdã, principalmente no que diz respeito ao pacifismo. Com essa influência, Zwingli adotou em suas práticas o estudo humanista, chegando a aprender grego para poder ler os textos bíblicos no original. A partir do seu contato com a leitura do Novo Testamento, ele [...] encontrou um novo acesso à Bíblia que continha, como ele começou a conhecer, numa linguagem bem simples, os mais profundos pensamentos. Tal caminho invocava os homens para uma vida verdadeiramente cristã suprimindo os desejos e as afecções sensuais do corpo. O seu ideal de uma religiosidade ativa, que se orientaria diretamente na vida de Cristo, opôs-se às condições da igreja católica naquele tempo, o qual era determinada por uma multiplicidade de ordens e pelo complicado sistema da Escolástica. Apesar dessa crítica clara à igreja, Zwingli ainda não afrontava diretamente a doutrina oficial do Catolicismo (MAINKA, 2001, p. 143). Diante da postura política antifrancesa que adotou com relação aos assuntos no território Suíço, Zwingli teve que sair da região de Glarus, pois esta estava governada pelo partido pró-França. Zwingli passou a ser sacerdote em Maria-Einsiedeln e, posteriormente, em 1519, se estabeleceu na região de Zurique. Ao desenvolver seus estudos, ele concluiu de que a Bíblia deveria nortear a vida da igreja. É importante salientar que tal concepção não veio da influência de Lutero, sendo um movimento concomitante: De um ponto de partida diferente de Lutero, que estava interessado especialmente na justiça de Deus, Zwingli, se ocupando especialmente com a questão da autoridade decisiva para renovar a igreja e toda a vida, encontrou o mesmo princípio: a Bíblia Sagrada. Além do princípio, só a Escritura, ele descobriu também, logo a seguir – plenamente de acordo com Lutero – o princípio, só Cristo (MAINKA, 2001, p. 143). As críticas de Zwingli ao catolicismo ficaram cada vez mais contundentes. Em alguns pontos, suas práticas foram até mais incisivas do que as de Lutero, como na questão da adoração aos santos, bem como das restrições alimentares durante a quaresma, o que ele próprio ridicularizava a ordenança da Igreja ao comer carne em público. Também se opôs à imposição do celibato aos sacerdotes. 102 O clima de insatisfação foi se ampliando, até que o conselho municipal convocou um debate em Zurique, sobre os pontos discordantes da Igreja que estavam sendo levantados por Zwingli. No debate, ele expôs suas ideias no que chamou de “67 discursos finais”, quando explicou: [...] os seus princípios, só a Escritura e só o Cristo, contra a doutrina e a prática da igreja tradicional [...]. Com os seus argumentos, Zwingli conseguiu apoio, e o conselho municipal decidiu que ele poderia continuar o seu trabalho na cidade sem limitações. Além disso, também os outros pregadores em Zurique deveriam se orientar pela sua base teológica e observar somente a norma da Bíblia (MAINKA, 2001, p. 144). Com o apoio que Zwingli recebeu, uma nova igreja foi sendo estruturada em Zurique, sob sua liderança. Porém, outro líder, Conrado Grebel, passou a expor a necessidade de mudanças mais consistentes, como a separação da Igreja com o Estado, algo que Zwingli não concordava, além do batismo somente de adultos, e não de crianças como a igreja era acostumada a fazer. Tais divergências geraram perseguições sérias ao grupo que ficou conhecido como anabatistas. Sobre esse tema, estudaremos mais adiante. Outro fator relevante da atuação de Zwingli em Genebra está relacionado à educação dos sacerdotes. Ele percebeu que era importante que houvesse escolas especializadas para a formação do corpo eclesiástico da cidade. Fundou uma escola bíblica que se transformou em universidade posteriormente. A educação teológica tinha por base os estudos dos textos sagrados nas línguas originais, uma influência do humanismo (MAINKA, 2001). Caro acadêmico, você pode estar se perguntando sobre a relação entre Zwingli e Lutero, já que, para nós, hoje, pareça que as ideias deles convergiam. Entretanto, não houve uma união entre os dois reformadores. Zwingli não concordou com o documento enviado pelos luteranos às autoridades, a confissão de Augsburgo, principalmente sobre a questão da eucaristia. Zwingli, como já expomos, trouxe ideias mais radicais que Lutero, e via os elementos eucarísticos apenas como pão e vinho, não aceitando uma presença física de Cristo em tal rito. Essa questão foi levada tão a sério que se tornou o ponto decisivo para que os dois reformadores não se unissem. Lutero não aceitava que Cristo era sacrificado a cada celebração da ceia, como, segundo ele, afirmavam os católicos; ele acreditava que havia a presença real nesse momento. Já Zwingli via a cerimônia como um símbolo, um momento de lembrança do sacrifício de Cristo, ou seja, nem aceitava a transubstanciação católica, nem a consubstanciação Luterana (MAINKA, 2001). Para contrapor o documento enviado pelos luteranos, Zwingli elaborou a Confissão Ratio Fidei, em 1530, e enviou ao rei francês Francisco I, que era amigo do protetor político de Zwingli. Nessa confissão, constavam os pontos que estavam sendo ensinados em Zurique, inclusive com relação à eucaristia. 103 Todavia, as querelas religiosas passaram a ser o centro de discórdia da Confederação Helvética, o que gerou duas guerras conhecidas como guerras de Kappel. Em uma das batalhas, Zwingli foi morto e as tropas de Zurique derrotadas. Essa derrota freou o avanço do protestantismona região da Suíça por um tempo, mas foi retomado, como veremos a seguir, com a figura de Calvino. 2.3 O CALVINISMO Nascido na França, João Calvino (1509-1564) já havia decidido rejeitar o catolicismo ainda aos 24 anos de idade. Unindo e reelaborando as ideias de Lutero e de Martin Bucer (1491-1551), Calvino escreveu o que veio a ser sua principal obra, Instituição da Religião cristã, ainda em 1536 (JOHNSON, 2001). O interessante de suas ideias é que não ficaram restritas a uma denominação, como no caso do luteranismo ou anglicanismo. O calvinismo acabou influenciando diversas denominações protestantes que vieram a surgir, e a grande inspiração de seu pensamento estava nas obras de Agostinho. Assim como Lutero, Calvino concordava com a teoria da predestinação divina, sobre a qual ele se debruçou mais até do que Lutero, inclusive os seguidores de Calvino desenvolveram ainda mais essa hipótese posteriormente. Essa doutrina aterrorizante da eleição ou danação foi tornada mais palatável pelo fato de a eleição ser demonstrada pela comunhão com Cristo – ou seja, na prática, pelo pertencimento a uma congregação Calvinista: ‘quem quer que se encontre em Jesus Cristo e seja membro desse corpo de fé, esses tem garantida sua salvação’. Enquanto evitassem a excomunhão, a pessoa estava em segurança. Eis o ponto forte e a vulnerabilidade do calvinismo: para quem não aceita o terrível argumento da dupla predestinação, ele é abominável; para quem o aceita, é quase irresistível (JOHNSON, 2001, p. 346). Para que a comunidade religiosa conseguisse diferenciar os eleitos dos não eleitos foi que, em Genebra, foi criado um órgão de fiscalização e decisório conhecido como Consistório. Muitas cidades da Suíça aceitaram as ideias protestantes. Genebra foi influenciada pelas pregações reformadas de Guilherme Farel (1489-1565) e pela cidade de Berna. No ano de 1536, em assembleia, os cidadãos concordaram em aderir à Reforma e viverem segundo a Bíblia. Após a assembleia, João Calvino foi convidado por Farel para morar em Genebra e o auxiliar na implantação das ideias reformadas (MATOS, 2013, p. 65). Ele, que tentava se fixar em Estrasburgo pois estava fugindo da França por questões religiosas, acabou aceitando o convite de Farel. Após sua chegada à cidade, a missa foi banida, assim como as demais formas de protestantismo. Quem não quisesse se submeter era excomungado e expulso da cidade e, em alguns casos, até mesmo morto. Calvino, inclusive, se posicionou favorável à perseguição e morte dos anabatistas. Vejamos o comentário de Johnson: 104 [...] a execução, como descobriu Calvino, também era útil para inspirar terror e, assim, acarretar obediência. Um de seus modos preferidos de triunfar sobre um oponente consistia em fazê-lo queimar seus livros em praça pública, com suas próprias mãos – Valentin Gentilis salvou sua vida submetendo-se a essa indignidade. Era particularmente severo com qualquer um que se rebelasse contra seu governo ou recorresse ao Novo Ensino para questionar a doutrina da Trindade (JOHNSON, 2001, p. 348). Todavia, nem sempre as ideias de Calvino foram aceitas em Genebra. Um dos pontos de discórdia ocorreu em virtude da questão da ceia, em que as autoridades de Genebra queriam que o pão servido fosse sem fermento. Calvino e Farel não concordaram e foram expulsos de Genebra. Calvino passou cerca de três anos em Estrasburgo, atuando junto com o teólogo Martin Bucer. Foi uma época bastante profícua com relação aos seus estudos na teologia e na produção literária. Em 1540, ele se casou com a viúva Idelette de Bure (1506-1549) (ELIADE, 2011). Sobre o conjunto das obras de Calvino, Eliade explica: A teologia de Calvino não constitui um sistema. É antes uma súmula comentada do pensamento bíblico. Calvino explora e estuda os dois Testamentos, lidos e entendidos muitas vezes à luz de santo Agostinho. Reconhece-se da mesma forma a influência de Lutero, ainda que ele não seja citado. Calvino debate, numa ordem bastante pessoal, os problemas essenciais de sua teologia: o conhecimento de Deus como criador e senhor, o decálogo e a fé (segundo o símbolo dos apóstolos), a justificação pela fé e pelos méritos das obras, a predestinação e a providência de Deus, os dois sacramentos válidos (o batismo e a eucaristia), sem esquecer-se da prece, dos poderes eclesiásticos e do governo civil. Para Calvino, o homem não deixa nunca de ser pecador: suas “boas obras” só podem ser aceitas pela graça divina. A distância entre o Deus transcendente e a criatura pode ser abolida pela revelação conservada nas Escrituras. O homem, no entanto, não pode conhecer Deus n’Ele mesmo, mas apenas como Senhor que se revela aos seres humanos [...] (ELIADE, 2011, p. 232-233, grifos do original). Quando a oposição a Calvino não estava mais no comando em Genebra, ele foi convidado a retornar. O convite foi aceito com algumas exigências, como a garantia de que ele poderia criar um conjunto de leis para a Igreja em Genebra. Tal exigência foi acatada e ele “apresentou às autoridades as Ordenanças eclesiásticas, que previam a existência de quatro classes de oficiais na igreja reformada local: pastores, doutores, presbíteros e diáconos” (MATOS, 2013, p. 65). Ficava a cargo dos presbíteros a fiscalização da comunidade, e eram eleitos pelos magistrados civis. Já os doutores e pastores faziam parte do Consistório. Esse órgão tinha a função de tribunal criado para as questões religiosas. Segundo Matos: Os pastores e os presbíteros passaram a se reunir semanalmente no Consistório, uma espécie de tribunal eclesiástico, que se tornou o principal órgão encarregado da disciplina em Genebra. Seu principal objetivo era a supervisão sistemática da vida moral e religiosa da população. Essa instituição ilustrava a integração entre igreja e estado 105 que era um lugar comum na Europa do século 16. [...] O problema é que as autoridades civis de Genebra também reivindicavam o direito de se pronunciar sobre os casos levados ao Consistório. A maior parte dos pecados que requeriam censura eclesiástica estavam igualmente inseridos nas leis civis daquela cidade-estado. Surgiu, assim, um conflito de competência entre as duas esferas, principalmente no que diz respeito à excomunhão e readmissão à mesa do Senhor (MATOS, 2013, p. 65, 66). O conflito entre os limites do Estado e da religião em Genebra não estavam claros. Calvino lutava para enfrentar os que ele considerava “libertinos”, pois não queriam seguir os padrões morais que ele impunha. Percebemos que a herança da Inquisição católica esteve presente no mundo protestante, seja para punir os considerados hereges, ou os que iam de encontro a moral estabelecida. Para Calvino, Igreja e Estado deveriam estar juntos, porém, a Igreja não tinha que se submeter ao Estado em caso de conflito entre ambas. Um dos casos mais conhecidos de execução em Genebra foi a do médico Miguel Servet (1511-1553). Nome conhecido do Renascimento, ele descobriu como funcionava a circulação sanguínea. Inicialmente católico, após conhecer as ideias dos anabatistas, acabou acolhendo várias de suas posições, principalmente sobre o batismo ser somente na idade adulta. Ele começou a escrever para Calvino e fazer-lhe perguntas sobre seus posicionamentos teológicos. Calvino enviou um exemplar de sua obra Institutas, a qual Servet fez várias anotações e devolveu a Calvino. Não aceitando seus comentários, Calvino parou de respondê-lo e solicitou a um primo seu, católico, que fizesse algo para parar Miguel de Servet. Este foi aprisionado pela Inquisição, mas conseguiu fugir. Porém, foi a Genebra, onde o reconheceram e o denunciaram. Foi julgado e condenado principalmentedevido à recusa em aceitar a ideia da Trindade, sendo queimado em 1553 (MATOS, 2013). Genebra, no tempo de Calvino, passou a ser a cidade visitada por diversas pessoas que queriam conhecer mais de perto o movimento reformista. Ela passou a ser o modelo, que muitos quiseram imitar na Europa, de um local que era regido, segundo eles, pelos ensinamentos bíblicos. 2.4 OS ANABATISTAS Os anabatistas receberam vários rótulos no início do movimento protestante, principalmente o de radicais. A expressão anabatista foi um apelido dado pelos seus adversários, pois significava “rebatizador” (SHELLEY, 2004). A ênfase do seu discurso atingia tanto aos católicos quanto aos protestantes. Atualmente, as denominações menonitas e amish são as herdeiras do seu legado. Esse movimento pode ser divido em três fases: revolucionários, pacifistas e milenaristas (ROSA, 2016). Abordaremos, agora, as principais características dessas fases. 106 O movimento anabatista surgiu na década de 1520 e atingiu diversas cidades, tanto do território germânico, como em Zurique. Apesar de haver diferenças entre as fases, alguns posicionamentos eram constantes nas vertentes anabatistas. A não aceitação do batismo infantil talvez tenha sido um dos maiores conflitos entre eles e o protestantismo na época. Tal ponto se relacionava à ideia de que o Estado não deveria estar ligado à religião, pois, segundo os anabatistas, o indivíduo deveria poder escolher a religião que quer seguir. Por isso, defendiam que o batismo só poderia ocorrer na fase adulta, quando o indivíduo, por sua livre escolha, decidisse fazer parte de tal seguimento religioso. O batismo infantil condicionava o indivíduo a determinada religião, devido ao pacto entre Igreja e Estado, e isso o levava a uma vida sem o poder de escolha no campo religioso: Eles criam que a Reforma deveria purificar não apenas a teologia, mas também a vida integral dos cristãos, especialmente no que se referia aos relacionamentos sociais e políticos. Portanto, a igreja não deveria ser apoiada pelo Estado, nem por dízimos, nem por impostos, nem pelo uso da espada. O Cristianismo era uma questão de convicção individual, que não poderia ser imposta a quem quer que fosse mas, ao contrário, requeria uma decisão pessoal. Segue-se, então, que infantes não deveriam ser batizados, pois eles não podem fazer tal decisão. (GONZALEZ, 2004, p. 89, 90). O movimento anabatista foi o primeiro grupo após o início da Reforma a defender a separação entre Igreja e Estado. Outro ponto amplamente aceito pelos anabatistas era o de não se alistar ao exército (ROSA, 2016). Os anabatistas aceitavam diversos pontos da reforma, por isso eles são conhecidos como a reforma dentro da reforma. Entre as ideias que eles defendiam que estavam presentes nos demais movimentos reformistas, estavam “a sola scriptura, o sacerdócio universal, a liberdade cristã e a responsabilidade individual” (ROSA, 2016, p. 129, grifos do original). Um dos primeiros líderes anabatistas foi Konrad Grebel (1498-1526), um leigo, que morava em Zurique e rebatizou Georg Blaurock (1491-1529). A comunidade liderada por Zwingli perseguiu ferozmente os anabatistas nessa região. Além dos pontos que já ressaltamos dos anabatistas, Grebel criticava a igreja em Zurique pela “cobrança de dízimo, a missa e as imagens, e alguns chegaram a defender a morte de padres e monges” (ROSA, 2016, p. 128). Após o batismo realizado por Grebel, o conselho em Zurique determinou que aos anabatistas fosse dada a pena de morte, sendo bastante perseguidos nesse território. O grupo de Grebel se mudou para a aldeia de Zollikon, onde nasceu “a congregação anabatista, a primeira igreja livre (dos laços do Estado) dos tempos modernos” (SHELLEY, 2004, p. 279). Outros anabatistas foram pregar na região de Tirol, onde foram perseguidos pelos católicos. Blaurock, o primeiro rebatizado, foi morto na fogueira. Os que conseguiram fugir foram para a Morávia e conseguiram um período de paz. Eles “fundaram uma forma duradoura de comunidade econômica chamada Bruderhof, uma comunidade de cristãos. Seu propósito era, em parte, seguir o modelo das primeiras comunidades apostólicas” (SHELLEY, 2004, p. 280). Esse grupo passou a ser chamado de huteritas. 107 Os anabatistas liderados por Grebel não viam como boa a união da Igreja com o Estado e proclamavam uma separação dos “santos”, “eleitos”. Eram contra, inclusive, que os seus liderados assumissem cargos no governo, “não pagavam tributos de guerra e não faziam juramentos (ROSA, 2016, p. 134). Todavia, seu intuito não era de ir contra as autoridades seculares no intuito de guerrear contra elas, como no caso dos anabatistas radicais. A vertente anabatista que foi chamada de radical ou revolucionária, recebeu esse título pois partiu para a luta armada. A ideia era firmar o Reino de Deus. Como principal eco desses movimentos, temos, no território germânico, o grupo liderado por Thomas Müntzer. Ele e um amigo de Lutero, Andrea Bodenstein von Karlstadt (1486- 1541), incentivaram mudanças na liturgia alemã enquanto Lutero estava escondido no castelo. Entre as mudanças, estavam: “a abolição da missa, a distribuição dos dois elementos da Ceia, a destruição das imagens, abolição da música dos cultos e a negação do batismo infantil. Lutero não aceitou muitas das mudanças promovidas por Karlstadt e os dois romperam” (ROSA, 2016). Já Müntzer foi mais além, pois lutou por mudanças mais radicais da estrutura da sociedade e que o poder deveria ser das pessoas comuns e não dos nobres. Ele, que havia sido sacerdote católico e tinha se convertido às ideias luteranas, criticava Lutero por não ter lutado para mudar de fato as estruturas, ficando somente no campo teológico. Segundo Müntzer, o Espírito Santo dissolvia os padrões de classe e nacionalidade, fazendo com que todos fossem iguais. E isso deveria ser levado a cabo com o fim das desigualdades sociais. A igreja, então, deveria refletir essa realidade, deveria proporcionar aos fiéis um ambiente sem propriedade privada, sem classes (ROSA, 2016). Ele era enfático na questão da luta social, retomando a ideia bíblica de que os menos desfavoráveis é que tem a revelação e não os nobres e o governo. Sua proposta, inclusive, era de exterminar os governos ímpios: “os governantes ímpios deveriam ser mortos, especialmente os sacerdotes e monges que insultam os evangelhos como uma heresia e, ao mesmo tempo desejam ser considerados os melhores cristãos” (ROSA, 2016, p. 133). Em 1525, junto com milhares de camponeses, Müntzer conduziu seu projeto revolucionário na batalha de Frankenhausen, na qual cerca de 5 mil pessoas foram mortas e ele foi capturado, sofreu tortura e foi morto (ROSA, 2016). Surgiu outra formação anabatista, cujas ideias estavam mais voltadas a um reino milenarista. Um líder que despontou foi Melchior Hoffman (1495-1543), que havia aceitado as ideias luteranas, e passou andar com os anabatistas. Todavia, sua concepção religiosa extremamente apocalíptica, acabou afastando alguns anabatistas. Com seguidores que preconizavam que “a segunda vinda de Cristo, que deveria ser preparada com uma operação limpeza através da eliminação dos ateus e da construção de um reino de paz” (ROSA, 2016, p. 136). Seus seguidores foram aumentando, em sua maioria, pessoas mais pobres. Ele foi preso e morreu na prisão. Mesmo assim, suas ideias continuaram entre seus seguidores, sob a liderança de Jan Matthys (1500-1534), até que eles tomaram a cidade de Münster e proclamaram o “Reino de Münster”, e que aquela cidade se tornaria o “Reino de Jerusalém. 108 Todos aqueles que não aderissem ao movimento foram expulsos da cidade ou executados, a poligamia foi instituída, a comunhão de bens passou a ser regra e um governo teocrático foi instaurado”(ROSA, 2016, p. 136). A liderança estava sob o comando de Jan van Leiden (1509-1536), que se autoproclamou rei, quando Jan Matthys foi morto em um dos conflitos. A guerra instaurada para derrotar os anabatistas levou a um cerco da cidade, em que, em 1555, uma população faminta foi massacrada. Após esse episódio drástico, outro líder surgiu, menos revoltoso e sob uma pregação pacífica. Menno Simons (1496-1561) foi responsável pela liderança dos anabatistas, que passaram a ser conhecidos também como menonitas. Menno Simons preocupou-se em estabelecer as bases teológicas para seus seguidores, que deveriam construir comunidades separadas e com rígida disciplina interna. Nesse contexto, a disciplina da excomunhão ganhava enorme importância, aprofundando uma característica do anabatismo desde o seu início [...] (ROSA, 2016, p. 139). Simons imprimiu no movimento anabatista o caráter sectário e pacifista. Declaradamente contra guerra, era a favor de lutar somente com a Palavra de Deus como espada. Insistia para que os governantes deixassem o movimento em paz, pois eles não queriam conflitos com o governo. Em suas pregações, afirmava que ao verdadeiro crente não cabia revidar as agressões, mas deixar que Deus julgasse quem estivesse agindo mal. Com a liderança de Simons, o movimento anabatista consolidou sua doutrina e conseguiu sobreviver em meio aos conflitos dos movimentos religiosos do século XVI. 2.5 JACÓ ARMÍNIO Jacó Armínio (1559-1609), nasceu em Oudewater, na Holanda, no mesmo ano do falecimento de seu pai. Um benfeitor o ajudou em seus estudos até os 15 anos de idade, quando veio a falecer. Contou, então, com o auxílio de Rodolfo Snellius (1546-1613), que o adotou, levou-o a cidade de Marburg, onde ele ingressou na universidade. Em 1575, sua cidade natal foi invadida pelo exército espanhol e dizimou parte da população, inclusive seus familiares (DANIEL, 2017). Ele foi morar na cidade de Leiden, onde concluiu seus estudos e se dirigiu a Holanda, para estudar com Teodoro de Beza (1519-1605). De lá, foi convidado para ser o pastor em uma igreja em Amsterdã. Cerca de quinze anos depois, aceitou o cargo de professor da Universidade de Leiden. Foi nesse momento de sua vida que os embates sobre seu modo de pensar e o calvinismo se tornaram intensos. Por estar em um ambiente dominado pela teologia calvinista, ele se opôs às ideias do infralapsarianismo e do supralapsarianismo. Vejamos a explicação de Daniel: 109 Calvinismo infralapsariano é aquele que afirma que os decretos divinos de eleição e condenação ocorreram após o Decreto da Queda. Já o supralapsariano assevera que os decretos divinos de eleição e condenação foram determinados por Deus antes mesmo do Decreto da Queda – isto é, primeiro Deus planejou que alguns se salvariam e outros se perderiam para depois determinar do que eles seriam salvos e como seriam salvos. Pois bem, Gomarus era adepto desse calvinismo radical supralapsariano, que era o calvinismo original de Calvino, Vermigli, Zanchi e Beza. Ele afirmava enfaticamente que Deus salva uns e condena outros (DANIEL, 2017, p. 302-303). Os conflitos ocorreram principalmente porque o também professor universitário Franciscus Gomarus (1563-1641) não aceitava um posicionamento diferente do que era pregado pelo calvinismo. Os debates ficaram intensos entre os dois, até que foram chamados na Suprema Corte em Haia. O veredito dado foi que os dois professores deveriam encontrar uma forma de conviverem, mesmo pensando de formas diferentes. Todavia, segundo Daniel (2017), Gomarus continuou atacando a forma de pensar de Jacó Armínio. Em 1608, Armínio solicitou que fosse realizada uma assembleia, para que ele pudesse expressar seu pensamento. Ele expôs seu posicionamento contra o supralapsarianismo e o infralapsarianismo, considerando que a presciência de Deus seria mais aceitável no que se refere à predestinação. No ano seguinte, outra assembleia aconteceu, e logo depois Armínio faleceu. Mesmo com o falecimento de Armínio, seus alunos continuaram a disseminar suas ideias e acabaram formulando uma síntese do seu pensamento, nas questões discordantes do calvinismo. Cerca de quarenta e seis teólogos e pastores assinaram ao documento que eles chamaram de Remonstrante. Caro acadêmico, na área destinada à leitura complementar você terá acesso a esse documento. Após a divulgação dos artigos da Remonstrância, não houve conflitos, porém, surgiram algumas questões políticas. Vejamos a explicação de Daniel: [...] o principal desafeto do príncipe Maurício de Orange Nassau (1567- 1625), seu ex-amigo e braço direito Johan van Oldenbarnevelt (1547- 1619), advogado-geral da Holanda, havia aderido ao Arminianismo e defendia a tolerância religiosa. Oldenbarnevelt era apoiado pela maioria das províncias marítimas holandesas, onde se concentrava a burguesia do país, que havia aderido majoritariamente ao Arminianismo. Essa maioria apoiava Oldenbarnevelt ‘em sua oposição ao poder crescente de Maurício de Orange Nassau’. Já as demais províncias marítimas e as rurais eram fiéis a Maurício e apoiavam majoritariamente o Calvinismo (DANIEL, 2017, p. 309). Os calvinistas também acusavam os arminianos de terem uma doutrina parecida com o catolicismo, o que poderia facilitar, segundo eles, que as ideias dos Jesuítas fossem aceitas em seu meio. Esse foi um dos motivos para a convocação do Sínodo Nacional de Dordrecht, mais conhecido como Sínodo de Dort (1618-1619). Esse sínodo contou com a participação de vários representantes protestantes, durou cerca de sete meses, e teve 154 seções. 110 O sínodo contrapôs as ideias arminianas elaboradas pelos remonstrantes, e elaboraram os Cinco pontos do Calvinismo (TULIP), que consiste em: “depravação total (Total Depravity); Eleição Incondicional (Unconditional Election); Expiação Limitada (Limited Atonement); Graça Irresistível (Irresiteible Grace); Perseverança dos Santos (Perseverance os the Saints)” (LEITE, 2016, p. 70). Com esses pontos, o Sínodo marcou seu posicionamento contra as ideias remonstrantes. Os arminianos foram expulsos ou mortos após o Sínodo: “[...] João Uirenbogaert, exilado e bens confiscados. Simão Spiscópio, banido. Jan van Oldenbarnevelt, decapitado. Hugo Grócio, prisão perpétua. Os pastores arminianos – uns 200 deles – perderam seus cargos; muitos banidos do país. Os demais reagiram e formaram uma Irmandade Remonstrante” (LEITE, 2016, p. 73). 2.6 O ANGLICANISMO Caro acadêmico, agora chegou o momento de abordarmos os conflitos religiosos que ocorreram na Inglaterra. Esta foi uma região que muito importante, tanto para o desenvolvimento do protestantismo, quanto para o surgimento de diferentes movimentos. Além disso, foi desse país que saíram, inicialmente, os primeiros protestantes para o continente americano. O rei Henrique VIII (1491-1547), governava a Inglaterra no período em que teve início os movimentos reformistas na Europa. É importante lembrarmos que a situação política da Inglaterra era diferente dos demais países. Enquanto o absolutismo monárquico, em que o rei concentrava os poderes legislativo, executivo e judiciário, era a realidade de praticamente toda a Europa, na Inglaterra, o sistema era diferente. O rei tinha sua importância, todavia, seus poderes eram subordinados ao parlamento. O rei Henrique VIII subiu ao trono pois seu irmão, Artur, que era o primogênito e, portanto, assumiria o trono, morreu. Ele havia se casado com Catarina de Aragão, em virtude de uma aliança feita entre a coroa espanhola e inglesa e seu pai, o rei Henrique VII. Porém, após a morte do príncipe Artur, as coroas decidiram casar a viúva, Catarina, com Henrique VIII, já queo trono inglês seria dele. Porém, entrava em jogo a questão do direito canônico, que proibia o casamento com a viúva do irmão. Essa questão foi resolvida com uma autorização papal. Com o passar do tempo, Catarina só conseguiu dar à luz a Maria Tudor, os outros filhos faleceram. Sem um herdeiro homem, a questão sucessória foi colocada em questão, e foi solicitado ao papa que anulasse o casamento, para que o rei Henrique VIII se casasse novamente. Tal pedido não foi aceito pelo pontífice (RAMOS NETO, 2010). Geralmente, a questão do casamento do rei inglês é vista como o principal motivo para o rompimento com Roma. Porém, caro acadêmico, lembremos do caso estudado no capítulo passado, quando John Wycliffe passou a defender uma Igreja mais autônoma de Roma, várias pessoas concordaram com ele. 111 O desejo por uma igreja inglesa ainda estava presente, como assinala Shelley (2004, p. 296) “durante séculos, a igreja na Inglaterra mobilizou-se para tornar-se independente de Roma. No tempo de Lutero, a maior parte dos patriotas ingleses percebia o caráter distintivo da fé em sua terra natal”. Esse sentimento nacionalista, que estava presente em outros países também, acabou aflorando com o movimento da Reforma. Tendo em vista esse cenário, e os diversos movimentos de reforma acontecendo na Europa, o rei Henrique VIII solicitou do parlamento a aprovação do Ato de Supremacia, o que foi feito. A partir de então, o rei inglês passou a ter mais poder que o parlamento, e Henrique VIII rompeu com Roma em 1534. O parlamento inglês também tornou inválido o casamento do rei com Catarina de Aragão, além de promulgar leis para o não pagamento à Roma de diversas contribuições. Em 1536, o rei inglês foi excomungado pelo papa e os conventos ingleses foram confiscados pelo parlamento (RAMOS NETO, 2010). Uma vez anulado o casamento com Catarina de Aragão, Henrique VIII casou-se com Ana Bolena (que também não consegui um herdeiro, senão uma filha, Elizabeth Tudor) que posteriormente foi acusada de adultério e executada. Henrique VIII casou-se com Jane Seymour, que finalmente lhe deu um herdeiro, Eduardo Tudor, futuro Eduardo VI. Após a morte de Jane Seymour, Henrique VIII casou-se ainda com a luterana Ana de Cleves (cunhada de Frederico, da Saxônia), com a conservadora Catarina Howard e finalmente com Catarina Parr. Claro que todos esses casamentos tiveram suas articulações políticas (RAMOS NETO, 2010, p. 06, 07). O rompimento com o catolicismo deu origem à Igreja Anglicana, que contava com o rei inglês como o seu líder, como ocorre até hoje. Inicialmente, o Anglicanismo continha mais doutrinas católicas do que da Reforma. Inclusive, Henrique VIII se aliou a Carlos V na luta contra o luteranismo que avançava na França. O rei colocou em vigor os Seis Artigos, que funcionariam como diretriz da nova igreja. Todavia, as mudanças igreja não foram significativas, como explica Gonzalez, ao se referir aos Seis Artigos: Neles foi declarado que rejeitar a transubstanciação ou defender a comunhão dos dois tipos era heresia, punível com morte e confisco de propriedade. O mesmo foi dito do celibato clerical e sacerdotes que haviam se casado deveriam agora abandonar suas esposas. Para mostrar que ele não estava cedendo nem ao Papa nem aos protestantes, Henrique assegurou que um grupo simbólico de católicos e luteranos fosse executado por suas ideias (GONZALEZ, 2004, p. 185). Segundo Shelley (2004), nessa primeira fase, apenas duas mudanças significativas ocorreram, a permissão de utilizar a bíblia em inglês nos cultos e o fim dos monastérios. Os monges puderam escolher se iriam para outra localidade ou se se desligariam das obrigações religiosas e participariam da vida secular. 112 Após a morte do rei Henrique VIII, seu filho Eduardo VI (1537-1553) assumiu ao trono em 1547. Com o seu governo, a igreja Anglicana começou um processo de mudanças, o que a tornou mais próxima das ideias protestantes que estavam ocorrendo. O latim foi retirado do culto e a língua local instituída. Além disso, foi instituído para o rito o Livro de Orações Comum (LOC), de Thomas Cranmer (1489-1556). Um dos fatores mais importantes foi o cancelamento dos Seis Artigos que haviam sido instituídos no reinado de Henrique VIII e a permissão para que o sacerdote pudesse se casar. O reinado de Eduardo foi curto, apenas de seis anos, e o trono passou para sua meia irmã, Maria Tudor. Em 1553, Maria Tudor (1516-1558), a filha do primeiro casamento de Henrique VIII, assumiu a coroa inglesa. Ela tentou desfazer com o movimento iniciado pelo pai, procurando restaurar o catolicismo e perseguiu os protestantes: “Imediatamente, ela fez com que o Parlamento declarasse que o casamento de sua mãe com Henrique VIII fora válido, e que todas as leis religiosas de Eduardo VI fossem, por conseguinte, anuladas” (GONZALEZ, 2004, p. 186). No curto tempo de seu governo, muitos foram mortos e outros fugiram para países protestantes europeus ou para as Treze Colônias na América do Norte. “Em apenas quatro anos, ela superou o pai em intolerância. Mandou cerca de 300 protestantes para a fogueira, incluindo o arcebispo Cranmer” (SHELLEY, 2004, p. 301). Os ingleses que se refugiaram em países com a tradição protestante consolidada acabaram assimilando suas doutrinas, o que, posteriormente, foi fundamental. Após o reinado de Maria, subiu ao trono Elizabeth I (1558-1603), também conhecida como Isabel I. Ela retomou o anglicanismo e continuou a ampliação das reformas iniciadas por seu meio-irmão Eduardo. Nesse período, muitas das ideias calvinistas passaram a agregar o credo Anglicano. Um grupo dentro da igreja anglicana procurava fazer com que a rainha ampliasse as mudanças na Igreja, como, por exemplo, que abolisse as vestes sacerdotais, pois assemelhava-se ao modelo católico. Esse movimento, conhecido como puritanismo, ganhou força na Inglaterra, mas não conseguiu mudar as estruturas principais do Anglicanismo. Mais adiante voltaremos à questão puritana. Ao aceitar a Bíblia como autoridade final e ao reconhecer apenas o batismo e a Sagrada Eucaristia como sacramentos instituídos por Cristo, os Trinta e Nove Artigos (1563) de Elizabeth eram essencialmente protestantes, mas muitos deles encontravam-se escritos de maneira a satisfazer tanto católicos como protestantes. A liturgia da igreja manteve vários elementos católicos e a igreja era governada por bispos, em sucessão apostólica (SHELLEY, 2004, p. 301). Portanto, o protestantismo na Inglaterra teve início pelo movimento do rei, e a igreja criada manteve os padrões católicos. Só com o reinado de Eduardo e, posteriormente, de Elizabeth I, a Igreja Anglicana passou a agregar as ideias do protestantismo, principalmente da vertente calvinista. 113 2.7 O PURITANISMO O puritanismo foi uma forma de vivenciar o cristianismo que surgiu na Inglaterra, dentro da Igreja Anglicana. Segundo Campos (2014), esse termo foi empregado a primeira vez, provavelmente em 1567, para diferenciar o movimento que pedia mudanças dentro do anglicanismo. Caro acadêmico, trataremos agora de alguns aspectos da formação do puritanismo. Para isso, abordaremos algumas questões da política na Inglaterra. É importante lembrarmos, novamente, de que Igreja e Estado não estavam separados. Qualquer ponto discutido nela era também uma questão estatal, mesmo nos países protestantes. Muitos anglicanos que tiveram contato com o calvinismo passaram a pensar que a Igreja inglesa deveria passar por mudanças mais profundas, e mudar suas características católicas, tanto na aparência quanto na teologia. Um dos pontos mais defendidos era o fim das vestes sacerdotais, quemuito lembravam as do clero católico. O puritanismo também era contra o formato de igreja episcopal, ou seja, um modelo de igreja em que as decisões eram tomadas pela hierarquia do clero. Os puritanos passaram a exigir que fosse adotado como sistema de governo da igreja o presbiterianismo, no qual um corpo de presbíteros, que seria escolhido, tivesse o poder decisório. Além disso, eram a favor da adoção de um rigor disciplinar, para punir os que não estivessem se comportando com a ética puritana. Outro ponto relevante era que, no sistema anglicano, a tradição era importante, assim como no catolicismo, o que era criticado pelos puritanos, pois defendiam que a Bíblia era o princípio para seu modo de vida. Com relação à forma de culto, o sistema anglicano valorizava os pormenores do rito, enquanto os puritanos queriam que fosse estabelecida a simplicidade e espiritualidade (CAMPOS, 2014). Como estudamos, a mudança religiosa que o rei Henrique VIII estabeleceu não ocasionou um rompimento de fato com a teologia católica. Somente a partir do governo de seu filho, Eduardo VI, é que os anseios por mudanças mais profundas nas questões religiosas foram atendidos. Ainda assim, o movimento puritano exigia que fossem tomadas medidas mais profundas de rompimento com as características católicas. Mesmo com a subida da rainha Elizabeth I ao poder e a instauração do anglicanismo como religião oficial, desfazendo as medidas tomadas por sua irmã, a rainha Maria Tudor, os puritanos não ficaram satisfeitos. A rainha Elizabeth I manteve a hierarquia eclesiástica e não rompeu com as vestimentas sacerdotais. Após sua morte, como não possuía herdeiros, o trono foi sucedido por Jaime Stuart e depois Carlos Stuart. A atuação desses reis foi marcada por uma tentativa de absolutismo monárquico, e, com isso, 114 [...] perseguiram os protestantes radicais (os puritanos) dentro e fora do Parlamento e tornaram a Igreja da Inglaterra novamente muito semelhante à Católica. Muitos puritanos emigraram para a América para a construção de uma sociedade como desejavam. Muitos parlamentares puritanos que ficaram na Inglaterra desistiram de lutar e voltaram para o que consideravam seu verdadeiro chamado: salvar almas (CAMPOS, 2014, p. 7). Com problemas em decorrência da guerra contra a Escócia, o rei Carlos I (1600- 1649) acabou convocando o parlamento que ia crescendo em oposição ao seu governo. Nesse ínterim, Oliver Cromwell (1599-1658) assumiu o comando do exército inglês, que se tornou grande opositor do rei e conseguiu tirá-lo do poder e executá-lo. Esse movimento político ficou conhecido como Revolução Puritana. A chegada do partido puritano ao poder no Parlamento, durante a Reforma na Inglaterra, trouxe como contribuição fundamental à religião protestante a elaboração da Confissão de Fé de Westminster, que veio à existência depois do sínodo de Dordrecht (1618-1619) por solicitação em 1645 da Câmara dos Comuns à Assembleia de Westminster (1643-1649), composta por 121 ministros, 30 leigos e oito comissários escoceses. O pedido era claro: que se formulasse uma confissão para a Igreja da Inglaterra (CAMPOS, 2014, p. 09). Foi então que, na Assembleia de Westminster, foi elaborada a Confissão de Fé de Westminster, que teve por base a teologia calvinista. Outro ponto importante definido foi a implantação de um modelo de igreja nos moldes organizacionais do presbiterianismo. Esse modelo deveria ser seguido por todas as igrejas calvinistas. 2.8 JOHN KNOX E A REFORMA NA ESCÓCIA O protestantismo na Escócia chegou por meio de livros e panfletos que chegaram ilegalmente. Patrick Hamilton (1504-1528), um dos precursores do luteranismo nesse território, foi considerado herege e morto na fogueira em 1528 (LINDBERG, 2017). A vertente protestante que acabou prevalecendo no território escocês, porém, foi o calvinismo, pela influência de John Knox (1513-1572). Ele chegou a passar um tempo em Genebra, aprendendo os pontos da doutrina calvinista. Todavia, Gonzalez (2004) afirma que também foi grande a influência do pensamento de Ulrico Zuínglio na concepção teológica de Knox, dentre outras coisas, na maneira de se posicionar frente ao Estado, já que Knox foi um severo crítico da rainha Maria Stuart (1542-1587), e Calvino não enfrentou o governo. A questão entre a Inglaterra e a Escócia era conflituosa. Houve uma tentativa de união por meio do casamento de Eduardo, filho de Henrique VIII, com Maria Stuart, da Escócia, mas essa união não ocorreu. 115 Maria Stuart, católica, casou-se com o francês Delfim Francisco II (1544-1560). A França, que tinha um reinado católico e era inimiga da Inglaterra, não viu com bons olhos tal união. Assim que Francisco II morreu, Maria Stuart retornou à Escócia. No período em que esteve na França, o protestantismo se proliferou no território escocês, e a liderança de Knox ficou forte. No parlamento, os protestantes se destacaram e chegaram a aprovar a separação com Roma e uma confissão de fé para a Escócia, com características marcadamente calvinistas (LINDBERG, 2017). 2.9 OS QUACRES A Inglaterra do início do século XVII estava passando por transformações sociais importantes. Com a ampliação do processo conhecido por “cercamento”, que consistiu em cercar as terras cumunais, ou seja, terras que poderiam ser usadas por todos, várias pessoas que tinham pequenas propriedades rurais se viram sem condições de sobreviver, pois utilizavam os recursos de tais terras. Houve, então, um êxodo para regiões urbanas, o que formou uma massa de desempregados nesses lugares. Nesse contexto, alguns movimentos religiosos surgiram na Inglaterra, dentro do protestantismo, além dos puritanos, como já estudamos. Havia várias ideias que associavam a nobreza ao anticristo e que não aceitavam as diferenças sociais, pois as consideravam fora dos padrões estabelecidos por Deus na criação. Foi uma época de ideias contundentes e diversas, como explica Christopher Hill (1987): Em 1642 os pregadores citavam o dito: "Quando Adão cavava e Eva fiava, quem era o fidalgo?". Dessa forma, quando Christopher Feake declarou, em 1646, que a monarquia e a aristocracia eram "inimigas de Cristo", o que disse não era uma inovação audaciosa, porém apenas um desenvolvimento de doutrinas já conhecidas. Havia, então, uma longa tradição popular de ceticismo materialista e de anticlericalismo; havia a tradição familista, segundo a qual Cristo estava presente em cada fiel; havia a tradição separatista de oposição a uma Igreja oficial, aos dízimos que sustentavam os seus ministros e ao sistema de clientela que assegurava à classe (HILL, 1987, p. 51, 52). Algumas pessoas na sociedade inglesa questionavam o poder do Estado em impor as questões de fé. Grupos passaram a defender uma maior liberdade nas questões de crença, apesar de serem visto pelo Estado, muitas vezes como agitadores e radicais, ao tentaram fazer da sociedade inglesa um ambiente mais plural, com relação as questões religiosas. Ao ler a Bíblia e enxergar questões que não eram priorizadas pela Igreja anglicana, acabaram compondo uma teologia diferente do que era aceito, como, por exemplo, ao defender que o clero não deveria ser remunerado pelo Estado, e sim por contribuições dos fiéis, de forma voluntária. 116 Em alguns casos, também defendiam que os leigos poderiam pregar, além de pontos que eram considerados mais radicais para a sociedade da época: [os separatistas] defendiam a tolerância para todas as seitas protestantes, repelindo a censura eclesiástica e todas as formas de jurisdição eclesiástica, em favor de uma disciplina interna às congregações, sem o aval de nenhuma sanção coercitiva. Atribuíam pequena importância a muitos dos sacramentos tradicionais da Igreja. Oseu programa implicaria destruir a Igreja nacional, deixando a cada congregação a responsabilidade de seus próprios negócios e havendo apenas um tênue contato entre as diversas congregações; a Igreja não teria mais condições para moldar a opinião segundo um padrão único, para punir o ‘pecado’ ou para proibir a ‘heresia’. Não haveria controle sobre o que pensassem as classes médias e baixas (HILL, 1987, p. 52). Perceba, caro acadêmico, que a Inglaterra adotou um modelo de igreja muito parecido com o catolicismo, e, mesmo com as mudanças que ocorreram para deixar o anglicanismo com mais características protestantes, nem todos ficaram satisfeitos. Enquanto o puritanismo lutou por uma simplicidade do culto e era a favor da coerção estatal nas questões de “desvios” de fé, outros grupos se levantaram, tentando ir além nas questões religiosas. Muitos desses grupos foram perseguidos em algumas épocas e tolerados em outras. Trataremos agora de uma das vertentes mais importantes nesse período, que chegou a fazer parte do parlamento, os quacres e que atuaram também na América. No próximo tópico, estudaremos o grupo dos ranters. George Fox (1624-1691) é considerado o fundador dos Quacres, também conhecidos como “Sociedade dos amigos”. Fox foi preso diversas vezes por questões religiosas. Todavia, suas críticas não eram somente sobre religião, mas também em questões políticas e sociais. Ele, em seu jornal, atacava o clero, não aceitava o pagamento do dízimo nem concordava com a sacralidade que era imputada aos templos. Denunciava a opressão da nobreza, defendia as pessoas comuns e atacava veementemente a monarquia. Uma das críticas feitas aos quacres era a aceitação de mulheres no sacerdócio. Os craques ficaram conhecidos pela pregação de que Cristo está dentro de nós e, por isso, não somos apenas pecadores. Cristo seria a Luz interior e todos teriam acesso a Ele. Com isso, eles descartavam o papel do sacerdote, da liturgia e do Estado nas questões religiosas. Outros pontos, no entanto, eram tidos como mais radicais, como não aceitar a questão da ressurreição de Cristo, pois acreditavam que a ressurreição acontecia internamente, no caso dos bons, e não criam na volta de Cristo. Vejamos algumas crenças quacres na década de 1650: 117 (1) A Bíblia não é o verbo de Deus; (2) todo homem, neste mundo, tem dentro de si o espírito de Cristo; (3) o Jesus Cristo que foi crucificado mil e seiscentos anos atrás não satisfez a justiça divina no tocante aos pecados dos homens; (4) a carne e sangue de Cristo se encontram no interior dos santos; (5) não haverá ressurreição dos corpos; (6) a ressurreição já se realiza, internamente, no caso dos bons; (7) o Jesus crucificado não ascendeu acima do céu estrelado; (8) nem se reencarnará, no último dos dias, para julgar todas as nações baixas (HILL, 1987, p. 52). A forma de pensar dos quacres atraiu diversas condenações dos anglicanos e, também, dos puritanos. Quando Fox defendia que as igrejas, mansões e castelos fossem transformados em asilos, gerava ainda mais ataques do clero e da nobreza. Outra questão em que os quacres eram criticados era a forma de tratamento dado a todos, sempre por “tu”, e a recusa de tirar o chapéu, principalmente para autoridades. Tais aspectos eram tidos como desrespeitosos, todavia, eles faziam isso como forma de protesto. Muitos integrantes dos quacres, por seu caráter pacífico, não concordavam em lutar no exército. Outro líder dos quacres que teve notoriedade foi Samuel Fisher (1605-1665). Inicialmente puritano, tornou-se batista e, depois, seguidor do quacrismo, em que passou a pregar que os santos poderiam viver nessa terra em perfeição. Além disso, defendia que Deus salvava quem quisesse aceitá-lo, pois Jesus veio à Terra para salvar todas as pessoas (HILL, 1987). Essa ideia não era defendida pela corrente calvinista, que pregava que a morte de Cristo teria sido apenas para salvar os eleitos. Outra postura criticada do ponto de vista dos quacres, foi a respeito do papel da Bíblia. Boa parte do movimento passou a considerar a Bíblia como um conjunto de mitos e de bons ensinos. Não aceitavam que o clero tivesse a autoridade para interpretar os textos sagrados, pois para eles, pessoas incultas também tinham o Cristo interior: “Os quacres foram acusados de reduzirem ‘todas as coisas a alegorias, ou a um Cristo interior’. [...] muitas vezes os seus ouvintes entendiam que eles afirmavam ter ressuscitado alguém, quando, na verdade, apenas queriam dizer que tinham convertido essa pessoa” (HILL, 1987, p. 149). Um dos nomes relevantes para a divulgação das ideias quacres foi Gerrard Winstanley (1609-1676). Filósofo, político e reformador, escrevia panfletos manifestando os ideais do quacrismo. Defendia que a criação de Deus não comportava a hierarquia social de um grupo dominando o outro. Além disso, no aspecto da Nova Aliança, não haveria também as diferenças de classes, como, por exemplo, entre escravos e senhores. Isso significava que não deveria existir a propriedade privada. Tal questão suscitou muitos ataques à sua pessoa. Segundo Winstanley, a sociedade cristã deveria ter uma base comunal, ou seja, um modelo em que a propriedade privada e os salários seriam 118 abolidos e que, ao continuar mantendo tal sistema social, estaria atrasando a salvação. Como ele defendia o universalismo, ou seja, todos seriam salvos, era necessário que o sistema social fosse alterado. Assim, com o fim da propriedade privada, a salvação seria completada entre os homens (HILL, 1987). Seria difícil imaginar algo mais consequente do que a recusa, por Winstanley, da divindade que justifica a dominação dos proprietários – e que foi criada à imagem destes. Respondeu à acusação de que suas crenças ‘destruirão todo governo, todo o nosso clero e religião’ friamente: ‘É a perfeita verdade’. Em The Law of Freedom, propôs explicações psicológicas para a crença num Deus personificado, em anjos, em lugares determinados que estariam reservados à glória ou aos tormentos. A sua filosofia, que nasceu de uma visão, parece ter culminado em uma espécie de materialismo panteísta, no interior do qual Deus, ou a Razão abstrata, só pode ser conhecido no homem ou na natureza; e o homem é mais importante do que as abstrações (HILL, 1987, p. 148). Na Inglaterra do século XVII, havia uma parte da nobreza que estava em crise, devido à questão da herança. Pela lei, a herança do nobre ficava com o filho mais velho. Com isso, os outros filhos ficavam empobrecidos, apesar de terem o título de nobreza. Winstanley denunciou com veemência essa situação, e comparava os primogênitos a Caim. Muitos dos que faziam parte dos quacres eram nobres que não tinham direito à herança (HILL, 1987). O movimento dos quacres foi perseguido na Inglaterra e muitos fugiram para as Treze Colônias Britânicas, fundando a Colônia da Pensilvânia. O grupo atualmente é conhecido pela criação do Greenpeace (1971). 2.10 OS RANTERS Caro acadêmico, se as ideias dos quacres conseguiram causar alvoroço e oposição entre os ingleses, o grupo dos ranters foram além. Apesar de terem muitos pontos em comum e, por isso, muitas vezes as pessoas se confundiam quanto a um e a outro, os ranters levaram as questões do cristianismo a um patamar ainda mais alegórico. Além disso, eles eram continuamente acusados de relaxados e dados à bebida, ao fumo e frequentadores de tavernas. Num encontro ranter do qual temos um relato (é verdade que hostil), os assistentes, muito heterogêneos em sua composição, se encontraram numa taverna, entoaram canções obscenas sobre melodias de salmos bem conhecidos e comeram fartamente em comum. Um deles partiu um enorme bife, gritando: ‘Essaé a carne de Cristo, tomai dela e comei-a’. Outro derramou um copo de cerveja na lareira, dizendo: ‘Esse é o sangue de Cristo’. Clarkson disse que uma taverna era a casa de Deus; o xerez, continuava, era a essência da divindade. Mesmo um inimigo puritano parece expressar uma espécie de admiração ressentida pela alegria encontrada nas 119 orgias dionisíacas dos ranters: ‘são os mais alegres dentre todos os demônios na improvisação de canções lascivas, em brindes, música, franco deboche e dança’. Uma das acusações formuladas contra o capitão Francis Freeman era que ele cantava canções obscenas (HILL, 1987, p. 202). Segundo Hill (1987), além dessas questões sociais, o ponto de vista dos ranters acerca de Deus era controverso para a cristandade em geral. Eles criam que Deus estaria em tudo que fosse vivo. Acreditavam que não tinham pecados e que todos os mandamentos bíblicos ocorreram devido à maldição. Todavia, como não há mais a maldição, não haveria mais pecado e, como Deus está em tudo e em todos, o que o homem faz é o que Deus quer. Não criam no juízo final, nem na vida após a morte, pois acreditavam que o corpo voltaria a Deus, fazendo parte do próprio Deus. Vejamos o posicionamento dos ranters sobre o que consideravam histórias alegóricas: O inferno e o demônio estão dentro de nós; senão, teríamos de imaginar um inferno em Deus. Não há inferno além desta vida. O diabo não é uma pessoa, a ressurreição é espiritual e interna, não pertence à carne nem ao além. A Bíblia fala-nos em linguagem que podemos compreender: as histórias de Caim e Abel, de Isaac e Ismael, de Jacó e Esaú são alegorias, não verdades literais. Não devemos guiar-nos pela Bíblia, porém pelo espírito de Deus que temos em nós [..] (HILL, 1987, p. 219). Outra crítica feita por eles relacionava-se ao clero. Para os ranters, o clero era desnecessário, já que a população era sustentada pelo Estado. Os quacres tinham alguns pontos de vista semelhantes aos dos ranters, porém, criticavam a maneira libertina que estes viviam, principalmente com relação ao uso de bebidas alcóolicas, fumo e o que era considerado como vida sexual desregrada. Tais aspectos eram tidos como falta de virtude (HILL, 1987). Hill (1987) afirma que é difícil saber o período que demarca o fim desse movimento. Tendo em vista que os ranters não fizeram uma organização formal e muitos deles foram presos e mortos, aos poucos o movimento ficou enfraquecido e chegou ao fim. 120 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • A Reforma Protestante assumiu diversos contornos sociais e políticos, mudando o cenário religioso europeu do século XVI. • Com a difusão das ideias de Lutero, outros personagens entraram em cena ampliando o olhar teológico iniciado pelo reformador, fazendo com que surgissem novos movimentos protestantes, como o Calvinismo. • Os Anabatistas foram um movimento dentro do protestantismo que buscou ampliar as reformas iniciadas por Lutero. Eles tiveram diferentes líderes, e sofreram perseguições tanto dos protestantes, quanto dos católicos. • Armínio passou a tecer críticas as ideias Calvinistas, o que gerou diversos debates, e um sínodo, que reafirmou as principais vertentes calvinistas. • Na Inglaterra, a separação da Igreja romana deu origem a Igreja Anglicana. O rei inglês passou a ser o líder da nova Igreja. • Vários grupos protestantes foram perseguidos na Inglaterra, o que provocou a fuga para as Treze Colônias Britânicas, na América. 121 1 No século XVI, importantes mudanças ocorreram na sociedade europeia, em virtude da Reforma Protestante. O cenário religioso foi modificado, surgindo várias igrejas cristãs com interpretações e a hegemonia católica no Ocidente teve fim. Tendo em vista tais questões, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) O batismo infantil condicionava o indivíduo a determinada religião, devido ao pacto entre Igreja e Estado, e isso levava a uma vida sem o poder de escolha no campo religioso. Por esse motivo, vários grupos protestantes enfatizaram a importância do batismo na idade adulta, como os anabatistas. b) ( ) O grupo anabatista liderado por Grebel foi duramente perseguido em Zurique, mas conseguiu guarida no território alemão, sob a influência de Lutero. c) ( ) Zwingli adotou a Confissão de Augsburgo no território de Zurique, apenas discordando da questão da eucaristia. d) ( ) O pensamento de Zwingli foi influenciado por Erasmo, e as mudanças que ele propôs para Zurique não tiveram a influência de Lutero. 2 O protestantismo se desenvolveu com bastante força na cidade de Genebra, sob o comando de João Calvino. Tendo em vista o que foi estudado este assunto, analise as sentenças a seguir: I- Genebra tornou-se um centro para quem quisesse conhecer a teologia calvinista. Seu modelo de sociedade se espalhou por vários países, inclusive a Inglaterra, influenciando os puritanos. II- Após o falecimento de Armínio, seus alunos continuaram a disseminar suas ideias e acabaram formulando uma síntese do seu pensamento, nas questões discordantes do calvinismo. Eles passaram a se denominar de Remonstrantes. III- Sínodo Nacional de Dordrecht ocorreu para apresentar a doutrina dos remonstrantes. Ela passou a ser largamente aceita pela igreja calvinista e anglicana. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 O pensamento de Lutero rompeu, em muitos sentidos, com a estrutura da teologia católica. Após sua recusa em abdicar dos seus pressupostos, Lutero foi excomungado do catolicismo, porém, recebeu apoio do príncipe, o que o ajudou a não ser processado pela Inquisição. Tendo em vista o cenário da teologia de Lutero, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: AUTOATIVIDADE 122 ( ) Lutero se envolveu em disputas com Erasmo, que não aceitava o rompimento da comunidade cristã, além de ser considerado um pacifista. Por isso, era a favor da tolerância religiosa. ( ) Uma das questões que geraram críticas a postura de Lutero, foi o fato de ele ser favorável aos judeus, criticando a postura católica de perseguição e batismo forçado. ( ) A Confissão de Augsburgo continha os princípios do Luteranismo, que passou a ser uma religião estatal, assim como era o catolicismo. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 A Igreja inglesa, antes mesmo da Reforma iniciada por Lutero, já criticava o domínio de Roma em seu território. Tendo em vista tal questão, explique com suas palavras, os principais fatores que levaram ao rompimento da Inglaterra com a Igreja romana. 5 Tendo em vista o cenário religioso na Inglaterra após a adesão ao anglicanismo e as diversas correntes protestantes que se formaram, explique os principais pontos do Puritanismo na Inglaterra. 123 TÓPICO 3 - AS MUDANÇAS NA RELIGIÃO EUROPEIA APÓS A REFORMA 1 INTRODUÇÃO Caro acadêmico, estudamos no tópico anterior as principais correntes geradas pelo protestantismo. A igreja católica perdeu sua hegemonia na Europa Ocidental, e as disputas religiosas ficaram cada vez mais intensas. Os conflitos entre católicos e protestantes e dentro do protestantismo ocuparam e preocuparam os reis e as sociedades. O catolicismo se manteve firme em locais como Portugal, Espanha, em boa parte da França e nas cidades italianas. Com a intenção de conter o avanço do protestantismo nesses países e em outros territórios que ainda era hegemônica, surgiu a necessidade de convocar mais um concílio. O concílio de Trento serviu, dentre outros fatores, para reafirmar os dogmas católicos,e traçar estratégias sobre como proceder diante do crescimento das igrejas protestantes. As monarquias nacionais definiam qual igreja apoiaria em seu território. Na América, a presença católica foi imperativa nas regiões dominadas por Portugal e pela Espanha. Já na América do Norte, a influência de igrejas protestantes foi forte devido à colonização inglesa. Além dos anglicanos, muitos grupos perseguidos na Inglaterra migraram para as Treze Colônias. É acerca desse cenário que abordaremos, neste tópico, o que foi a Contrarreforma católica, além do movimento surgido na igreja católica, conhecido como Jansenismo; as ideias Iluministas e seu impacto no cristianismo; O surgimento dos movimentos pietistas e a influência do metodismo para as missões protestantes. 2 A CONTRARREFORMA CATÓLICA A historiografia atual, quando trata da temática da contrarreforma, mostra que esse movimento acabou sendo uma série de medidas, não só para combater o avanço do protestantismo, mas que resultou na reforma do catolicismo, como explica Shelley: Alguns historiadores interpretam a Reforma católica como um contra- ataque ao protestantismo; outros a classificam como um verdadeiro avivamento da fé católica, pouco tendo a ver com o protestantismo. A verdade é que o movimento tanto foi uma contrarreforma, como insistem os protestantes, como uma Reforma católica como afirmam os católicos. Suas raízes remontam a tempos anteriores a época de Lutero, mas a forma que tomou foi em grande parte determinada pelo ataque protestante (SHELLEY, 2004, p. 304). UNIDADE 2 124 Devido ao avanço do protestantismo na Europa, além de sua diversidade, como já discutimos no capítulo anterior, a igreja católica iniciou, oficialmente, um movimento organizado contra o que para ela era heresia. Muitos territórios já haviam cortado relações com Roma, o que fez com que o catolicismo perdesse o apoio de governos, bem como as receitas provenientes dos dízimos e dos Estados. Manter o catolicismo como única religião nos países em que as ideias protestantes ainda eram fracas era uma questão de sobrevivência (TILLICH, 1976). A reação católica, então, foi convocar o concílio ecumênico que ficou conhecido como Concílio de Trento. Antes mesmo da convocação do concílio de Trento, alguns cardeais pensaram na possibilidade de um concílio geral, com protestantes, para se tratar de temas como o celibato, a questão da eucaristia, dentre outros. Porém, ele não ocorreu, pois, com o passar do tempo, o abismo na forma de pensar entre as correntes protestantes, principalmente os calvinistas, e o catolicismo ficavam mais evidentes (JOHNSON, 2001). O Concílio de Trento aconteceu entre os anos de 1546 e 1563, na cidade italiana de Trento. Nele, alguns pontos doutrinários questionados por Lutero foram reafirmados e alguns posicionamentos foram revistos. Este concílio moldou a cosmovisão católica a partir de então. Em desacordo com a concepção, defendida por Lutero, segundo a qual a Bíblia consiste em autoridade última, ou seja, sola scriptura, o Concílio reafirmou a igualdade entre a Bíblia e a Tradição da Igreja. Além disso, a tradução de Jerônimo, conhecida como Vulgata, foi considerada a única correta, e, com relação à interpretação das Escrituras, a única aceita seria a da Igreja Católica Romana (TILLICH, 1976). Quanto ao pecado, a principal diferença entre os ideais reformadores e os preceitos instituídos em Trento referia-se à questão do livre arbítrio. Os reformadores afirmavam que o ser humano fora totalmente corrompido após o pecado, inclusive em sua liberdade de escolha. Todavia, o concílio reafirmou que, apesar da corrupção causada pelo pecado, a vontade humana está apenas debilitada (TILLICH, 1976). Sobre a questão dos sacramentos, o protestantismo aceitou apenas dois. No entanto, o catolicismo reafirmou a importância dos sete sacramentos, e sua relevância quanto a salvação. Na questão do batismo, enfatizam a importância do batismo infantil, pois esse sacramento é que limparia a mácula do pecado original (TILLICH, 1976). Com relação à eucaristia, foi reafirmada a transubstanciação. O papel da missa foi reafirmado, assim como a doutrina do purgatório. O Index foi instituído e consistia em uma lista de livros proibidos. Ocorreria a queima dos livros não autorizados pela Igreja romana. Inclusive, a Bíblia traduzida por Lutero, bem como a versão de Erasmo e as demais versões ampliadas por reformadores, todas essas estavam nessa lista. Quanto às questões de moralidade, o papa Pio V: “[...] em 1565, gerou o novo clima puritano, que envolveu a expulsão das prostitutas 125 de Roma, a imposição de trajes clericais estritos e punições de extremo rigor para a simonia” (JOHNSON, 2001, p. 360). O concílio de Trento procurou, dentre outras coisas, trazer uma moralidade para a igreja católica, punindo os membros do clero que estivessem envolvidos em denúncias de solicitação, sodomia, ou com relacionamentos com mulheres. Tais aspectos, antes de Trento, costumavam ser tolerados, o que foi incisivamente atacado por Lutero. Uma das mais importantes medidas da contrarreforma foi a criação da nova ordem religiosa, regida por Inácio de Loyola (1491-1556), a Companhia de Jesus. Os jesuítas, como ficaram conhecidos, se identificavam como soldados de Cristo na luta contra o protestantismo. Loyola se opôs à ideia de Lutero com relação à salvação pela fé. O jesuíta enfatizava que a salvação seria alcançada pela obediência aos mandamentos da Igreja católica, a qual ele considerava a verdadeira Igreja (JOHNSON, 2001). Inclusive, ao adotar os três votos comuns do catolicismo que envolvem a obediência, castidade e pobreza, eles incluíram o quarto voto, que era o de apoio e lealdade ao papado (SHELLEY, 2004). A intensão original dos jesuítas fora trabalhar entre os pobres e doentes. Com efeito, o êxito de sua missão educacional lançou sua sorte em meio aos ricos e poderosos: tornaram-se especialistas na educação da classe alta. Foi em grande parte por acaso, pois, que a Contrarreforma muniu-se de um instrumento poderoso (JOHNSON, 2001, p. 363, 364). Lembremos, caro acadêmico, que os jesuítas se fizeram presentes no Brasil Colonial, atuando na educação dos filhos dos colonos e nas missões e reduções indígenas. Eles foram os responsáveis pela implantação de escolas em todo o Brasil Colonial. Isso ocorreu tanto para auxiliar no processo de colonização portuguesa, quanto para afastar os protestantes da América portuguesa e espanhola, fazendo com que o catolicismo imperasse. A questão educacional foi um fator relevante para a contrarreforma, principalmente a política da igreja na melhoria da formação dos seus clérigos. Tendo em vista que a Reforma atuou enfaticamente na formação dos seus sacerdotes, a igreja católica passou a ser mais rígida, também, na formação clerical. A causa jesuítica era a defesa do catolicismo a todo custo, como nos lembra Johnson (2001, p. 367) “Os jesuítas não somente defendiam a guerra como instrumento legítimo contra a heresia como eram favoráveis ao assassinato seletivo dos protestantes – sobretudo se ocupassem posições importantes”. Eles ainda viam como favorável o assassinato daqueles líderes que se afastassem do catolicismo e abraçassem a fé reformada: [...] em 1599, escreveu Juan Mariani, aconselhando Felipe III a respeito da questão da monarquia, escreveu sobre os soberanos protestantes: ‘é algo glorioso exterminar toda essa raça pestilenta e perniciosa da comunidade dos homens’. Também os membros são cortados fora quando corruptos, a fim de não infectarem o restante do corpo; da mesma maneira, essa crueldade bestial sob forma humana tem que ser apartada do Estado e cortadacom a espada (JOHNSON, 2001, p. 367). 126 Para o catolicismo romano, a reforma protestante desestabilizou o avanço religioso na Europa, quebrando a sua hegemonia. Durante muitos anos, toda vertente protestante foi considerada heresia pelo catolicismo romano, e a luta contra ele foi travada de diferentes formas, a depender do país e da época. Outro braço forte da igreja no processo da contrarreforma foi o reinado espanhol, principalmente por meio do tribunal inquisitorial, como já estudamos. A força da Inquisição na Península Ibérica foi responsável pela tentativa do extermínio do judaísmo e do islamismo naquele território, como também se opôs ferozmente contra qualquer tentativa da propagação das ideias protestantes. 3 O JANSENISMO O jansenismo foi um movimento dentro da Igreja católica, iniciado por Cornélio Jansen (1585-1638), que retomou as leituras de Agostinho de Hipona, principalmente na questão da predestinação. Segundo Shelley (2004), ele se ocupou em criticar os jesuítas e tentou corrigir o que, segundo ele, seriam os erros da igreja católica. Com relação aos jesuítas, sua crítica baseava-se no posicionamento diante da questão do rigor moral, pois acusava-os de serem tolerantes ao erro: “eram tão permissivos em relação à pecaminosa natureza humana, que muitas pessoas honestas chegaram a protestar em relação ao que lhes parecia uma ‘graça barata’, isto é, perdão sem contrição” (SHELLEY, 2004, p. 358). Jansen, ao contrário, defendia um rigor na moralidade, principalmente para o clero. Tal posicionamento teve por base as ideias agostinianas (SHELLEY, 2004). Segundo Jansen, o catolicismo deveria rever sua postura quanto à questão da salvação a partir do catolicismo do Norte da África, que afirmava que as obras dos seres humanos não acarretam mudanças na salvação, pois todas as escolhas humanas estão corrompidas pelo pecado. Sendo assim, os salvos já foram escolhidos anteriormente. Todavia, apesar da questão da predestinação em Agostinho não ter sido, até então, combatida oficialmente pelo catolicismo, a ideia das obras, principalmente com o Concílio de Trento e com o apoio enfático dos jesuítas, foi mais ressaltada pela Igreja. Não só a questão das obras, mas a obediência aos ritos romanos (SHELLEY, 2004). Jansen faleceu antes de concluir seu tratado sobre o assunto, intitulado de Augustinus. Porém, esse escrito acabou servindo como base do movimento (SHELLEY, 2004). Seu sucessor foi Jean DuVergier (1581-1643), que fez com que a França passasse a conhecer as ideias de Jansen. Os jesuítas passaram a atacar o movimento, alegando que tais posturas eram “[...] calvinismo com aparência católica. Em 1653, o papa condenou cinco proposições pretensamente tiradas de Augustinus” (SHELLEY, 2004, p. 360). As ideias jansenistas espalharam-se, chegando a membros da elite intelectual, como médicos, e até mesmo ao cientista Blaise Pasqual (1623-1662). 127 4 O ILUMINISMO E A QUESTÃO RELIGIOSA O Iluminismo foi um processo de mudanças na forma de pensar que iniciou no século XVIII, originalmente na França, influenciando, posteriormente, outros países, como os da América. Há quem diga que as ideias Iluministas tenham se iniciado com o Renascimento científico e cultural, todavia, foi no século XVIII que o movimento das Luzes tomou forma como um modelo de pensamento para a sociedade, a economia e a política, e veio a moldar o Ocidente (FALCON, 1986). Caro acadêmico, é importante lembrar como funcionava a política na Europa desde o final do Feudalismo. A política era exercida pelo rei, no regime do absolutismo monárquico. No campo econômico, o Mercantilismo preconizava a importância de as nações serem ricas, por meio do acúmulo de metais preciosos e de uma balança comercial favorável, ou seja, mais exportação do que importação. O Estado era responsável pelo controle econômico, mantendo privilégios da nobreza, que, em contrapartida, apoiava o sistema para não perder suas regalias. Nas camadas sociais mais baixas, havia os camponeses, e os burgueses, que eram comerciantes. A burguesia, com o passar do tempo, foi exigindo maior espaço na sociedade, em virtude do crescimento do comércio e do maior nível educacional que eles iam adquirindo. A associação entre burguesia e indústria só ocorreu posteriormente, após a Revolução Industrial, aspecto que trataremos no próximo tópico. Como principais representantes das ideias Ilustradas (outro termo usado para Iluminismo), temos: François-Marie Arouet, o Voltaire (1694-1778); Denis Diderot (1713- 1784); Jean le Rond d’Alembert (1717-1783); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Charles- Louis de Secondat, conhecido como Montesquieu (1689-1755). A visão deles de sociedade não era unânime, mas havia alguns pontos em comum, como a questão do acesso à educação para todas as pessoas. Esse pressuposto seria fundamental para a formação de uma sociedade mais consciente e moldada pela razão e não por deias religiosas, as quais eles se referiam, muitas vezes, como superstições. Além disso, os iluministas defendiam, também, que o poder não deveria ser exercido somente pelo rei, como ocorria no sistema absolutista, ao qual eles chamavam de “Antigo Regime”, e sim por uma divisão do poder, como sugeriu Montesquieu, em executivo, legislativo e judiciário. Com relação à religião, os iluministas criticavam, principalmente, a não possibilidade de escolha individual de pensamento e de crença, sendo que, tanto nos países católicos quanto nos protestantes, o Estado e a Religião andavam juntos. Outras concepções quanto à relação entre natureza, Deus e ciências foram sendo construídas e, muitas vezes, rechaçadas pelas correntes religiosas da época. Vejamos a explicação de Falcon: A visão tradicional, de natureza finalista ou teleológica por definição, era típica de um universo mental marcado pela Revelação. Pouco a pouco essa visão perdeu terreno diante do avanço da visão imanentista, naturalista e antropocêntrica. Ao longo desse embate produziu-se uma nova concepção de mundo e do homem, essencialmente terrena e humana, pautada pelos pressupostos da imanência, da racionalidade e da relação homem-natureza como realidade essencial (FALCON, 1986, p. 33, grifos do original). 128 Contudo, é importante entendermos que essa forma de pensar, apesar de ter ganhado espaço na sociedade, não foi acolhida por todos os grupos religiosos. Como já vimos em outros momentos, as novas ideias que surgem ganham espaço em uma certa área da sociedade, mas, muitas vezes, são rechaçadas por outras. Os iluministas defendiam “a liberdade de pensamento e, referindo-se às interpretações da Bíblia e à multiplicidade de opiniões em matéria de religião, afirmava que a razão deve ser o único critério válido, de acordo com a própria vontade divina” (FALCON, 1986, p. 33). A questão do cristianismo como uma religião que foi revelada por Deus e, portanto, a única que deveria ter espaço nas sociedades, foi perdendo força, dando espaço ao deísmo, que preconizava a importância da racionalidade nas questões religiosas (FALCON, 1986). Devido a essas questões, as críticas dos filósofos iluministas ao clero foram intensas. Um dos principais personagens anticlericais foi Voltaire, o que, segundo Falcon (1986), deu origem à questão da secularização, ou seja, a necessidade da separação da religião dos demais aspectos da vida como a ciência e a política. Falcon (1986) também enfatiza que o anticlericalismo foi muito marcante na França, mas não em outras partes da Europa, e que os iluministas, em regra, não se apartaram do cristianismo, mas sim propuseram novas (re)leituras. Sobre esse assunto, Johnson expõe a situação da França: [...] o jansenismo degenerou para um mero partido político, perdeu seu fervor espiritual e acabou voltandoà tona, como uma religião de advogados, em 1789. Assim, o catolicismo permaneceu sem Reforma, e a terceira força – o Iluminismo – emergiu como variedades do deísmo ou ateísmo, atuando fora do cristianismo, ou mesmo contra ele. [...] O Iluminismo francês foi o primeiro movimento intelectual europeu, desde o século IV, a se desenvolver fora dos parâmetros da crença cristã (JOHNSON, 2001, p. 424). Johnson (2001) trouxe um aspecto importante sobre a filosofia Iluminista, o fato de seu desenvolvimento ter sido fora da igreja ou teologia. Contudo, as ideias iluministas também foram responsáveis por mudanças no cristianismo. Além disso, elas influenciaram monarcas, em um movimento conhecido como “despotismo esclarecido”. Como mencionamos anteriormente, o filosofo ilustrado Voltaire foi um dos mais críticos à atuação da Igreja, e um dos mais profícuos escritores de seu tempo. Segundo Johnson (2001, p. 425), ele, por diversas vezes, se declarou um deísta e argumentou que cria “no deus da natureza, o grande geômetra, o arquiteto do universo, a força motriz, inalterável, transcendental, eterna”. Com relação à institucionalidade do cristianismo, tentou mostrar, assim como outros estudiosos de sua época, que boa parte das desgraças na história ocorreu devido à truculência do cristianismo. As atitudes do cristianismo teriam sido responsáveis por destruir sociedades. 129 Voltaire escreveu a Frederico, o Grande: ‘Vossa majestade prestará a raça humana um serviço eterno se extirpar essa superstição infame, e não digo entre o populacho, que não é digno de ser iluminado e está pronto para qualquer jugo; digo entre os bem-nascidos, entre os que desejam pensar’ [...] ‘não basta saber mais que os teólogos; temos de mostrar-lhes que somos melhores e que a filosofia torna os homens mais honoráveis que qualquer graça suficiente ou eficaz’ (JOHNSON, 2001, p. 424). Com a disseminação das ideias iluministas, algumas mudanças começaram a ocorrer a partir dos governos onde, em muitos casos, diminuíram o poder da religião nos assuntos estatais, e os tribunais inquisitoriais começaram a ter fim. No império austríaco, o imperador José II determinou a tolerância religiosa. Além disso, tirou das mãos da religião a incumbência sobre a educação, tornando-a secularizada e fechou casas religiosas que não tinham uma função social (JOHNSON, 2001). Em Portugal, a ordem dos jesuítas foi expulsa, assim como em diversos territórios católicos como na Espanha e França. Todavia, tais mudanças ainda foram pequenas, tendo em vista o papel que o cristianismo ainda exercia na Europa nesse período. 5 AS MISSÕES DA ÁSIA O cristianismo na região da Ásia passou por dificuldades desde o seu início, no século XVI. Ele esbarrou em culturas com um sistema religioso consolidado e governos que, no geral, não estavam dispostos a se abrir para uma religião tão diferente. De acordo com Shelley (2004), um dos pioneiros nessa empreitada foi Francisco Xavier (1506-1552), que fazia parte da Companhia de Jesus e foi para Goa, na região das Índias, que estava sob o domínio de Portugal. Após alguns meses, se dirigiu para o Sul da Índia e passou a exercer uma grande influência entre uma comunidade de pescadores, que solicitaram ao missionário que o reino português os protegesse dos inúmeros roubos que ocorriam na região. Todavia, o rei português só aceitou o pedido quando eles se comprometeram em aceitar o batismo católico. Xavier foi o missionário que implantou o cristianismo ali, inicialmente, quando as vilas de pescadores passaram a viver sob a religião cristã, cercados pelos hinduístas. Posteriormente, outros jesuítas chegaram e conseguiram transformar os hábitos dos moradores de acordo com o catolicismo. Xavier, ao sair de Goa, foi participar de missões na Malásia, onde, após dois anos, retornou para Goa e partiu para o Japão. Nessa época, os senhores feudais japoneses estavam abertos ao comércio com os estrangeiros, o que favoreceu a ida dos missionários cristãos para aquela região (SHELLEY, 2004). Com a convivência com os japoneses, observando seus hábitos culturais, Xavier mudou a forma de evangelizar. Até então, o cristianismo, ao se estabelecer em uma região, não levava somente a religião, mas também impunha as questões 130 culturais, moldando a sociedade de acordo com a cultura dos missionários, pois, o que a cultura pagã produzia não poderia ser considerado bom. No Japão, Xavier mudou de perspectiva, pois considerou que o cristianismo poderia ser aceito sem, contudo, modificar os seus costumes. Vários jesuítas se deslocaram para colaborar com Xavier nas missões no Japão. A sociedade de Jesus dominou a missão cristã no Japão até o final do século XVI. Seu trabalho obteve sucesso notável. Em 1557, um jesuíta otimista escreveu: ‘Dentro de dez anos todo o Japão será cristão se tivermos missionários suficientes’. Dois anos depois, os jesuítas estabeleceram uma nova cidade como lar para cristãos convertidos. Chamaram-na Nagasaki. Antes do final do século, os missionários haviam convertido 300 mil pessoas, fundado centenas de igrejas e duas faculdades cristãs (SHELLEY, 2004, p. 321). Os jesuítas pregavam o cristianismo, mas procuravam respeitar os costumes dos japoneses até onde foi possível, conseguindo, inclusive, que os próprios japoneses convertidos guiassem igrejas. Porém, a tolerância ao cristianismo nessa região ficou ameaçada, com a suspeita de que eles seriam invasores (SHELLEY, 2004). Muitos missionários foram mortos “[...] pela espada, outros pela fogueira e outros ainda apelo caldeirão fervente. O trabalho cristão que antes florescia no Japão se desintegrara. Restara muito pouco nas colinas próximas a Nagasaki” (SHELLEY, 2004, p. 321). Com relação aos trabalhos dos cristãos na China, o missionário Xavier, quando saiu do Japão, tentou obter autorização para a implantação do cristianismo lá, mas faleceu antes de ir. A empreitada ficou a cargo de Mateus Ricci (1552-1610), que conseguiu ir até Macau, ilha próxima à China, todavia, o acesso a China era difícil para povos com culturas diferentes, principalmente pela influência do Confucionismo (SHELLEY, 2004). Em Macau, Ricci se ocupou em aprender o mandarim e a cultura chinesa. Ele conseguiu entrar na China e foi bem recebido, pois já conhecia a língua, e por ser um homem bem instruído. Ricci ensinou sobre o calendário cristão e mostrou os mapas que estavam sendo feitos na Europa, o que entusiasmou os chineses em um primeiro momento. Posteriormente, conseguiu acesso à Pequim, e foi aceito como astrônomo e matemático. Após sua morte, a comunidade cristã na China já contava com cerca de dois mil membros. Seu sucessor, Adam Schall, elevou ainda mais o trabalho intelectual. Conquistou a admiração dos intelectuais chineses ao predizer acuradamente a época de um eclipse da lua, tornando-se diretor do serviço astrônomo Imperial. Em 1650, Schall construiu uma igreja em Pequim e obteve liberdade religiosa para o cristianismo em todo o império (1657) (SHELLEY, 2004, p. 323). Perceba, caro acadêmico, que, tanto no Japão quanto na China, os jesuítas, além de ficarem impressionados com as culturas, tiveram que ser criativos ao levar o cristianismo, para que os governantes permitissem que continuassem lá. No caso da China, a ligação com a ciência fez com que o missionário, além de ser aceito, estivesse com cargo importante no Império. Quanto ao evangelismo na China, os jesuítas usaram a 131 mesma metodologia do Japão, que foi a adaptação cultural. Porém, outros missionários cristãos passaram a criticar a postura jesuítica de aceitação e adaptação, chegando ao ponto de fazer denúncias ao papa. Segundo Shelley (2004), o papado ora concordavacom a metodologia jesuítica, ora criticava. A situação foi se agravando e, cerca de um século depois, a missão nesse território declinou. 6 O PIETISMO Após a consolidação da Reforma Protestante e das inúmeras divisões, na qual surgiram várias igrejas, a religiosidade continuou estando unida ao Estado. Para muitos, fazer parte de uma igreja era apenas uma formalidade social. No decorrer do desenvolvimento do cristianismo, muitos movimentos surgiram com a proposta de ser uma “renovação espiritual”, dentro de uma igreja que, para a maioria, era somente formalidade. Tais grupos fizeram parte tanto do catolicismo quanto do protestantismo. O movimento pietista surgiu na Alemanha, dentro do luteranismo, e, segundo Shelley (2004, p. 363), tratou-se de “[...] uma reação a essa calcificação da Reforma”. Caro acadêmico, atualmente, não é difícil encontrarmos, no protestantismo, a ideia de uma conversão pessoal. Essa ideia foi posta pela primeira vez pelo movimento pietista, que enfatizava a fé pessoal, assim como, a experiência, tanto dos já batizados, quanto dos demais. Outra característica do pietismo foi a ênfase no papel do leigo, e não na igreja estatal. A fé dos fiéis contagiaria os outros fiéis, e eles mesmo divulgariam o Evangelho. Esse tipo de manifestação, que, hoje em dia, é tão comum ao protestantismo, foi uma novidade iniciada na igreja alemã, e seus principais adeptos foram Philip Jacob Spener (1635-1705), August Hermann Francke (1663-1727) e Nikolaus von Zinzendorf (1700-1760) (SHELLEY, 2004). Spener deu início a reuniões em sua casa para estudar a Bíblia, sendo logo taxadas de reuniões de pios, o que deu origem ao termo pietismo. O caráter de reuniões em casas foi defendido por Spener, como algo que ajudaria na vida cristã e, formaria fiéis mais fervorosos espiritualmente. Ele foi a Berlim e conseguiu levar à universidade, para lecionar, Francke, que se tornou o próximo líder pietista. Os dois foram atacados pela ortodoxia luterana das universidades de Leipzig, Wittenberg: “Deutschmann, um dos teólogos de Wittenberg, os acusou de duzentos e oitenta e três ensinos heréticos [...] Como resultado, os pietistas foram forçados a fundar a Universidade de Halle (1694)” (GONZALEZ, 2004, p. 305). Sobre sua atuação, vejamos a explanação de Shelley: Em Halle, Francke iniciou a formação de ministros espirituais e sociais. A universidade tornou-se o centro de formação de grande número de ministros pietistas. A compaixão de Francke pelos negligenciados o levou a abrir uma escola para os pobres. Abriu também um orfanato e comprou uma taverna e as terras que lhe eram próximas para construir um hospital. Sua atividade incansável incluiu uma escola de latim para jovens talentosos, uma casa para viúvas, uma casa para mulheres solteiras, um dispensário médico, um depósito de livros, uma gráfica e uma casa da Bíblia (SHELLEY 2004, p. 365). 132 A influência de Francke foi importante para a formação de cristãos mais envolvidos com o cotidiano da igreja, inclusive no movimento posterior das missões protestantes. Foi o pietismo a ala protestante que se preocupou em atuar na sociedade por meio de uma ética social, por meio da criação de orfanatos, empresas missionárias, entre outros. Além disso, no campo da liturgia, eles retomaram a questão da confirmação da fé, com o propósito de confirmação do batismo (TILLICH, 1976). Outro personagem fundamental dentro do pietismo foi Zinzendorf. Ele, que havia iniciado os estudos na área do direito e conheceu membros da Fraternidade Boêmia, grupo que era herdeiro do movimento hussita. Eles eram liderados por um carpinteiro da região da Morávia, por isso, foram chamados de moravianos. De acordo com Shelley (2004), eles pretendiam viver em uma comunidade de cristãos verdadeiros, separadamente, longe das tentações. Foi em 1727 que Zinzendorf se tornou líder dos moravianos, também chamados de “Fraternidade Unida”. Sob sua liderança, eles passaram a ser uma força no campo da evangelização protestante. Ao conhecer um homem negro escravizado quando realizava uma visita à cidade de Copenhague, Zinzendorf se sensibilizou com a vida que os escravizados levavam e resolveu formar missionários para atuarem junto a essas pessoas, em diversos países. Sobre o diferencial do movimento petista, Shelley explica que: A intensidade com que os pietistas descreviam a regeneração frequentemente fazia do cristianismo um drama da alma humana. O coração do homem era cenário de uma batalha desesperada entre os poderes do bem e do mal. Nesse sentido, o pietismo foi a fonte de todos reavivamentos modernos. Ele colocou a experiência da nova vida em Cristo no centro da mensagem e do ministério cristãos. Por essa razão, é impossível pensar na cristandade evangélica sem a influência do pietismo (SHELLEY 2004, p. 365). As ideias pregadas pelos pietistas, como a ênfase na conversão e na experiência individual, acabaram sendo uma marca de vários outros movimentos posteriores. Cabe ressaltar que os pietistas não confrontaram a igreja oficial nem o Estado. Sua ênfase foi na mudança de vida individual, a partir da experiência. 7 O METODISMO Caro acadêmico, o pensamento Iluminista, como estudamos, penetrou em diversos setores da religiosidade anglicana, em que muitos aderiram ao pensamento deísta. De acordo com Shelley (2004, p. 330), na Inglaterra “entre os cultos e os ricos, o Iluminismo banira a fé do centro de sua vida para a periferia”. Assim como os pietistas que iniciaram um movimento para “reavivar” a “dura” ortodoxia luterana nas terras alemãs, na Inglaterra, ideias similares tomaram forma, no que veio a ser conhecido como Metodismo. John Wesley (1793-1791), em seus estudos na universidade de Oxford, teve contato com teólogos como Taylor (1711 – 1785) e Tomás de Kempis (1380 – 1471) , que o inspiraram a buscar uma vida compromissada com Deus. Posteriormente, Wesley fez 133 parte da Faculdade Lincoln e depois tornou-se ministro anglicano. Ao retornar para Oxford, juntou-se ao seu irmão que havia convocado cristãos na universidade, que estavam se reunindo para estudarem a Bíblia, orar, visitar prisões e fazer doação aos pobres. Wesley passou a liderar o grupo que foi apelidado, dentre outros nomes, de metodista. Wesley recebeu o convite para ir a Geórgia, nas Treze Colônias, para ser capelão. Ele viu uma oportunidade para pregar aos indígenas da América. Ao iniciar suas tentativas evangelísticas na América, passou por um choque cultural intenso, não tendo êxito entre os nativos. Já a comunidade branca estabelecida na Geórgia, não via com apreço as posturas radicais de Wesley, como a “proibição de que as mulheres usassem roupas elegantes e joias de ouro na igreja” (SHELLEY, 2004, p. 375). Após alguns meses, ele retornou a Europa. Em Londres, Wesley foi desafiado por um moraviano a buscar o “novo nascimento”. Ele começou a frequentar reuniões em casas, onde, em maio de 1738, ocorreu uma mudança radical em sua vida, que o influenciou daí por diante: Escreveu ele: ‘De noite’, fui, completamente sem vontade, a uma sociedade na rua Aldergaste, onde alguém lia o prefácio de Lutero para a epístola aos romanos. Por volta das 20h45, enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração através da fé em Jesus, senti meu coração estranhamente aquecido. Senti que realmente acreditava em Cristo, apenas nele, para a salvação; e me foi dada uma certeza de que ele levou meus pecados, e me salvou da lei do pecado e da morte’ (SHELLEY 2004, p. 374). O relato de Wesley é importante para compreendermos o fervor religioso que entrou em vigor na Inglaterra. Ele visitou a terra dos moravianos, na qual não permaneceu por muito tempo, mas foi bastante influenciado pelos pequenos grupos nos lares. Outra importante influênciapara ele foi ler os relatos das pregações ao ar livre feitas por Jonathan Edwards (1703-1758). Nessa época, o culto era prestado somente no espaço do templo. Quem quisesse ouvir as pregações, teria que se dirigir a igreja. Edwards estava iniciando um novo formato de pregação, ao ar livre. Inicialmente relutante com esse modelo, Wesley passou a adotá-lo: “Pregou para mais de três mil pessoas a céu aberto. E a reação desses cidadãos comuns foi surpreendente. Conversões, tão verdadeiras quanto aquelas de Nova Inglaterra, passaram a acontecer em toda parte. O despertar metodista havia começado” (SHELLEY, 2004, p. 376). Wesley passou, então, a pregar em diversos lugares, indiscriminadamente, pois, segundo ele, “o mundo era a sua paróquia” (SHELLEY, 2004, p. 376), algo nada convencional para as igrejas protestantes até então. É importante ressaltar que Wesley não era contra a igreja anglicana. O movimento que ele liderou, aos poucos, foi se distanciando do anglicanismo, porém, não era isso que ele almejava. Inclusive, ele se recusou a sair da igreja inglesa, permanecendo nela até sua morte (SHELLEY, 2004). Ele também se opunha à questão da predestinação, aceitando a concepção de que o sacrifício de Cristo foi para todas as pessoas, entretanto, o ser humano pode aceitá-lo ou não. Segundo Mendonça (1995, p. 46), ele “alargou ainda mais 134 a brecha entre o arminianismo e calvinismo com a sua doutrina da perfeição cristã, que é a sua mais importante contribuição para a teologia protestante”. Ele defendia que a santificação era um processo que ocorria devido à fé, e que a experiência pessoal era mais relevante que frequentar a igreja por uma questão meramente social (MENDONÇA, 1995). O trabalho de Wesley cresceu e ele passou a colocar leigos para pregar e até mesmo liderar. Para cuidar desses líderes, ele criou conferências regulares para instruí- los. O metodismo ganhou força na América do Norte, onde decidiram romper com o anglicanismo, mesmo contra sua vontade. Os metodistas eram anglicanos, e sua igreja era a igreja da Inglaterra. Com a final separação dos dois corpos, entretanto, o Metodismo se tornou uma organização que assemelhou intimamente a outras tradições da igreja livre e, ao mesmo tempo, herdou na teologia de seu fundador perspectivas da igreja que eram muito diferentes da sua prática efetiva. Diferentes tentativas para resolver esta ambiguidade se explicam em parte por causa da diferença entre o Metodismo inglês e americano (GONZALEZ, 2004, 319). Na Inglaterra, o rompimento com a igreja oficial só aconteceu após a morte de Wesley. Na época de seu falecimento, o metodismo já contava com mais de 70 mil fiéis na Europa e cerca de 40 mil nas colônias inglesas (SHELLEY, 2004). 8 O GRANDE AVIVAMENTO NA AMÉRICA DO NORTE Na mesma época do movimento pietista e do metodismo, a América do Norte vivenciou uma série de mudanças na religião que ficaram conhecidas como o Grande Avivamento. O protestantismo nas Treze Colônias Britânicas, atual Estados Unidos, ocorreu durante o processo da colonização inglesa. Como a principal característica dessa colônia, diferente da portuguesa, foi de povoar, os colonos trouxeram sua religiosidade para reger a vida em comunidade. Diferentes grupos protestantes se estabeleceram nessa região, principalmente por fugirem de perseguições religiosas na Inglaterra, como já estudamos no conteúdo sobre a Igreja anglicana. Na América, longe dos reis, os diferentes grupos perceberam a importância de adotarem um sistema religioso diferente do que ocorria na Europa, onde o governante definia qual seria a religião do povo. Foi estabelecido, então, que o Estado não interferiria na religião, não cobrando de seus súditos a adesão a uma igreja. Todavia, era importante que a vertente seguida fosse protestante. Esse sistema ficou conhecido por denominações, imperando, de certa forma, a ideia de fraternidade entre os diferentes grupos protestantes, e não mais as guerras que ocorriam na Europa. Isso não quer dizer que não houvesse divergências e disputas, mas essas não 135 chegavam a embates maiores. Esse modelo cedeu espaço ao voluntariado, ou seja, o cidadão poderia aderir à denominação que preferisse, e a manutenção da igreja não ficava a cargo do Estado, mas sim das contribuições voluntárias dos fiéis. Com relação ao catolicismo, ele não era bem aceito, e se deu por via migratória, em grande escala, somente a partir do século XVIII (MENDONÇA, 1995). Na primeira fase da colonização, os principais grupos religiosos que se estabeleceram foram os calvinistas, principalmente representados pelos puritanos, e os luteranos. Quanto ao anglicanismo, este era visto como representante da igreja inglesa nas terras americanas. O livro de Oração Comum foi usado amplamente, por diversas igrejas nas colônias britânicas: Nesses primórdios, tanto anglicanos como congregacionais e presbiterianos são calvinistas em teologia e usam a mesma liturgia (Livro de Oração Comum), embora eclesiasticamente os anglicanos sejam episcopais e os congregacionais e presbiterianos venham a assumir formas democráticas diretas ou representativas indiferentemente, conforme as circunstâncias (MENDONÇA, 1995, p. 50). As Treze Colônias passaram a ser um local profícuo para o protestantismo, devido a liberdade que assumiram desde o início da colonização. Além dos calvinistas, anglicanos e luteranos, acharam guarida nessas terras os quacres, batistas, presbiterianos, congregacionais e anabatistas. Entre os anos de 1720 e 1740, o Grande Despertar iniciou nas Treze Colônias, com as pregações do calvinista Theodorus Jacobus Frelinghuysen (1691-1747), que “despertou emoções de seus paroquianos, fazendeiros do vale do Raritan, com seus apelos apaixonados e se deleitou com a grande adesão de novos membros” (SHELLEY, 2004, p. 385, 386). O avivamento se espalhou por diversas igrejas. Porém, na mesma medida em que se espalhava, havia também aqueles que criticavam e não aceitavam a nova forma de manifestação do protestantismo. Os grupos chegaram a se dividirem em O Novo Partido, no qual se encontravam os adeptos do Avivamento, e o Velho Partido, com os que o rejeitavam (SHELLEY, 2004). As igrejas que aderiram ao avivamento começaram a enviar missionários para as diversas regiões da colônia, onde o número de adeptos se multiplicava rapidamente. Um nome muito importante foi o de George Whitefield (1714-1770), que era muito amigo de John Wesley e passou a pregar nas colônias, conseguindo levar o avivamento para boa parte das cidades. Sua forma de pregar atraía multidões. Segundo Shelley (2004, p. 386), ele é considerado o “pai do evangelismo de massa moderno”. Com suas viagens, ele conseguiu unir os movimentos de Norte a Sul das colônias. Outro importante pregador foi Jonathan Edwards (1703-1758), escritor e teólogo, atuou em uma igreja em Northampton, Massachusetts. Ele se destacou na pregação em diversas cidades, sempre com sermões com fortes doses de emoção (SHELLEY, 2004). 136 Na região da Nova Inglaterra, Isaac Backus (1724-1806) foi um relevante evangelizador. Ele também foi importante para que a liberdade religiosa fosse realmente verdadeira nas colônias. Ele escreveu tratados, dezenas de petições, obteve evidências concreta de perseguições, compareceu à corte como testemunha, trabalhou em comitês para a formulação de políticas, e manteve uma constante guerra de palavras em jornais, disputas públicas e cartas privadas. A prisão de sua mãe, irmão e tio, em Connecticut, e suas próprias convicções pietistas produziram nele uma oposição apaixonada ao sistema estabelecido (SHELLEY, 2004, p. 389). Perceba, caro acadêmico, que, mesmo com a liberdade das denominações nas colônias inglesas, às vezes, ocorriamperseguições. Não na mesma proporção que aconteciam na Europa, mas foi preciso que pessoas se levantassem e lutassem para que o ideal de liberdade fosse realmente praticado. Devemos lembrar que as mudanças sociais não ocorrem rapidamente. Já que os colonos vinham para a “nova” terra, trazendo uma herança de conflitos que eram resolvidos com guerras, se desvencilhar dessa forma de lidar com a religião não era tão simples. Backus defendia que a religião deveria ser aceita por meio do desejo individual de obediência a Deus, e não por obrigação social ou coerção estatal. Além disso, ressaltava a ideia de que estado e religião deveriam estar separados, pois são governos com funções diferentes. A América seria, então, uma nação cristã, pois seus moradores seriam persuadidos a obedecer aos princípios de Deus, de forma voluntária. E isso ocorreu em grande escala na época do grande avivamento (SHELLEY, 2004). Caro acadêmico, encerramos por aqui mais uma etapa do nosso estudo. Neste tópico, pudemos acompanhar as mudanças engendradas desde o final do século XV no cristianismo. Na área da “leitura complementar”, você encontrará alguns documentos históricos importantes dos momentos que estudamos neste tópico. Observe, no Quadro 1, um cronograma de alguns dos principais movimentos após a Reforma. 137 QUADRO 1 – PRINCIPAIS MOVIMENTOS PROTESTANTES DOS SÉCULOS XVI – XVII FONTE: O autor 1517 Lutero afixa as 95 Teses em Wittemberg. 1520 Década do surgimento dos primeiros grupos anabatistas. 1523 Zwingli publica seus 67 artigos. 1534 Henrique VIII decreta o Ato de Supremacia e cria a Igreja Anglicana. 1536 Calvino escreve as Institutas da Religião Cristã. 1545 Início do Concílio de Trento. 1567 Os puritanos propões mudanças na igreja Anglicana. 1608 Armínio vai ao encontro das correntes do supralapsarianismo e do infralapsarianismo. 1618 Início do Sínodo de Dort. 1643 1ª Confissão de Fé de Westminster. 1652 Georg Fox inicia o movimento Quaker. 1730 Grande Despertar na América do Norte. 1739 Início do Metodismo. Na próxima unidade, abordaremos as mudanças históricas do cristianismo a partir da Revolução Francesa, até os dias atuais. ESTUDOS FUTUROS 138 AS NOVENTA E CINCO TESES DE LUTERO, 1517 (ALGUNS ARTIGOS) Com um desejo ardente de trazer a verdade à luz, as seguintes teses serão defendidas em Wittenberg sob a presidência do Rev. Frei Martinho Lutero, Mestre de Artes, Mestre de Sagrada Teologia e Professor oficial da mesma. Ele, portanto, pede que todos os que não puderem estar presentes e disputar com ele verbalmente, o façam por escrito. Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. 1. Nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo em dizendo “Arrependei-vos, etc.”, afirmava que toda a vida dos fiéis deve ser um ato de arrependimento. 2. Essa declaração não pode ser entendida como o sacramento da penitência (i. e., confissão e absolvição) que é administrado pelo sacerdócio. 3. Contudo, não pretende falar unicamente de arrependimento interior; pelo contrário, o arrependimento interior é vão se não produz externamente diferentes espécies de mortificação da carne. 4. Assim, permanece a penitência enquanto permanece o ódio de si (i. e., verdadeira penitência interior), a saber, o caminho reto para entrar no reino dos céus. 5. O papa não tem o desejo nem o poder de perdoar quaisquer penas, exceto aquelas que ele impôs por sua própria vontade ou segundo a vontade dos cânones. 6. O papa não tem o poder de perdoar culpa a não ser declarando ou confirmando que ela foi perdoada por Deus; ou, certamente, perdoando os casos que lhe são reservados. Se ele deixasse de observar essas limitações a culpa permaneceria. [...]. 10. Os sacerdotes que no caso de morte reservam penas canônicas para o purgatório agem ignorante e incorretamente. 11. Esta cizânia que se refere à mudança de penas canônicas em penas no purgatório certamente foi semeada enquanto os bispos dormiam. [...] 15. Esse temor e esse terror bastam por si mesmos para produzir as penas do purgatório, sem qualquer outra coisa, pois estão pouco distantes do terror do desespero. 16. Com efeito, a diferença entre Inferno, Purgatório, e Céu parece ser a mesma que há entre desespero, quase-desespero e confiança. [...] 20. O papa pela remissão plenária de todas as penas não quer dizer a remissão de todas as penas em sentido absoluto, mas somente das que foram impostas por ele mesmo. 21. Por isto estão em erro os pregadores de indulgências que dizem ficar um homem livre de todas as penas mediante as indulgências do papa. 22. Pois para as almas do purgatório ele não perdoa penas a que estavam obrigadas a pagar nesta vida, segundo os cânones. LEITURA COMPLEMENTAR 139 23. Se é possível conceder remissão completa das penas a alguém, é certo que somente pode ser concedida ao mais perfeito; isto quer dizer, a muito poucos. 24. Daí segue-se que a maior parte do povo está sendo enganada por essas promessas indiscriminadas e liberais de libertação das penas. 25. O mesmo poder sobre o purgatório que o papa possui em geral, é possuído pelo bispo e pároco de cada diocese ou paróquia. 26. O papa faz bem em conceder remissão às almas não pelo poder das chaves (poder que ele não possui), mas através da intercessão. 27. Os que afirmam que uma alma voa diretamente para fora (do purgatório) quando uma moeda soa na caixa das coletas, estão pregando uma invenção de homens (hominem praeãicant). 28. É certo que quando uma moeda soa, cresce a ganância e a avareza; mas a intercessão (suffragium) da Igreja está unicamente na vontade de Deus. [...] 32. Aqueles que se julgam seguros da salvação em razão de suas cartas de perdão serão condenados para sempre juntamente com seus mestres. 33. Devemos guardar-nos particularmente daqueles que afirmam que esses perdões do papa são o dom inestimável de Deus pelo qual o homem é reconciliado com Deus. [...] 35. Os que ensinam que a contrição não é necessária para obter redenção ou indulgência, estão pregando doutrinas incompatíveis com o cristianismo. 36. Qualquer cristão que está verdadeiramente contrito tem remissão plenária tanto da pena como da culpa, que são suas dívidas, mesmo sem uma carta de perdão. 37. Qualquer cristão verdadeiro, vivo ou morto, participa de todos os benefícios de Cristo e da Igreja, que são dons de Deus, mesmo sem cartas de perdão. [...] 42. Deve ensinar-se aos cristãos que não é intenção do papa que se considere a compra dos perdões em pé de igualdade com as obras de misericórdia. 43. Deve ensinar-se aos cristãos que dar aos pobres, ou emprestar aos necessitados é melhor obra que comprar perdões. 44. Por causa das obras do amor o amor é aumentado e o homem progride no bem; enquanto que pelos perdões não há progresso na bondade, mas simplesmente maior liberdade de penas. 45. Deve ensinar-se aos cristãos que um homem que vê um ' irmão em necessidade e passa a seu lado para dar o seu dinheiro na compra dos perdões, merece não a indulgência do papa, mas a indignação de Deus. 46. Deve ensinar-se aos cristãos que — a não ser que haja grande abundância de bens — são obrigados a guardar o que é necessário para seus próprios lares e de modo algum gastar seus bens na compra de perdões. 47. Deve ensinar-se aos cristãos que a compra de perdões é matéria de livre escolha e não de mandamento. 48. Deve ensinar-se aos cristãos que, ao conceder perdões, o papa tem mais desejo (como tem mais necessidade) de oração devota em seu favor do que de dinheiro contado. [...] 51. Deve ensinar-se aos cristãos que o papa — como é de seu dever — desejaria dar os seus próprios bens aos pobres homens de quem certos vendedores de perdões extorquem o dinheiro; que para este fim ele venderia — se fosse possível — a basílica de S. Pedro. 52. Confiança na salvação por causa de cartas de perdões é vã, mesmo que o comissário, e até mesmo o próprio papa, empenhassesua alma como garantia. 140 53. São inimigos de Cristo e do povo os que em razão da pregação das indulgências exigem que a palavra de Deus seja silenciada em outras igrejas. 54. Comete-se uma injustiça para com a palavra de Deus se no mesmo sermão se concede tempo igual, ou mais longo, às indulgências do que à palavra de Deus. [...] 76. Dizemos ao contrário, que os perdões papais não podem tirar o menor dos pecados veniais no que tange à culpa. 77. Dizer que nem mesmo S. Pedro, se fosse o papa, não podia dar graças maiores, é nenhuma blasfêmia contra S. Pedro e o papa. [...] 82. Esses perguntam: Por que o papa não esvazia o purgatório por um santíssimo ato de amor e das grandes necessidades das almas; isto não seria a mais justa das causas visto que ele resgata um número infinito de almas por causa do sórdido dinheiro dado para a edificação de uma basílica que é uma causa bem trivial? 83. Por que continuam os réquiens e os aniversários dos defuntos e ele não restitui os benefícios feitos em seu favor, ou deixa que sejam restituídos, visto que é coisa errada orar pelos redimidos? [...] 86. As riquezas do papa hoje em dia excedem muito às dos mais ricos Crassos; não pode ele então construir uma basílica de S. Pedro com seu próprio dinheiro, em vez de fazê-lo com o dinheiro dos fiéis? 88. Não receberia a Igreja um bem muito maior se o papa 1 fizesse cem vêzes por dia o que agora faz uma única vez, isto é, distribuir essas remissões e dispensas a cada um dos fiéis? 89. Se o papa busca pelos seus perdões antes a salvação das almas do que dinheiro, por que suspende ele cartas e perdões anteriormente concedidos, visto que são igualmente eficazes? [...] 91. Se os perdões fossem pregados segundo o espírito e a intenção do papa seria fácil resolver todas essas questões; antes, nem surgiriam. 92. Portanto, que se retirem todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “paz, paz”, e não há paz. 93. E adeus a todos os profetas que dizem ao povo de Cristo: “a cruz, a cruz”, e não há cruz. 94. Os cristãos devem ser exortados a esforçar-se em seguir a Cristo, sua cabeça, através de sofrimentos, mortes e infernos. 95. E que eles confiem entrar no céu antes passando por muitas tribulações do que por meio da confiança da paz. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2 ed. São Paulo: Aste. 1963. p. 231-238. A DIETA DE WORMS, 1521 RESPOSTA FINAL DE LUTERO, 18 DE ABRIL DE 1521 [Eek, oficial do Arcebispo de Tréveris, perguntou a Lutero:] Desejas defender os livros que foram reconhecidos como sendo obra tua? Ou retratar tudo o que está contido neles? 141 [Lutero respondeu:] Sereníssimo Senhor Imperador, Ilustríssimos Príncipes, Benevolentíssimos Senhores... Suplico-vos prestardes benevolente ouvido à minha defesa, a qual, espero, será uma defesa da justiça e da verdade, e se por causa de minha inexperiência eu deixo de conceder a alguém o seu título próprio, ou em qualquer ponto ofendo a etiqueta da corte pelas minhas maneiras ou comportamento, sede bastante bondosos para me perdoar — peço-vos — pois sou um homem que passou sua vida não nas cortes mas nas celas de um mosteiro; um homem que de si só pode dizer que até este dia só meditou e escreveu na simplicidade do coração, somente com vista à glória de Deus e à instrução pura do povo fiel a Cristo... Majestade Imperial e meus Senhores: peço-vos que observeis que os meus livros não são todos da mesma espécie. Há alguns em que com piedade tratei da fé e dos costumes com tal simplicidade e em tal consonância com os Evangelhos que os meus próprios adversários são obrigados a admiti-los como úteis, sem perigo e evidentemente dignos de serem lidos por um cristão. Até mesmo a Bula — embora violenta e cruel — reconhece que alguns de meus livros são sem perigo, embora condene também a eles por um julgamento simplesmente monstruoso. Se eu tivesse de começar a retratar-me aqui, o que — pergunto-vos — o que deveria eu fazer senão condenar — único entre os mortais — uma verdade que é admitida tanto por amigos como por inimigos, numa luta sem socorro contra o consenso universal? A segunda espécie consta dos escritos dirigidos contra o papado e as doutrinas dos papistas, isto é, contra aqueles que por suas más doutrinas e maus precedentes devastaram a cristandade arruinando as almas e os corpos dos homens. Ninguém pode negar ou ocultar este fato, pois a experiência universal e as queixas de todos dão testemunho do fato de que pelas leis do papa e por doutrinas feitas por homens as consciências dos fiéis foram miseravelmente enlaçadas, perturbadas e atiradas em tormentos, e que também os seus bens e suas possessões foram devorados (sobretudo nesta famosa nação germânica) por uma tirania inacreditável e até os nossos dias são devorados sem fim e de uma forma vergonhosa, apesar de eles mesmos em suas leis tomarem cuidado para que as leis e as doutrinas do papa contrárias ao Evangelho ou às doutrinas dos padres não sejam consideradas errôneas e sejam reprovadas. Se eu retratasse isso, o único resultado seria acrescentar mais força a essa tirania; seria abrir, não as janelas, mas as principais portas a essa blasfêmia a qual depois progrediria muito mais amplamente do que ousou até agora... A terceira espécie consiste naqueles livros que escrevi contra indivíduos privados, como se diz; isto é, contra aqueles que se entregaram à defesa da tirania romana e para derrubar a piedade que eu ensino. Confesso que fui mais violento contra esses do que convém aos meus votos religiosos e à minha profissão. Com efeito, não me apresento como nenhum santo, nem luto pela minha conduta, mas pela doutrina cristã. Mas não posso me retratar desses livros, porque essa retratação daria àquela tirania e blasfêmia a ocasião de tiranizar aqueles a quem defendo e a enfurecer-se contra o povo de Deus mais violentamente do que nunca. 142 Não obstante — visto que sou um homem e não Deus — não posso propor para os meus escritos outra defesa senão a que meu Senhor Jesus Cristo propôs para a sua doutrina. Quando foi interrogado sobre os seus ensinamentos diante de Anás e recebeu uma bofetada de um servo, disse: “Se falei mal, dá testemunho do mal”. Se o próprio Senhor, que sabia que não podia errar, não recusou ouvir um testemunho contra o seu ensino, até mesmo de um servo sem valor, quanto mais devo eu, vil como sou, capaz de nada senão errar, procurar e esperar alguém que queira dar testemunho contra o meu ensino. E assim, pela misericórdia de Deus, peço a Vossa Majestade Imperial e a Vossas Ilustres Senhorias, ou a qualquer um de qualquer posição, dar testemunho, derrubar os meus erros, derrotá-los pelos escritos dos profetas ou pelos Evangelhos, pois estarei inteiramente pronto, quando melhor instruído, a retratar-me de qualquer erro, e eu serei o primeiro a atirar meus escritos no fogo... Então o Locutor do Império — num tom de reprimenda — disse que essa resposta não atingia o ponto e que não deveriam ser postas em questão matérias que já tinham anteriormente sido objeto de condenação e decisões de concílios. Foi-lhe pedida uma resposta simples, sem sutilezas ou sofisticações, a esta questão: Estava ele pronto a se retratar, ou não? Lutero então respondeu: Vossa Majestade Imperial e Vossas Senhorias pedem uma resposta simples. Ei-la, simples e sem subterfúgios: A não ser que eu seja convencido de erro pelo testemunho da Escritura ou - visto que não dou valor à autoridade não provada do papa e dos concílios, por ser claro que eles muitas vezes erraram e frequentemente se contradisseram - por um raciocínio evidente, continuo convencido pelas Escrituras às quais apelei e minha consciência foi feita cativa pela palavra de Deus, não posso e não quero retratar-me de qualquer coisa, pois agir contra nossaconsciência não é coisa segura nem permitida a nós. É esta a minha posição. Não posso agir diversamente. Deus me ajude. Amém. FONTE: BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Tradução de Helmuth Alfredo Simon. 2 ed. São Paulo: Aste. 1963. p. 307-308. OS CINCO PONTOS DA REMONSTRÂNCIA, 1610 Artigo 1 – Deus, por um eterno e imutável decreto em Jesus Cristo, seu Filho, antes de ter lançado os fundamentos do mundo, decidiu salvar, dentre a raça humana caída em pecado, os que – em Cristo, por causa de Cristo e através de Cristo – por meio da graça do Espírito Santo, creriam nesse seu Filho, e que, pela mesma graça, perseverariam até o fim nessa fé e obediência de fé; mas, por outro lado, decidiu deixar os impenitentes e descrentes sob o pecado e a ira, condenando-os como alheios a Cristo, conforme a palavra do Evangelho de João 3.36 (“Aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece”), e também conforme outras passagens da Escritura. 143 Artigo 2 – Em concordância com isso, Jesus Cristo, o Salvador do Mundo, morreu por todos e por cada um dos homens, de modo que obteve reconciliação e remissão dos pecados para todos por sua morte na cruz; porém, ninguém é realmente feito participante dessa remissão exceto os crentes, segundo a palavra do Evangelho de João 3.16 (“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”) e da Primeira Epístola de João 2.2 (“E ele é a propiciação pelos nossos pecados e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo)”. Artigo 3 – O homem não possui fé salvadora por si mesmo, nem a partir do poder do seu livre-arbítrio, visto que, em seu estado de apostasia e de pecado, não pode, de si e por si mesmo, pensar, querer ou fazer algo de bom (que seja verdadeiramente bom tal como é, primeiramente, a fé salvífica); mas, é necessário que Deus, em Cristo, pelo seu Espírito Santo, regenere-o e renove-o no intelecto, nas emoções ou na vontade, e em todos os seus poderes, a fim de que ele possa corretamente entender, meditar, querer e prosseguir no que é verdadeiramente bom, como está escrito em João 15.5: “Porque sem mim nada podeis fazer”. Artigo 4 – Esta graça de Deus é o princípio, o progresso e a consumação de todo o bem, tanto que nem mesmo um homem regenerado pode, por si mesmo, sem essa precedente ou preveniente, excitante, prosseguinte e cooperante graça, pensar, querer ou terminar qualquer bem, muito menos resistir a quaisquer tentações para o mal. Por isso, todas as boas obras e boas ações que possam ser pensadas devem ser atribuídas à graça de Deus em Cristo. Mas, em relação ao modo de operação dessa graça, ela não é irresistível, visto que está escrito sobre muitos que “resistiram ao Espírito Santo” (Atos 7) e em muitos outros lugares. Artigo 5 – Aqueles que são incorporados em Cristo por uma fé verdadeira, e consequentemente são feitos participantes do seu Espírito vivificante, são abundantemente dotados de poder para que possam lutar contra Satanás, contra o pecado, contra o mundo e contra a sua própria carne, e ganhar a vitória. Contudo, sempre (queremos que seja bem entendido) com o auxílio da graça do Espírito Santo, Jesus Cristo os ajuda, pelo seu Espírito, em todas as suas tentações, estende-lhes as suas mãos, apoia-os e fortalece (caso estejam prontos para lutar, queiram o seu socorro e não desistam de si mesmos), de modo que, por nenhum engano ou poder sedutor de Satanás, possam ser arrebatados das mãos de Cristo, conforme o que Cristo disse em João 10.28 (“Ninguém as arrebatará da minha mão”). Mas, se eles não são capazes de, por descuido, esquecer o início de sua vida em Cristo, novamente abraçar o presente mundo, se afastar da santa doutrina que uma vez lhes foi entregue, perder a sua boa consciência e negligenciar a graça, isto deve ser assunto de uma pesquisa mais acurada na Sagrada Escritura, antes que possamos ensiná-lo com inteira persuasão de nossas mentes. Esses artigos, assim definidos e ensinados, os Remonstrantes consideram estarem de acordo com a Palavra de Deus, idôneos para edificação e, no que diz respeito a este argumento, suficientes para a salvação, de modo que não é necessário ou edificante acrescentar ou diminuir qualquer coisa. FONTE: DANIEL, S. Arminianismo, a mecânica da salvação: uma exposição Histórica, doutrinária e exegética sobre a graça de Deus e a responsabilidade humana. Rio de Janeiro: CPAD, 2017. p. 307-308. 144 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você adquiriu certos aprendizados, como: • A Igreja católica realizou o Concílio de Trento, que serviu, dentre outras coisas, para reafirmar os dogmas que foram contestados pela Reforma, pensar estratégias para conter o avanço protestante em países católicos e moralizar o clero. • O avivamento na América do Norte influenciou diversas denominações. Foi nessa época que a luta pela liberdade religiosa nessa região ficou mais intensa, principalmente pela intervenção de Isaac Backus. • O surgimento do pietismo e do metodismo influenciaram o protestantismo, pois estes prezavam por uma religiosidade mais íntima, baseada na experiência dos convertidos. • As ideias iluministas, que colocavam a razão como central na vida em sociedade, trouxeram mudanças para o cristianismo, inclusive introduzindo a concepção deísta. 145 1 Após a Reforma Protestante, o catolicismo também passou por algumas mudanças. Para isso, foi instituído o Concílio de Trento, o qual reafirmou doutrinas que o Protestantismo havia contestado. Sobre este cenário, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) No século XVII surgiu, dentro da igreja católica, o jansenismo. Ele foi um movimento iniciado por Cornélio Jansen, que procurou retomar as leituras de Tomás de Aquino, com o princípio da Escolástica. b) ( ) A Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, consistiu em um dos principais braços da contrarreforma católica. Essa ordem foi muito atuante na educação, criação de hospitais e na colonização da América portuguesa e espanhola. c) ( ) O concílio de Trento foi unanimemente visto pela historiografia como uma reação da igreja católica ao avanço do protestantismo. Uma de suas medidas foi instaurar tribunais inquisitoriais nos países protestantes. d) ( ) O concílio de Trento reafirmou a importância da tradição católica juntamente com a Bíblia. Sendo assim, a tradução da Bíblia foi permitida, desde que fosse a partir da Vulgata. 2 No século XVII, teve início o movimento pietista, que, dentre outras coisas, valorizava a conversão individual, ganhou forma na Europa, atingindo diversas igrejas protestantes. Tendo em vista tal movimento, analise as sentenças a seguir: I- Os primeiros pietistas foram pessoas que se viram insatisfeitas com a rigidez da Igreja anglicana. Eles desejavam mais controle da religião no campo moral, e defendiam que as vestes sacerdotais fossem abolidas. II- Algumas características do movimento pietista foram, dentre outras, a importância do papel do leigo; a busca pela conversão pessoal, em que a fé dos fiéis contagiaria os outros fiéis, e eles mesmos divulgariam o Evangelho. III- Os assim chamados irmãos moravianos se destacaram no campo missionário, inclusive entre pessoas escravizadas em vários países. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças II e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. AUTOATIVIDADE 146 3 Confira o trecho a seguir e, em seguida, resolva a questão proposta: “Assim, em 1748, ‘as pessoas chamadas metodistas’ – como os pietistas na Alemanha – formavam uma igreja dentro da igreja. Nos 40 anos seguintes, Wesley resistiu a todasas pressões de seus próprios seguidores e a todos os ataques dos bispos anglicanos, que sugeriam a separação da igreja na Inglaterra. ‘Viverei e morrerei, disse ele, ‘como membro da igreja da Inglaterra’” (SHELLEY, 2004, p. 379). Tendo em vista o movimento iniciado por John Wesley, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Wesley foi influenciado pelo pietismo alemão, o que fez ele ultrapassar a ritualística da igreja anglicana, e passou a pregar em lugares com anfiteatros, nas ruas, inclusive no cemitério. Os grupos de estudos bíblicos nos lares foi uma das maneiras usadas para a conversão dos fiéis. ( ) O estilo de Wesley, com pregações ao ar livre, estudos bíblicos nos lares, ênfase na conversão, importância dada aos leigos, além da não aceitação da doutrina da predestinação tal qual era pregada pelo calvinismo, fez com que, mesmo contra sua vontade, fosse expulso da igreja anglicana. ( ) Wesley conseguiu levar um avivamento para a Inglaterra que se espalhou por diversos países, inclusive na América do Norte. Mesmo sem pretender, o metodismo se afastou da igreja anglicana, e a América deu o primeiro passo para a separação das duas. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 O Iluminismo, ou ilustração, foi um movimento filosófico que despontou, inicialmente, na França do século XVIII e se espalhou por diversos países. Suas ideias acabaram influenciando o cristianismo. Tendo em vista este momento histórico, escreva com suas palavras as principais críticas dos iluministas ao cristianismo e as religiões em geral: 5 Com a ida para as Treze Colônias inglesas, na América do Norte, de vários grupos protestantes diferentes, iniciou-se um movimento de fraternidade, diferente do que ocorria até então na Europa, onde os conflitos religiosos geraram diversos conflitos e mortes. O sistema de denominações foi sendo implementado e acabou servindo como referência para outros locais, inclusive para o Brasil no século XIX, com a vinda de missionários protestantes americanos. Tendo em vista tal cenário, explique a importância de Backus nesse processo na América do Norte: 147 REFERÊNCIAS BAIARDI, A. Os processos de Galileu: intrigas, intolerância e humilhações. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS INQUISITORIAIS: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA, 1., 2011, Salvador. Anais [...]. Cachoeira: UFRB, 2011. p. 1-17. 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