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ANAIS XV Semana de História Política XII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade O legado freiriano para o século XXI – as interfaces entre História Política e História Pública Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2022 Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em História Reitor Ricardo Lodi Ribeiro Vice-Reitor Mario Sergio Alves Carneiro Pró-reitor de Graduação Lincoln Tavares Silva Pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Luís Antônio Campinho Pereira da Mota Pró-reitora de Extensão e Cultura Cláudia Gonçalves de Lima Pró-reitora de Políticas e Assistência Estudantis Catia Antonia da Silva Pró-reitor de Saúde Denizar Vianna Diretora do Centro de Ciências Sociais Dirce Eleonora Nigro Solis Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Jaime Antunes Programa de Pós-Graduação em História Coordenadora geral Beatriz de Moraes Vieira Coordenador adjunto Carlos Eduardo Pinto de Pinto Coordenador de Doutorado Fabiano Vilaça Coordenadora de Mestrado Marina Monteiro Machado Coordenadora da linha de pesquisa Política e Cultura Marcia de Almeida Gonçalves Coordenador da linha pesquisa Política e Sociedade Ricardo Mendes XV Semana de História Política XII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade Comissão Organizadora Aimée Schneider Isadora de Mélo Escarrone Costa Laura Junqueira Luana Fernandes Pimentel Lucas Ventura da Silva Maíra M. S. Villares Vianna Maria Clara Martins Cavalcante Mariana Barreto Jorge Raphael Garcia Pinto Barros Thaís Silva Félix Dias Anais da XV Semana de História Política – XII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade O legado freiriano para o século XXI – as interfaces entre História Política e História Pública Aimée Schneider Isadora de Mélo Escarrone Costa Laura Junqueira Luana Fernandes Pimentel Lucas Ventura da Silva Maíra M. S. Villares Vianna Maria Clara Martins Cavalcante Mariana Barreto Jorge Raphael Garcia Pinto Barros Thaís Silva Félix Dias (orgs.) 1a Edição – 2022. PPGH-UERJ ISSN: 2175-831X Semana de História Política / Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade (XV: 2021: Rio de Janeiro) Anais da XV Semana de História Política: O legado freiriano para o século XXI – as interfaces entre História Política e História Pública / XII Seminário Nacional de História: Política, Cultura e Sociedade. Organização: Aimée Schneider, Isadora de Mélo Escarrone Costa, Laura Junqueira, Luana Fernandes Pimentel, Lucas Ventura da Silva, Maíra Moraes dos Santos Villares Vianna, Maria Clara Martins Cavalcante, Mariana Barreto Jorge, Raphael Garcia Pinto Barros e Thaís Silva Félix Dias. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2022. 1941 p. ISSN: 2175-831X 1. História Política – Congresso 2. Cultura – Sociedade 3. Relações Internacionais Os(as) autores(as) são responsáveis pelas ideias apresentadas na presente obra. 1186 Um judeu protestante na cidade do santo: política, religião e maçonaria em São Fidélis (1893-1900) Murilo Rosa Garcias1 Resumo O presente artigo se propõe a analisar as contribuições da Maçonaria para o estabelecimento e avanço do protestantismo de missão pelo Brasil a partir de uma ótica local, tomando como ponto de observação o município fluminense de São Fidélis nos primórdios da República. Será justamente nesse município que o missionário batista Salomão Ginsburg empreenderá esforços para a fundação da Primeira Igreja Batista e da loja maçônica Auxílio à Virtude, sendo ambas fundadas em 1894. O contexto da fundação dessas duas instituições, bem como as relações sociais entre seus membros e o momento político local será o ponto fulcral de nosso estudo, que se baseará na autobiografia de Ginsburg e em outras fontes de época. Palavras-Chave: Maçonaria; Protestantismo; República. Considerações iniciais A segunda metade do século XIX assistiu um grande afluxo de missionários protestantes ao Brasil, impulsionados sobretudo pelo avanço do liberalismo no país e pela consolidação da hegemonia imperialista norte-americana no plano internacional (CAMPOS, 2012, pp. 4). O primeiro desses missionários foi o médico Robert Kalley2, escocês presbiteriano que foi o fundador3, no ano de 1858, da Igreja Evangélica Fluminense, de vertente congregacional (LÉONARD, 1963, pp. 49-51). Com exceção dos congregacionais de Kalley, todas as denominações protestantes que posteriormente 1 Graduando em História (UFRJ). E-mail: murilorosagarcias@gmail.com 2 Outros religiosos protestantes haviam passado pelo Brasil anteriormente, mas nenhuma missão foi estabelecida com sucesso até a chegada de Kalley. 3 Embora Kalley considerasse 1858 como ano da fundação de sua congregação, a Igreja Evangélica Fluminense só viria a se organizar institucionalmente em 1863, quando foi registrada na Secretaria do Império afim de que seus membros gozassem dos direitos garantidos aos não-católicos (LÉONARD, 1963, Pp. 54). 1187 adentraram o Brasil naquele período haviam vindo dos Estados Unidos. Logo após os congregacionais, chegaram os presbiterianos, em 1859, liderados pelo reverendo Ashbel Green Simonton. A missão metodista chegou em 1876, conduzida pelos reverendos J. E. Newman e J. J. Ransom. Representando a Junta de Richmond, o pastor batista William Buck Bagby desembarcou com sua esposa em Salvador, no ano de 1881. Por fim, os episcopais foram a única denominação do protestantismo de missão que adentrou o Brasil já na fase republicana, tendo os missionários L. L. Kinsolving e J. W. Morris chegado ao país em 1890 (MATOS, 2011, pp. 11-12). Apesar do relativo sucesso com o estabelecimento das missões protestantes a partir da segunda metade do século XIX, as novas denominações enfrentaram severas provações: a oposição do clero católico à introdução das doutrinas protestantes resultou, não raramente, em violentas perseguições, que se espalharam tanto nos meios urbanos quanto nos meios rurais. Pregadores eram rotineiramente ameaçados, igrejas destruídas e fiéis constrangidos. Como observa Edson Douglas de Oliveira, a origem dessas reações provinha mais da agitação das paróquias locais do que da vontade das dioceses (OLIVEIRA, 2017, pp. 91-92), visão corroborada por muitos missionários da época, como o próprio Kalley, que certa vez escreveu a um de seus colaboradores no Brasil: “Lembra-te (...) Tenha cuidado dos padres e das irmãs de caridade” (apud LÉONARD, 1963, pp. 50). O próprio Salomão Ginsburg, cuja trajetória é objeto de estudo desse presente artigo, relatou em sua autobiografia diversos conflitos com padres locais, que costumeiramente convocavam seus fiéis a uma reação violenta (GINSBURG, 1970, pp. 53-54). Ainda dentro da narrativa de Ginsburg, constata-se que a presença do episcopado aparece de forma muito apagada, sendo raras as citações a bispos e mais raros ainda os ataques dirigidos pelo missionário a esses religiosos. Conforme supracitado, a exceção dos episcopais, todas as denominações vinculadas ao protestantismo de missão adentraram o Brasil ainda na fase imperial. O artigo 5º da Constituição de 1824 expressava que “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio”, admitindo, no entanto, que “outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo” (BRASIL, 1824, Art. 5)”. Léonard nos revela que as religiões acatólicas permitidasno Império apareciam ainda nos registros oficiais com a alcunha de “religiões toleradas”, no que o autor enfatiza o resquício de má vontade presente em tal nomenclatura (LÉONARD, 1963, pp. 53). Apesar da permissão oficial dispensada aos serviços protestantes, os missionários da 1188 época afirmavam que apenas a liberdade religiosa – resultante da separação entre Igreja e Estado, numa república, como no modelo americano –, e não a tolerância, seria capaz de fornecer garantias concretas ao exercício de suas fés. É nesse sentido que os religiosos evangélicos se porão ao lado dos republicanos na hora derradeira do Império (CAMPOS, 2014, pp. 92-93). Antes de ser saudada, a República foi desejada pelos protestantes. A República inaugurou um novo período nas relações entre a esfera política e a esfera religiosa. Separou-se a Igreja do Estado, aboliu-se o padroado, secularizou-se os cemitérios e foi instituído o matrimônio civil. A tolerância aos cultos acatólicos foi convertida em liberdade religiosa. Antes mesmo da Constituição de 1891, o decreto 119-A (1890), redigido por Ruy Barbosa (VIEIRA, 1987, pp. 215), reconhecia a personalidade jurídica de todas as agremiações religiosas e proibia o estabelecimento de qualquer religião oficial em todos os âmbitos da Federação (BRASIL, 1890, Decreto 119-A). Parecia aos protestantes que o último entrave para a consolidação de seu projeto missionário havia caído, estando o país livre da influência do “romanismo” e do “jesuitismo” (CAMPOS, 2014, pp. 93). O tempo logo mostrou que as expectativas dos missionários não poderiam estar mais erradas. Caiu-se o Trono, mas ficou o Altar: liberta do regime do padroado, a Igreja Católica pôde se organizar com plena independência, tendo o episcopado brasileiro se alinhado mais diretamente com os ditames da Santa Sé, no processo que ficou conhecido como “romanização da Igreja”4. O número de dioceses e arquidioceses saltou de 12, antes de 1889, para 68, em 1930. O número de padres europeus adentrando o Brasil também aumentou, bem como o número de seminários para a formação de padres brasileiros alinhados ao ultramontanismo (SERBIN, 2008, pp. 94-95). Os irmãos vicentinos e as irmãs de caridade fizeram longas marchas pelo interior do país, implementando o catolicismo ultramontano onde antes só havia, recorrendo a um conceito utilizado por Maria Isaura Pereira de Queiroz, o “catolicismo rústico” (SERBIN, 2008, pp. 90-92). Ao contrário do que esperavam os protestantes, o catolicismo não se enfraqueceu com a República, pelo contrário, a Igreja Católica pôde gozar no período republicano de um poder e prestígio desconhecido pelo catolicismo no Império. A liberdade religiosa garantida pela Constituição também se expressou, a níveis locais, 4 O termo foi utilizado pela primeira vez pelo teólogo Joseph Ignaz Von Dollinger, em sua obra crítica ao Concílio Vaticano I, O Papa e o Concílio (1869) (OLIVEIRA, 2012, pp. 7). 1189 como mera formalidade: em muitos casos, delegados e coronéis, alinhados com as paróquias locais, continuavam causando constrangimento aos cultos protestantes e fechando os olhos para as perseguições contra esses grupos – quando não os perseguindo diretamente –, conforme relata Salomão Ginsburg (GINSBURG, 1970, pp. 110-111, 123-124). Os missionários tiveram que conviver com a oposição entre o “Brasil legal” – moderno, laico e liberal – e o “Brasil real” – reacionário, religioso e conservador (CAMPOS, 2014, pp. 96). É nesse contexto que a Maçonaria teria um importante papel de apoio a esses novos grupos religiosos, buscando proteger por todos os meios a liberdade religiosa garantida pelo novo regime. A Maçonaria e a defesa dos grupos acatólicos A Maçonaria moderna surgiu em 1717, quando da fundação da Grande Loja de Londres por quatro Lojas locais: O Pato e a Grelha, A Coroa, A Macieira e O Copo e as Uvas. No mesmo ano, elegeram um grão-mestre com autoridade sobre todas as Lojas daquela instituição. Em 1723, reverendo presbiteriano James Anderson redigiu uma obra que reunia a história lendária da Ordem e seus preceitos básicos, eram as Constituições de 1723 ou Constituições de Anderson, assim chamadas em homenagem ao seu autor. (BARATA, 1999, pp. 29-30). Originada nas corporações de ofício, a Maçonaria buscou conservar ainda dois aspectos fundamentais de sua origem: a assistência mútua e a sociabilidade (GENZ, 2013, pp. 13), conceitos caros para o estudo proposto neste artigo. Também é importante lembrar que as Lojas se consolidaram, ainda no século XVIII, como espaços abertos para a divulgação e defesa dos ideais iluministas que varriam o Velho Mundo (GENZ, 2013, pp. 20-21). Não é de nosso interesse discorrer aqui sobre o longo histórico da Maçonaria no Brasil (ou no mundo), cabendo apenas que façamos algumas considerações importantes para o foco dessa pesquisa. É nesse sentido que deslocaremos nossa análise para o Segundo Reinado, atentos aos princípios de conflito entre a Igreja e a Irmandade. Enxergando a Maçonaria como expressão concreta das reinvindicações liberais da segunda metade do século XIX, Marli Geralda Teixeira afirma que a Ordem se inserirá nos debates sobre o fim do padroado e a conquista da liberdade religiosa. Esses debates decorriam das pressões da elite liberal pela integração do país na modernidade capitalista (TEIXEIRA, 1987, pp. 271-272), caminho necessário, do ponto de vista dos liberais, para a consolidação do progresso nacional. De acordo com David Gueiros Vieira, o progresso seria “a palavra-chave para solucionar a equação liberalismo- 1190 maçonaria-protestantismo no Brasil” (VIEIRA, 1987, pp. 202). Nesse sentido, o embate posterior entre os bispos ultramontanos e a Maçonaria, durante o episódio da Questão Religiosa, estava longe de ser apenas uma discussão sobre o lugar do padroado ou o papel do poder episcopal na organização da Igreja. A Questão Religiosa teria sido o embate entre dois modelos de sociedade, um conservador católico – representado pelas figuras de D. Vital e D. Macedo –, e outro liberal maçônico, que tinha, dentre outros representantes, o austero Rui Barbosa como expoente. A modernidade imaginada por Rui Barbosa (e por outros) tinha como máximo exemplo o modelo protestante norte- americano. É justamente por essa razão que tanto liberais quanto maçons – observado que muitos, como o próprio Rui Barbosa, pertenciam aos dois “grupos” – viam com bons olhos a missionação protestante, percebida necessariamente também como um avanço do progresso (OLIVEIRA, 2021, pp. 2-4). Convém também pensar quais os princípios que levaram a Maçonaria a se colocar a favor dos movimentos protestantes e contra o avanço do ultramontanismo. Sobre a atuação maçônica no período posterior ao da Questão Religiosa, Alexandre Mansur Barata revela: É a partir da crença na universalidade da natureza humana e no racionalismo, pressupostos fundamentais do movimento ilustrado, que o discurso maçônico se estrutura. Ao se definir como uma escola de formação moral da humanidade, ensinando as virtudes cardeais – a liberdade de pensamento e a independência da razão –, a Maçonaria assumia do compromisso das “Luzes” de combater as “Trevas”, representadas pela ignorância, pela superstição e pela religião revelada (BARATA, 1999, pp. 92). A defesa dos grupos acatólicos, no entanto, não ficou apenas no discurso da Maçonaria. Em diversas ocasiões, as Lojas puderam colocar a “teoria em prática”, oferecendo apoio concreto – dentro da defesa da liberdade de pensamento – para o assentamento e a expansão das missões protestantes. É nesse sentido que o Diário do Rio de Janeiro, editado pelo maçom Saldanha Marinho, protestava, nos anos de 1860 e 1861, contra a detenção arbitrária de portugueses calvinistas por subdelegados na cidade do Rio de Janeiro (VIEIRA,1981, pp. 124-125). Também em 1860, o presbiteriano Ashbel Green Simonton relatou que um vigário luterano em São Paulo realizava seus serviços religiosos num salão maçônico alugado, que mais tarde seria oferecido gratuitamente ao vigário devido a sua impossibilidade de honrar com o aluguel (VIEIRA, 1981, pp. 140). A utilização de salões maçônicos para cultos não foi exclusividade de apenas uma denominação, tendo o primeiro pastor batista brasileiro, Antônio Teixeira Albuquerque, feito sua profissão 1191 de fé e sido ordenado pastor na Loja George Washington, em Santa Bárbara, no ano de 1880 (OLIVEIRA, 2005, pp. 250-251). A proteção maçônica se estendeu para a República, tendo beneficiado o pastor metodista Phelippe Revale de Carvalho, que, ao ser atacado por um motim liderado por um vigário local em Cataguases, foi resgatado por ação dos maçons filiados à Loja Cataguazense, em 1895 (ANDRADE, 2004, pp. 64- 65). O próprio Salomão Ginsburg, também ele um maçom, recorreu, no ano de 1892, à proteção da Maçonaria frente a uma turba que o ameaçava na cidade baiana de Queimadas (GINSBURG, 1970, pp. 80-82). A Maçonaria deu nova prova de apoio quando recorreu o reverendo Ginsburg em Macaé, tendo os maçons lutado – inclusive fisicamente – contra os amotinados que desejavam impedir a pregação do missionário protestante naquele município (GINSBURG, 1970, pp. 110-111). Seja pela defesa dos próprios princípios, seja pela oposição sistemática ao ultramontanismo, fato é que a Maçonaria dispensou ajuda aos grupos protestantes nas mais diversas ocasiões, tanto no Império quanto na República. A relação entre os maçons e protestantes era tão próxima, que não era incomum conversão de maçons “leigos” às novas agremiações religiosas ou participação de pastores na Maçonaria, como foi o caso do batista Salomão Ginsburg e do presbiteriano Álvaro Reis. Para uma análise mais profunda das relações entre as igrejas protestantes e a Maçonaria, cabe um estudo mais direto sobre o caso particular da trajetória do missionário Salomão Ginsburg em um município fluminense. Da Polônia ao Brasil: um resumo de trajetória de Salomão Ginsburg Dentre todos os missionários protestantes que adentraram o Brasil no século XIX, Salomão Ginsburg certamente teve a trajetória mais singular. Salomão Luis Ginsburg (aliás Shlomo Ludwig Ginsburg) nasceu em 1867, no seio de uma família judia da cidade polonesa de Suwalki, à época parte do Império Russo. Aos seis anos de idade, Ginsburg foi enviado para residir com seus avôs maternos, judeus alemães, na cidade de Koenigsberg, no então recém-unificado Império Alemão. Ginsburg permaneceu na Alemanha até o fim de seus estudos, tendo relatado que recebeu uma educação laica – ou “ensino dos gentios”, como o pai de Ginsburg, que era rabino, havia descrito – no Liceu de Koenigsberg. Após o término de seus estudos, em ano não especificado, voltou para a Polônia apenas para se desentender com seu pai, que planejava casá-lo e inicia-lo no ofício rabínico, tendo se retirado para a Inglaterra em 1192 1882, indo residir junto de um tio materno que morava em Londres (GINSBURG, 1970, pp. 21-24). A inadequação de Ginsburg aos planos religiosos de seu pai certamente foi resultado de sua vivência na Alemanha. Criado por seu avô materno, a quem Ginsburg chamou de “muito instruído, largamente viajado e de ideias livres” (GINSBURG, 1970, pp. 22), Salomão Ginsburg havia convivido, em Koenigsberg, com uma sociedade prussiana pautada na moral cristã e nos valores liberais. Possivelmente, a absorção desses valores formou um indivíduo alheio à rígida ortodoxia judaica, daí sua retirada para a Inglaterra5. O período que Ginsburg viveu na Inglaterra – entre 1882 e 1890 – é crucial para se entender a formação desse “personagem missionário”. É justamente na Inglaterra que Salomão Ginsburg viria a desenvolver um interesse mais profundo pelo Cristianismo, sobretudo pela ação de uma atividade missionária especialmente voltada à comunidade judaica, exercida, segundo apontam vários indícios, pelos pregadores da London Society for Promoting Christianity Amongest the Jews6. Embora não mencione o nome da London Society, tudo indica que Salomão Ginsburg foi convertido por ação dessa instituição. Sobre a primeira vez que ouviu uma pregação direcionada à comunidade judaica, Ginsburg relata: Um domingo à tarde, ao passar pela casa de cultos, eu encontrei um missionário aos judeus, um judeu convertido, que me convidou para ouvi-lo pregar aos judeus na Missão Mildmay, sobre o capítulo 53 do livro de Isaías. Eu estava muito interessado nesse capítulo da Bíblia, por causa de um episódio que me acontecera quanto ainda estava na Polônia e, se não fosse o tal episódio, talvez não tivesse ido ouvi-lo (GINSBURG, 1970, pp. 24). A conversão de Salomão Ginsburg ocorreu cerca de três meses após esse primeiro encontro, quando suas restantes dúvidas religiosas foram supostamente dissipadas pela pregação de um certo reverendo chamado John Wilkinson. Esse mesmo reverendo recebeu a profissão de fé de Ginsburg, sendo o recém-converso expulso da casa de seu tio e recebido em um “abrigo de judeus convertidos”7. Ginsburg relata 5 Importante destacar que o plano original de Ginsburg era se retirar para os Estados Unidos – país onde a moralidade cristã e sobretudo os valores liberais estavam mais enraizados do que em qualquer nação europeia –, estando a Inglaterra na rota da viagem de embarque para o Novo Mundo. Segundo o relato do missionário, sua permanência na Inglaterra se deu pela penúria financeira que se encontrava, embora se possa conjecturar que a residência de um seu familiar naquele país possa ter influenciado sua decisão (GINSBURG, 1970, pp. 24). 6 Instituição voltada exclusivamente para a conversão dos judeus ingleses, a London Society foi fundada em 1809 por Joseph Samuel Frey, curiosamente também ele um judeu polonês convertido (SMITH, 1981, pp. 275-276). 7 A mera existência de tal instituição revela que os conversos eram costumeiramente expulsos de suas casas e isolados de suas comunidades. 1193 também que seu batismo foi realizado logo após esses eventos, sendo um verdadeiro espetáculo público conduzido por Wilkinson “perante uma multidão de três mil pessoas” (GINSBURG, 1970, pp. 26-30). A rotina de Ginsburg, posterior a sua expulsão e recolhimento no “abrigo dos judeus”, se resumia, na maior parte, ao aprendizado de um ofício – a tipografia, a qual se dedicou durante três anos – e ao comparecimento aos serviços religiosos. Eventualmente, tentou pregar à comunidade judaica de Londres, tendo sido espancado e, posteriormente, excomungado pelos rabinos locais (GINSBURG, 1970, pp. 30-32). Por recomendação do pregador Charles Spurgeon – com quem nosso personagem havia se correspondido por cartas para buscar orientação em sua vida religiosa –, Ginsburg viria ainda a ingressar no Regions Beyond Missionary Training College, onde seria preparado para o exercício de um ministério missionário (GINSBURG, 1970, pp. 36- 37). Mesmo após o ingresso nesta instituição, Ginsburg ainda haveria de tentar novas pregações aos judeus ingleses, tendo sido novamente ameaçado e espancado (GINSBURG, 1970, pp. 38-40). Os constantes perigos e dificuldades enfrentados por Ginsburg fizeram com que o missionário repensasse sua atuação entre os judeus, conformando-se com a possibilidade de atuar no exterior. É nesse sentido que Salomão Ginsburg desvia sua atenção ao Brasil, sendo convidado por Sarah Kalley – esposa do missionário Robert Kalley – a se dirigir ao Brasil e lá assumir um posto missionário entre os congregacionais. Antes, porém Ginsburg deveria fazer uma espécie de “estágio probatório” em Portugal, onde deveria residir por alguns meses para aprender a língua portuguesa, antes de finalmente ingressar em seucampo missionário (GINSBURG, 1970, pp. 40-42). Ginsburg no Brasil e o município de São Fidélis nos primórdios da República Depois de levantar severas polêmicas entre os portugueses, Ginsburg resolve se retirar daquele país quando acreditou que sua segurança estava ameaçada. O missionário havia desembarcado em Portugal em fevereiro de 1890, se retirando daquele país somente alguns meses depois e chegando ao Rio de Janeiro em junho do mesmo ano (GINSBURG, 1970, pp. 43-46). Conforme havia sido sugerido pela senhora Kalley, Ginsburg, buscou refúgio entre os congregacionais da Igreja Evangélica Fluminense, mas sua filiação àquela denominação foi muito breve, tendo Ginsburg passado para o lado dos batistas apenas um ano após sua chegada ao Brasil. 1194 Não nos cabe aqui aprofundar a discussão sobre as razões que levaram o missionário a essa nova conversão, dada a complexidade do tema. Embora Ginsburg alegasse razões puramente teológicas para essa ação – referentes sobretudo à análise da questão batismal (GINSBURG, 1970, pp. 63-65) –, Edson Douglas de Oliveira aponta também que as rusgas entre Gisnburg e o pastor responsável pela Igreja Evangélica Fluminense, João Manoel Gonçalves dos Santos, podem ter influenciado em sua decisão de abandonar aquela congregação (OLIVEIRA, 2017, pp. 60-61). Seja como for, a passagem de Ginsburg ao meio denominacional batista alterou consideravelmente suas percepções teológicas no Brasil, tornando sua mensagem missionária mais exclusivista. O ingresso na Igreja Batista parece também ter dado ao missionário a liberdade adequada para a reprodução de suas próprias convicções religiosas, haja visto que os batistas eram conhecidos pelo que Cavalcanti chamou de “agressividade evangélica e anticatólica” (CAVALCANTI, 2001, pp. 84). Em 1893, Ginsburg volta da Bahia, onde estava para assumir temporariamente a direção da missão batista naquela região, se estabelecendo em Niterói por convite do missionário William Bagby, líder da missão batista no Brasil. Apesar de apreciar a vida na capital do estado do Rio de Janeiro, Ginsburg assiste com preocupação a eclosão da Revolta da Armada, escolhendo, por razões de segurança, se retirar daquela cidade e se deslocar para Campos dos Goytacazes. Embora uma igreja batista já estivesse organizada naquela região, Ginsburg relata que, ao momento de sua chegada, “o trabalho estava reduzido a quase nada” (GINSBURG, 1970, pp. 87-91). Como de praxe, o estabelecimento de Ginsburg naquela cidade resultou em polêmicas e ataques mútuos entre o missionário e o clero católico local, polêmicas levadas a cabo sobretudo por meio da imprensa. A atividade de Ginsburg em Campos, embora interessantíssima, não é foco da nossa análise no presente artigo. Cabe apenas destacar que essa cidade de tornou uma espécie de “quartel general” do missionário no Norte Fluminense, tendo nosso personagem se utilizado de sua residência em Campos para espalhar sua pregação também entre os municípios próximos. Dentre esses municípios estava São Fidélis, que merece um estudo mais profundo de nossa parte. São Fidélis encontra suas raízes históricas nos aldeamentos indígenas erguidos pelos freis capuchinhos Ângelo de Lucca e Vitório de Cambiasca às margens do rio Paraíba do Sul, ainda no final do século XVIII. Elevado à condição de cidade em 1870, o município de São Fidélis viveu sua época áurea entre 1870 e 1888: nessa época fundaram-se jornais, casas de comércio e profissionais liberais se multiplicaram, o porto 1195 local escoava a produção das regiões vizinhas e os trilhos de ferro ligavam São Fidélis a Cambuci e Mirecema (PALAZZOLO, 1963, pp. 167-169). O progresso econômico vivido pela cidade teria entrado em declínio com a abolição: os fazendeiros locais, que já enfrentavam dificuldades com a queda do preço do açúcar (OLIVEIRA, 2017, pp. 77), experimentaram uma acentuada crise econômica após o 13 de maio, tendo os libertos abandonado em massa as fazendas bem em época de colheita (PALAZZOLO, 1963, pp. 171) (ARAÚJO, 1942, pp. 197). À crise econômica se sucedeu uma intensa crise política, resultado da transição de regime para a República e da inserção do município dentro dos mecanismos do novo sistema federativo. A ascensão do coronel João Lopes da Silva, aliado do coronel José Joaquim Alves da Cunha – chefe político influente no Norte Fluminense –, esbarrou nas pretensões políticas do governador Baltasar da Silveira, de quem Lopes era desafeto. Determinado a destruir o prestígio político de João Lopes, o governador incumbiu seu chefe de polícia de buscar em São Fidélis um rival à altura, que foi encontrado na figura do escrivão Victorino Villela. As eleições de 1891 consolidaram a crise política em São Fidélis: vendo seu candidato naufragar nas eleições, o governador mandou oitenta praças das forças estaduais para suprimir o processo eleitoral. Frente à resistência dos eleitores que se encontravam na Câmara Municipal, as forças estaduais abriram fogo, cometendo verdadeiro massacre (ARAUJO, 1942, pp. 148-152). O caos político se perpetuou, tendo as disputas entre Villela e Lopes se estendido até o século XX. É esse cenário, marcado pela decadência política e econômica, que Ginsburg encontra quando chega a São Fidélis em 1894. Mesmo sem ter plena consciência disso, ao menos no início, Ginsburg estaria adentrando um território extremamente polarizado e hostil, sofrendo as consequências dessa hostilidade não muito tempo após sua chegada. De fato, a chegada de nosso personagem missionário acrescentaria ainda novos elementos ao delicado contexto fidelense da época. A atuação de Ginsburg entre perseguições e transformações em São Fidélis Se deslocando de Campos, onde havia estabelecido residência em 1893, Salomão Ginsburg chegou em São Fidélis no ano de 1894, afirmando que naquele município “haviam alguns interessados” em seu trabalho (GINSBURG, 1970, pp. 93). Ao que parece, a chegada de Ginsburg já era esperada pela população local, haja visto que, tão logo seu culto foi iniciado – em casa particular e com alguns poucos fiéis –, uma multidão se apressou e cercou o local. Sobre esse episódio o missionário relata: 1196 Cerca das 19 horas, começamos nossa primeira reunião, cantando alguns hinos, e logo afluiu uma multidão dumas mil pessoas, que ficou em frente da casa. (...) Chefiando essa multidão, estava um velhinho muito vivo, que me informaram depois ser o chefe político do lugar. Ser chefe político é uma posição importante no Brasil. Tinha um filho como delegado de polícia e outro como tabelião. Os três eram os principais políticos da cidade, da região e talvez do Estado, e, como tais, eram hábeis para encobrir uma parte de sua perversidade (GINSBURG, 1970, pp. 93, grifo nosso). Apesar da multidão não ter invadido o local de cultos – o que Ginsburg entendeu ser um sinal de proteção divina –, uma pedra tacada contra a casa acaba acertando a testa de Corina Manhães, filha de um auxiliar de Ginsburg, que cai desacordada. Rapidamente o missionário cancela seu culto, remarcando-o para o dia seguinte. Seus planos, no entanto, não saem conforme o esperado: convocado para comparecer à delegacia no dia seguinte, Ginsburg acaba preso, sendo enviado a Niterói para responder pelos crimes de “desordem pública” e “desrespeito às autoridades” (GINSBURG, 1970, pp. 93-97) (CRABTREE, 1962, pp. 127). Conforme observado por Oliveira e relatado na edição de 29 de julho de 1899 do Jornal Fidelense, o tabelião descrito por Ginsburg como filho do chefe político local seria justamente Victorino Villela, enquanto o delegado de polícia que deteve o missionário seria seu irmão, Agostinho Villela (OLIVEIRA, 2017, pp. 88-89). Sobre o “velhinho muito vivo”, pai dos indivíduos supracitados e identificado por Ginsburg como “chefe político”, cabe conjecturar que sua posição era informal, haja visto queo próprio Elysio de Araújo, contemporâneo aos acontecimentos, nada menciona sobre tal figura. A perseguição promovida contra Salomão Ginsburg e seu rebanho é notadamente singular pela ausência de uma figura recorrente nos relatos persecutórios do missionário: o padre da paróquia. De fato, em nenhum momento Ginsburg menciona que o episódio ocorrido naquele município foi obra de conspirações do clero local, pelo contrário, o missionário atribui toda a culpa diretamente à família Villela. Os insultos proferidos pelo “chefe político” contra Ginsburg, que havia ido até a delegacia de São Fidélis ser inquerido pelo delegado, revelam que as atividades do missionário em Campos haviam atraído a atenção dos fidelenses. Oponentes do missionário trataram de espalhar boatos estapafúrdios – provavelmente originados em Campos – que afirmavam que as cerimônias de batismo conduzidas pelo missionário batista em rios da região não raramente se convertiam “em uma cerimônia indecente” (GINSBURG, 1970, pp. 75). Se os Villela acreditavam ou não nesses boatos, não é relevante, mas fato é que os 1197 políticos da família reprovavam fortemente a chegada daquele missionário protestante ao município de São Fidélis. Detido em Niterói, Salomão Ginsburg consegue ser libertado ao comprovar inocência perante o governador Tomás Porciúncula. A pedido de Porciúncula, no entanto, Ginsburg escolhe não retornar imediatamente a São Fidélis, tendo o governador prometido ao missionário o apoio das forças estaduais se detivesse seu retorno até o fim da Revolta da Armada, que era, para o mandatário, a grande preocupação daquele momento. Terminado o movimento revoltoso em 13 de março, o missionário embarca para São Fidélis no mesmo mês, recebendo, para a grande surpresa dos Villela, o apoio das forças estaduais. Sobre esse episódio, o missionário fez um registro detalhado: Chegando a São Fidélis os soldados se apresentaram ao Delegado, que entendeu que eram mandados para que eles acabassem com os protestantes. No domingo de manhã, tivemos nosso culto regular. No culto da noite, um chefe político, para acabar com nosso trabalho, agora que tinham a força pública para auxiliá-los, como pensavam. Podeis imaginar a surpresa quando descobriram que a força estava ali exatamente para manter a paz. (...) Depois disto, nunca mais fomos perturbados (GINSBURG, 1970, pp. 100-101). Apesar de Ginsburg afirmar, com boa dose de triunfalismo, que os batistas de São Fidélis nunca mais foram perturbados, o historiador Léonard relata que manifestações antiprotestantes tiveram lugar no município, no ano de 1896 (LÉONARD, 1963, pp. 112). Seja como for, a perseguição aos protestantes em São Fidélis se inseriu no contexto da disputa política entre Villela e o coronel João Lopes, ficando bastante marcada entre os meios evangélicos da época. De fato, Ginsburg relata que retornou a São Fidélis em algum momento para assistir a queda do delegado que o prendeu – Agostinho Villela –, que, uma vez removido de seu cargo por conta das mudanças políticas no Rio de Janeiro, acabou sendo preso pelo envolvimento em um tiroteio durante as eleições, episódio que terminou com três pessoas mortas. Apesar de tumultos e fraudes nas eleições fidelenses não serem incomuns, fato é que Ginsburg se colocou ao lado do chefe da atual situação, se referindo a esse coronel como um “amigo pessoal seu” (GINSBURG, 1970, pp. 101-102). Os indícios apontam que esse “coronel amigo” seria justamente João Lopes da Silva. A aliança com políticos locais não foi a única atitude que Ginsburg tomou em busca de proteção aos batistas no município de São Fidélis. De fato, antes mesmo da organização da Primeira Igreja Batista do município, em 27 de julho de 1894, Ginsburg fundou a Loja Auxílio à Virtude, no primeiro dia de junho daquele ano, embora a regularização da instituição só tenha se dado em 30 de outubro (CRABTREE, 1962, pp. 1198 172) (BOLETIM DO G.O.B., 1984, pp. 215). A citação de um pequeno trecho do discurso proferido por Ginsburg, à época da fundação da Loja em São Fidélis, dá prova da excitação do missionário naquele momento: Agora é prosseguir corajosos e decididos na campanha! Lutae com ardôr! Sêde varonis na batalha! Mãos à obra! A Virtude, auxiliada assim, por braços tão robustos, por corações tão frementes, por almas tão bem formadas, há de irradiar, qual pharol entre penhascos perigosos, por todos os recantos e seus contornos, deste campo ainda tão cheio de trevas (GINSBURG apud BOLETIM DO G.O.B., 1984, pp. 218). Não é razoável compreender a fundação da Primeira Igreja Batista e da Loja em São Fidélis, em datas tão próximas, como mera coincidência. De fato, mais singular ainda seria Ginsburg, como missionário protestante, ter atuado para a fundação de uma Loja antes da fundação de uma congregação religiosa. Consultando o livro de registros de membros da Loja Auxílio à Virtude, pude constatar que, à época da fundação daquela instituição (1894), Salomão Ginsburg era maçom de grau 32, segundo grau mais alto dentro da Maçonaria de rito escocês8. O livro de registros também indica que Ginsburg havia sido “iniciado” na Loja Progresso, de Campos, dado contraditório, haja visto que o missionário só chegou naquele município em 1893, já tendo Ginsburg referenciado sua filiação à Maçonaria durante sua passagem pelo município baiano de Queimadas, no ano de 1892. Dada a excitação de Ginsburg com a fundação da Loja de São Fidélis – o discurso do missionário, que naquela ocasião era 2º secretário da Loja, foi muito mais longo que o do próprio orador, Júlio Armond –, é possível supor que a fundação de uma instituição maçônica naquele município, que deu exemplo de grande perseguição aos protestantes, era um projeto pessoal seu. Nossa hipótese é que Ginsburg, maçom de elevado grau dentro da Ordem, pode ter convencido seus irmãos maçons da Loja Progresso a expandir a influência da Maçonaria para São Fidélis. Com essa ação, Ginsburg pode ter buscado, para além da expansão da própria Maçonaria, estabelecer um ponto de apoio aos protestantes naquele município. Um fato que corrobora nossa hipótese é uma edição do jornal O Fidelense, datada de 29 de julho de 1899. Sabemos que aquele periódico era de influência maçônica, já que seu redator faz uma invocação ao “Supremo Architecto do Universo” em uma das colunas do jornal. Essa edição é especialmente importante para o nosso estudo pois traz ataques sistemáticos a Victorino Villela – alcunhado de 8 O grau 32 do rito escocês corresponde ao título de Sublime Príncipe do Real Segredo, fazendo parte, junto dos graus 31 e 33, dos chamados “graus administrativos” da Ordem (ARNOUT, 2017, pp. 43). 1199 “demonochrata” nas páginas do periódico –, acusado de vilipendiar o culto católico. Aparentemente, os desentendimentos entre Victorino Villela e um vigário local levaram o chefe político a invadir uma igreja em plena missa, tendo o redator d’O Fidelense tomado o partido do vigário imediatamente9. O redator do jornal ainda relembrou os ataques que o mesmo personagem havia feito a Salomão Ginsburg, apenas alguns anos antes. O objetivo da Maçonaria, por meio do jornal, era claro: formar uma frente comum contra os desmandos de Villela, unindo católicos, batistas e maçons em uma aliança comum contra o “demonochrata”. Até que ponto essa estratégia foi bem sucedida ainda não nos é possível afirmar, cabendo apenas observar que a introdução da Maçonaria e da Igreja Batista em São Fidélis alteraram significativamente o equilíbrio de poder local. Considerações finais O presente artigo não esgota todas as possibilidades de análise sobre a temática apresentada e nem temos a pretensão de atingir esse feito. Cabe apenas observar que a aliança entre maçons e protestantes, tantas vezes demonstrada ao longo desse estudo, sereproduz também dentro do município de São Fidélis, afundado em uma acentuada crise política e econômica nessa primeira década republicana. À tradicional rivalidade entre os coronéis Villela e Lopes, soma-se a atuação de diversos grupos que pleiteiam a expansão de sua própria influência sobre a sociedade local. Assim, podemos afirmar que a República significou, no caso específico de São Fidélis, a abertura de novas disputas políticas, econômicas, religiosas e sociais, que não raramente resultaram em violências brutais e violações de direitos. Referências Bibliográficas Fontes: GINSBURG, Salomão Luiz. Um judeu errante no Brasil. Tradução de Manoel Avelino de Souza. Casa Publicadora Batista: Rio de Janeiro, 1970. O Fidelense. Edição de 29 de julho de 1899. Boletim do Grande Oriente do Brasil, Jornal Oficial da Maçonaria Brasileira. Edição de outubro e novembro de 1894. 9 Os termos elogiosos com que o redator do jornal se refere ao vigário fidelense parecem reforçar nossa tese de que o clero local não esteve envolvido nas perseguições contra Salomão Ginsburg. 1200 Bibliografia: ANDRADE, Athos Vieira de. O Evangelho e a Maçonaria: uma parceria que deu certo no Brasil. Contagem: Gráfica Lithera Maciel, 20004. ARAÚJO, Elysio de. 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