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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOUTORADO EM HISTÓRIA ZEZITO RODRIGUES DA SILVA UMA VILA NA PERIFERIA DO IMPÉRIO: SOCIEDADE, TERRITÓRIO E PODER NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (VILA NOVA DO PRÍNCIPE E SANTA ANNA DE CAITETE, 1810-1821) NITERÓI - RJ 2021 ZEZITO RODRIGUES DA SILVA UMA VILA NA PERIFERIA DO IMPÉRIO: SOCIEDADE, TERRITÓRIO E PODER NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (VILA NOVA DO PRÍNCIPE E SANTA ANNA DE CAITETE, 1810-1821) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Dou- tor em História. Campo de Confluência: História Contemporânea I – Poder e Sociedade Orientadora: Prof.ª Drª. Gladys Sabina Ribeiro NITERÓI - RJ 2021 ZEZITO RODRIGUES DA SILVA UMA VILA NA PERIFERIA DO IMPÉRIO: SOCIEDADE, TERRITÓRIO E PODER NO ALTO SERTÃO DA BAHIA (VILA NOVA DO PRÍNCIPE E SANTA ANNA DE CAITETE, 1810-1821) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Dou- tor em História. Campo de Confluência: História Contemporânea I – Poder e Sociedade BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________________________________ Prof.ª Drª. Gladys Sabina Ribeiro - Orientadora Universidade Federal Fluminense – UFF ______________________________________________________________________________ Prof.ª Drª. Avanete Pereira Sousa - Arguidora Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB ____________________________________________________________________________ Prof.ª Dr. Alexandre Mansur Barata - Arguidor Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF ______________________________________________________________________________ Prof.ª Drª. Maria de Fátima Novaes Pires - Arguidora Universidade Federal da Bahia – UFBA ______________________________________________________________________________ Prof Dr. Carlos Gabriel Guimarães - Arguidor Universidade Federal Fluminense – UFF ______________________________________________________________________________ Prof Dr. Luís Fernando Saraiva - Suplente Universidade Federal Fluminense – UFF ______________________________________________________________________________ Prof Dr. Humberto Fernandes Machado - Suplente Universidade Federal Fluminense – UFF NITERÓI - RJ 2021 DEDICATÓRIA Dedico esta pesquisa à minha família e amigos que sempre estiveram presentes, direta ou indi- retamente em todos os momentos de minha formação. Em especial, a meus pais Isabel e Miguel (in memoriam), a meu filho Miguel e a Rose, que souberam compreender as ausências e a colaborar na caminhada. Aos meus mestres, que me inspiram em todos os campos da vida. Aos meus alunos/as de todos os tempos, que sempre me ajudaram a reafirmar a generosa mis- são de ser professor. AGRADECIMENTOS Ao final dessa intensa trajetória formativa, quando o mergulho na pesquisa objetiva a pro- dução de novo conhecimento e acaba revelando um novo ser - o pesquisador - o reconhecimento de que nada se faz sem companhias na extensa caminhada. Ao considerarmos que a História é filha de seu tempo, e a escrita da História, naturalmente, a extensão desse valor, devo dizer que, ao longo desta pesquisa, vivemos tempos difíceis e dramáticos durante a pandemia do COVID-19 nos anos finais desse trabalho, o que contribuiu para eventuais limitações. Resta agradecer aos que estiveram comigo neste desafio. Agradeço à Prof.ª Drª. Gladys Sabina Ribeiro que, mesmo sem conhecer o projeto nem o pesquisador, topou o desafio em seguir junto com o profissionalismo e zelo com que pautou seu trabalho, além da generosidade e compreensão que lhe são particulares, o que se traduziu em um apoio e interlocução imprescindíveis para as trilhas seguidas nesta pesquisa. Agradeço à generosa colaboração dos professores integrantes das bancas de qualificação e defesa, pelo tempo dedicado à apreciação desta tese e, sobretudo, pelas generosas e preciosíssimas lições ofertadas, interlocu- ções que contribuíram nos rumos dessa tese. À Prof.ª Drª. Avanete Pereira de Sousa e o Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata pelas lições que, iniciadas na banca de qualificação, se estenderam à banca de defesa. À Prof.ª Drª. Maria de Fátima Novaes Pires, as lições que remontam ao tempo da graduação, mas que, nesta tese, agrega muito em qualidade, a gratidão se prolonga a convivências presentes. Essa mesma qualidade, concedida pelo Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães, em sua pre- ciosa apreciação e colaboração concedida por ele e pelos professores suplentes Prof. Dr. Luiz Fer- nando Saraiva e Prof. Dr. Humberto Fernandes Machado, por também terem acolhido a apreciação desta tese e ajudado em seus rumos. Minha gratidão a todos (as)! Aos professores Maria Fernanda Bicalho, Marcello Loureiro e Laura Maciel (UFF), grati- dão. Estendo os agradecimentos aos demais professores do Instituto de História - IHT / UFF pela excelência e compromisso com que tratam o Programa de Pos-graduação em História. Aos funci- onários do programa e aos demais funcionários da Universidade Federal Fluminense que, com a habitual dedicação de servidores públicos, zelam por essa atividade tão cara ao país. Agradeço também aos colegas do doutorado que me proporcionaram a boa convivência nos tempos de dis- tanciamento de casa, com as aulas em Niterói. Em especial, agradeço a amizade do paulista Everton (Tom), dos mineiros Marina e João, entre tantos amigos que trago dessa vivência. À professora Patrícia Valim (UFBA) e demais colegas mestrandos e doutorandos de sua turma do programa desta universidade que, em 2018, me acolheu como estranho no ninho e me proporcionou o doce sabor do convívio, irmanados na causa da produção de conhecimento, que em muito agregou nesta trajetória. Gratidão a todos (as). Agradeço aos profissionais dos Arquivos Públicos, incansáveis servidores da pesquisa bra- sileira. Às equipes do Arquivo Nacional, da Biblioteca Nacional, aos responsáveis pelas fontes digitais do Arquivo Ultramarino, do Arquivo Publico do Estado da Bahia, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, do Arquivo Público Municipal de Caetité e do Arquivo da Paróquia Senhora Santana em Caetité, bem como todos aqueles que colaboram em disponibilizar, por via física ou digital, as fontes, coração desta pesquisa. Agradeço à Universidade do Estado da Bahia e o seu Departamento de Ciências Humanas - DCH / Campus VI – Caetité, ao qual sou vinculado como professor, por meio de seus gestores e responsáveis pela minha disponibilização concedida por licença para o desenvolvimento desta pes- quisa. Agradeço aos meus colegas do Colegiado de História que colaboraram, sensíveis às deman- das que encaminhei, na pessoa do seu coordenador, o prof. Jairo Nascimento. Gostaria de fazer menção especial aos colegas/mestres de sempre, professores Maria Lúcia Nogueira, Nivaldo Dutra e Lielva Aguiar, pela minha substituição nos tempos de licença, pela amizade e colaboração nesta trajetória. Agradeço por extensão, a todos os alunos e as alunas do curso de História desta mesma universidade, pela generosa simpatia e torcida pelos melhores resultados desta pesquisa. Ao prof. Paulo Henrique Duque, ilustre colega e coordenador do projeto do Polo Documental do Judiciário APEB / APMC e toda a equipe de colaboradores da instituição, pelo zelo e trato com a seriedade e compromisso que lhe são habituais com as fontes referentes ao Alto Sertão da Bahia. Agradeço também aos membros do grupo de pesquisa em Cultura, Sociedade e Linguagem(GPCSL), abrigo confortável para os estudiosos do Alto Sertão da Bahia. Aos membros do NE- MIC/UFF e da SEO (Sociedade de Estudos do Oitocentos), aos membros do GT de História Eco- nômica da Anpuh / Seção Bahia na pessoa de Idelma Novais, todos promotores de espaços de compartilhamento de conhecimentos e convívios agradáveis. Gratidão a todos (as) que, eventualmente, não foram nominados, mas que contribuíram na apreciação, críticas, desafios que me levam errante nesta vida, concedida e renovada pelo Criador! RESUMO Este estudo trata a constituição da Vila Nova do Principe e Sant´Anna de Caitete em 1810 e os anos iniciais de seu funcionamento no território do Alto sertão da Bahia, início do século XIX. A partir da organização da estrutura camarária, traçamos uma trajetória das relações políticas então estabelecidas e os vínculos com os poderes centrais do Império Luso-brasileiro. Tendo com referência o enquadramento teórico da história social da política, evidenciam-se as relações entre centro periferia dos impérios, sob o viés da abordagem do Antigo Regime nos Trópicos. Essas reflexões iluminam a compreensão acerca dos agentes históricos em estudo - proprietários e comerciantes que, ao se fixarem na região do Alto Sertão da Bahia, constituíram uma sociedade fundada em laços de solidariedade e redes de interesses a partir do ethos civilizatório do Império Luso-português refundado como uma comunidade política. Essa análise sob a compreensão do Antigo Regime nos Trópicos permite pensar de que maneira essas “repúblicas” que representavam o poder local organizavam a governança da vila. Os resultados deste estudo conduziram também às evidências das estruturas econômicas do território da vila, especialmente a cotonicultura e as atividades a ela associada, no que se convencionou chamar de economia interna colonial. Para isso, tratamos como estudo de caso da trajetória de Antonio da Silva Prado, negociante instalado na vila desde sua formação, e sua ascensão econômica, associada ao controle do comércio feito através dos caminhos do sertão que lhe conferiu fortuna e projeção política. Palavras-chave: Sociedade. Poder. Território. Alto Sertão Da Bahia. Século XIX. ABSTRACT This study deals with the constitution of Vila Nova do Principe and Sant´Anna de Caitete in 1810 and the initial years of its operation in the territory of the Alto sertão da Bahia, at the beginning of the 19th century. From the organization of the council structure, we traced a trajectory of the political relations established there and the ties with the central powers of the Luso-Brazilian Empire. With reference to the theoretical framework of the social history of politics, the relationship between the peripheral center of empires is evident, under the bias of the approach of the Old Regime in the Tropics. These reflections illuminate the understanding of the historical agents under study - owners and traders who, when settling in the Alto Sertão da Bahia region, constituted a society founded on bonds of solidarity and networks of interests from the civilizing era of the Luso-Portuguese Empire refounded as a political community. This analysis under the understanding of the Old Regime in the Tropics allows us to think about how these “republics” that represented local power, organized the governance of the village. The results of this study also led to evidence of the economic structures of the village's territory, especially cotton farming and the activities associated with it, in what was conventionally called the colonial domestic economy. For this, we treat as a case study the trajectory of Antonio da Silva Prado, a businessman installed in the village since his formation, and his economic rise, associated with the control of trade through the paths of the hinterland that gave him fortune and political projection. Keywords: Society. Power. Territory. Alto Sertão da Bahia. XIX century. RÉSUMÉ Cette étude porte sur la constitution de Vila Nova do Principe et de Sant´Anna de Caitete en 1810 et les premières années de son fonctionnement sur le territoire de l'Alto sertão da Bahia, au début du XIXe siècle. A partir de l'organisation de la structure du conseil, nous avons tracé une trajectoire des relations politiques qui y sont établies et des liens avec les pouvoirs centraux de l'Empire luso- brésilien. En référence au cadre théorique de l'histoire sociale de la politique, la relation entre le centre périphérique des empires est évidente, sous le biais de l'approche de l'Ancien Régime sous les tropiques. Ces réflexions éclairent la compréhension des agents historiques étudiés - propriétaires et commerçants qui, en s'installant dans la région de l'Alto Sertão da Bahia, ont constitué une société fondée sur des liens de solidarité et des réseaux d'intérêts de l'époque civilisatrice de l'Empire luso-portugais refondé en tant que communauté politique. Cette analyse sous l'angle de l'Ancien Régime sous les tropiques nous permet de réfléchir à la manière dont ces «républiques» qui représentaient le pouvoir local, organisaient la gouvernance du village. Les résultats de cette étude ont également permis de mettre en évidence les structures économiques du territoire du village, en particulier la culture du coton et les activités qui y sont associées, dans ce que l'on appelle traditionnellement l'économie domestique coloniale. Pour cela, nous traitons comme étude de cas la trajectoire d'Antonio da Silva Prado, un homme d'affaires installé dans le village depuis sa formation, et son essor économique, associé à la maîtrise du commerce à travers les chemins de l'arrière-pays qui lui ont donné fortune et politique projection. Mots-clés: société. Pouvoir. Territoire. Alto Sertão da Bahia. XIXème siècle. LISTA DE FIGURAS Figura 1 – Tráfico negreiro ............................................................................................................ 98 Figura 2-Mapa da Bahia ............................................................................................................... 113 Figura 3- Mapa parcial da região compreendida do Sertão do Ceará até a Vila do Príncipe Figura 4 - Planta geográfica do continente, que corre da Bahia de Todos os Santos até a Capitania do Espírito Santo.......................................................................................................................... 115 Figura 5 - Caminhos do Sertão da Bahia..................................................................................... 127 Figura 6 - Estrada construída desde as vilas litorâneas de Camamu e Ilhéus em direção à Serra dos Montes Altos..........................................................................................................................144 Figura 7 – Termo da Vila de Rio de Contas, século XVIII.......................................................... 147 Figura 8 – Termo da Vila do Rio de Contas e demarcação da Vila de Caetité, emancipada em 1810..............................................................................................................................................153 Figura 9 – Termo da Vila do Rio de Contas e demarcação da Vila de Caetité, emancipada em 1810, com destaque para áreas em litígios ou contestação, incorporadas à nova vila ................158 Figura 10 – Desdobramentos territoriais – Emancipação da Imperial Vila da Vitória (1840).....174 Figura 11 -Relação de importação que fez Portugal, Europa, Ásia, África e Portos Do Brasil sobre a Bahia em todo o ano de 1810.....................................................................................................186 Figura 12. - Representaçãoesquemática da economia colonial baiana/ Vila do Rio de Contas - início do séc. XIX.........................................................................................................................196 Figura 13 - Representação esquemática da economia colonial baiana/ Vila do Rio de Contas Transcrição da imagem anterior ..................................................................................................197 Figura 14 - Mapa: Caminhos das Minas à Bahia – SÉCULO XVIII...........................................201 Figura 15 – Deslocamento da área produtora de algodão na BAHIA NO FINAL DO SÉCULO XVIII – Baía de Camamu para o Alto Sertão da Bahia ...............................................................219 Figura 16 - Produto interno bruto (PIB) per capita, por territórios de identidade 2013, Estado Da Bahia............................................................................................................................................ 221 Figura 17 -Voiturier de Coton et Sertanejo – Denis, Ferdinand.................................................. 223 Figura 18- Escravos colhendo-Algodão (Debret).........................................................................228 Figura 19 - Trajetória do deslocamento dos tropeiros entre a Vila de Caetité e o Porto de S. Félix Da Cachoeira – BA ......................................................................................................................260 Figura 20 – Anúncio da casa comercial de Gabriel Henriques Pessoa - 1827 ............................279 Figura 21 – Vila de Caitete, seus arraiais e povoados e companhias de ordenanças no início do séc. XIX .......................................................................................................................................320 LISTA DE QUADROS Quadro 1- Resumo dos valores das importações de produtos pelos portos da Bahia – Anos 1808, 1809 e 1810 ................................................................................................................................. 173 Quadro 2-Tabela analítica do balanço comercial da Bahia para os anos de 1808, 1809 e 1810. 175 Quadro 3- Sinopse dos mais importantes artigos de exportação, da Bahia, em 1817 ................. 195 Quadro 4 - Algodão na Bahia, de 1º de outubro de 1817 até 30 de setembro de 1818 ............... 201 Quadro 5- Impacto sofrido pelas guerras de independência na Bahia ........................................ 203 Quadro 6 - Relação de bestas vendidas e impostos a pagar na Vila de Caetité no ano de 1810 . 230 Quadro 7- Produtos comprados por Silva Prado em 1810 .......................................................... 241 Quadro 8-Tipos e valores de bens adquiridos a Silva Prado ....................................................... 247 Quadro 9– Exemplo de financiamento à produção algodoeira nos sertões da Bahia por Antônio da Silva Prado ................................................................................................................................... 252 Quadro 10– Financiamento da cultura e pagamento em produção em algodão .......................... 253 Quadro 11-Financiamento de Silva Prado a Tropas .................................................................... 258 Quadro 12– Gastos com tropas feito por Silva Prado ................................................................. 259 Quadro 13- Relação de cargas de sal negociadas por Silva Prado em 1814 ............................... 260 Quadro 14- Relação de cargas de algodão exportadas por Silva Prado em 1815 / 1816 ............ 261 Quadro 15– Cargas de algodão vendidas por Silva Prado em 1816 ............................................ 264 Quadro 16 – Recursos empregados na construção da residência por Silva Prado ...................... 268 Quadro 17– Outros recursos empregados na construção e respectivos valores .......................... 269 Quadro 18– Valores utilizados por Silva Prado em compras na Bahia ....................................... 271 Quadro 19 – Gastos e pagamentos feitos por Silva Prado em 1816 ............................................ 272 Quadro 20 – Objetos adquiridos por Silva Prado em passagem pela Bahia rumo à São Paulo em 1816, indicativos de aristocratização1816 ................................................................................... 273 Quadro 21– Objetos para uso pessoal e montaria........................................................................ 274 Quadro 22– Cargos da estrutura camarária da Vila de Caetité - 1810 - 1812 ............................. 376 Quadro 23- Perfil dos oficiais do Terço de Ordenanças da Vila de Caetité ................................. 309 Quadro 24 – Composição da Junta da Décima dos Prédios Urbanos .......................................... 315 Quadro 25– Impostos, taxas, multas e emolumentos pagos por ocasião da implantação da Vila de Caetité (1810) .............................................................................................................................. 327 Quadro 26-Escala de abastecimento de carnes – Vila de Caetité / 1812 ..................................... 331 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15 UMA VILA NA PERIFERIA - AS RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA E O LUGAR DAS LOCALIDADES NO TECIDO POLÍTICO DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO. .................... 17 OS CAMINHOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DA TESE ........................................... 23 CAPÍTULO I: CONFORMAÇÕES POLÍTICAS DO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ANTIGO REGIME ........................................................................................................................................ 39 1.1. O REFORMISMO ILUSTRADO E AS TRANSFORMAÇÕES DO IMPÉRIO PORTUGUÊS ................................................................................................................................ 48 1.2. CONSOLIDAÇÃO E CRISE DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO ............................. 55 1.3. A CAPITANIA DA BAHIA NA RECONFIGURAÇÃO DO IMPÉRIO ....................... 67 1.4. OS SERTÕES DA AMÉRICA PORTUGUESA: NOVAS FRONTEIRAS A CONQUISTAR .............................................................................................................................. 70 1.5. AS RELAÇÕES CENTRO – PERIFERIA NO CONTEXTO DO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS ................................................................................................................................ 78 CAPÍTULO II – TERRITORIALIZAÇÃO DOS SERTÕES DA BAHIA NO CONTEXTO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS .............................................................................................................. 88 2.1. A OCUPAÇÃO DOS SERTÕES DA BAHIA ................................................................... 90 2.1.1. Representações cartográficas dos sertões da bahia ......................................................... 95 2.1.2. Os sertões em três tempos ............................................................................................. 101 2.1.3. Sertões como espaços de trânsito .................................................................................. 102 2.1.4 Sertões como espaços de conexões ................................................................................ 105 2.1.5. Sertões como espaço autônomo de produção ............................................................... 107 2.2. REGIONALIZAÇÃO DOS SERTÕES DA BAHIA NO SÉCULO XVIII ..................... 109 2.3 CAMINHOS E FRONTEIRAS ENTRE BAHIA E MINAS ............................................ 114 2.4. A ESTRADA DO SALITRE E A AMPLIAÇÃO DOS CONTATOS ENTRE SERTÃO E LITORAL ....................................................................................................................................121 2.5. A VILA DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO DAS MINAS DO RIO DE CONTAS - MINERAÇÃO NA BAHIA, SÉCULO XVIII ............................................................................ 131 2.6. A EMANCIPAÇÃO DA VILA NOVA DO PRÍNCIPE E SANT’ANNA DO CAHITETÉ – DINÂMICAS DE UM TERRITÓRIO EM TRANSFORMAÇÃO ............................................ 138 2.7. TERRITORIALIZAÇÃO DOS SERTÕES DA BAHIA – NOVAS VILAS E TERRITÓRIOS NO SÉCULO XIX ............................................................................................ 155 CAPÍTULO III - CONEXÕES TERRITORIAIS E REDES MERCANTIS NOS SERTÕES DA AMÉRICA PORTUGUESA ................................................................................................. 164 3.1. A PARTICIPAÇÃO DA BAHIA NO COMÉRCIO EXTERNO DO IMPÉRIO PORTUGUÊS, NO INÍCIO DO SÉCULO XIX ......................................................................... 164 3.2. A DINÂMICA DA ECONOMIA SERTANEJA .............................................................. 180 3.2.1. A economia algodoeira e a reorganização produtiva dos sertões da Bahia ................... 190 3.2.2. Perfil da cotonicultura nos sertões da Bahia no início do século XIX ......................... 204 3.3. A BASE ESCRAVISTA DA PRODUÇÃO SERTANEJA ............................................... 216 CAPÍTULO IV - FORTUNA E PODER NO ALTO SERTÃO DA BAHIA - RIQUEZA FORJADA NA DINÂMICA MERCANTIL SERTANEJA ........................................................ 226 4.1. CAMINHOS E DESCAMINHOS DO COMÉRCIO DE ALGODÃO E MUARES NO ALTO SERTÃO DA BAHIA ...................................................................................................... 226 4.2. A TRAJETÓRIA DE ANTÔNIO DA SILVA PRADO NOS SERTÕES DA BAHIA ..... 239 4.2.1. Os negócios de Antônio da Silva Prado nos sertões da Bahia ...................................... 245 4.2.2 A moeda e o crédito na economia algodoeira dos sertões .............................................. 248 4.2.3. Desvendando o negócio do algodão: principal fonte do enriquecimento de Silva Prado ..................................................................................................................................................... 261 4.2.4. Vida material e aristocratização dos negociantes sertanejos: o caso de Silva Prado .... 266 4.2.5 O retorno de Silva Prado a São Paulo – rompimento com o comércio sertanejo .......... 275 CAPÍTULO V - PODER E SOCIEDADE NO ALTO SERTÃO DA BAHIA ....................... 280 5.1. A CONSTITUIÇÃO DOS CARGOS CAMARÁRIOS - ESTRUTURAÇÃO DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS DA VILA DE CAETITÉ ............................................................ 287 5.2. O TERÇO DE ORDENANÇAS DA VILA DE CAETITÉ .......................................... 297 5.2.1. As companhias de homens pardos da vila de caetité ................................................ 303 5.2.2. Perfil dos oficiais do terço de ordenanças da vila de caetité ..................................... 309 5.3. O ESPAÇO CAMARÁRIO, TEATRO DE DISPUTAS DE PODER: O COTIDIANO DAS CATEGORIAS SOCIAIS EM EMBATES ......................................................................... 311 5.4. AS FINANÇAS DA VILA E O CONTROLE DAS RENDAS PÚBLICAS................ 324 1.6. A COMUNICAÇÃO POLÍTICA: INSTRUMENTOS DA DINÂMICA DE RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA ................................................................................................................ 336 1.7. PETIÇÕES DE MERCÊS: AS DISPUTAS PELOS OFÍCIOS DA VILA DE CAETITÉ 342 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 356 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 360 APÊNDICE ........................................................................................................................ 375 15 INTRODUÇÃO Os estudos desenvolvidos nesta tese intitulada Uma vila na periferia do Império - Sociedade, território e poder no Alto Sertão da Bahia (Vila Nova do Príncipe e Santa Anna de Caitete, 1810-1821) visam aprofundar o conhecimento sobre um território, aqui demarcado como Alto Sertão da Bahia, a partir da criação da Vila Nova do Príncipe e Santanna do Caetete1 em 1810 (doravante, Vila de Caetité). Por esse prisma, além de evidenciar os sujeitos envolvidos nesse processo, seus embates, desafios experiências, procura-se também evidenciar as conexões mercantis desenvolvidas em seu território, percebendo-as enquanto integradas à estrutura do comércio interno que marcou a economia da América portuguesa – e, em especial a Capitania da Bahia – no início do século XIX. Nessa trajetória, procurou-se entrecruzar os episódios particulares de uma vila dos longínquos sertões, em um contexto de reconfiguração do Império Luso-brasileiro, momento em que ele se refunda a partir da América portuguesa, tornando-a centro das decisões de imenso território transcontinental. Ao debruçar sobre seus episódios cotidianos, evidencia-se a natureza operacional desse império que traz o arcabouço jurídico-político do Antigo Regime, ainda que esmaecido em seu vigor de outrora. Nesta perspectiva, apresentam-se a política mercantilista e as contradições com o liberalismo econômico em expansão. O que convenciona chamar aqui de Alto Sertão da Bahia é, atualmente, um território localizado na região sudoeste da Bahia, tendo por delimitadores naturais o vale do Rio Gavião a leste, as cadeias montanhosas da Serra do Sincorá (Chapada Diamantina) e vale do Rio Paramirim a norte, o curso do alto médio S. Francisco a leste e o vale do Rio Verde, que nos separa do vizinho Estado de Minas Gerais ao sul. Pretende-se compreender melhor a região do Alto Sertão da Bahia, onde se formou a Vila de Caetité, enquanto realidade sócio-espacial com a qual convivemos empiricamente, mas sobre a qual não há consenso nas suas reais especificidades e delimitações. Atualmente, o território do Alto Sertão da Bahia corresponde parcialmente ao Território de Identidade do Sertão Produtivo. Somando-se aos Territórios de Identidade do Médio Rio de Contas, Vitória da Conquista e Médio Sudoeste, teremos o equivalente ao termo da antiga Vila de Caiteté. Ao propor reflexões sobre a dinâmica territorial dos sertões da Bahia, este estudo pressupõe definir 1Atual cidade de Caetité-Bahia, essa vila foi emancipada oficialmente em 1810, embora desde 1803 já houvesse determinação do Conselho Ultramarino que autorizava sua emancipação da Vila de Rio de Contas, a qual pertencia. 16 espacial e temporalmente os seus limites, considerando a multiplicidade semântica que carrega, proporcionando a operacionalização precisa e contextualizada dos diversos contornos que o termo sertões implica. Ao perscrutar os liames das instituições e sujeitos que operavam em nível local, como o Concelho da Vila e seus oficiais, os juízes vintenários e respectivos escrivães ou companhias de ordenança e seus corpos de oficiais militares, percebem-se os detalhes de uma sociedade que, mesmo distante dos principais centros de poder, reproduziam os ritos, símbolos, protocolos e o ethos civilizacional do Império Português, zelando para dele não se afastar. A presença significativa de uma comunicação com os centros de poder, especialmente a ouvidoria da Comarca da Jacobina, o Governador e Capitão General da Capitania da Bahia e a própria Coroa, na pessoa do Príncipe Regente, demonstra uma afinidade e participação dessa vila na governança do Império, a partir de suas próprias práticas de governança. No cotidiano dessa vila, ressai uma relação com os indivíduos na perspectiva de ordenamento e normatização social, com recursos de coerção e ajustamento à ordem vigente. Ressai também a prática das petições, especialmente das mercês, instrumento por meiodo qual a relação pessoal de devoção e vassalagem à Coroa aparece como recurso de coesão desse amplo e diverso império. A hierarquização social da Vila de Caetité, característica das sociedades do Antigo Regime, aparece na organização institucional que são expressas na hierarquização de seu território, por meio dos arraiais e povoados que integravam o termo desta vila. Entre eles, uma teia de relações de toda a natureza (políticas, mercantis, familiares etc.) constituem um perfil cultural muito particular. A organização das famílias em pequenas comunidades rurais policultoras produz um conjunto de vivências e aprendizagens próprias dessa organização. Este estudo surgiu da necessidade de pensar a origem dos territórios de identidade da região sudoeste da Bahia, baliza das políticas públicas atuais da gestão estadual. Ele propõe refletir sobre a constituição da Vila Nova do Príncipe e Santana de Caetité – de sua sociedade, organização política e econômica - desde a sua criação, no início do século XIX. Parte-se do princípio de que é condição sine qua non um exercício de reflexão que se apresente a natureza política desse império, a dinâmica que empreenderam nos diversos níveis (geral, regional e local) e a conjuntura em que estes se encontravam no período estudado. Essa é a contribuição a qual pretende-se dar para a historiografia por meio deste trabalho. 17 A capitania, depois província da Bahia, experimentava entre os séculos XVIII e XIX um processo de transformação territorial2 em razão da nova dinâmica econômica que vivenciou. Ao aparelhamento do recém-criado Império Luso-Brasileiro, por meio de suas instituições (militares, religiosas, fiscais etc.), seguiu-se à constituição de novas vilas, a exemplo da Vila de Caetité,3 cujo termo desmembrado da Vila de Rio de Contas, abrangia a quase totalidade o território do Alto Sertão da Bahia. Com isso, ampliaram-se as redes de agentes públicos (oficiais e não oficiais) que procuravam dar conta da sua governança. Novos caminhos e rotas de acessibilidade foram criados, a exemplo da Estrada do Salitre, que permitia o acesso às minas de Monte Alto, recurso estratégico para a autonomia portuguesa na produção de pólvora e, consequentemente, na autonomia militar. UMA VILA NA PERIFERIA - AS RELAÇÕES CENTRO-PERIFERIA E O LUGAR DAS LOCALIDADES NO TECIDO POLÍTICO DO IMPÉRIO LUSO-BRASILEIRO. A historiografia4 já consolidou o papel que as câmaras ocupavam nas sociedades do Antigo regime, enquanto instituições que constituíam suportes estruturais na consolidação das operaconalidades dos poderes centrais do Império português e luso-brasileiro, já que se manifestavam como articuladoras das dimensões jurisdicional, política, militar, educativa, cívica, por meio das quais a ordem social era organizada. No Brasil, elas aparecem com evidência especial da historiografia, nos estudos sobre a constituição das principais vilas litorâneas, enquanto consolidação do projeto colonizador português dos séculos XVI e XVII, na organização das atividades mineradoras do século XVIII ou no período pós-independência, no segundo quartel do século XIX5, quando já se constituía o Império brasileiro como nova realidade política. 2 Dentre as várias transformações em seu território, o de maior vulto foi a incorporação da Comarca do São Francisco (que corresponde atualmente ao território do Oeste baiano), anexada em 1834, após desmembramento da Capitania de Pernambuco em 1820 e provisoriamente ser vinculada à Capitania de Minas Gerais. 3 Atual cidade de Caetité-Bahia, essa vila foi emancipada oficialmente em 1810, embora desde 1803 já houvesse determinação do Conselho Ultramarino que autorizava sua emancipação da Vila de Rio de Contas, a qual pertencia. 4 Dentre os estudos mais conhecidos, destacam-se a obra de Charles Boxer com a obra O império maríritmo português; Caio Prado Júnior, com as obras Evolução Política do Brasil e Formação do Brasil Contemporâneo; Raimundo Faoro, Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro; Vítor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto, Sérgio Buarque de Holanda – Herança Colonial – sua desagregação in: História Geral da Civilização Brasileira, dentre outros. 5 Dentre algumas relevantes pesquisas feitas sobre o poder local no Brasil, destacam-se: ANDRADE, Pablo de O. A "legítima Representante": câmaras municipais, oligarquias e a institucionalização do Império liberal brasileiro (Mariana, 1822-1836). 2012. 179 f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2012. FIORAVANTE, Fernanda. Os bons homens das Minas: os oficiais das câmaras mineiras no processo 18 Raros são os estudos que debruçam sobre a atuação dos poderes camarários e organização das vilas no início do século XIX6, especialmente na fundação do império luso-brasileiro, como aqui se propõe. Em cada uma dessas temporalidades, o poder local expresso pelas câmaras e instituições a ela associadas, organizavam-se a partir de processos históricos particulares, guardandos poucos elementos de identidades entre si, em seus perfis. A abordagem desta tese traz pontos de especificidade e relevância singulares, pelo fato de propor a compreensão de uma relação entre os poderes emanados do centro e as periferias do império, no momento em que se operam as transformações políticas desse centro, com a transferência de sua capital e a consequente necessidade de enraizamento e busca de legitimidade. O contexto analisado ainda apresentava alterações da dinâmica geopolítica, com a consolidação política e econômica da Grã-Bretanha enquanto parceiro preferencial do Império luso-brasileiro. Esse parceiro vivia uma grande expansão econômica, com a consequente necessidade de ampliação de mercados, e via esse império com grande interesse, mas trazia a contradição em defender a abolição do tráfico de escravos, no momento em que na América portuguesa vivia-se a expansão das fronteiras agrícolas e comércio interno, subsidiado pela economia escravista. Dentre os estudos existentes sobre esse tema, destacam-se aqueles produzidos na obra Administrando impérios: Portugal e Brasil nos séculos XVIII e XIX. O primeiro artigo que se destaca nesta obra é o escrito por A. J. R. Russel-Wood (2012), intitulado A base moral e ética do governo local o Atlântico luso-brasileiro durante o Antigo Regime. Nela, o autor descortina o tema da constituição do arcabouço jurídico-político do poder no Antigo Regime português, considerando, particularmente, as sociedades periféricas. Estas estavam aparentemente distantes dos centros de decisão, para os quais eram necessárias constituir algum ordenamento social capaz de preservar os princípios e fundamentos da ordem imperial portuguesa. de implantação do poder régio nas terras do ouro, c. 1711-c. 1750. Tese (Doutorado) Rio de Janeiro: UFRJ, 2012. FLORINDO, Glauber Miranda. Roupas velhas ou novas: As Câmaras Municipais no processo de construção do Estado Imperial (Mariana, 1828-1834). Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. SOUZA, Williams, Andrade de. O Império das (nas) municipalidades - as elites e o governo da cidade no Brasil Oitocentista (Recife, 1829-1849). Tese (Doutorado em História). Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. 6 Os trabalhos a seguir, abordam o tema a partir do recorte temporal também disposto nesta tese. Ver: SILVA, Karla Maria da. O poder municipal e as práticas mercantilistas no mundo colonial: um estudo sobre a Câmara Municipal de São Paulo – 1780-1822. Tese (doutorado em história), Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP: Assis- SP, 2011. Ver também: LEMES, Fernando Lobo. A oeste do Império – dinâmica da Câmara Municipal na última periferia colonial: um estudo das relaçõesde poder nas minas e Capitania de Goiás (1770-1804). Dissertação (Mestrado em história), Universidade Federal de Goiás: Goiânia, 2005. 19 Interessa-me saber como uma série de princípios e preceitos tomou forma e conduziu a diretrizes indefinidas e não escritas que constituíram responsabilidades individuais e coletivas, e como esses princípios e preceitos foram incorporados em código não escrito, de expectativas e imperativos morais e éticos, que foi central para a governança no nível local por todo o Atlântico português (RUSSEL-WOOD, 2012, p. 87). O historiador Russel-Wood, (2012, p. 20) ajuda a melhor dimensionar o perfil da organização do poder local no Antigo Regime Português. Para isso, recorreu às referências circunstanciais que promoveram o desenvolvimento de sociedades nas regiões da América portuguesa. No Atlântico de falar português, durante o Antigo Regime, a noção de “república” aplicava-se à comunidade de pessoas que constituíam os habitantes de uma vila ou cidade sobre a qual uma Câmara tinha jurisdição. Esta palavra também carregava a conotação da existência de igualdade entre os membros de tal comunidade. É difícil conciliar essa segunda conotação com a realidade social do Atlântico português, especialmente as colônias na África e no Brasil. O autor apresenta o seu pensamento afirmando ser a Câmara uma síntese da administração portuguesa em nível local. Desenvolve os seus argumentos com base nos fundamentos da chamada “economia moral.”7 Com isso, parte para “identificar noções/conceitos que eram essenciais para o ethos imperial, as mentalidades e a memória institucional dos Senados da Câmara”. Desta forma, Russel-Wood recorreu à documentação escrita (atas das Câmaras, buscando nos termos de acórdãos, a correspondências com as autoridades, provisões, editais e os bandos) para levantar alguns conceitos que, por serem recorrentes nos registros a exemplo de “república”, “bem comum” e “boa ordem”, tomou como centrais para a compreensão do poder camarário no Antigo Regime português. A sua análise sobre esses termos e conceitos, bem como o seu desvelamento lexicográfico, revelaram, por exemplo, que conceitos como o de “república” poderiam muito mais consistir no “reconhecimento tácito de uma realidade social que ele [o escrivão da Câmara] e seus contemporâneos admitiam, ou rejeitavam, ou em relação ao qual eram diferentes”, longe de descrever o sentido fundante da res publica. Utilizando reiteradamente os conceitos de “república”, “bem comum” e “boa ordem”, e operando de maneira a constituir contornos semânticos desses termos de acordo com determinada conveniência circunstancial, as estruturas de poder camarário 7 Conceito desenvolvido por Edward Thompson no artigo intitulado A economia moral da multidão inglesa no século XVIII, publicado no jornal inglês Past & Presente, 1971. O conceito foi aplicado na compreensão das razões que embasavam o comportamento de grupos em motins por fome na Inglaterra, defendendo que argumentos morais estavam associados à decisão de participar ou não de motins. 20 cuidavam da constituição de um ordenamento ético e moral alinhado ao ethos imperial, ao mesmo tempo em que permitiam determinado alargamento da norma jurídica escrita, fazendo consolidar uma normativa consuetudinária que particularizavam as relações cotidianas da política local. Para Russel-Wood (2012, p.20): O fato de terem de ser promulgados regularmente [os termos “república”, “bem comum” e “boa ordem”] era, de certo modo, o reconhecimento tácito da erosão da consciência geral das normas descritas acima, da ausência de um consenso sobre as normas e práticas aceitáveis, e da ineficácia das punições para conter práticas abusivas. Este estudo dialoga com a atual pesquisa, uma vez que visa demarcar o papel ocupado pela câmara da Vila de Caetité na gestão do seu termo. Por essa ótica, ressalta-se a importância das localidades na organização de seus territórios, hierarquização e ordenamento social, constituição da institucionalidade jurídico-política e uma gramática política que era encarregada de garantir os lugares constituídos para cada categoria. Tudo isso revela o papel atribuído às vilas, ao considerarmos a necessidade reorganização do Império Luso-Brasileiro, a sua crise e sua transição para a formação do Império Brasileiro, no início do século XIX. Em outro artigo da mesma obra, Arno e Maria Wehling (2011) desenvolveram reflexão sobre as estratégias de adaptação da norma portuguesa à circunstância colonial. Para eles, essa constitui uma das principais questões colocadas aos dirigentes locais portugueses, e que estava diretamente associada à forma de administrar os domínios ultramarinos com mínimo de “unidade, organicidade e eficiência” (WEHLING A.; WEHLING J., 2011, p. 45) e observância das normas. A saída era “rejeitá-la, punindo os inobservantes; aceitá-la tacitamente, ignorando o desacato; ou admiti-la, amoldando-se à realidade”. Parece que esse último foi o caminho tomado pelas instâncias de poder local nas colônias. Ainda nesse texto, Arno Wehling e Maria José Wehling (2014) concluíram que a flexibilização das normas foi um imperativo diante das circunstâncias coloniais, o que se deveu às percepções da alteridade, da continentalidade e de um “tempo processual” diverso. Some-se a isso a escassez de meios da Coroa e a percepção dos traços distintivos locais, e assim teremos uma institucionalização do casuísmo, promovendo uma percepção de universo aparentemente caótico da sociedade colonial. Esse processo proporcionou um conjunto de situações e formas de contorno da norma jurídica estipulada nas Ordenações: a justaposição da inovação à norma, a revogação, em alguns casos, da Ordenação por legislação extravagante e admissão da excepcionalidade, sem 21 revogação da Ordenação em contrário ou admissão da excepcionalidade sem revogação das leis extravagantes. (WEHLING, 2011, p. 45). Os estudos sobre a Vila de Caetité revelam uma sociedade levada, de fato, a estar atenta à observância das estruturas jurídico-políticas do Antigo Regime Português. Apesar de perceber, em alguns momentos, as estratégias de sublevação das normas jurídicas em benefício dos interesses corporativos ou pessoais, o poder camarário buscava zelar pela observância legal em favor desses interesses, considerando que as ditas normas já estavam balizadas em benefício das camadas senhoriais dominantes. Estabelecidos em seus territórios, os proprietários do Alto Sertão da Bahia buscavam pelo acesso à terra por meio de arrendamentos e aforamentos de glebas, cujos titulares eram os herdeiros da Casa da Ponte, ainda no século XVIII. A partir dos negócios com o algodão, emergente gênero com participação relevante na pauta de exportação baiana, no início do século XIX, houve ampliação da produção sertaneja, fortalecendo a sua cadeia de negócios, que incluíam o comércio de mulas, o tropeirismo, a produção de panos de algodão, etc. Finalmente, com a implantação da vila e seu aparato camarário, esses homens se consolidam nas estruturas de poder por meio do acesso aos cargos e ofícios da Câmara, ou às Companhias de Ordenança. Quando as normas implementadas pelo poder camarário limitavam as condições de desenvolvimento dos interesses mercantis, tornava impraticável aderir a elas e manter, ao mesmo tempo, esses interesses. Desta maneira, recorriam à burla para manter em expansão as suas estratégias de lucros. Negociantes de algodão ou de mulas driblavam o pagamento do que consideravam pesados impostos, que limitavam os lucros sobre esses produtos. Na obrigação de pagarem os impostos sobre as carnes verdes, havia certa sonegação dos criadores em abastecer o mercado, só superado mediante as medidas impositivas do Senado da Câmara, que aumentou a fiscalização e determinou escalas mensais paraque determinados criadores fornecessem as reses para o abate, como se pode observar no registro a seguir: Nomearaó ao Capitaó Joze Antonio de Carvalho para no mez de Janeiro do anno vindoro de mil oito centos e quatorze trazer tanto gado ao corte, quanto basta para ser tentação do povo, de baixo da penna de que naó trazendo, ser condemnado com seis mil reis por cada falta de cada hum dos Sábados, e ainda no cazo da carne naó chegar para todo povo, e que eu Escrivaó o notifique por carta8. 8 APMC. Op., cit., p. 286. 22 A adesão às normas e à estrutura jurídico-política da “república” era um elo de reconhecimento do pertencimento ao próprio Império, a quem se recorria quando convinha, demandando pela concessão de mercês como estratégia de expansão, ou de ascensão social, ou mesmo de consolidação de patrimônios e de outros interesses. Por isso, buscavam nas instâncias intermediárias, como na Ouvidoria de Jacobina, por meio de processos e recursos, a garantia de privilégios ou proteção contra o que consideravam arbitrário. Observa-se, no contexto de institucionalização das estruturas camarárias da Vila de Caetité, inicialmente, um processo de aprendizagem do jogo político por parte das camadas senhoriais locais, entre conflitos e embates, ao lidar com os instrumentos de poder à sua disposição. Essa aprendizagem foi fundamental para a tomada de consciência sobre a importância das estruturas de poder por todo o território, na consolidação de suas posições e na expansão desse poder por meio do controle social, político e econômico. Figuras como o Antonio de Queiróz Ozório, clérigo latinista que ocupou a cadeira de Gramática Latina, da Vila de Caetité, eram reverenciados socialmente. Pelo domínio desse conhecimento, que lhe permitia acessar os códigos jurídicos do Império, pôde constituir sujeitos empoderados e pôde ser, por muitas gerações, uma referência educacional importante nesta Vila e para outros sertões distantes da Bahia. Em reunião do Senado da Câmara de dezembro de 1813, Abriraó a carta que com data de vinte e trez do corrente mez, o Doutor Ouvidor da Comarca dirigio a este Senado, para efeito de lhe informar a respeito de ser util nesta Vila aos moradores dela, a creação da cadeira de Gramatica Latina e se Antonio de Queiroz Ozorio hé digno de ser provido nela. Determinaraó que na primeira Veriação se dese resposta9. Essa condição indica, pois, uma didática da prática política desenvolvida no contexto dessa “república”, modo de agir que se verificou estratégico quando as questões ultrapassavam o nível regional e requeriam a participação ativa dessas categorias sociais. O enraizamento da Corte em solo tropical demandaria intensa repactuação com as estruturas sociais e políticas locais, na afirmação de Maria Aparecida de Souza (2010, p.9): Para o caso da Bahia, as intensas articulações que se estabeleceram entre a corte, as autoridades locais e parte dos residentes evidenciam um jogo de concessões e beneficiamentos que funcionaram como um mecanismo de resposta às demandas não somente internas como também do Império português. Nesses termos, embora o estudo enfoque as alterações verificadas na capitania/província nos primeiros decênios do século XIX, busca-se associá-lo a um contexto de crise mais geral indicando o caráter 9 APMC. Op., cit., p. 287. 23 contraditório de determinação e ambiguidade desse movimento e, como resultante, a sua complexidade. Mais do que uma vila na periferia distante do Império Luso-Brasileiro, que lutava para permanecer de alguma maneira conectada a ele, a Vila de Caetité também integrava uma fronteira nos caminhos do sertão, um importante elo entre Bahia e Minas. Essa fronteira constituía refúgio para desertores de ambos os polos. Foi assim quando para aí mudaram importantes famílias mineiras (Neves, Junqueira, Oliveira, Azevedo, Carvalho etc.), em contextos históricos de movimentos acirrados, como as revoltas de Felipe dos Santos, dentre outras. Ou da família Castro, habitantes do Recôncavo Baiano, quando o seu patriarca buscou refúgio, no contexto de guerras pela Independência na Bahia. Como recurso de ligação entre estas duas importantes províncias, os caminhos do sertão que cortavam o território da Vila de Caetité serviam na dinâmica das trocas que através deste território se fazia, com avultado volume. Por isso, os seus habitantes recorriam aos poderes constituídos para manterem o seu fluxo, como se vê no registro abaixo. Abriraó a carta que com data de vinte e dois de Julho de mil oito centos e treze, o Excelentissimo Conde dos Argos Governador e Capitaó General desta Capitania dirigio a este Senado, ordenando lhes que fasaó Limpar a Estrada, té os Lemites desta mesma Capitania the onde principia a de Minas Geraes, por que asim lhe fora requerido pelos moradores do Sertão da Resaca, e mandaraó que se pasase mandado para serem notificados com apena de seis mil reis de condenação aos Rebelde (APMC, 1811, p. 292) (grifo nosso). Manter esses caminhos limpos e acessíveis, como se observa nas determinações do Governador da Capitania da Bahia, seria estratégia de garantir o fluxo das riquezas produzidas que oxigenavam a economia da Capitania e o Império luso-brasileiro, constituindo instrumento de coesão social e política necessários para a sua consolidação. OS CAMINHOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DA TESE Na análise do presente objeto de pesquisa, a relação tempo-espaço apresenta-se com total centralidade, considerando a condição de representação dos poderes e culturas que se manifestam no espaço. A primeira perspectiva foi o desvelamento da categorias teórico-conceituais muito caras ao estudo da geo-história10: espaço, território, região, bem como suas varáveis (região, paisagem, 10 O estudo desenvolvido pelo historiador francês Fernand Braudel, em sua obra Grammaire des civilisations, foi fundamental para o desenvolvimento conceitual da chamada história de longa duração. Para ele, somente ao observar 24 lugar e sertão) que deram suporte à análise histórica, pois tratam das conformações territoriais do Império português no início do século XIX. Busca-se, com isso, aprofundar o trato dos fenômenos condicionantes do processo de territorialidade do espaço e os mecanismos de constituição de uma identidade territorial supostamente existente na região em estudo. Considerando o recorte temático e cronológico proposto, fez-se o levantamento de fontes escritas (Atas da Câmara, petições, cartas, alvarás, legislações etc.), para se alcançar o objetivo proposto. No corpus documental relacionado para a pesquisa, as atas da Câmara de Caetité ganharam papel central, por se tratar do registro em síntese das principais deliberações do concelho da vila. Não obstante cumprir os requisitos de síntese e da forma própria para esse tipo de registro, eles deixam entrever, pelas linhas e entrelinhas, uma crônica ricamente tecida, na qual se apresentam detalhes significativos do cotidiano do lugar. Por meio dessa documentação, pode-se identificar os sujeitos e suas posições, sua abrangência jurisdicional e atuação praticada nas franjas do poder e, entre normas e burlas, os instrumentos de empoderamento e coerção, de modo a estabelecer, nesse jogo, uma dialética que determinava as balizas da ação do poder institucional para os homens de governança. Essa documentação permitiu, dentre outras coisas, conhecer os meandros e o cotidiano do poder no contexto da Vila de Caetité, a partir de uma percepção do novo significado que o elemento político tem atualmente na história. Como declara Rémond (2003), o importante é deixar claro que o político existe, distingue-se de outros tipos de realidades, constitui algo específico, é irredutível a outrasrealidades, pode ser determinante ou determinado, é dotado de certa autonomia e é capaz de imprimir sua marca e influir no curso da história; ou ainda, como em Julliard (1996), que afirma que é o acontecimento político que deve ser revisto, pois nem é autônomo, nem é simples subproduto. (JULLIARD, 1996, p.188) Essa reflexão remete à compreensão da história enquanto processo cuja dinâmica deve ser considerada como diz Le Goff (2003, p. 47), que “não há história imóvel e que a história também não é a pura mudança, mas o estudo das mudanças significativas. A periodização é o principal instrumento de inteligibilidade das mudanças significativas”. Pretende-se aqui um estudo em uma perspectiva de iluminar as relações entre Estado/sociedade verificados no período proposto, bem como a compreensão das relações centro/periferia no âmbito do Império Luso-brasileiro. Essa as estruturas sociais que se movem lentamente, imprimindo suas alterações no espaço, seria possível apreender essa temporalidade. Esse pensamento contribuiu para o desenvolvimento do conceito de geo-história como categoria essencial para se pensar as relações entre tempo e espaço na dinâmica dos tempos. 25 discussão se situa no plano da historiografia social da política. Toda a documentação camarária está depositada e muito bem organizada no Arquivo Público Municipal de Caetité. Os arquivos digitais disponíveis pelo Arquivo Nacional e Biblioteca nacional foram imprescindíveis para a execução desta pesquisa, apesar das limitações impostas pela pandemia da COVID-19, período de forte tensão, riscos e limitações para a pesquisa historiográfica. Do Arquivo Nacional, a Coleção Boulier proporcionou tomar contato com as correspondências do Governo da Capitania da Bahia para as primeiras décadas do século XIX. Sua análise proporcionou desvelar a natureza dessa correspondência política com o centro de poder do Império luso-brasileiro, colher informações acerca da gestão econômica da Capitania e outras informações atinentes. Do Arquivo Nacional também veio o dossiê que tratava dos conflitos pela emancipação da Vila de Caetité com a Vila do Rio de Contas, de cujo termo houve desmembramento. Da Biblioteca Nacional, um repertório vastíssimo de fontes, dentre os quais as petições pelas mercês referentes a ofícios da Vila de Caetité, comunicação troca pela Ouvidoria da Comarca da Jacobina, da qual era vinculada essa vila, correspondências trocadas entre o Governador da Capitania da Bahia, o Juiz de Fora da Vila de Ilhéus, Ouvidoria da Comarca da Jacobina e demais atores que participaram da construção da estrada do salitre. Além destas, imagens e mapas daí foram retirados para análise desta tese. No Arquivo Público do Estado de São Paulo, buscou-se a documentação relacionada ao Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, de onde se extraiu o precioso arquivo pessoal de Antonio da Silva Prado, importante negociante que atuou na praça da Vila de Caetité, na dinâmica com outras praças, tendo com centro a comercialização do algodão produzido nos sertões. Para os temas e subtemas para os quais não foi possível, por razões diversas, tomar contato com as fontes primárias, recorreu-se a um repertório de fontes secundárias oriundas de publicações recentes e outras mais remotas no tempo, de maneira a preencher as lacunas existentes nas explicações apresentadas. Dentre as referências buscadas, encontram-se teses, monografias, artigos, corografias e relatos de viajantes. Esta pesquisa considera o campo de abordagem da história social da política como condição para elucidar a problematização: de que maneira se apresentavam as relações entre centro e periferia nos distantes sertões da Bahia, no início do século XIX? Os caminhos para essa elucidação, evidenciaram as disputas pela criação da Vila de Caetité em que se confrontaram interesses da elite camarária da Vila de Rio de Contas de onde esta desmembrara, os conflitos locais revelaram interesses que se confrontaram no plano do Império luso-brasileiro e suas instituições. 26 Assim, tendo sido mobilizados os poderes centrais através de consulta ao Conselho Ultramarino, passando pelas secretarias do reino, atingiram também os níveis secundários de poder institucional localizados na América portuguesa, a exemplo da Capitania da Bahia e Ouvidoria da Jacobina. Esses trâmites revelaram a constituição do aparelho jurídico-político do Estado imperial luso-brasileiro do Antigo Regime em percurso de reformulação desde meados do século XVIII. Esse Estado imperial guardava ainda substâncias essenciais de sua constituição que conduzem à compreensão, sobretudo, dos processos, desvios e decisões que burlaram o que estava estipulado na lei. Para melhor domínio dessa matéria, a pesquisa a dispor das abordagens da história da justiça, que dá conta da operacionalidade do direito em sua dimensão subjetiva e particular. Considera-se estratégica para essa abordagem a compreensão do aparelhamento e funcionamento da Câmara com todos seus organismos e oficiais que dela fizeram parte. Essa importante instituição essencial para o processo de enraizamento territorial do Império luso- brasileiro em terras americanas, tinha papel central na organização do tecido social e disseminação do ethos civilizatório desse império. Com isso, evidenciou-se a sistematização da produção e arrecadação das rendas do Estado e ordenação política, com a hierarquização social fundada nos privilégios aplicação das leis e funcionamento da justiça. A abordagem pautada pela história social da política nos faz perceber as sutilezas do jogo de disputas que criava tensionamentos entre os poderes centrais do império e os poderes locais sob controle da elite senhorial. Ainda se observam relações destas instâncias entre si, do que resultava um sistema de freios e contrapesos que, em última instância, dava sustentação a um império pluricontinental. O centro de poder que o comandava era débil quanto ao corpo burocrático e mecanismos diretos de controle e, por isso, dependia de operar uma espécie de “balé” em um campo de forças, que resultava em sua perpetuidade secular. Hespanha (1987, p. 496) aponta, quanto à compreensão dos conflitos cotidianos e recorrentes verificados nas relações entre instituições políticas e seus agentes evidenciados pelos estudos da história da justiça, que é no campo do direito penal que se manifestam o maior distanciamento entre os preceitos jurídicos legalmente consolidados e a prática desses preceitos. Assim, diz ele: [...] durante o período da monarquia “corporativa”, o direito real constituiu uma ordem jurídica apenas virtual, mais orientada para uma intervenção simbólica, ligada à promoção da imagem do rei como sumo dispensador da justiça, do que para uma intervenção normativa que disciplinasse, efectivamente, as condutas desviantes. Este caracter virtual 27 da ordem penal real explica, por sua vez, o caracter “livresco” da teoria penal que incide sobre ela e a sua aparente insensibilidade aos problemas sociais e humanos da punição. Ao se considerar que, de acordo com a visão jurisdicionalista de poder, a monarquia ocupava a cabeça que se afirmava sobre o corpo social organizado em torno de privilégios que garantiam o lugar social de cada membro desse corpo, cabia a essa monarquia agir preservando as virtudes que a legitimava. Sendo a justiça considerada a primeira dentre todas as virtudes, percebe- se o quão é importante trazer a história da justiça como lugar privilegiado para compreender melhor a manifestação de seu poder. Os estudos de Slemian (2014, p. 5) sugerem a importância do reconhecimento do lugar central que ocupa a justiça no balizamento dos poderes no Antigo Regime. Isso nos fazer perceber o processo de desdobramento da justiça da estrita dimensão administrativa, conduzindo à racionalizaçãodo Estado em sua atuação, como resultado das reformas empreendidas a partir do final do século XVIII sob influência do pensamento ilustrado. Diz ela: A proposição, aparentemente banal e comum para nós hoje, da separação entre as esferas contenciosas (de justiça) da administração (governo), tanto não era uma realidade, como sua imbricação representava o cerne de funcionamento das monarquias ibéricas até então. Nesse sentido, se algo caracterizava o mundo do Antigo Regime, era a concepção de que todo ato de poder era eminentemente jurisdicional: possuir “iurisdictio” (esta era a palavra), ou seja, jurisdição, era ter o poder de estabelecer o que era de direito, de resolução de conflitos, ao fim das contas, de ditar a justiça (papel primordialmente do rei, por este delegado a seus vassalos). Obviamente que nem todos os cargos e ofícios possuíam jurisdição (e as ações de governo e de justiça, ainda que entrelaçadas, não eram irredutíveis uma à outra), mas todo ato administrativo podia ser judicialmente contestado recorrendo-se a alguma autoridade jurisprudente, qual seja, a de juízes ou de magistrados, nos seus mais variados níveis. O papel destes era, portanto, central nessa ordem tradicional, tanto para o bom desempenho dos responsáveis pelo governo (por vezes, os próprios juízes) como na interpretação do que deveria valer como direito. Parece claro, por essa reflexão, que o papel central das Câmaras no Antigo regime português era o de fazer manifestar a justiça do Estado imperial, que tinha o rei como lastro político. Dito isso, parte-se para compreender o enquadramento das análises propostas neste trabalho. As principais reflexões incorporadas a partir dos estudos sobre a história social da política no mundo Luso Americano e sua aplicação ao objeto da pesquisa já anunciado, enquadram-se estritamente ao período final do século XVIII e início do século XIX. Nesse contexto, o Antigo Regime português vivenciava períodos de reformulação sob influência da Ilustração europeia, com maior intensidade no período Josefino sob o comando do ministro Marquês de Pombal e, nos reinados seguintes (mariano e joanino), com D. Rodrigo de Sousa Coutinho. 28 O iluminismo se apresenta como um movimento de superação do escolasticismo e de toda a mística medieval, sobretudo o barroquismo do tomismo. A questão central que caracteriza esse movimento situa-se na instrumentalização de uma razão subjetivista e de um racionalismo humanista e antropocêntrico nas “ciências do espírito”, a exemplo do que já ocorria desde o século XVII nas ciências naturais, nomeadamente na física galileana e newtoniana. (SILVA, 2002, p. 46) No movimento pela restauração do império no século XVII, a América portuguesa ganhara papel central. Garantir sua integridade territorial, ocupar as fronteiras internas, identificar e explorar racionalmente seus potenciais econômicos passou a fazer parte dos projetos para a constituição do Império luso-brasileiro. A constituição da Vila de Caitité foi estratégico para ocupar e dinamizar um importante espaço dos sertões da Bahia, promovendo o enraizamento do aparelho do Estado por meio da vila constituída. Para a compreensão desse fenômeno, as reflexões trazidas por Silveira (2001, p. 123-124) ao tratar dos conflitos pela ampliação do território e consolidação do Estado, lembra As contradições e os limites do projeto colonizador português no Brasil setecentista: a exploração mercantilista do território só podia realizar-se plenamente através de um controle soberano, que, evitando vácuos de poder e despotismos privados, pressupunha a fixação dos povos, a interdependência de seus negócios e a prosperidade de vilas e arraiais; um controle que pressupunha, enfim, o sucesso das estruturas do mercado e do Estado. Nos estudos sobre a atuação do Estado e as relações de poder, o autor chama a atenção para a escolha de abordagens que levem em conta o processo de ampliação do poder, pelo alargamento territorial ou pelo aprofundamento dos mecanismos de controle através do enraizamento de novas práticas institucionais. Isso constitui, antes de qualquer coisa, a compreensão de que se tratava do embate de duas forças antagônicas. De um lado, o Estado imperial regulador da sociedade, com seu ethos civilizatório procurava moderar os costumes e os impulsos dos primeiros conquistadores. Estes, por sua vez, à margem do Estado construíam, por outro lado, os primeiros núcleos povoadores, desenvolvendo-os através dos costumes e tradições estratégias particulares de sobrevivência. Nos diz o autor: O estudo das relações de poder e das instituições de justiça em sociedades de Antigo Regime coloca-nos, de início, um problema crucial. Se consideramos o fato de que a história do estabelecimento das estruturas jurídicas e administrativas durante a Idade Moderna confunde-se com a do desenvolvimento do absolutismo, torna-se premente perguntar: de qual perspectiva abordamos o problema do poder? Adotamos o ponto de vista das autoridades do Estado, valorizando a filosofia do direito, certas concepções totalizadoras da vida social e, em particular, o tema da soberania — ou o ponto de vista da gente comum, salientando a força do costume, a fragmentação da experiência cotidiana e o tema da guerra? De fato, ambos os enfoques não são excludentes, e pode-se mesmo dizer que um dos campos mais promissores para a análise historiográfica acerca da sociedade 29 mineira do século XVIII encontra-se justamente na investigação de como as relações de poder no universo colonial engendraram-se nos choques entre os institutos do direito lusitano e os costumes diários intensamente reinventados (op.cit. p. 124). Ele denuncia em seu texto o que denomina “paradigma da conquista soberana”, ou seja, uma visão naturalizadora da conquista do Estado, onde a colonização é “apresentada como um embate entre raças conquistadoras e conquistadas, [que] pressupõe a vitória da civilização europeia”. Com isso, reconhece como legítima “a organização do mundo colonial conforme seus recursos materiais e espirituais, e a incorporação de elementos culturais dos grupos subjugados”. (SILVEIRA, 2001). Essa reflexão faz pensar de que maneira pode-se compreender a constituição da Vila de Caetité, objeto desta pesquisa. Importa identificar como foi percebida a constituição de uma elite camarária que, na essência, resultou de um processo legitimador da ordem econômica existente, onde sobrepunham os interesses da classe senhorial mercantil e agropastoril aos interesses mais amplos da sociedade em estudo. Quando o olhar se desloca para as camadas populares e suas formas de resistências, por vezes surdas ou movidas de maneira subterrânea, evidencia como estratégia de contestação naquilo que o autor chama de “guerra de usurpação institucional”.11 A análise do objeto de pesquisa – a constituição da Vila de Caetité, sua elite camarária estabelecida faz-se por meio de sua ascensão política em razão do desenvolvimento econômico relacionado às novas redes mercantis formadas a partir dos caminhos do sertão desde o início do século XVIII. O objetivo é compreender o enraizamento de poder de classes senhoriais que, na constituição de uma economia agromercantil, também constituíram laços e teias de relações no território do Alto Sertão da Bahia. Essa região de trânsito entre capitanias diferentes inspirava medo, cuidado e sacrifícios em sua transposição, entre os séculos XVIII e XIX no ocaso da mineração. Surgida de um processo de ocupação fundiária com base na economia agropastoril, cotonicultora e mercantil, a região foi capaz de produzir uma nova dinâmica econômica e social e, a partir dela, consolidar redes sociais, familiares, clientelares, mercantis e políticas, materializadas agora no território do Alto Sertão da Bahia. As classes senhoriais formaram, pelo monopólio do poder camarário, um espaço onde seorganizavam hierarquicamente pelo controle de instituições políticas, militares, judiciais e 11SILVEIRA, op cit., p. 128. 30 religiosas. Estas eram representadas através de ritos e gestos, contatos e conflitos por meio dos quais se dava a constituição de identidades com as quais construíam posições em relação aos poderes centrais. O recorte temporal de análise do objeto: o território do Alto Sertão da Bahia e a Vila de Caiteté, inicia-se na virada do século XIX, quando surgiram as demandas pela emancipação desta vila em 1810. Neste contexto, observam-se a constituição de uma importante rede que articulava economia agropastoril e mercantil no início do século XIX. O recorte temporal finda-se em 1821, quando o rei D. João VI retorna a Portugal, pressionado pelas Cortes constitucionais representantes da nação. Em meados da década de 1810, após cessados os conflitos decorrentes da expansão do Império Napoleônico, verificou-se um clima de inquietações na população portuguesa que aguardava o retorno da corte ao seu território, normalizando a vida social e política do império com o restabelecimento do seu centro em Lisboa. No entanto, os sinais dados pela monarquia eram pouco alvissareiros para os reinóis. Em 1815, após o Congresso de Viena, a monarquia decidiu alterar os estatutos políticos do império com a criação dos Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. No ano seguinte, com a morte de D. Maria I, o príncipe regente D. João assumiu a titularidade do trono, sendo sagrado mais tarde como Rei no Rio de Janeiro. Com isso, surgiram divergências políticas que ameaçavam a legitimidade da coroa nos movimentos políticos ocorridos em 1817 que ameaçavam alterações na ordem jurídica e política. Após serem enfrentatos e contidos, esse movimento pela alteração da ordem política finalmente saiu vitorioso na Revolução do Porto de 1820. Foi esse episódio que instituiu o modelo da Monarquia Constitucional no Império português. A análise desses processos vistos pelo ângulo da constituição da Vila de Caetité e seu território no Alto Sertão da Bahia permite perceber a formação de classes senhoriais sertanejas e seu locus do exercício de poder, projetando-se como elites camarárias. Por meio do monopólio dos cargos da Câmara dava-se a apropriação de suas instituições na constituição de novas fontes de riquezas. Como exemplo das novas categorias de homens enriquecidos pelo comércio sertanejo, apresentou-se o caso do comerciante Antonio da Silva Prado - procurador da vila que fez fortuna no comércio da Vila de Caetité. Ao voltar enriquecido para S. Paulo no início do século XIX, veio 31 a constituir-se como potentado local, adquirindo o título de Barão do Iguape12 com grandeza no segundo reinado e legando imensa fortuna, prestígio e influência política naquela província aos seus descendentes. Outros sujeitos ganharam expressividade nessa economia sertaneja, a exemplo do português Bento Garcia Leal, capitão-mor desta vila, igualmente enriquecido na atividade agropastoril, tendo um dos maiores plantéis de escravos que se tem notícias nestes sertões. Até mesmo clérigos, a exemplo do professor titular da cadeira de gramática latina Antonio de Queiróz Ozório, vereador e liderança intelectual e política do lugar ou o Padre Manoel José Gonçalves Fraga13, português de nascimento que, tendo se transferido para os sertões de Caetité, assumiram negócios relacionados à atividade mercantil escravista da família e participavam ativamente da dinâmica econômica desses sertões. Outros ainda, como o Coronel Innocêncio de Aguiar Montalvão que, tendo feito vida e fortuna a “serviço de Sua Majestade” pelas terras de São Paulo, Minas e Goiás, adquiriu o ofício de Escrivão da Câmara para fazer seus investimentos finais. Ou ainda, o Major José Antônio da Silva Castro, nascido no recôncavo e um dos principais protagonistas da guerra de independência na Bahia, cognominado o Periquitão, por liderar o Batalhão dos periquitos, fez fortunas também nestes sertões ao casar-se com uma viúva de proprietário local e constituir-se fazendeiro. Todas essas personagens e muitas outras compõem o cenário estudado mergulhar no contexto social e econômico do qual fizeram parte, com maior ou menor protagonismo político. Embora com ações distintas, todos eles eram articulados em redes de afinidades e interesses com as quais teceram as relações que fizeram desses sertões um território de identidade nas fronteiras da Bahia. Nas disputas em torno da criação da Vila de Caetité se confrontaram interesses da elite camarária da Vila de Rio de Contas, de onde se desmembrara. Os conflitos locais revelaram também interesses conflitantes no plano do Império luso-brasileiro e de suas instituições. Assim, tendo sido mobilizados os poderes centrais por meio de consulta ao Conselho Ultramarino, passando pelos centros de decisão do Império, a exemplo das secretarias do reino e tribunais 12PETRONE, Maria Thereza Schorer. O Barão do Iguape: um empresário na época da independência. São Paulo: Edição Nacional / Brasília: INL, 1976. 13Para compreender a trajetória família Fraga pelo Alto Sertão da Bahia, ver: SILVA, Laiane Fraga da “É preciso deixar alguma conversa para testificar que vivemos”: a trajetória da família Faria Fraga no alto sertão da Bahia (Caetité 1842- 1889) / Laiane Fraga da Silva. –, 2018. 32 superiores, atingiram os níveis secundários de poder institucional localizados na América portuguesa, a exemplo da Capitania da Bahia e Ouvidoria da Jacobina. Esses trâmites revelaram não apenas a constituição do aparelho jurídico-político de uma monarquia corporativa do Antigo Regime português em processo de reformulação desde meados do século XVIII, mas também guardava as substâncias essenciais de sua criação – o que remete à necessidade de abordagem do campo da história do direito. Conduz à compreensão dos processos, desvios e decisões que buscavam burlar o que estava estipulado no ordenamento legal. Ao lançar mão das interpretações proporcionadas pela história da Justiça, dá-se conta da operacionalidade do direito em sua dimensão subjetiva e particular. O destaque dado ao aparelhamento e ao funcionamento da Câmara, com todos seus organismos e oficiais que dela fizeram parte constitui essencial para a compreensão do processo de enraizamento territorial do Império português em terras americanas, em seu papel na organização do tecido social e disseminação do ethos civilizatório. Seus reflexos tambem são verificados na sistematização da produção e na arrecadação das rendas do Estado e na ordenação política, com a hierarquização social fundada nos privilégios aplicação das leis e funcionamento da Justiça. Os estudos desenvolvidos sobre o tema apontam avanços inegáveis no desvelamento da natureza operativa da Monarquia Lusa no plano do Império pluricontinental, na percepção de atuação dos seus agentes, das forças e da mecânica da administração do Império luso-brasileiro. Essa condição promovia uma dinâmica de interação capaz de sustentá-lo por tanto tempo, além de evidenciar certos enviesamentos no pensamento historiográfico que o revelou14. Observa-se essa questão no debate que se desenvolveu (e, de certa forma, ainda se desdobra) no Brasil entre os seguidores da concepção de Antigo Regime nos Trópicos e dos que seguem o paradigma gerado pelos pensadores que compõem a escola interpretativa do Antigo Sistema Colonial, mais coerente com uma visão dos processos de constituição do que convencionou chamar de “Sistema Colonial” americano. Um dos pontos centrais dessa discordância é o lugar que cada uma dessas correntes coloca, por exemplo, na compreensão sobre as relações de dominação estabelecidos no plano do Império 14 Ver análise