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5 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS GABRIEL PEREIRA MATOS A PERDA DA DIMENSÃO ASCÉTICA NA MODERNIDADE NATAL-RN 2019.2 6 GABRIEL PEREIRA MATOS A PERDA DA DIMENSÃO ASCÉTICA NA MODERNIDADE Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para o recebimento do título de Bacharel em Ciências Sociais. Orientador(a): Alípio de Sousa Filho NATAL-RN 2019.2 7 Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA Matos, Gabriel Pereira. A perda da dimensão ascética na modernidade / Gabriel Pereira Matos. - Natal, 2019. 35f. Monografia (graduação) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientador: Prof. Dr. Alípio Souza Filho. 1. Weber - Monografia. 2. Ascese - Monografia. 3. Modernidade - Monografia. 4. Racionalização - Monografia. I. Souza Filho, Alípio. II. Título. RN/UF/BS-CCHLA CDU 316 Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710 8 AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família pela insistência em minha pessoa. Agradeço também à minha companheira Monielly, por acreditar em mim, pela estima, pela ambição que me proporciona em relação aos estudos e para a vida. Grato pela amizade de Leonardo Domingos, e do professor Alípio, que me ajudaram a me formar intelectualmente e a lidar com a vida acadêmica. 9 Sumário Capítulo I: INTRODUÇÃO --------------------------------------------- 7 Capítulo II: DO CONCEITO DE ASCESE ------------------------ 12 - DA ASCESE ELEMENTAR ----------------------------------------- 14 - DA ASCESE HELENÍSTICA ---------------------------------------- 17 - DA ASCESE CRISTÃ ------------------------------------------------- 19 Capítulo III: Modernidade e Perda de Sentido ---------------- 25 Capítulo IV: Horizontes da Produção de Sentido ----------- 30 Referências -------------------------------------------------------------- 34 10 “O sentimento da existência desprovida de qualquer outro afeto é por si só um sentimento precioso de contentamento e de paz que bastariam para tornar esta existência querida e doce para que soubesse afastar de si todas as impressões sensuais e terrestres que vêm sempre nos distrair e perturbar a sua doçura. Mas a maioria dos homens agitados por paixões contínuas conhece pouco desse estado, e como só o experimentou imperfeitamente durante alguns instantes, só guarda uma idéia obscura e confusa que não lhes faz sentir o seu encanto.” (Jean-Jacques Rousseau) 11 RESUMO Esta monografia busca apresentar e explorar como o fenômeno da ascese se apresenta como um ideal que tem o intuito de construir não somente um indivíduo e a si mesmo, mas como a mesma vem a moldar, direcionar e estruturar toda uma sociedade. Assim, como busca também expor a fragilidade e a perda cada vez mais crescente do fenômeno ascético frente à modernização e racionalização do mundo. Portanto, neste trabalho faremos, sobretudo, uso de Max Weber para apresentar e destacar os fenômenos principais e responsáveis para que a ascese se degenere e se transforme em apenas um hábito constantemente repetitivo, sem espírito, e que não nos incita para a ação de construção de uma realização tanto do individuo quanto de sua comunidade. Palavras-chave: Weber – Ascese – Racionalização – Modernidade 12 CAPITULO I INTRODUÇÃO “O mito da ascese é o mito da construção da humanidade” (Lévi-Strauss, 1962) Esta monografia busca apresentar e explorar como o fenômeno da ascese se apresenta como um ideal que tem o intuito de construir não somente um indivíduo e a si mesmo, mas como a mesma vem a moldar, direcionar e estruturar toda uma sociedade 1 . Assim, como busca também expor a fragilidade e a perda cada vez mais crescente do fenômeno ascético frente à modernização e racionalização do mundo. Portanto, neste trabalho faremos, sobretudo, uso de Max Weber para apresentar e destacar os fenômenos principais e responsáveis para que a ascese se degenere e se transforme em apenas um hábito constantemente repetitivo, sem espírito, e que não nos incita para a ação de construção de uma realização tanto do individuo quanto de sua comunidade. As obras principais que vão ser utilizadas para a composição desse trabalho serão: “A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo” (Max Weber, 2004) & “Ensaios de Sociologia” (Max Weber, 1982); dentre outros autores, dos quais só serão utilizados para compor uma perspectiva histórica & empírica do fenômeno da ascese. Deste modo, o trabalho apresenta três tópicos: o primeiro capítulo “Do conceito de Ascese” busca compreender e explanar o fenômeno da ascese, assim como evidenciar, de maneira preliminar, a faculdade estética na atividade ascética (isso será feito com base no conceito de racionalização em Max Weber); segundo capítulo “Modernidade e perda de sentido”, com base em Max Weber, se busca explicar e apresentar os conceitos de modernidade e racionalização em correlação ao fenômeno da ascese e da própria dimensão estética que esta possui, e assim demonstrar sua degeneração, tanto quanto apresentar as correlações de “Ascese e Capitalismo” – podemos ver esse capítulo na obra: Ética protestante e o “espírito” do Capitalismo. No terceiro e 1 Isso implica dizer que a ascese seria um movimento e atividade que proporciona horizontes de possibilidades para si mesmo e para uma sociedade. 13 último “Horizontes da Produção de Sentido” teremos então a conclusão, onde reforço, com base em Max Weber, o conceito de ascese como um dos meios para reestruturação e regeneração do sentido para a vida, e de a mesma ter a capacidade de fornecer um motivo pelo qual viver, lutar e morrer. Desse modo, este trabalho almeja trilhar uma perspectiva sociológica, onde considera a pesquisa histórica como essencial para a compreensão das sociedades e dos fenômenos, desconsiderando então uma idéia evolutiva e abarcando, no que seria para Max Weber, em uma gênese e formação de sentido. Deste modo, o método utilizado para a investigação a respeito das práticas ascéticas é de caráter compreensivo, que inclui o esforço de interpretação do passado, e também das suas peculiaridades com o intuito de analisar um sentido social e histórico. Dito isso, o trabalho também tem como intuito possuir um enfoque em reforçar a sociologia como uma ciência do espírito - ou da cultura. Logo, como o nosso objetivo é investigar os fenômenos produtores de sentido para a vida humana, significa então que teríamos que analisar o que chamamos de valor. Isso significa: analisar a dimensão da ética, da política & da estética que compõe as práticas ascéticas e também a sustentam, e, portanto, acabam atestando o sentido das atividades cotidianas, o nosso modo de vida e como nos estruturamos, assim, cabe aqui investigar o fenômeno da ascese como uma prática que busca dar sentido a vida. As práticas ascéticas quando investidas pelas ordens monásticas e instituições religiosas católicas tendem a criticar e gerar interdições, através de normas e regras, as maneiras de ser intramundanas; e assim, por sua vez, produzem uma forma de viver e uma maneira de ser na vida comum que visa à ordem e uma multiplicidade de regras – em umaperspectiva de mundo fechada a outras possibilidades além daquelas que são valorizadas e atribuídas por uma comunidade de idéias - para que esse ideal de ser no mundo possa ser alcançado. 14 Assim, podemos notar que as práticas ascéticas, em uma perspectiva tradicional, são atreladas por um ideal significativamente maior do que os interesses individuais da vida comum, dos interesses mundanos e dos modos de ser ordinário no meio cotidiano, viver a vida nessa perspectiva tradicional- religiosa significa viver fortemente atrelado e de acordo a um conjunto de noções morais e éticas. Podemos ver em Max Weber que a ascese aos moldes protestantes tem um papel fundamental na construção de uma ética capitalista. Isso porque na perspectiva da tradição calvinista, puritana e luterana a visão de ascese se liga a noção de vocação, e assim há o entendimento de ao seguir a sua própria especialidade e se identificar com uma identidade há de seguir e prestar créditos e adoração aos ideais da igreja, por assim dizer, o modo de vida e a renúncia a outras perspectivas de vida e possibilidades se transformam em um exercício que visa contribuir ao espírito humano alternativas de como se apresentar diante de um mundo. Exercício ascético esse que se segue nesses contextos religiosos e que com o passar do tempo na modernidade logo vai se esvaindo, perdendo sentido e tomando forma para uma ética e um espírito puramente capitalista que acaba ignorando os seus primórdios estritamente religiosos. Por assim dizer, quais seriam os elementos que compõe a dimensão ascética? O que podemos entender sobre o termo “ascese”? Os exercícios ascéticos se enquadrariam apenas em uma perspectiva religiosa? Quais seriam então as causas que contribuem para a perda desse sentido primordial do que seria a ascese? Tais perguntas podem ser respondidas por uma perspectiva weberiana, uma noção de como a perda de uma dimensão ascética, se envolvendo junto com um desencantamento do mundo, nos coloca em um contexto de crise e de queda, e temos essa evidência quando uma série de autores tem o intuito de criticar a modernidade, seus estágios, suas formas de enxergar o mundo, suas perspectivas em que colocam o espírito humano enclausurado em um modo de vida que já não o inspira mais ao viver, o criar, refletir e também pensar. Desse 15 modo, se torna importante criticar o que tradicionalmente entendemos sobre o que é viver, pensar e criar. Ora, só possuímos e temos essa visão do que é pensar, viver e refletir, de enxergar as coisas - mesmo que de maneira tradicional e moderna – devido aos ideais ascéticos que a nossa sociedade almeja cultivar, pois os mesmos transformaram esse mundo no que é hoje. E assim, é necessário pensar o percurso e os benefícios da ascese. De forma breve, podemos analisar que a ascese se correlaciona com o hábito, e isso se torna evidente pois nas práticas ascéticas o que existe, sobretudo, é uma constante ação repetida em cadeias de criatividade e ação criativa. Assim, tanto a ascese quanto o hábito acabam proporcionando um mecanismo de realização, manutenção e reprodução de instâncias de comportamentos e práticas, tanto quanto da ação; o ser humano então como um ser que vive na repetição e cria o hábito da reprodução tende a agir não mais em uma repetição criativa2 e duradoura, apenas tende a uma ação mecânica e repetitiva – e isso é o que iremos chamar de atividade sem espírito. Assim sendo, a humanidade passa a agir em uma desumanização daquilo que é essencialmente humano pela falta criativa que os mecanismos da sociedade moderna – e também hoje – nos coagem. Como então pensaríamos em resgatar o conteúdo criativo e tão humano que perdemos na modernidade e se perpetua até os dias de hoje? Ou melhor, como então poderíamos pensar a ascese na modernidade? Talvez, o percurso de Zaratustra, em Assim Falou Zaratustra (Nietzsche, 1883), poderia se enquadrar em um percurso e também um exemplo do que seria tentar praticar a ascese em meio à modernidade e também nos incita a reforçar a criatividade. E ao dizer isso é pelo fato do personagem se defrontar com a cultura ocidental, uma cultura decaída, que em muito perdeu o seu valor e os seus significados, mas que apesar das queixas se põe a buscar e 2 Apenas fiz uma articulação do conceito de habitus em Bourdieu, entretanto, podemos ver autores como ZIzek & Peter Sloterdijick utilizando esse conceito. 16 constantemente insistir com ânimo por algo pelo que lutar, pelo algo a que se viver e ter posse de motivos a se entregar, independente que lhe exija o sacrifício e a morte, e tudo isso apesar de toda a insistência do que está ao nosso redor em dizer que não há motivos para tal, que se é tolo o bastante por pensar assim, e isso por ir além de horizontes já tão tradicionalmente percorridos por aqueles que aqui simplesmente vivem. Logo, podemos ver que a modernidade e a sua cultura então nos reforça uma ideia de que “as almas se transformam em espelhos, não da natureza, mas do que está ao nosso redor”3, demonstrando não mais uma tendência “natural” humana para a imaginação e a criatividade, bem como outros valores perdidos mediante a racionalização e o pensamento moderno. Como aponta Weber: "(...) Neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão de fato, ser chamados de ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado” (WEBER, 2002: 135) Desse modo, podemos ver que os valores não são capazes mais de nos orientar para o nosso próprio mundo, além de reforçar também que esse pensamento calculador e especialista sem espírito faz nossas noções de pensamento se tornarem estreitas e cegas para o contato consigo mesmo e os seus semelhantes, tanto quanto proporciona uma estreiteza de compreender os outros e aquilo que é humano em sua potencialidade, multiplicidade e generalidade. Assim, a consciência e o ideal moral que deveriam proporcionar um sentido para o mundo, como também proporcionar uma direção ao mundo, nos dá um sentido morto e nulo. Logo, atividades, rituais, especializações - que 3 Citação de Charles Taylor: TAYLOR, Charles. A ética da autenticidade, Trad. de Talyta Carvalho São Paulo: É Realizações, 2011 – PÁG 14 17 antes eram tão repleta de paixão - já não mais representam e nem ao menos são sinônimos de realização e muito menos um local onde se pode exercer uma serenidade por ser humano, e por isso não são mais capazes de nos proporcionar uma fuga desse mal-estar cotidiano. Portanto, o ideal moral da modernidade logo se transforma em um sobrevivencialismo, que torna os locais, a própria época, e as relações humanas em correlação com o mundo em algo vazio, nulo, sem espírito e totalmente mecânico. Cabe então nesse trabalho analisarmos quais seriam esses fatores que compõe a perda da dimensão ascética no cotidiano. CAPITULO II DO CONCEITO DE ASCESE “A reforma não acabou com os monastérios, mas, ao contrário, fez do mundo um monastério, transformando todo e qualquer cristão em monge.” (Weber 1969:84 e 1988:119-120) O ponto de partida para esse primeiro capítulo e a decorrência dos demais, é enxergar o ser humano como criador de valores que ordenam as interações e relações humanas e a partir destas são capazes de poder atribuir sentindo a uma determinada ação e fenômeno. Isso é aquilo que Weber vem chamar de ação social, como explica brevemente Gabriel Cohn: “A “ação social” mencionada nessa definição é uma modalidade específica de ação, ou seja, de conduta à qual o próprio agente associa um sentido. É aquela ação orientada significativamente pelo agente conforme a conduta de outros e que transcorre em consonância com isso” (COHN, 1992, p. 26-27) 18Deste modo, a sociologia sempre visa “compreender interpretativamente a ação social e assim explicá-la causalmente em seu curso e em seus efeitos” (WEBER, 2000, p. 3). E buscaremos enxergar e também compreender o objeto de pesquisa das seguintes formas: “Compreensão’ significa em todos esses casos: apreensões interpretativas do sentido ou da conexão de sentido: a) efetivamente visado no caso individual (na consideração histórica), ou b) visando em média e aproximadamente (na consideração sociológica em massa, ou c) o sentido ou conexão de sentido a ser construído cientificamente (como ‘ideal-típico’) para o tipo puro (tipo ideal) de um fenômeno frequente.” (WEBER, 2000, p. 6). Desta maneira, para compreendermos o que seria ascese - o conceito de ascese - devemos associar este fenômeno a uma consideração histórica, assim como uma consideração sociológica sobre estas práticas, assim como também designar as práticas ascéticas como um tipo ideal. Dito isso, cabe aqui classificarmos alguns tipos de ascese que vemos ao longo da história para compor um tipo ideal do que seria o fenômeno ascético, e assim explicar brevemente cada uma para que se tenha compreensão sobre a sua proporção e dimensão na sociedade moderna, assim como apontar a perda continua da dimensão ascética na sociedade capitalista moderna. Neste trabalho foram classificados quatro contextos e tipos de ascese, podemos vê-las da seguinte forma: a ascese elementar4, uma ascese que 4 Que podemos ver em Durkheim em forma de “culto negativo”, ritos ascéticos que classifica um ato ou ação como tabu ou não. Assim como em Bertrand Russell apresenta brevemente a ascese como fundadora do que chamaríamos de razão em sua História da Filosofia Ocidental. Durkheim, Émile – As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália/ Emile Durkheim: tradução Paulo Neves – São Paulo: Martins Fontes – Pág 317 19 valoriza acima de tudo um teor místico-religioso, inclusive para compor uma ordem social na sociedade ou comunidade, de forma “mecânica” 5, primária e básica, que se encontra em sociedades arcaicas e primitivas, que inclusive possui um elemento metafísico e ordenador que funda as religiões e uma moral; a ascese helenística, o tipo de ascese que possui influência dos ideais gregos, e das suas comunidades filosóficas, portanto laica, entretanto chega a influenciar fortemente a igreja e os ideais cristãos por possuir e ter como característica fundamental a qualidade diética, isto é, guardar e conservar para si mesmo aquilo que enxerga como essencial (no contexto grego), ou se preservar para se salvar e conseguir a sua salvação; por último temos a ascese religiosa, medieval, tomamos aqui a perspectiva cristã, tanto católica e protestante, que busca evidenciar uma espiritualidade com o intuito de se salvar deste mundo, assim como prestar homenagens aos ideais do que a igreja julga como divino. DA ASCESE ELEMENTAR Para dissertamos sobre esse tipo de ascese, de maneira breve, iremos nos utilizar de uma perspectiva empírica de Durkheim que se encontra na obra: “As Formas Elementares da Vida Religiosa”; quando o autor disserta sobre a utilidade do fenômeno da ascese ele conceitua os ritos ascéticos em seu sistema de pensamento como uma espécie de “culto negativo” 6. 5 Ver os tipos de solidariedade em Durkheim: mecânica e orgânica: Durkheim, Émile, 1858- 1917 - Da divisão do trabalho social/ Émile Durkheim; tradução Eduardo Brandão. - 2° ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1999. (pág 40 - pág 109). 6 No estudo sobre moralidade em Durkheim podemos observar que as religiões são constituídas por um “sistema solidário de crenças e práticas”; tais práticas e crenças denominam aquilo que seria sagrado ou profano, isto denomina os fenômenos religiosos em duas perspectivas: um estado de opinião e representações, e outro estado de ritos que exprimem uma conduta. Desta forma, o culto negativo é uma prática de conduta e representações que busca criar interdições, tabus e criticas a determinadas condutas, os responsáveis por realizar esses cultos ascéticos seriam os mais dotados de experiência, aqueles que possuiriam uma autoridade e virtude religiosa frente a comunidade. Logo, o culto 20 Émile Durkheim ao se dedicar aos estudos sobre moralidade, religião e sacralidade, opta por investigar e estudar as religiões primitivas da Austrália por considerar sua clareza e simplicidade, pois estas evidenciariam o que há de mais elementar e simples. E isso porque nas comunidades mais simples é onde há menor desenvolvimento das individualidades e também das diferenças. Portanto, o fenômeno ascético, assim como a sua dimensão mágico-religiosa, pode ser visto de uma maneira mais clara (DURKHEIM, 2014, p. 3). Os fenômenos religiosos se separam entre aquilo que se considera sagrado e aquilo que se considera profano. Isto é, duas classes que se excluem, e se excluem com a ideia de construir a base de uma moralidade sobre a comunidade: aquilo que se pode fazer ou não, inclusive na própria diversidade dos cultos. Logo, a passagem do mundo ordinário e comum (profano) para a dimensão classificada como sagrada implica em uma série de ritos; ritos que exigem do individuo uma exclusão e morte da sua representação do meio comum, e do “mundo” o qual faz parte; o que requer uma abstinência, um sofrimento, pois “nos aferramos com todas as fibras de nossa carne ao mundo profano; nossa sensibilidade nos ata a ele; nossa vida depende dele. E por isso, não podemos desprender-nos dele sem violentar nossa natureza, sem chocar-nos dolorosamente com nossos instintos” (DURKHEIM, 2014, p. 331), e tudo isso com o intuito de renascer na comunidade, em forma de cerimônia, aquilo que é divino, sagrado e que proporciona ordem e age sobre as condutas. Deste modo, o culto negativo demonstra ter um cárater: “(...) muito mais extenso e importante: que separa, não espécies diferentes, mas tudo o que é sagrado daquilo que é profano. (...) Assim, ele fornece a matéria de um verdadeiro culto, e mesmo de um negativo é uma aproximação de um individuo daquilo que seria sagrado, via ascese, para ordenar e estruturar as condutas e representações dos indivíduos. Em oposição a este, teríamos o que Durkheim chama de culto positivo, onde todos se juntam em um meio ordinário e comum, para adentrar em uma perspectiva sagrada. 21 culto que está na base de todos os outros.” (DURKHEIM, As Formas Elementares da Vida Religiosa – P. 321) Essa é a base da ordem que os rituais ascéticos proporcionam para se estabelecer um culto, atingir uma ideia de sagrado e também renascer através de cerimônia na comunidade, e isso, pois “ele acaba exercendo, sobre a natureza religiosa e a moral do individuo, uma ação positiva da mais alta importância.” (DURKHEIM, 2014, p. 328); e isso porque os rituais ascéticos tem um intuito de reviver sentimentos em comum que a comunidade partilha: as tradições em comum, as lembranças dos antepassados, um ideal coletivo que é reencarnado, e isso constitui uma moral, uma ordem, que tem por função proporcionar “interdições fundamentais” assim como um sentimento de pertencimento, pois eleva uma “energia religiosa” nos indivíduos. Dito isso, podemos observar que: “O ascetismo não é, como se poderia pensar, um fruto raro, excepcional e quase anormal da vida religiosa; ao contrário, é um elemento essencial dela” (DURKHEIM, As Formas Elementares da Vida Religiosa, p. 331). Logo, podemos observar que uma das dimensões da ascese em uma perspectiva elementar possui o intuito de proporcionar para a comunidade um ideal a qual se deva seguir, esse ideal se torna uma base de toda uma vida em comunidade, o que por meio deste vem a classificar, interditar, ordenar e proporcionar para as relações entre os indivíduos um sentimento em comum. Ao vermos essacaracterística e dimensão na ascese logo podemos também concluir que as práticas para que se alcance isso estão todas fundadas em um suporte místico-religioso, e isso porque todos os rituais buscam uma força exterior e que buscar transcender aquilo que é comum, ordinário, cotidiano, e também recorrente. Podemos ver esse caráter místico-religioso ao observar que em todos esses rituais ascéticos 22 há a crença de se tomar a dor como uma fonte de “forças excepcionais, que através da maneira como se enfrenta a dor que melhor se manifesta a grandeza do individuo.”, e, sobretudo, por almejar criar nos indivíduos uma “virtude e excentricidade religiosa” (DURKHEIM, 2014, p. 335). Assim, se acha também uma racionalidade por trás de todo esse sistema de crenças que envolvem a ascese, pois é inclusive de um uso “utilitário” como diz Durkheim, assim como possui um intuito plenamente social. DA ASCESE HELENISTICA Ao descrever breves considerações sobre a ascese helenística devemos nos realocar para uma concepção mais filosófica, isso implica dizer que devemos observar a ascese como um meio para conduzir uma vida regulada, equilibrada e que busca manter aquilo que é essencial para o próprio ser, logo, pode-se notar que ao adentrarmos nessa perspectiva a dimensão ascética se encontra na esfera ética, e também em uma necessidade constante de contemplação.7 Segundo Peter Sloterdijk, essa dimensão ética das “técnicas de transformação do sujeito” – ascese – se deve ao fato de: “Há aproximadamente três mil anos, as civilizações mais avançadas viviam numa espécie de estresse moral de ordem 7 Podemos ver mais detalhadamente: https://www.fronteiras.com/entrevistas/a- antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam- trabalhar-sobre-si-mesmos https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos 23 completamente nova. Houve um tempo em que era possível observar novas epifanias, de cunho ético. Creio que a filosofia como disciplina da velha Europa, ou como era concebida na Ásia Menor, em Atenas e nas costas da futura Turquia, foi uma nova epifania do logos. E o logos não é somente uma instância epistêmica, mas antes de tudo ética.” 8 (Peter Sloterdijk) Desta maneira, a filosofia antiga se resguarda como uma maneira de viver; o discurso teórico e a instância epistêmica seriam apenas uma expressão desse modo de vida, como um prelúdio, uma moral e introdução ao que se vivia. (HADOT, 1999, p. 362). O pensamento filosófico antigo se torna um exercício vivido daquilo que a razão pode projetar para si, desta forma a filosofia antiga conserva uma idéia de que a sua prática envolve em conciliar a reflexão teórica com um modo de vida (HADOT, 1999, p.135). A ascese na perspectiva filosófica helenística, nas diversas escolas e comunidades filosóficas, tem um intuito de acrescentar ao individuo e conservar aquilo que ele julga como essencial para si, isto é, através de diversas práticas de vida, disciplina do corpo e também da mente, tal como exercícios físicos e meditação, compõe o que chamaríamos de ascese. Logo, ao nos referirmos à ascese, em um contexto helenístico, significa que estamos nos referindo a um cuidado maior com o corpo e também com a alma (RICHARD SHUSTERMAN, 2012, p. 62). Logo, podemos notar que a faculdade da contemplação é exercida a todo tempo, uma contemplação em relação ao corpo e a própria alma, e também ao o que cerca o individuo e o faz sustentar em determinados estados de espírito, ou determinados modos de ser. Desta maneira, essa prerrogativa influi naquilo que o individuo vem chamar de verdade, a ascese 8 Podemos ver mais detalhadamente na entrevista: https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres- humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos https://www.fronteiras.com/entrevistas/a-antropotecnica-de-peter-sloterdijk-seres-humanos-sensiveis-ao-seu-apelo-deveriam-trabalhar-sobre-si-mesmos 24 nesse ponto de vista – e também nos demais tipos de ascese – se torna uma repetição fecunda de verdades sobre o ser, e isso, pois os exercícios ascéticos têm a capacidade de proporcionar uma especulação das realidades humanas e também divinas, sendo então um exercício que garante um solo fértil para teorias morais; desta maneira a faculdade do contemplar logo está ligada ao acesso do individuo a verdade (HADOT, 2014, p.292). Como reforça Sêneca sobre a relação da verdade e os benefícios desta ao individuo: “Começamos por crer na verdade e, quando cremos nela, o nosso espírito ganha ânimo e elevação, e enche-se de confiança e autoconfiança.” (SÊNECA, 2004, lv XV, ep.93, p.494). Deste modo, a ascese helenística demonstra estar interiormente ligada ao ser humano, assim como a do tipo elementar, é capaz de produzir um sentimento do qual o individuo ira se utilizar para construir a si mesmo, e também ao seu redor; não obstante a isso, também podemos ver que as práticas ascéticas são capazes de proporcionar um sentimento de realização, potência e também capacidade para a ação. Logo, podemos concluir que através dessa explanação bem breve, os principais aspectos e dimensões que a ascese helenística proporciona para o ser humano são de caráter: ético, contemplativo e de auto-formação. DA ASCESE CRISTÃ Finalmente, podemos adentrar na perspectiva weberiana de ascese, sobretudo no contexto cristão. Nessa perspectiva vamos trabalhar com base nos dois livros propostos do autor: “A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo” (2004) e “Ensaios de Sociologia” (1982). 25 O ser - humano se torna um animal moral através da ética religiosa. Isso significa que através de uma “técnica” as religiões têm um intuito de fundar um ethos religioso, com a intenção de desviar o sentido do mundo, isto é: “A ação no mundo é vista, assim, como um perigo para o estado irracional e outros estados religiosos voltados para o outro mundo.” (WEBER, 1982, p.371). Isso ocorre pois a faculdade religiosa é imbuída por um elemento metafísico. Diferentemente da racionalização ocidental, que é orientada para esse mundo sem uma noção mágico-religiosa, o que torna a ação pragmática, assim também como anterior a uma noção religiosa, e, portanto, vazia de metafísica - não se orienta para o além, e sim para esse mundo (exemplo de uma razão instrumental: meios e fins). E assim, podemos ver a crescente perda dessa dimensão mágico-religiosa com as transformações da ascese cristã. Logo, podemos observar que as práticas ascéticas seguindo os ideais cristãos, quando atuam nas ordens monásticas católicas tendem a criticar e gerar interdições, através de normas e regras, as maneiras de ser intramundanas; e assim, por sua vez, produzem uma forma de viver e uma maneira de ser na vida comum que visa à ordem, isso significa que tem uma dimensão plenamente ética que toda religião busca conservar, e, portanto uma dimensão que também é estética – essa perspectiva irá ser explorada ao final deste capitulo. Apesar desse intuito inicial que as práticas ascéticas nos apresentam, Weber ao tratar sobre a ascese cristã enfatiza que nas duas principais vertentes – catolicismo e protestantismo – ocorrem práticas semelhantes, isto é: estar entrelaçado em uma vida plenamente metódica, racionalizadae constantemente aderindo a sacrifícios do corpo, das suas próprias vontades, de forma que em tudo agrade a Deus, e isso acabava 26 por conservar a salvação que a religião cristã oferece (WEBER, 2004, p.75). Entretanto, a diferença da ascese católica para a ascese protestante, tem, sobretudo, uma perspectiva de querer uma absoluta certeza que o individuo iria se salvar, isto é: enquanto na visão católica o individuo sabe que Deus elegeu alguns para a salvação, mas não se sabem quem são esses indivíduos; a perspectiva dos protestantes em relação a isso é que há a possibilidade de saber quem são esses escolhidos e que serão salvos, ou seja, essa eleição daqueles que iriam se salvar deveria se cotidianamente testada e afirmada através do exercício da vocação do individuo (WEBER, 2004, p.75). Como Weber parafraseia outro autor, em relação ao o que seria católico e o que seria protestante e no que ética de cada um influi para a sociedade: “O católico é mais quieto, tem menor impulso aquisitivo; prefere uma vida a mais segura possível, mesmo tendo menores rendimentos, a uma vida mais excitante e cheia de riscos, mesmo que esta possa lhe propiciar a oportunidade de ganhar honrarias e riquezas. Diz o provérbio, jocosamente: “Coma ou durma bem”. Neste caso, o protestante prefere comer bem, e o católico, dormir sossegado”. (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 14) E isso denota como a ascese de cunho protestante ou católica assume uma forma de ser no mundo. Como evidência Weber: 27 “O aparente conflito entre o desapego, o ascetismo e a devoção eclesiástica de um lado, e a participação na aquisição de bens materiais do outro, possam de fato vir apresentar um íntimo relacionamento.” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 15) O que acaba acarretando em conflitos de cunho religioso, na seguinte acusação entre esses dois tipos diferentes de exercer uma espiritualidade frente ao mundo: “Do lado protestante, é usada como base das críticas de tais ideais ascéticos (reais ou imaginários) do modo de viver católico, enquanto os católicos respondem com a acusação de que o materialismo resulta da secularização de todos os ideais pelo protestantismo” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 14) Portanto, podemos ver que em Max Weber a ascese aos moldes protestantes tem um papel fundamental na construção de uma ética capitalista, - mesmo que inconsciente - um modo de ser capitalista, como podemos ver Weber ao citar Baxter: “Fora da vocação bem definida, as realizações do homem são apenas casuais e irregulares, e ele gasta mais tempo no ócio que no trabalho” e quando conclui com a seguinte: “ ele (o trabalhador especializado) levará a termo seu trabalho em ordem, enquanto outros ficarão em constante confusão, E sua labuta não conhecerá nem tempo nem lugar”... e por isso ter a vocação certa é o melhor 28 para todos” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 76) Isso porque na perspectiva da tradição calvinista, puritana e luterana a visão de ascese se liga a noção de vocação, e assim há o entendimento de ao seguir a sua própria especialidade e se identificar com um tipo de trabalho, o individuo é instrumentalizado para glorificar a Deus, o que acaba produzindo um avanço naquilo que podemos chamar de racionalismo econômico, o que por sua vez produz uma economia racional: “uma economia racional é uma organização funcional orientada para os preços monetários que se originam nas lutas de interesse dos homens no mercado.” (WEBER, 1982 - pág 380). Logo, há diferenças significativas entre os exercícios ascéticos em um contexto medieval tradicional, e, portanto, católico, diante de um contexto moderno e protestante. Assim, notamos que o trabalho vocacional se torna o exercício ascético principal da ascese moderna, é ele que vem a ser um dos precursores da moral da especialização, tanto quanto se torna a própria finalidade da vida; então, qualquer coisa fora disso se torna uma indignidade moral, os ditames então são: “Quem não trabalha não deve comer...” e “A falta da vontade de trabalhar é sintoma da falta de graça.” (WEBER, 2004, p. 74). Tomás de Aquino sugere essas mesmas interpretações para o ponto de vista sobre o trabalho, apesar de que o trabalho apenas era necessário em uma forma naturali ratione, isso é, para a manutenção do individuo e da comunidade; saindo desse aspecto, o trabalho já não possuía significado, assim como, a contemplação, diferente da visão moderna, mesmo que inativa, também poderia ser vista como uma forma de ação espiritual que junto com a oração e ao canto se tornam os principais exercícios ascéticos em um contexto medieval católico (WEBER, 2004, p.76). Entretanto, os passos para estruturar a realidade em uma visão de mundo que domina sobre os hábitos, e os corpos de todas as comunidades onde impera o cristianismo já foram dados por Tomás de Aquino; isso ocorre 29 quando ele unifica o sistema filosófico da natureza de Aristóteles com a teologia e a ética cristã; assim, tendo pleno controle da vida humana e suas expressões. Portanto, apesar do ponto de vista medieval aparentar ser um tanto distinto e dar mais margem para uma moral generalista e um pensamento criador, o caminho para que se consolidasse a visão moderna a respeito da ascese já estava dado – considerando que as reformas iriam acontecer de uma maneira ou de outra -, isso, faz com que o pensamento medieval fosse apenas uma etapa anterior ao pensamento moderno a respeito da consideração do trabalho ser uma técnica ascética de um ponto de vista um tanto quanto processual, que por sua vez aos poucos molda e fecha os horizontes do mundo em apenas uma perspectiva e uma realidade única. O movimento ascético, para nós, mesmo que se quisesse se distinguir desses termos, não poderia, pois a visão puritana apesar de ter classificado a divisão do trabalho, que é a idéia de vocação, como um caráter providencial, moral, ético, que teria intuitos de adorar a Deus e garantir a vida em outro mundo, atinge significativamente o jogo dos interesses econômicos. Podemos ver isso quando a especialização acaba possibilitando o desenvolvimento de habilidades, e também uma melhora qualitativa e quantitativa da produção, que acaba servindo ao bem comum. O que acaba por desvirtuar, posteriormente, todos os ideais religiosos e que coage o individuo a adentrar em uma ética puramente capitalista: “A economia capitalista moderna é um imenso cosmos no qual o indivíduo nasce, e que se lhe afigura, ao menos como indivíduo, como uma ordem de coisas inalterável, na qual ele tem de viver. Ela força o indivíduo, à medida que esse esteja envolvido no sistema de relações de mercado, a se conformar às regras de comportamento capitalistas.” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 21) 30 Esse comportamento capitalista que Weber cita, não é nada menos do que exercer uma técnica que o mercado exige do individuo. Deste modo, Max Weber conclui que os mais nobres ideais de adoração e de glorificação de Deus, através do ascetismo, teriam desaparecido, deixando o mundo livre para uma busca constante de riqueza, e também proporcionando uma "vocação para o trabalho" que não necessitava de justificativa. Logo, através da ascese o individuo perde a sua capacidade de adorar a um Deus em seu sentido, e passa a prestar honra a outros senhores. Deste modo, podemos concluir que a ascese elementar, a ascese helenística e a ascese cristã, demonstram uma capacidade de manutenção e criação do ser humano e de sua comunidade, pois a partir delas que ocorre uma transformação de si, e também do meio; logo, a ascese seria uma busca crescente por uma composição do ser, e isso ocorre independentementedo núcleo que cultiva estas práticas. Assim, podemos responder as perguntas feitas na introdução deste texto a respeito disto, e concluir que os principais elementos que compõe a dimensão ascética - que compõe o tipo ideal de ascese - seriam: a dimensão ética, a dimensão religiosa e, sobretudo, uma dimensão estética. CAPÍTULO III MODERNIDADE E PERDA DE SENTIDO Visto isso, concluímos que essa ascese religiosa fornece uma dimensão ética, contemplativa e também reflexiva, mas que, sobretudo, se reflete em um constante agir para prestar uma espiritualidade; seja de uma forma que proporcione com um viés mais espiritual em relação à adoração a Deus, ou uma constante produção de certezas sobre a sua salvação. Ao fornecer essa primazia ética, logo podemos ter uma dimensão estética, 31 sobretudo, em como o individuo se conduz em relação ao mundo e como nele interage. Entretanto, podemos ver que até mesmo essa contemplação com um viés estético, se não for direcionada para os objetivos vocacionais são sem valor e passiveis de serem repreendidas, assim, a ascese acaba por ser ordenada por um tipo de puritanismo, sempre exigindo ordem e execução constante. Logo, todo ócio – e, possivelmente, o pensamento criativo - é negado e visto como uma característica negativa. Weber diz: “Assim, mesmo a contemplação inativa seria também sem valor, ou até diretamente repreensível, se ocorrer às expensas do trabalho diuturno do indivíduo.” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 74). Assim, rapidamente a ascese passa a se transformar em uma série de exercícios repetitivos, que apenas sustenta uma perpetuação de hábitos intramundanos. O que acaba confrontando com a ideia de uma ascese pré- capitalista, e isso porque em Weber podemos ver que sempre há uma constante tensão entre a esfera estética e as religiões que buscam conservar uma ética estritamente religiosa, como nas religiões cristãs: “A sublimação da ética religiosa e a busca da salvação, por um lado, e a evolução da lógica inerente da arte, por outro, tenderam a formar uma relação cada vez mais tensa.” (WEBER, 1982 – pág 391). Mesmo que no inicio de toda e qualquer religião sempre ocorra uma grande harmonia entre a religião e a dimensão estética, pois: “Desde seu inicio, a religião tem sido uma fonte inesgotável de oportunidades de criação artística, de um lado, e de estilização pelo tradicionalismo, do outro. Isso se evidencia em vários objetos e processos: ídolos, ícones e outros artefatos religiosos.” (WEBER, 1982 – pág 390) 32 E isso se dá pelo que Weber chama de racionalização do mundo, que em parte a ascese protestante acaba proporcionando para o mundo, pois há agora um enfoque em uma racionalidade econômica, e também uma ética puramente moderna, de cunho calculista, que acabam buscando harmonia entre as direções que o mundo oferece, e as direções que a religião oferece. Logo, podemos ver que: “A racionalização é o processo que confere significado à diferenciação de linhas de ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação racional e enseja a sua crescente e, logo, irreversível expansão. Logo, o desencantamento do mundo de weber, pode ser lido como um aumento gradativo de nitidez de significados.” 9(COHN in Weber, 1995, p.17) Essa racionalização se dá pela eficiência dos processos de cálculo, ao invés de motivações de cunho moral, costume ou tradição. O que acaba proporcionando um desencantamento do mundo10, uma perda crescente do sentido religioso e espiritual que antes as religiões buscavam conservar, o que também acaba isolando uma dimensão de outras dimensões: a arte, a religião e a política, por exemplo, já não mais está correlacionada com outras dimensões além das mesmas que estas representam, e isso, pois cada vez mais se pensa a arte pela arte, a religião pela religião, a política pela política, o que denota uma “nitidez de significados” e logo podemos ver uma crescente distância entre uma esfera e outra que compõe o cotidiano e a nossa própria existência: Cada esfera de valor, ao se racionalizar, se justifica por si mesma: encontra em si uma 9 Podemos ver esse conceito mais detalhadamente na obra “Economia e Sociedade”, de Weber. 10 Conceito que indica a constante perda de sentido e significados para a vida. Podemos encontrar na obra de Weber: “Ciência como Vocação”. 33 finalidade própria. Dessa maneira, esses meios racionais de ganho econômico que a ascese protestante proporciona rompem com a ascese tradicional católica e evidência esse caráter e ética moderna capitalista: “Este é um exemplo do que queremos significar aqui por tradicionalismo. O homem não deseja “naturalmente” ganhar mais e mais dinheiro, mas viver simplesmente como foi acostumado a viver e ganhar o necessário para isso. Onde quer que o capitalismo moderno tenha começado sua ação de aumentar a produtividade do trabalho humano aumentando sua intensidade, tem encontrado a teimosíssima resistência desse traço orientador do trabalho pré- capitalista.” (“A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” – pág 24) Isto é, a partir de uma ação sistemática e também metódica, como a ética protestante em relação à ação direcionada ao trabalho, acaba proporcionando um objetivo a se alcançar, e se age de maneira sistemática e metódica para se alcançar esse objetivo, o que rompe com uma idéia tradicional de se viver a vida. Como compreender o fenômeno religioso ocidental é compreender o processo de racionalização, logo, compreender a racionalização do mundo é também compreender o advento da modernidade. E isso porque ocorre a passagem do protestantismo ao capitalismo moderno. A modernidade acaba criando um costume recorrente de obter uma previsibilidade através desse pensamento metódico e calculista, e isso é proporcionado por um conhecimento racional, que não está muito ligado a ética religiosa. Porque essa dimensão cognitiva oferece ao mundo uma visão racional da vida. O que ocorre então é a intelectualização da cultura, que busca cada vez mais dominar a realidade de forma teórica. 34 Deste modo, podemos também notar que a racionalização da cultura atinge também um patamar moral. Isso significa dizer que agora ocorre a separação das idéias morais, assim como uma série de princípios de idéias morais. Há agora sempre uma independência dos valores, sobretudo, dos valores que a vida religiosa nos impõe (WEBER, 1982, p.277). Dito isso, a dimensão ética, estética e também religiosa não depende mais da ascese, e nem sequer a trás a tona essa prática como antes, justo no advento dessa racionalização da moral a ascese cada vez mais se degenera, pois se transforma em mero especialismo, de maneira tal que não é capaz de se unir e mesclar a outras esferas e dimensões como antes. E assim é por advento da técnica. Essa técnica acaba por transformar tudo aquilo que é humano em uma constante mecânica com um viés totalmente formal. O que também acaba resguardando a vida em um enclausuramento do espírito. A modernidade se resulta então em uma constante desumanização daquilo que é essencialmente humano11. Podemos ver também que no iluminismo a ascese foi banida, assim como foi banida também do processo artístico, e isso pelo simples fato de soar como algo místico e possivelmente pelo pretexto de propagar uma loucura que a cultura dessa época almejam evitar: o feitiço, a mágica, o mana 12 . Assim sendo, a única ascese que a modernidade suporta é a pseudo-ascese, a que poupa para se ter mais, que se disciplina para lucrar; a construção e o crescimento das cidades então passam a ocorrer com uma determinada ausência de espírito. 11 Na modernidade há uma série de repercussões positivas, que também torna a vida mais fácil em certos aspectos. Entretanto, como se trata de um estudo daascese e a sua degeneração, o teor que está envolto da modernidade em correlação ao fenômeno ascético é sempre negativo. 12 Podemos ver mais a respeito em Adorno “do conceito de iluminismo” 35 Assim, já citando Lévi-Strauss: o declínio da explicação mítica a partir do Renascimento condiz com a ascensão de uma criatividade musical maior, e isso porque essa criatividade passa a oferecer uma forma musical, entretanto, formas que apenas foram redescobertas: “É exatamente como se, ao inventar as formas musicais específicas, a música só redescobrisse estruturas que já existiam a nível mitológico”. (Lévi-Strauss - Tristes Trópicos) Deste modo, essa criatividade musical não inventou formas, e sim, apropriou-se das estruturas dos mitos. Assim, podemos então concluir que o Renascimento, Modernidade tem uma tendência de querer pensar constantemente uma idéia de progresso, e livrar do medo exterior e de possíveis acontecimentos que submetem os seres humanos ao temor de conhecer o próprio mundo, entretanto, se realiza de uma maneira que o cega, e isso porque o Iluminismo, em nome da razão, acorrenta o pensamento com o pretexto cientifico, de apenas nos direcionar a uma tendência econômica13. CAPÍTULO IV HORIZONTES DA PRODUÇÃO DE SENTIDO A ascese do ponto de vista da reflexão e de um pensamento tradicional se justifica e se apóia em grande parte em um caráter religioso, as variedades de crenças são os elementos que imbuem e preenchem a atividade ascestica; assim, a pretensão de se alcançar um estado genuíno do espírito tem forte correlação com determinada necessidade humana de estar ligada a um pensamento mitológico-religioso, a algo que tem a tendência de transcender, e 13 Ver em Adorno: “Do conceito do Iluminismo” 36 que ao mesmo tempo faz parte de maneira bem primitiva ao o que é ser humano. Esses elementos mitológicos estruturais envoltos do fenômeno da ascese são os que dão a ela sentido, são elementos que a direcionam para um estipulado fim – um fim que almeja salvar aquilo que é humano. Assim, quando vamos falar sobre a ascese só podemos assim dissertar quando a correlacionamos com o espírito humano, pois este, através da ascese, tem o intuito de adentrar em determinado estado genuíno de heroísmo, e isso significa maior motivação para a ação, e, consequentemente, proporcionar para si um sentimento maior de realização (WILLIAM JAMES, 1991, p.217). Notamos então que a ascese não poderia apenas se encaixar em uma espécie de regime restrito, as demandas da vida na civilização já demandam um regime, não faria sentido a ascese em um amplo e puro sentido demandar mais desse mal-estar que advém da perda constante de valores e das dimensões que compõe a ascese, e, continuamente, fechar mais os horizontes da diversidade e multiplicidade humana. O que se propõe então é encarar esse movimento como algo libertador e que vá além desses ditames medievos, modernos e técnicos. Ora, o que se apresenta não se é nenhum problema tão novo, são as mesmas criticas dos ideais ascéticos que muitos antes já o fizeram14. E isso implica dizer que apenas através do exercício criativo, através da tomada de consciência e percepção da dimensão estética, isto é: analisar os sentimentos primeiramente para se chegar à razão 15 ; logo se tornara possível se desvincular dessa estreita falta de liberdade em meio essa grande estrutura e romper com o excesso do especialismo. Isso implica dizer que deveríamos ter uma educação que nos proporcionasse um domínio carismático, o que significa que para contornar 14 Nietzsche estrutura sua critica a modernidade com base nos ideais ascéticos. 15 Uma proposta bem hegeliana do que seria razão. 37 essa situação há o dever de despertar o heroísmo no ser. A capacidade de enxergar e ter ambição, assim como conservar um estado espirituoso em si mesmo. As qualidades humanas devem ser retomadas, a humanização deve ser retomada, e para isso, devemos ir além da rotina diária. Como aponta: “O atendimento de todas as necessidades que vão alem da rotina diária teve em principio uma base totalmente heterogênea, ou seja, carismática” (WEBER, 1982, pág 281). Como podemos ver na propriedade carismática: “Isto significa que os lideres “naturais” — em épocas de dificuldades psíquicas, físicas, econômicas, éticas, religiosas ou políticas — não foram os ocupantes de cargos nem os titulares de uma “ocupação” no sentido atual da palavra, isto e, homens que adquiriram um conhecimento especializado e que servem em troco de uma remuneração. Os lideres naturais nas dificuldades foram os portadores de dons específicos do corpo e do espírito, dons esses considerados como sobrenaturais, não acessíveis a todos.” (WEBER, 1982 – pág 283) Os dons naturais citados e também considerados mágicos, bem sabemos que é da faculdade humana – sabemos disso através da racionalização intelectual – logo, a faculdade do carisma não está especificamente ligada a dons sobrenaturais, e sim a faculdade da dimensão estética e criativa, pois o individuo imbuído de carisma se prova ser criativo o suficiente para “ignorar qualquer “carreira”, “progresso”, “salário” regulares, ou o treinamento especializado e regulamentar do portador do carisma ou de seus auxiliares.” (WEBER, 1982, p. 283). E isso se deve, pois “O seu portador toma a tarefa que lhe e adequada e exige obediência e um séquito em virtude de sua missão. Seu êxito e determinado pela capacidade de consegui-los.” (WEBER, 1982, p. 284) Deste modo, se torna necessário, para aquele que é possuidor do carisma, ter a missão de retomar o caráter criativo, a capacidade de se reinventar; e não apenas de afirmar um ideal a ser seguido, mas que seja 38 possuidor de uma articulação entre essas dimensões distintas e que possuem uma finalidade em si mesma. Weber diz que a ciência só pode ser exercida plenamente através da paixão pela especialidade, pela ascese em relação a um assunto especifico. Entretanto, nem ao menos conseguimos achar nessa especialidade ascética cientifica a capacidade de retomar o fenômeno ascético e heróico do ser humano, e isso pela constante distância da ciência em relação ao que é comum. Logo, se torna necessário outros meios fora deste, para que se pense e reflita em como poderíamos retomar a capacidade humana de ação criativa e construtora de um sentido e um horizonte para a vida. 39 Bibliografia: WEBER, MAX. Max Weber, Ensaios de Sociologia. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1982. WEBER, Max (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras. – Ascese e Capitalismo WEBER, Max. A ciência como vocação [1919]. WEBER, Max. Ciência e política, duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1972. p.17-52. WEBER, Max. Religião e racionalidade econômica[1916]. In: WEBER, Max. Max Weber: sociologia (Gabriel Cohn org.). São Paulo, Ática, 1982. WEBER, Max. Economia e Sociedade: Fundamentos da Sociologia Compreensiva. Brasília, DF; Editora da Universidade de Brasília, 1991. COHN, Gabriel. A controvérsia metodológica. In: COHN, Gabriel. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo, T.A.Queiroz, 1979. Durkheim, Émile – As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália/ Emile Durkheim: tradução Paulo Neves – São Paulo: Martins Fontes Durkheim, Émile, 1858-1917 - Da divisão do trabalho social/ Émile Durkheim; tradução Eduardo Brandão. - 2° ed. - São Paulo: Martins Fontes, 1999. 40 James, William. William James Variedades da Experiência Religiosa – Um estudo sobre a natureza humana. Trad. De Octavio Mendes Cajado; William James, 1991 – 1º Ed. – Editora Cultrix. Hadot, Pierre/ Exercícios Espirituaise Filosofia Antiga; São Paulo: É Realizações, 2014 HADOT, PIERRE. O que é a filosofia antiga? Trad. de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1999. Shusterman, Richard/ Consciência Corporal; tradução Pedro Sette-Câmara. – São Paulo: É Realizações, 2012 A finalidade da ascese no estoicismo imperial: leituras de Michel Foucault e Pierre Hadot/ Carlos Renato Moitero: orientador César Cadiotto – 2010 SÊNECA, Lucius Annaeus; SEGURADO E CAMPOS, Jóse António. Cartas Lucílio. 2. Ed.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004