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MIOCARDIOPATIA DILATADA Lyzandra Linhares Fisiopatologia: As cardiomiopatias são um grupo heterogêneo de doenças do miocárdio associadas à disfunção mecânica e/ou elétrica que geralmente (mas não invariavelmente) exibem hipertrofia ou dilatação ventricular inadequada. As cardiomiopatias primárias podem ser doenças genéticas ou adquiridas do miocárdio, enquanto que as cardiomiopatias secundárias apresentam envolvimento miocárdico como componente de um distúrbio sistêmico ou multiorgânico. A cardiomiopatia dilatada é um distúrbio do músculo cardíaco caracterizado pela dilatação e função sistólica alterada do ventrículo esquerdo ou ambos os ventrículos, na ausência de doença arterial coronariana, de anomalias valvares ou de doença pericárdica. Os sintomas e sinais associados à miocardiopatia dilatada dependem do grau de disfunção ventricular esquerda. Embora a primeira apresentação possa ser morte súbita ou um evento tromboembólico, a maior parte dos pacientes apresenta sintomas de aumento da pressão venosa pulmonar ou baixo débito cardíaco, que podem ser agudos e, algumas vezes, precipitados por doenças ou arritmias intercorrentes, ou podem ser crônicos. Os adultos inicialmente apresentam tolerância reduzida ao exercício e dispneia ao esforço. Com a piora da função ventricular esquerda, os pacientes podem desenvolver dispneia durante o repouso, ortopneia, edema periférico e ascite. Os sintomas relacionados à isquemia mesentérica, como dor abdominal após as refeições, náuseas, vômitos e anorexia podem ser dominantes, especialmente em crianças. Os sintomas arrítmicos, como palpitações, pré- síncope e síncope podem ocorrer em qualquer idade. Com o aumento da idade, as características do baixo débito cardíaco incluem taquicardia sinusal, pulsos periféricos fracos e hipotensão. A pressão venosa jugular pode estar elevada e o impulso apical pode estar deslocado. O edema periférico, a hepatomegalia e a ascite são comuns em pacientes com insuficiência cardíaca. A ausculta do tórax tipicamente revela crepitações basais. A ausculta cardíaca pode revelar uma terceira bulha cardíaca (algumas vezes, uma quarta bulha cardíaca). Em pacientes com regurgitação mitral funcional, pode ser escutado um sopro pansistólico (começam com o primeiro som cardíaco e continuam durante todo o segundo som cardíaco) no ápice que irradia para a axila, mas frequentemente nenhum sopro é auscultado, mesmo quando existir incompetência da valva mitral, especialmente se o débito cardíaco for muito baixo. Várias condições estão associadas a essa patologia, incluindo distúrbios neuromusculares, erros inatos do metabolismo e síndromes de malformação. Na maioria dos pacientes, nenhuma causa identificável é encontrada e, neste caso, a doença é denominada cardiomiopatia dilatada idiopática. Miocardiopatia dilatada genética: Os genes implicados na miocardiopatia dilatada (MCD) com predominância de insuficiência cardíaca incluem mutações nas proteínas do miocárdio envolvidas na contração, no contato célula-célula e no citoesqueleto. Já os genes implicados na miocardiopatia arritmogênica incluem genes de proteínas do desmossomo, de filamento intermediário, do envelope nuclear e dos canais iônicos. Mutações no gene lamina A/C, que codifica uma proteína do envelope nuclear, causam arritmia atrial e ventricular e doença de condução atrioventricular progressiva, que pode preceder o desenvolvimento da miocardiopatia dilatada. Deleções no gene da filamina C, que codifica uma importante proteína do filamento intermediário, provocam um fenótipo misto de miocardiopatia dilatada e miocardiopatia arritmogênica, tipicamente em arritmias ventriculares letais em adolescentes e adultos jovens e com insuficiência cardíaca subsequente em sobreviventes. Em particular, as mutações no TTN, um gene que codifica a titina (assim chamada por ser a maior proteína expressa em humanos), podem ser responsáveis por cerca de 20% de todos os casos de CMD. A titina abrange o sarcômero e conecta as bandas Z e M, limitando assim a amplitude de movimento passiva do sarcômero, conforme ele é esticado. A titina também age como uma mola molecular, com domínios que se desdobram quando a proteína é esticada e redobram quando a tensão é removida, afetando assim a elasticidade passiva do músculo estriado. As principais proteínas mutadas na cardiomiopatia dilatada (em vermelho), cardiomiopatia hipertrófica (em azul), ou em ambas (em verde). Nas formas genéticas de CMD, o padrão predominante é a herança autossômica dominante; a herança ligada ao cromossomo X, a autossômica recessiva e a mitocondrial são menos comuns. Em algumas famílias, ocorrem deleções nos genes mitocondriais que resultam em defeitos na fosforilação oxidativa; em outras, há mutações nos genes que codificam as enzimas envolvidas na β-oxidação de ácidos graxos. Os defeitos mitocondriais normalmente se manifestam na população pediátrica, enquanto a CMD ligada ao X normalmente se apresenta após a puberdade e no início da idade adulta. Miocardiopatia dilatada adquirida: As causas comuns adquiridas de miocardiopatia dilatada incluem miocardite infecciosa, quimioterapia, radioterapia, álcool etílico, cocaína, deficiências nutricionais, sobrecarga de ferro, distúrbios inflamatórios e autoimunes, endocrinopatias e gravidez. A miocardiopatia mediada por taquicardia (taquimiocardiopatia) é rara e em geral é revertida uma vez que a taquicardia seja controlada. A maior parte dos pacientes melhora com o tratamento, mas a sobrevida em 5 anos é de menos de 50% em pacientes que apresentam doença grave (fração de ejeção < 25%, dimensão diastólica final do ventrículo esquerdo > 65 mm e consumo máximo de oxigênio < 12 mℓ/kg/min). Miocardiopatia dilatada alcoólica: O álcool etílico e seu metabólito, o acetaldeído, são cardiotoxinas, que lesam o miocárdio. A depressão miocárdica inicialmente é reversível, mas se o consumo de álcool etílico for sustentado pode causar vacuolização dos miócitos, anomalias mitocondriais e fibrose miocárdica. Além disso, o alcoolismo crônico pode estar associado a uma deficiência de tiamina, que pode levar à doença cardíaca por beribéri. O consumo de álcool necessário para provocar miocardiopatia sintomática em indivíduos suscetíveis não é conhecido, mas estima-se que seja seis drinques (cerca de 120 mℓ de etanol puro) por dia durante 5 a 10 anos. O consumo excessivo frequente, sem consumo diário, também pode ser suficiente. A abstinência gera melhora em pelo menos 50% dos pacientes com sinais/sintomas graves e alguns deles normalizam a fração de ejeção ventricular esquerda. Miocardiopatia dilatada - quimioterapia: A cardiotoxicidade causada por antraciclinas (doxorrubicina, daunorrubicina, epirrubicina) provoca mudanças histológicas características em biopsias endomiocárdicas com insuficiência cardíaca em de 5 a 10% dos pacientes que tenham recebido doses iguais ou maiores do que 450 mg/m2 de área superficial corporal. A maior parte da cardiotoxicidade ocorre no primeiro ano e está associada a dose elevada de antraciclinas e com uma fração de ejeção ventricular esquerda menor. Em adultos que recebem esses fármacos, o tratamento combinado com enalapril e carvedilol pode reduzir significativamente o risco de dilatação ventricular esquerda e insuficiência cardíaca. Pacientes que receberam antraciclinas no período pré- puberal e que não tenham cardiotoxicidade evidente podem desenvolver insuficiência cardíaca quando adultos jovens. O risco é mais elevado em pacientes com frações de ejeção basais menores, ou que tenham recebido radioterapia concomitante ou doses mais elevadas de antraciclinas. A ciclofosfamida e a ifosfamida podem causar insuficiênciacardíaca aguda grave e arritmias ventriculares malignas. Alguns inibidores da tirosinoquinase (terapias direcionadas ao câncer) causam redução da função sistólica, especialmente quando há doença arterial coronariana, mas esses pacientes respondem bem à remoção do fármaco e à terapia clínica convencional. O risco de cardiotoxicidade aumenta com tratamentos prévios com antraciclinas e radiação. A interferona alfa pode estar associada a hipotensão e arritmias em até 10% dos pacientes e a interleucina-2 raramente é associada à cardiotoxicidade. Miocardiopatia dilatada – doença metabólica e endócrina: O excesso de catecolaminas, como ocorre no feocromocitoma (tumores que sintetizam catecolaminas), pode lesionar o coração por comprometer a microcirculação coronariana ou por causar efeitos tóxicos diretos sobre os miócitos. A cocaína aumenta as concentrações sinápticas de catecolaminas por inibir a recaptação nas terminações nervosas; o resultado pode ser uma síndrome coronariana aguda ou miocardiopatia crônica. A deficiência de tiamina causada por problemas nutritivos ou por alcoolismo pode causar a doença cardíaca por beribéri, com vasodilatação e um alto débito cardíaco, que é seguido por baixo débito. A deficiência de cálcio resultante de hipoparatireoidismo, anomalias gastrintestinais ou de quelação compromete diretamente a contratilidade miocárdica. A hipofosfatemia, que pode ocorrer no alcoolismo, durante a recuperação da desnutrição e na hiperalimentação, também reduz a contratilidade miocárdica. Pacientes com depleção de magnésio por causa de problemas de absorção ou de aumento da excreção renal também podem apresentar disfunção ventricular esquerda. O hipotireoidismo diminui a contratilidade e a condução e pode causar efusões pericárdicas, enquanto o hipertireoidismo aumenta o débito cardíaco, pode piorar uma insuficiência cardíaca já existente e raramente é a única causa de insuficiência cardíaca. O sinal de apresentação do diabetes pode ser a miocardiopatia, especialmente com disfunção diastólica, independentemente de aterosclerose coronariana epicárdica. O diabetes é um grande fator de risco para a aterosclerose. A obesidade pode causar miocardiopatia com aumento da massa ventricular e redução da contratilidade, que melhora após a perda de peso ou que pode agravar a insuficiência cardíaca decorrente de outras causas. Miocardiopatia dilatada periparto: A miocardiopatia periparto surge no último mês da gravidez ou nos primeiros 5 meses após o parto na ausência de doença cardíaca preexistente. O risco é elevado em mães mais velhas ou em casos de gêmeos, subnutrição, terapia tocolítica (inibição de contrações uterinas), toxemia ou hipertensão. A apresentação em geral se dá com ortopneia e dispneia aos mínimos esforços, mais frequentemente nas primeiras semanas após o parto, quando o excesso de volume da gravidez normalmente seria mobilizado. Deve ser excluída a presença de doença cardíaca preexistente. Diuréticos facilitam a diurese pós-parto e inibidores da enzima conversora de angiotensina melhoram os sintomas Sobreposição com miocardiopatia restritiva: Doenças que causam miocardiopatias primariamente restritivas podem ocasionalmente ter sobreposições, causando um quadro consistente com miocardiopatia dilatada. Por exemplo, a hemocromatose (:excesso de ferro) e a sarcoidose devem ser consideradas durante a avaliação de qualquer paciente com miocardiopatia, embora essas condições sejam consideradas mais frequentemente como doenças restritivas. A amiloidose (acúmulo de proteína amiloide) é confundida menos frequentemente com a miocardiopatia dilatada do que é com a miocardiopatia hipertrófica, mas essa condição deve ser considerada em um paciente com um ventrículo de parede espessa e função contrátil moderadamente reduzida. Na CMD, o coração geralmente está aumentado, pesado (duas a três vezes o normal) e flácido devido à dilatação de todas as câmaras. Os trombos murais são comuns e podem ser uma fonte de tromboêmbolos. Não há alteração valvar primária; se a regurgitação mitral (ou tricúspide) estiver presente, a CMD resulta da dilatação da câmara ventricular esquerda/direita (regurgitação funcional). Insuficiência Cardíaca: A insuficiência cardíaca, frequentemente chamada de insuficiência cardíaca congestiva (ICC), ocorre quando o coração é incapaz de bombear o sangue em uma proporção suficiente para atender às demandas metabólicas dos tecidos, ou é capaz disso apenas na presença de uma pressão de enchimento elevada. Ela é o estágio final comum de muitas formas de cardiopatia crônica, frequentemente se desenvolvendo de modo insidioso devido aos efeitos cumulativos da sobrecarga crônica de trabalho (ex., na doença valvar ou hipertensão) ou da cardiopatia isquêmica (ex., após infarto do miocárdio com lesão cardíaca). Quando a carga de trabalho aumenta ou a função cardíaca está comprometida, vários mecanismos fisiológicos mantêm a pressão arterial e perfusão dos órgãos: Mecanismo de Frank-Starling, adaptações miocárdias, incluindo hipertrofia com ou sem dilatação das câmaras cardíacas, ativação dos sistemas neuro-humorais, liberação de noradrenalina (norepinefrina), ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona, liberação do peptídeo natriurético atrial. A insuficiência cardíaca pode resultar da deterioração progressiva da função contrátil do miocárdio (disfunção sistólica) —refletida como uma diminuição na fração de ejeção. A redução na FE pode ocorrer com lesão isquêmica, adaptação inadequada à sobrecarga de pressão ou volume devido à hipertensão ou doença valvar, ou dilatação ventricular. A ICC é caracterizada por graus variáveis de débito cardíaco e perfusão tecidual reduzidos (algumas vezes denominada insuficiência anterógrada), bem como pelo represamento do sangue no sistema venoso de capacitância (insuficiência retrógrada); o último pode provocar edema pulmonar, edema periférico, ou ambos. Embora a insuficiência do lado direito ou esquerdo possa ocorrer de modo independente, a insuficiência de um lado (particularmente do lado esquerdo) frequentemente resulta em esforço excessivo do outro, provocando a insuficiência cardíaca global Insuficiência Cardíaca Esquerda: A insuficiência cardíaca esquerda é mais frequentemente causada por: cardiopatia isquêmica, hipertensão, doenças das valvas aórtica e mitral, doenças miocárdicas primárias. Os efeitos clínicos e morfológicos da ICC esquerda são uma consequência da congestão passiva (acúmulo de sangue na circulação pulmonar), estase do sangue nas câmaras esquerdas e perfusão inadequada dos tecidos levando à disfunção do órgão. Os sintomas iniciais da insuficiência cardíaca esquerda estão relacionados à congestão e ao edema pulmonar. Inicialmente, tosse e dispneia podem ocorrer somente com esforço. Conforme a ICC progride, a piora do edema pulmonar pode causar a ortopneia ou a dispneia paroxística noturna (tão grave que induz a sensação de sufocação). A dispneia em repouso pode ocorrer a seguir. A fração de ejeção reduzida leva à diminuição da perfusão renal, provocando a ativação do sistema renina- angiotensina-aldosterona como um mecanismo compensatório para corrigir a hipotensão “aparente”, o que aumenta a retenção de agua e sal, provocando aumento da volemia e exacerbando o edema pulmonar em desenvolvimento. Se a hipoperfusão do rim se torna grave o suficiente, a excreção deficiente dos produtos de nitrogênio pode provocar azotemia (aumento da concentração de compostos nitrogenados no sague) Na ICC bem avançada, a hipoperfusão cerebral pode dar origem à encefalopatia hipóxica, com irritabilidade, perda de atenção e inquietude, podendo progredir para estupor e coma comlesão cerebral isquêmica. A insuficiência cardíaca esquerda pode ser dividida em insuficiência sistólica e diastólica: A insuficiência sistólica é definida pela fração de ejeção insuficiente (insuficiência da bomba), e pode ser causada por qualquer um dos muitos distúrbios que danificam ou desorganizam a função contrátil do ventrículo esquerdo. Na insuficiência diastólica, o ventrículo esquerdo está anormalmente rígido e não consegue relaxar durante a diástole. Assim, embora a função cardíaca esteja relativamente preservada em repouso, o coração é incapaz de aumentar seu débito em resposta ao aumento da demanda metabólica dos tecidos periféricos. Além disso, como o ventrículo esquerdo não consegue expandir-se normalmente, qualquer aumento na pressão de enchimento é imediatamente transferido de volta à circulação pulmonar, produzindo rápido início de edema pulmonar (edema pulmonar rápido). Insuficiência Cardíaca Direita: A insuficiência cardíaca direita é mais comumente causada pela insuficiência cardíaca esquerda, uma vez que qualquer aumento na pressão da circulação pulmonar, decorrente da insuficiência cardíaca esquerda, inevitavelmente produz uma carga no lado direito do coração. Consequentemente, as causas da insuficiência cardíaca direita incluem todas as que induzem a insuficiência cardíaca esquerda. A insuficiência cardíaca direita isolada não é frequente e normalmente ocorre em pacientes com distúrbios que afetam os pulmões; logo, muitas vezes ela é denominada cor pulmonale. Além das doenças parenquimais pulmonares, o cor pulmonale também pode surgir em decorrência dos distúrbios que afetam a vasculatura pulmonar, como, por exemplo, a hipertensão pulmonar primária, o tromboembolismo pulmonar recorrente, ou condições que causam vasoconstrição pulmonar (apneia obstrutiva do sono, doença da altitude). Os principais efeitos morfológicos e clínicos da insuficiência cardíaca direita primária diferem daqueles da insuficiência cardíaca esquerda quanto à congestão pulmonar, que é mínima, enquanto o ingurgitamento dos sistemas venosos portal e sistêmico é pronunciado. A congestão renal é mais acentuada na insuficiência cardíaca direita do que na esquerda, levando a maior retenção de líquido, edema periférico e azotemia mais pronunciada. A terapia padrão para a ICC é principalmente farmacológica. Os fármacos que provocam liberação de líquido (ex., diuréticos), bloqueiam o eixo renina- angiotensina-aldosterona (ex., inibidores da enzima conversora de angiotensina) e diminuem o tônus adrenérgico (ex., bloqueadores β1-adrenérgicos) são particularmente benéficos. Referências: GOLDMAN, Lee; SCHAFER, Andrew I. Goldman-Cecil Medicina. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul; ASTER, Jon. Robbins & Cotran Patologia - Bases Patológicas das Doenças. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2016. Lyzandra Linhares