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PARA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Timothy, Keller Gálatas para você / Timothy Keller; tradução de Jurandy Bravo. — São Paulo: Vida Nova, 2015. 208 p. Título original: Galatians for you 1. Bíblia N. T. — Gálatas — Comentário I. Título II. Nogueira Júnior, Jurandy Bravo CDD 227.40615-0189 índice para catálogo sistemático: 1. Bíblia N. T. — Gálatas —Comentários TIMOTHY KELLER G Á L A T A S PARA VOCÊ T r a d u ç ã o Jurandy Bravo ים VIDA NOVA ®2013, de Timothy Keller Título do original: Galatians for you, edição publicada pela The Good Book Company (Epsom, Surrey, Reino Unido). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Sociedade Religiosa Edições Vida Nova Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 vidanova.com.br | vidanova@vidanova.com.br l.a edição: 2015 Reimpressão: 2016 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Impresso no Brasil / Printed in Brazil Todas as citações bíblicas foram extraídas da Almeida Século 21 (A21), salvo indicação em contrário. Gerência editorial 1-abiano Silveira Medeiros Edição de texto I.ucília Marques da Silva Revisão de provas Ubevaldo G. Sampaio Revisão da tradução e preparação de texto Rosa Maria Ferreira Tatiane Souza Coordenação de produção Sérgio Siqueira Moura D iagramaçâo Sonia Peticov Capa André Parker Adaptação da capa Vania Carvalho mailto:vidanova@vidanova.com.br SUMARIO Prefácio da série................................................................7 Introdução a Gálatas........................................................ 9 1. A singularidade do evangelho 1.1-9..............................13 2. A surpreendente graça de Deus 1.10-24.......................26 3. A unidade do evangelho 2.1-10.................................... 39 4 . Vivendo conforme 0 evangelho 2.11-21....................... 53 5. Você nunca deixa o evangelho para trás 3.1-14............ 67 6. A lei na vida do evangelho 3.15-25............................... 80 7. Filhos de Deus 3.26— 4.7 ..............................................93 8. Duas religiões, dois ministérios 4.8-20....................... 108 9. Graça para com a estéril 4.21-31.................................122 10. A liberdade do evangelho 5.1-15.............................. 136 1 1 .0 caráter do evangelho 5.16-25..................................152 12. Relacionamentos do evangelho 5.26—6.5 ..................167 13. Semeando e colhendo 6.6-18.......................................181 Apêndice: o debate recente..........................................195 Glossário...................................................................... 199 Bibliografia.................................................................. 205 DA SÉRIEPREFÁCIO Cada volume da série A Palavra de Deus para Você o trans- porta ao âmago de um livro da Bíblia e aplica as verdades nele contidas ao seu coração. Os objetivos principais de cada título são: ■ estar centrado na Bíblia; ® glorificar a Cristo; ;ter aplicação relevante יי ® ser lido com facilidade. Use Gálataspara você... ... p ara le r e estudar. Você pode simplesmente percorrê-lo de capa a capa, lendo ou estudando, como um livro que explica e investiga os temas, as exortações e os desafios dessa porção das Escrituras. ... para m editar e se alim entar. Você pode trabalhar o livro como parte de suas devoções pessoais regulares, ou usá-lo em conjunto com um sermão ou uma série de estudos bíblicos da sua igreja. Cada capítulo é dividido em duas seções, com per- guntas para reflexão no fim de cada uma delas. ... p ara ensinar e liderar. Pode usá-lo como recurso no en- sino da Palavra de Deus, tanto no ambiente de um pequeno grupo como no de toda a igreja. Você verá que versículos ou conceitos complicados estão explicados aqui em linguagem simples, e encontrará temas e ilustrações úteis, acompanhados de sugestões de aplicações. Os livros desta série não são comentários. Não pressupõem um entendimento das línguas originais da Bíblia, nem um alto nível de conhecimento bíblico. Palavras de uso mais raro, ou que são usadas de maneira diferente na linguagem do dia a dia PREFÁCIO d a série da igreja, são marcadas em versalete quando aparecem pela primeira vez e explicadas em um glossário no fim do volume. Em geral os substantivos e os adjetivos aparecerão no glossário no masculino e no singular e os verbos na forma não flexio- nada. Nele você também encontrará detalhes de recursos que poderá utilizar em conjunto com o livro, tanto na vida pessoal quanto na igreja. Oramos para que, durante a leitura, você seja impactado não só pelo conteúdo de cada livro da série, mas pelo livro que ele está ajudando a expor; e para que você venha a louvar não o autor desta obra, mas Aquele para o qual ela aponta. C arl L aferton Editor da série 8 A GÃLATASINTRODUÇÃO O livro de Gálatas é dinamite pura. Uma explosão de alegria e li- berdade que nos faz desfrutar de profundo significado, segurança e satisfação — a vida de bênçãos à qual Deus chama seu povo. Por quê? Porque ele nos coloca face a face com o evangelho. Nos círculos cristãos, é muito comum presumir que “o evan- gelho” é algo basicamente para não convertidos. Nós o vemos como um abcê das doutrinas básicas que constituem a maneira pela qual alguém entra no reino de Deus. Costumamos supor que, uma vez convertidos, não precisamos mais ouvir, estudar ou entender o evan- gelho, mas, sim, de material mais “avançado”. Nessa breve carta, no entanto, Paulo delineia a verdade bombástica de que 0 evangelho é 0 abecedário da vida cristã. Ele não é apenas a maneira pela qual se entra no reino; ele é a maneira pela qual se vive na condição de participante do reino. E a maneira pela qual Cristo transforma as pessoas, igrejas e comunidades. Veremos Paulo mostrando aos novos cristãos da Galácia que seu problema espiritual é causado não só por deixarem de viver em obediência a Deus, mas também por não confiarem na obediência a ele. Testemunharemos quando ele lhes disser que tudo de que necessitam — tudo de que podem precisar na vida — é do evangelho do favor imerecido de Deus para com eles por meio da vida, morte e ressurreição de Cristo. Vamos ouvi-lo resolver os problemas deles — não lhes dizendo para serem “melhores cristãos”, mas chamando-os para viver as implicações do evangelho. Ele nâo é a p en as a m aneira p e la qua l se entra no reino; ele é a m aneira p e la qua l se vive n a condição de partic ipan te do reino. INTRODUÇÃO a G á la ta s Observaremos Paulo exortando a eles e a nós com a verda- de simples de que o evangelho não é apenas o abcê do cristia- nismo, mas seu abecedário inteiro, ou seja, de que os cristãos necessitam tanto do evangelho quanto os não cristãos. Paulo nos explicará que as verdades do evangelho modi- ficam a vida de alto a baixo; que transformam nosso coração, nosso modo de pensar e nossa abordagem de absolutamente tudo. O evangelho — a mensagem de que somos piores do que jamais ousamos acreditar, porém mais amados e aceitos em Cristo do que jamais ousamos esperar — cria uma nova dinâmica radical para o crescimento pessoal, para a obediência, para o amor. Gálatas tem tudo que ver com o evangelho, do qual todos necessitamos ao longo da vida inteira. E dinamite pura, e eu oro para que, à medida que ler este livro, a mensagem poderosa da epístola venha a explodir em seu coração e o encha de entu- siasmo para ver o mesmo efeito no coração de outras pessoas. Abaixo, fiz um rápido resumo do cenário histórico da carta; no apêndice, aludi a alguns debates modernos sobre a mensa- gem que ela contém. Mas, se você quiser passar para o livro de Gálatas em si neste momento, vá para página 13. T imothy Keller O co n tex to h istórico O apóstolo Paulo foi um missionário plantador de igrejas. Depois de abrir uma igreja e deixar a região, continuavaa orientar as novas congregações por intermédio de cartas. Uma delas é esta epístola às igrejas cristãs da região da Galácia, na Ásia Menor. A maioria dos estudiosos concorda que Paulo a escreveu por volta de 50 d.C. (de 15 a 20 anos apenas depois da morte de Cristo). É útil identificar os três dados seguintes no cenário histórico, que nos ajudarão a entender a epístola: 10 A carta trata de uma divisão social e racial nas igrejas י* da Galácia. Os primeiros cristãos de Jerusalém eram ju- deus, mas, à medida que o evangelho foi se disseminando a partir desse centro, quantidades crescentes de gentios começaram a receber a Cristo. Contudo, um grupo de mestres gálatas estava agora insistindo em que os cristãos gentios praticassem todos os costumes cerimoniais tradi- cionais da lei de Moisés, como faziam os cristãos judeus. Ensinavam que os gentios tinham de observar as leis dos alimentos e se circuncidar para ser plenamente aceitos por Deus e ser assim agradáveis a ele. * Embora essa controvérsia específica nos pareça hoje muito remota, Paulo tratou dela como verdade eterna da maior importância. Ele ensinou que as divisões culturais e a de- sunião nas igrejas da Galácia deviam-se à confusão acerca da natureza do evangelho. Ao insistir em “Cristo e algo mais” como requisito para a plena aceitação por parte de Deus, os mestres estavam apresentando um modo todo diferente de se relacionar com Deus (“outro evangelho”, 1.6), em relação àquele que Paulo lhes transmitira (“um evangelho diferente do que já vos pregamos”, 1.8). Esse evangelho diferente estava criando divisão e conflitos cul- turais. Paulo lutou contra o “outro evangelho” de maneira enérgica e sem pedir desculpas a ninguém, pois abrir mão do verdadeiro evangelho é abandonar e perder o próprio Cristo (1.6). Portanto, tudo estava em jogo naquele debate. » O fato mais evidente acerca do cenário histórico costu- ma ser o mais ignorado. Na carta aos gálatas, Paulo ex- põe em detalhes o que é o evangelho e como ele opera. Mas o público-alvo dessa explanação do evangelho é só de cristãos professos. Isso significa que não são apenas os não cristãos que precisam aprender o evangelho e apli- cá-lo em sua vida, mas também os crentes. INTRODUÇÃO a G á la ta s 11 VERSÍCULOS 1-9GÃLATAS ■ CAPÍTULO 1 1. A SINGULARIDADE DO EVANGELHO Talvez o que mais chame a atenção na abertura de Gálatas seja o tom usado por Paulo e o estado de espírito por trás dele. Paulo está surpreso. Ele também parece zangado. Sua lingua- gem, quase desde o início, é extraordinariamente incisiva. Se, como é comum, as cartas de Paulo, após a saudação, dão espaço para uma ação de graças por aqueles para quem ele está escrevendo (veja, por exemplo, Fp 1.3-8, Cl 1.3-8 e 1C0 1.4-9), aqui ele se limita a dizer: “Estou admirado...” (v. 6a). O que despertou sentimentos tão intensos nele? D esvio Em primeiro lugar, Paulo fica admirado porque aqueles cristãos recém-convertidos estão se deixando levar por um evangelho que não é evangelho de fato (v. 7), expondo-se a um enorme perigo. Eles estão perturbados (v. 7b). Em segundo lugar, o alvo principal de sua furia são aqueles que estão desencaminhando os convertidos da igreja, ou seja, aqueles que “querem perverter o evangelho” (v. 7b). Paulo in- voca maldição sobre eles (v. 9). De uma forma mais secundária, ele também está zangado com os próprios cristãos da Galácia, e os adverte de que estão se desviando do Deus que os chamou (v. 6b)... uma acusação grave! Ao percorrermos a carta de Paulo, veremos que seu acesso de raiva na introdução foi causado por um grupo de mestres G aia ta s ־1.19 que vinha ensinando aos cristãos gentios convertidos que eles eram obrigados a cumprir os costumes culturais judaicos da lei mosaica — em relação ao que comer, à circuncisão e às demais leis cerimoniais — a fim de agradar a Deus de verdade. Para os gálatas, é provável que isso não parecesse uma dife- rença radical do que lhes fora ensinado. Com certeza, o ponto central da vida cristã é agradar a Deus! Mas Paulo diz: “Isso é uma rejeição completa de tudo que lhes tenho dito”. Ele bate para valer! Mas, se cremos no que Paulo cria sobre o evangelho, sua atitude nos parecerá plenamente justificável. Se os gálatas estão mesmo dando as costas para Deus e abra- çando um evangelho que não é, de forma alguma, o evangelho, sua situação é perigosa. A ansiedade e a raiva expressas por Paulo são as mesmas que qualquer pai ou amigo amoroso sen- tiria se um filho ou colega se desviasse seriamente do caminho. P au lo tem o d ireito d e s e m an ifestar Mas quem é Paulo para escrever a esses cristãos dessa maneira? Um “apóstolo” (v. 1): um homem enviado com autoridade divina imediata. A palavra grega apostolos dá ênfase ao fato de ser “enviado”. A frase “não da parte de homens, nem por meio de homem algum” deixa claro o caráter exclusivo dos primei- ros apóstolos. Tampouco aqueles que hoje são chamados ao ministério pelo Espírito Santo recebem o chamado “da parte de homens” — a razão última de seu ministério é o chamado de Jesus, e a autoridade máxima desse ministério é a palavra de Jesus na Bíblia. Mas eles são designados “por meio de homem”. (O termo grego aqui, dia, significa “por” ou “através”, como em “diâmetro”.) Ou seja, embora os ministros recebam seu cha- mado de Deus, são chamados por intermédio de outros minis- tros humanos, ou por meio da eleição de uma congregação etc. Paulo reivindica algo mais acerca de si próprio. Diz que não recebeu sua comissão apostólica por meio de ninguém, em 14 G á la ta s 1.1-9 absoluto. Nenhum outro apóstolo o comissionou. Ele foi comissionado e ensinado diretamente pelo próprio Jesus ressurreto (veja At 9.1-19). Em segundo lugar, nos versículos 8 e 9, Paulo diz que foi enviado com uma mensagem divina específica·, o evangelho. Isso quer dizer que seu ensinamento divino serve de padrão para julgar quem é ortodoxo e quem é herege, como ele diz no versículo 9: “Se alguém vos pregar um evangelho di- ferente daquele que já recebestes, seja maldito”. Nem mesmo um apóstolo pode mudar a mensagem de Cristo, revisá-la ou acrescentar algo a ela. O que ele diz não é resultado de seu estudo, pesquisa, reflexão e sabedoria. E dado por Deus, sendo tanto intocável quanto imutável. Poderiamos nos perguntar: ainda existem apóstolos hoje? Não no sentido pleno, como foram Paulo e os D oze. Na igreja primitiva, outros foram considerados apóstolos das igre- jas (por exemplo, cf. 2Coríntios 9.3). Barnabé foi “enviado” para Antioquia e, nesse sentido, era “apóstolo” (cf. At 11.22; veja também At 14.14). No entanto, embora fossem envia- dos como missionários, eram comissionados por outros, pelos apóstolos originais ou pelas igrejas — “por meio de homem”. Barnabé nunca se encontrou com o Cristo ressurreto; nunca foi ensinado e educado no evangelho pelo Cristo presente em corpo, como acontecera com Paulo e os Doze. Assim, podemos chamar pessoas dotadas de dons incomuns de Üderança, seja daquela época, seja de agora, de apóstolos com “a” minúsculo. Mas Paulo é um Apóstolo, com “A” maiúsculo, comissionado pelo próprio Jesus. Os Apóstolos com “A” maiúsculo tinham, e têm, autoridade absoluta. O que eles escrevem é Escritura. 15 O q u e é o ev a n g e lh o ? Assim, esse Apóstolo divinamente designado lembra aos cris- tãos da Galácia sua mensagem divina especial: o evangelho. G á la ta s 1.1-9 Na abertura, traça um esboço rápido, ainda que bastante abrangente, da mensagem do evangelho: Quem somos: impotentes e perdidos. E o que sugere a palavra “livrar” no versículo 4. Outros fundadores de religiões vieram ensinar, não livrar. Jesus foi um grande mestre; mas, quando Paulo nos dá essa versão resumida do ministério de Jesus, não faz nenhuma menção disso, em absoluto. A pessoa comum das ruas acredita que o cristão é alguém que segue o ensinamento e o exemplo de Cristo. Paulo, no entanto, sugere que isso é impossível.Afinal de contas, não se pode livrar pessoas a me- nos que estejam perdidas e em condição de impotência! Imagine que você veja uma mulher se afogando. Não será de nenhuma ajuda lhe atirar um manual de natação. Você não lhe lança um ensinamento — você lhe joga uma corda. E Jesus é mais libertador do que mestre — porque é disso que mais ne- cessitamos. Nada do que so- A substituição é o motivo de o evangelho ser tâo revolucionário. mos ou fazemos nos salva. A isso os teólogos dão o nome de “incapacidade espiritual”. 0 que Jesusfez: como Jesus nos liberta? Ele “se entregou a si mesmo pelos nossos pecados” (v. 4a).Temos um sacrifício substitutivo por natureza. A pa- lavra “pelos” significa “em benefício de” ou “no lugar de”. A substituição é o motivo de o evangelho ser tão revolucioná- rio. A morte de Cristo não foi apenas um sacrifício geral, mas substitutivo. Ele não nos comprou apenas uma “segunda chan- ce”, dando-nos nova oportunidade de endireitar a vida e agir certo com Deus. Ele fez tudo que precisávamos fazer, mas não conseguimos. Se a morte de Jesus de fato pagou por nossos pecados em nosso lugar, nunca podemos retroceder para a con- denação. Por quê? Porque, nesse caso, Deus recebería dois pa- gamentos pelo mesmo pecado, o que é injusto! Jesus fez tudo que deveriamos ter feito, em nosso lugar, de modo que, quando 16 G á la ta s 1.1-9 ele se torna nosso Salvador, somos absolutamente libertos da penalidade e da condenação. O que 0 Pai fez: Deus aceitou a obra de Cristo em nosso be- nefício ressuscitando-o “dentre os mortos” (v. 1) e dando-nos a “graça [...] e paz” (v. 3) que Cristo conquistou e alcançou por nós. Por que Deus 0 fez: tudo isso foi feito por graça — não por algo que tenhamos feito, mas “segundo a vontade de nosso Deus e Pai” (v. 4d). Não pedimos socorro, mas Deus, em sua graça, planejou o que não tínhamos percebido que necessitáva- mos, e Cristo, por sua graça (v. 6), veio realizar a Übertação que jamais alcançaríamos por nós mesmos. Não há nenhum indicativo de qualquer outra motivação ou causa para a missão de Cristo, exceto a vontade de Deus. Não há nada em nós que a mereça. A salvação é pura graça. Por isso, o único que recebe “glória para todo o sempre” é Deus (v. 5). Se tivéssemos contribuído com nossa salvação... se tivéssemos nos libertado... ou se Deus tivesse visto em nós algo que merecesse ser salvo, ou que fosse útil para seus planos... ou, ainda, se tivéssemos nos limitado a clamar por libertação baseados em nosso próprio raciocínio e entendimento... então poderiamos nos congratular pelo papel que desempenhamos para nos salvar. Mas o evangelho bíblico — o evangelho de Paulo — deixa claro que a salvação, do início ao fim, é obra de Deus. O cha- mado, o plano, a ação, a obra são todos seus. Assim, é ele que merece toda a glória, em todo o tempo. Essa é a verdade humilhante que constitui o cerne do cris- tianismo. Nós adoramos ser nossos próprios salvadores. Nosso coração adora fabricar glória para si. Por isso consideramos as mensagens de autossalvação tão atraentes, sejam elas religio- sas (Siga essas regras e você ganhará bênçãos eternas) ou seculares (Conquiste essas coisas e experimentará bênçãos agora mesmo). O evangelho chega e vira tudo isso de cabeça para baixo: você está 17 G ála ta s 1.1-9 em posição de tamanha impotência e necessita de uma salvação que não depende de você em absolutamente nada. Em seguida, diz: Deus, em Jesus, oferece uma salvação que lhe concede muito mais do que qualquer salvação falsa que seu coração queira buscar. Paulo nos lembra de que, no evangelho, somos mais rebai- xados e mais exaltados do que poderiamos imaginar. E o único que tem direito de receber toda a glória por isso é o “nosso Deus e Pai [...] para todo o sempre. A m ém ” (v. 4,5). p ara reflexãoPerguntas 1. O tom de Paulo nos lembra de que a fé cristã é uma questão de coração, bem como de cabeça — de sentimentos tanto quanto de intelecto. Como isso lhe serve de incentivo? Como o desafia? 2. Quando você acha mais difícil aceitar a autoridade do ensi- no apostólico do Novo Testamento? Por quê? 3. Como você explicaria o evangelho para alguém que lhe perguntasse hoje em que você acredita? SEGUNDA PARTE R evisão d o e v a n g e lh o - reversão d o e v a n g e lh o O evangelho bíblico da graça é algo precioso. Era esse evangelho glorioso que os líderes das igrejas da Galácia estavam perverten- do, e era dele que os membros da igreja local haviam se desviado. Isso é importante porque Paulo diz que qualquer mudança no evangelho significa transformá-lo em algo “que, na realidade, não é o evangelho” (cf. v. 7, NVI). Por que isso? Por que qualquer mudança no evangelho, por menor que seja, o anula e esvazia? Porque, diz Paulo, os crstãos são chamados “pela gra- ça de Cristo” (v. 6). Deus nos chamou; não fomos nós que o 18 G a ia ta s 1.1-9 chamamos. E Deus nos aceitou de pronto, apesar de não me- recermos. Essa é a ordem do evangelho. Deus nos aceita, então o seguimos. Já outros sistemas religiosos propõem a ordem in- versa. Temos de dar algo a Deus e então ele nos aceita. Assim, no versículo 7, Paulo diz que qualquer ensinamento que acres- cente a manutenção da lei mosaica cerimonial à fé em Cristo “perverte” o evangelho. Literalmente, a palavra que ele escolhe usar quer dizer “reverte”. Isso é esclarecedor. Se você acrescentar qualquer coisa a Cristo como um requisito para ser aceito por Deus — se co- meça a dizer: Para ser salvo, preciso da graça de Cristo mais algu- ma coisa —, você reverte por completo a “ordem” do evangelho e o anula e esvazia. Qualquer revisão do evangelho o reverte. Por isso, no versículo 6, Paulo diz que os falsos mestres estão apresentando “outro evangelho”, que, logo no versículo 7, ele diz que “na realidade, não é o evangelho”. Isso é claro como água. Não se pode conceber a ideia de outro evangelho. Outro evangelho é nenhum evangelho. Mudar o evangelho no mínimo que seja significa perdê-lo tão completamente que o novo ensinamento não tem o direito de ser chamado de “evangelho”. Martinho Lutero, o reformador do século 16, resumiu bem essa ideia: Não há meio-termo entre a justificação cristã e a justifi- cação pelas obras. Não existe alternativa à justificação cristã, senão a justificação pelas obras; se você não edificar sua fé so- bre a obra de Cristo, deve edificá-la sobre suas próprias obras.1 P erdendo o e v a n g e lh o hoje O que Paulo combateu em sua época, e contra o que Lutero ba- talhou na dele, testemunhamos também na nossa. Lembre-se, 1“Preface”, in: Commentary on the Epistle to the Galatians (London: Suzeteo Enterprise, 2011). 19 G á la ta s 1.1-9 Paulo condena qualquer ensino que não seja baseado no fato de que: ■ Pecamos demais para contribuir para nossa salvação (precisamos de uma libertação completa). ■ Somos salvos pela fé na obra de Jesus — a “graça de Cristo” — e mais nada. Aqui estão três exemplos de perspectivas atuais que negam uma dessas verdades ou ambas: 1. Em algumas igrejas, ensina-se implícita ou explicitamente que você é salvo por meio de sua "entrega” a Cristo, somada às crenças e ao comportamento certo. Esse é um erro bem co- mum nas igrejas evangélicas. As pessoas são desafiadas a “entregar sua vida aJesus” e/ou a “convidá-lo a entrar em sua vida”. Isso soa muito bíblico, mas ainda assim tende a rejeitar com facilidade o princípio da graça em primeiro lugar. A ideia é de que somos salvos por uma fé vigorosa e pela confiança em Deus, bem como por amá-lo, mas tudo isso acompanhado de uma vida comprometida com ele. Portanto, as pessoas sentem que devem primeiro gerar um alto nível espiritual de pesar, fome e amor, a fim de garantir a presença de Cristo. Em seguida, devem manter tudo isso de alguma forma, se pretendem “permanecer salvas”. Assim, em termos funcionais — ou seja, na realidade prática —, tais igrejas estão ensinando o conceito de que somos salvosdevido ao nível da nossa fé. Mas o evangelho diz que somos salvos por intermédio da nossa fé. A primeira abordagem, na verdade, faz com que nosso desempenho seja o salvador, e a segunda faz do desempenho de Cristo o Salvador. Não é o nível, mas o objeto da nossa fé que nos salva. 2. Em outras igrejas, ensina-se que, na verdade, não tem muita importância aquilo em que você crê, desde que seja uma pessoa 20 G á la ta s ־1.19 amorosa e boa. Trata-se de um erro bastante comum nas igrejas “liberais”. Essa visão ensina que todas as pessoas boas, independentemente de sua religião (ou falta dela), encontrarão a Deus. Embora a ideia pareça revelar uma mente muito aberta, de fato ela é intolerante para com a graça, em dois sentidos. Primeiro, ensina que as boas obras são suficientes para se chegar a Deus. Se todas as pessoas boas podem conhecer a Deus, então a morte de Jesus não era necessária; basta a ao banquete divino (Mt 22.10). Se você afirma que as pes- soas são salvas por serem boas, então só “os bons” podem se achegar ao banquete de Deus. A oferta do evangelho torna-se exclusiva, não inclusiva. Segundo, encoraja as pessoas a pensar que, se forem to- lerantes e abertas, agradarão a Deus. Elas não precisam de graça; podem conseguir a vida eterna por si mesmas. Assim, a “glória para todo o sempre” (v. 5) é transferida para elas por serem boas o suficiente para o céu. Todavia, o evange- lho desafia as pessoas a verem seu pecado radical. Sem esse senso do próprio mal, o conhecimento da graça divina não será transformador, e deixaremos de compreender o quanto Deus é glorificado pela presença de qualquer pessoa no céu. 3. Um terceiro exemplo é encontrado em igrejas intolerantes ao extremo com pequenas diferenças de vestuário ou costumes. Os falsos mestres de Gálatas queriam (como veremos) impor muitas regras e regulamentos antigos, relacionados com o modo de vestir, com o que comer e com as obser- vâncias rituais. É natural associarmos tais mestres a igrejas Deus, a morte de Jesus não era necessária. Se as pessoas boas podem conhecer a virtude. O problema é que isso quer dizer que pessoas más não têm esperança nenhuma, contradizendo o evangelho, que convida “tanto maus quanto bons” 21 G ála ta s 1.1-9 altamente regulamentadas e comunidades religiosas que exercem um controle muito firme de seus membros, diri- gindo-os quanto ao modo “certo” de comer, vestir, namorar, passar o tempo e assim por diante. Ou talvez eles insistam em uma observância detalhada de vários rituais complica- dos. Os exemplos modernos de uma igreja semelhante à da Galácia seriam as igrejas muito autoritárias ou ritualísticas e legalistas demais. Tenho em mente que essas igrejas são o mais evidente dos três exemplos que analisamos, portanto o menos perigoso. O primeiro e o segundo são muito mais predominantes e arriscados. N osso e v a n g e lh o é o verd adeiro? Já que o único evangelho verdadeiro é tão fundamental, e é re- vertido com tanta frequência e facilidade, isso desperta em nós uma pergunta inquietante: como assegurar que o evangelho em que nós cremos é de fato verdadeiro? Como sabemos não se tratar apenas de um evangelho que sentimos ser verdadeiro, ou que nos é dito ser verdadeiro, ou que pensamos ser verdadeiro, ou que nos parece verdadeiro, e sim do evangelho real, objetivo e, portanto, capaz, de salvar, verdadeira e eternamente? Paulo utiliza, com a linguagem mais vigorosa possível, um prumo para julgar todas as afirmações de verdade, sejam elas externas (de mestres, escritores, pensadores, pregadores) ou internas (sentimentos, sensações, experiências). Esse padrão é o evangelho que ele, junto com os outros Apóstolos com “A” maiúsculo, receberam de Cristo e ensinaram, o qual é encon- trado nessa carta e em todo o restante da Bíblia. “Ainda que nós [...] ou um anjo [...] vos pregue um evange- lho diferente [...] seja maldito” (v. 8). Aqui está o padrão para julgar autoridades externas, tais como mestres humanos ou líderes institucionais humanos, ou mesmo oficiais ordenados em uma hierarquia eclesiástica. 22 G á la ta s 1.1-9 É digno de nota que, ao dizer “nós”, Paulo se inclui como autoridade humana. Paulo está dizendo que ele deve ser rejeitado se algum dia disser: Mudei de ideia em relação ao que é 0 evangelho. Como Paulo nos alertará, o evangelho não veio a ele por meio de um processo de raciocínio e reflexão; o evangelho não foi conquistado, antes recebido. Portanto, o próprio Paulo não tem a liberdade de alterá-lo por meio de raciocínio e reflexão. Em Gálatas 2, Paulo nos contará que seu evangelho foi confirmado por outros que também tinham recebido a mensagem por revelação do Cristo ressurreto. Esse consenso apostólico — o “depósito do evangelho” original feito por Cristo — é, portanto, a medida para julgar todas as afirmações de verdade, externas e internas. Isso é muito importante. Paulo está dizendo, no versículo 8, que até sua autoridade apostólica deriva da autoridade do evangelho, não o contrário. Ele diz aos gálatas para avaliarem e julgarem tanto seu apostolado quanto seu ensino à luz do evangelho bíblico. A Bíblia julga a igreja; a igreja não julga a Bíblia. A Bíblia é que cria e fundamenta a igreja; a igreja não cria nem fundamenta a Bíblia. A igreja e sua hierarquia devem ser avaliadas pelo crente à luz do evangelho bíblico, considerando-o o padrão ou prumo para julgar todas as afir- mações de verdade. Tampouco nossa experiência pessoal é o prumo definitivo da verdade. Não julgamos a Bíblia por nossos sentimentos ou convicções; julgamos nossas experiências pela Bíblia. Isso significa que, se um anjo aparecesse literalmente perante uma multidão de pessoas e ensinasse que a salvação é pelas boas obras (ou por qualquer outra coisa, exceto somente a fé, so- mente em Cristo), você deveria colocá-lo para correr (v. 8). Ao dizer “ainda que nós mesmos ou um anjo do céu”, Paulo faz um resumo amplo da “epistemologia” cristã adequada — como sabemos o que é verdade. 23 G aia ta s 1.1-9 Por q u e im p orta No começo deste capítulo, observamos que 0 tom de Paulo é intransigente, para dizer o mínimo! Mas isso porque o evange- lho é algo acerca do que precisamos ser intransigentes. Porque, primeiro, outro evangelho significa que você está se desviando daquele que 0 chamou (v. 6). Abandonar a teologia do evange- lho é abandonar Cristo em pessoa. O que você faz em teologia acaba afetando sua experiência. Em outras palavras, uma dife- rença na sua compreensão da doutrina leva a uma diferença em sua compreensão de quem é Jesus — e significa que é ques- tionável se de fato você o conhece. Segundo, outro evangelho não é de fato evangelho (v. 7). Isso quer dizer que a mensagem do evangelho, por natureza, não pode ser alterada, nem de leve, sem se perder. E como um vácuo. Não se pode permitir a entrada de um pouco de ar e * 1 -----------------------------------_ dizer que ele é agora “90% No m omento em que revisa o evangelho, você o reverte. vacuo ou um vacuo enri- í quecido de ar”. O vácuo ou é | completo ou não é vácuo, em 1 hipótese alguma! Da mesma forma, a mensagem do evangelho é: você é salvo pela graça por meio da obra de Cristo, e nada mais. Quando você faz qual- quer acréscimo a isso, perdeu tudo de uma vez. No momento em que revisa o evangelho, você o reverte. Terceiro, outro evangelho produz maldição (v. 8,9). Mais adiante, Paulo diz que “evangelhos” diferentes trazem consigo uma maldição. Isso quer dizer, em última análise, que alterar o evangelho é brincar com a vida e a morte eternas. Mas significa também, em sentido muito prático, que medo, ansiedade e culpa (o sentimento de condenação e maldição) sempre estarão atrelados a diferentes “evangelhos”, mesmo nesta vida. Como veremos mais adiante, até os cristãos experimentam às vezes um senso de condenação. Isso acontece porque, em 24 G á la ta s 1.1-9 termos funcionais, estão confiandoem outros “evangelhos”, outras maneiras de fazer por merecer a salvação. Este “mundo mau” (v. 4) ainda consegue influenciar os que creem. Agora conseguimos enxergar por que Paulo adota uma linguagem tão intensa e severa. O que está em jogo é algo muito sério: nosso conhecimento de Cristo, a verdade do evangelho e o destino eterno da alma das pessoas. São coisas pelas quais vale a pena lutar, sobre as quais vale a pena discor- rer, das quais vale a pena lembrar a nós mesmos e aos outros, continuamente. A franqueza rude de Paulo é por amor. Ele é um Apóstolo com “A” maiúsculo que ama o Senhor, o evan- gelho do Senhor e o povo do Senhor. Se amarmos como ele amou, entenderemos por que ele escreveu como escreveu — e seremos gratos por isso. p a r a r e f le x ã oPerguntas 1. Qual a importância da verdade do evangelho para você? Como isso é demonstrado em sua vida? 2. Por que a compreensão do verdadeiro evangelho nos deixa com raiva dos falsos “evangelhos”? 3. Em qual dos três perigos modernos do falso evangelho você ou sua igreja poderíam cair com maior facilidade? 25 VERSÍCULOS 10-24GÁLATAS ■ CAPÍTULO 1 2. A SURPREENDENTE GRAÇA DE DEUS As igrejas costumam pedir a seus membros que compartilhem um testem u n h o durante o culto ou na reunião de oração. Aqui encontramos o apóstolo Paulo compartilhando o dele. Na verdade, Gálatas 1.10—2.21 costuma ser chamado de seção autobiográfica da epístola , uma vez que Paulo relata sua conversão e experiências cristãs iniciais. Isso não é algo raro para Paulo; nós o vemos falando sobre a própria conversão e experiência em Atos 22.2b-21 e 26.4-23. Aqui, como em Atos, Paulo não está compartilhando seu testemunho para a inspiração dos outros ou para se recomendar a nós. Ele o faz para refutar as afirmações de pessoas que querem enfraquecer sua mensagem, e só quer que seu testemunho aponte para o Deus da surpreendente graça. C ontra-argum entos Quando Paulo nos conta como se tornou um seguidor de Jesus — ou, talvez sendo mais exato, como Jesus fez dele seu segui- dor —, defende-se de três ataques que “alguns” (v. 7) estavam fazendo contra ele e sua mensagem do evangelho. Primeiro, cie refuta a ideia de que chegou à sua mensagem do evangelho por meio de reflexão, raciocínio e pensamento próprios. Conta que, até sua conversão, era “violentamente” hostil à igreja e ao cristianismo (v. 13). Queria “destruí-lo”. Não houve nenhum processo gradual de análise, discussão, revisão. G á la ta s 1.10-24 Não havia como a mensagem cristã de Paulo ser produto de sua própria linha de raciocínio. Ao contrário, ela era exatamente o extremo oposto do rumo que ele seguira até então. O Paulo pré-cristão opunha-se a Cristo com tamanha intensidade, que a demonstração de fé e segurança dos mártires cristãos não causava nenhum efeito sobre ele (At 7.54— 8.1). Sua experiência é forte evidência de que se converteu por reve- lação direta. Como Atos 9.1-9 nos mostra, o Jesus ressurreto foi ao encontro de Paulo e o instruiu diretamente. Paulo não passou por simples transe ou sonho. Cristo estava lá no tempo e no espaço, já que até os outros homens que o acompanhavam reco- nheceram sua presença (At 9.7). De modo que Paulo se tornou um apóstolo com “A” maiús- --------------------------------------- culo, como aqueles que eram | | | Paulo não passou apóstolos antes dele (G11.17). |g| p Qr simples transe ou Segundo, Paulo enfra- | | sonho. Cristo estava lá quece a afirmação de que sua jĵ no tempo e no espaço, mensagem do evangelho era derivada de terceiros, ou seja, dos líderes cristãos em J erusalém . “Não consultei ninguém. Também não subi a Jerusalém para encontrar os que já eram apóstolos antes de mim” (v. 16,17). Três anos se passaram entre a conversão dc Paulo e sua pri- meira viagem a Jerusalém (v. 18,19), e mesmo então ele não foi instruído por ninguém, de nenhuma forma sistemática. A referência repetida de Paulo aos apóstolos em Jerusalém sugere que “alguns” (v. 7) andavam afirmando que ele obtivera sua mensagem do evangelho a partir desse “quartel-general”. Isso lhes permitiria argumentar: Nós também fomos treinados no O. G. de Jerusalém. E sabemos que Paulo não lhes contou a his- tória inteira. Existem outras coisas que vocês devem fazer a fim de agradar a Deus. Terceiro, Paulo mostra que seu evangelho dado por Deus “conferia"com a mensagem que os outros apóstolos tinham recebido 27 G ála ta s 1.10-24 de Deus. Pedro (v. 18), Tiago (v. 19) e as igrejas da Judeia (v. 22) estavam entre aqueles que “glorificavam a Deus” (v. 24) pelo que ele fizera por Paulo e pela mensagem que lhe entre- gara. Ele não recebera sua comissão ou mensagem dos outros apóstolos; no entanto, sua mensagem concordava com a que os outros apóstolos tinham recebido do Senhor ressurreto (Lc 24.45-49). Assim, o relato de Paulo elimina afirmações como: Isso é 0 que Paulo pensa — eis 0 que nós pensamos, e é tão válido quanto; a mensagem de Paulo é excelente, mas incompleta; a mensagem de Paulo é apenas a sua mensagem — não o que a igreja ensina em Jerusalém. Todavia, o testemunho de Paulo não serve apenas para estabelecer sua autoridade como mestre do evangelho. Ele também ilustra alguns aspectos do que o evangelho da graça é. Você pode pensar: Já tratamos disso no capítulo 1 deste livro\ E foi mesmo — mas esta carta, tanto na estrutura quanto em seu conteúdo, nos mostra que o evangelho da graça sus- tenta cada passo da vida cristã. Paulo continuará retornando a ele; devemos fazer o mesmo — em nossa vida, em nossas orações, em nossos pensamentos, em nosso testemunho, pre- gação e ensino. Su rp reendente g raça : q u em era P au lo Paulo foi um homem que fez muitas coisas terríveis. Ele “per- seguia violentamente a igreja de Deus, tentando destruí-la” (v. 13). Quando Jesus o encontrou na estrada de D amasco, ele já matara muita gente inocente. Estava a caminho de pren- der e encarcerar outras tantas. Estava cheio de ódio. No entanto, Paulo era também um homem responsável por muitos feitos religiosos. Passara anos buscando viver de acordo com as tradições e os costumes judaicos. Ele diz que ultra- passara quase todos da sua geração (“da minha idade”, v. 14) 28 G á la ta s 1.10-24 quanto a ser zeloso da justiça moral (v. 14). Contudo, nada disso lhe permitira acertar-se com Deus. Até esse ponto do livro, não nos foi dita a natureza do ensino de “alguns” que estavam tentando “perverter o evange- lho de Cristo” (v. 7), mas aqui está a primeira pista. Mais adiante, veremos que eles estavam incentivando os cristãos gentios a se tornarem convertidos plenos ao judaísmo e a guardarem todas as leis mosaicas relacionadas com alimentos e roupas, incluindo a circuncisão (2.12; 3.5; 6.12). Mas Paulo está dizendo: Eu também já fiz isso! Conheço tudo sobre 0 assunto! Vocês não podem tornar-se aceitáveis a Deus seguindo códigos morais, éticos ou culturais da maneira mais zelosa e detalhada. Antes da conversão, Paulo era um grande cumpridor de re- gras religiosas — e tinha consciência disso. Era cheio de orgu- lho. No entanto, apesar de tudo, ele havia sido não apenas salvo por Cristo, mas também chamado para ser pregador e líder da fé. Seu depoimento é um testemunho poderoso do coração pulsante do cristianismo — o evangelho da graça. Graça é o favor imerecido e gratuito de Deus operando de maneira poderosa na mente e no coração para transformar vidas. Paulo é 0 exemplo mais claro de que a salvação é só pela graça, não mediante nosso desempenho moral e religioso. Embora seus pecados fossem muito graves, ele havia sido con- vidado a participar da graça. A experiência de Paulo prova de modo vivido que o evan- gelho não é mera “religião”, como o termo costuma ser inter- pretado. O evangelho nos chama para fora da religião tanto quanto nos chama para fora da irreligião. Ninguém é tão bom que não precise da graça do evange- lho nem tão ruim que não possa recebê-la. Paulo era profun- damentereligioso, mas precisava do evangelho. Como C. S. Lewis disse certa vez: “O cristianismo deve ser de Deus, pois quem mais poderia tê-lo concebido?”. 29 G ála ta s 1.10-24 Surpreendente graça: o q u e D eus e s tá fazen d o Olhando para trás, Paulo consegue agora reconhecer que a graça soberana de Deus estivera agindo em sua vida muito antes da conversão em si. Quando diz que Deus “desde o ventre de minha mãe me separou” (v. 15), ele quer dizer que a graça de Deus o estivera moldando e preparando a vida inteira para as coisas que Deus o chamaria para fazer. Isso é espantoso. Paulo resistira a Deus e fizera muita coisa errada (veja At 26.14), mas Deus invalidara todas as suas intenções e usara suas experiências, inclusive os fracassos, para prepará-lo primeiro para a conversão, depois para ser um pre- gador para os gentios (v. 16). O conhecimento do Antigo Testamento, o zelo, o treinamento, o esforço que ele empregara para se opor a Deus e à sua igreja (v. 13) — tudo estava sendo usado por Deus para quebrantá-lo e capacitá-lo para ser ins- trumento de Deus na edificação de sua igreja. Deus trabalhara o tempo todo para usar Paulo exatamente no estabelecimento sucesso como escravo (Gn 37.5-8,19,20) — na verdade foi instrumento para estabelecer José como seu libertador (Gn 50.19,20). Os apóstolos repetiam constantemente que as pessoas que se opuseram a Jesus só contribuíram para pro- mover os propósitos divinos (At 2.23; 4.27,28). No final, ficará claro que toda oposição a Deus só serviu para confir da fé a que ele se opusera (v. 23). Esse é um tema impor- tante na Bíblia. Em Gênesis, José disse a seus irmãos que o esforço deles para rejeitá-lo como libertador escolhido por Deus — chegando ao ponto de tentar matá-lo, mas acabando por vendê-lo com No final, ficará claro que toda oposição a Deus só serviu p a ra confirmar e a judar a concretizar seu desígnio. mar e ajudar a concretizar seu desígnio. 30 G ála ta s 1.10-24 No capítulo 9 de sua autobiografia espiritual Surprised by joyd C. S. Lewis fala a respeito de Kirkpatrick, um de seus pro- fessores na escola. Apelidado de Bofetão, ele era um eloquente lógico e debatedor que ensinou Lewis a construir uma tese e apresentar argumentos fortes. Kirkpatrick era ateu e pretendia fortalecer Lewis em sua própria descrença. Anos mais tarde, contudo, quando Lewis se tornou cristão, ficou evidente que o Bofetão o treinara bem para se tornar um dos maiores defenso- res da fé cristã do século 20. O evangelho nos dá um par de óculos através dos quais pode- mos rever nossa própria vida e enxergar Deus preparando-nos e moldando-nos, inclusive por meio dos nossos próprios fra- cassos e pecados, para nos tornar vasos da sua graça no mundo. Mas, afinal, por que tudo isso aconteceu? Por que Deus escolheu, preparou e a seguir chamou Paulo, o orgulhoso per- seguidor da sua igreja? Será que foi porque Paulo agradava a Deus de alguma maneira, de qualquer maneira? Não. Foi sim- plesmente porque Deus “se agradou”de agir assim (v. 15). Deus derramou sua graça amorosa sobre Paulo, não porque ele fosse digno de recebê-la, mas apenas por se deleitar ou ter prazer em fazê-lo. Deus sempre agiu assim. E como Moisés diz ao povo de Deus, Israel, em Deuteronômio 7.7,8: “O Senhor não se agradou de vós nem vos escolheu porque fôsseis mais numero- sos do que todos os outros povos, pois éreis menos numerosos do que qualquer outro povo; mas o Senhor vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da escravidão, da mão do faraó, rei do Egito, porque vos amou ? Deus não nos ama porque somos úteis; ele nos ama pelo simples fato de que nos ama. Esse, é claro, é o único tipo de ,Edição em português: Surpreendido pela alegria (São Paulo: Mundo Cristão, 1998). 2Grifo nosso. 31 G á la ta s 1.10-24 amor de que podemos estar seguros, uma vez que é o único tipo de amor que não temos como perder. Isso é graça. Perguntas | para reflexão 1. Já aconteceu de você se pegar achando que merece a graça de Deus? O que o leva a pensar assim? 2. Como o evangelho da graça liberta você do orgulho e da culpa? 3. Em quais aspectos você consegue perceber que Deus ope- rou em sua vida antes da conversão de modo a equipá-lo para servi-lo posteriormente? SEGUNDA PARTE Su rp reendente g raça : o q u e D eus e stá fa zen d o O Deus da graça salva pecadores como Paulo. Ele revela seu Filho ressurreto tanto para o orgulhoso quanto para o mau — para o religioso e o irreligioso. E trabalha em seu povo antes mesmo de salvá-lo, de modo a conduzi-lo à fé e equipá-lo para o serviço. Mas não é nesse ponto que a graça dá por concluída sua obra. A graça continua a operar em e por meio de Paulo. O apóstolo testifica não só quem era e como Deus o converteu, mas também como é a vida vivida debaixo da graça. Primeiro, lemos que Deus se agradou “em revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse” (v. 16). O que Paulo quer dizer aqui não fica claro de imediato. O que significa Deus ter revelado Jesus “em” Paulo? A melhor interpretação é que Paulo está combinando duas experiências em uma. Por um lado, é evidente que Deus revelou Jesus a Paulo na estrada de 32 G á la ta s 1.10-24 Damasco. Ali ele enfim compreendeu quem era Jesus. Teve um encontro pessoal com o Cristo vivo. Mas, por outro lado (como demonstra o resto do v. 16), Paulo imediatamente cons- tatou que estava sendo chamado para mostrar a outros quem era Jesus. Assim, podemos dizer que Deus revelou Cristo para Paulo de modo que pudesse revelar Cristo por meio de Paulo. Isso nos mostra uma diferença crítica entre uma simples pessoa religiosa ou de boa moral e um cristão. O cristão tem mais do que uma crença intelectual em Cristo; ambos estabe- lecem um relacionamento pessoal. E ele sabe que esse relacio- namento não lhe é dado com o intuito exclusivo do seu próprio conforto e alegria pessoal. Sabe que tem a responsabilidade de revelar Cristo a outros por meio de quem é, do que faz e do que diz. Segundo, vemos algo no caminho de crescimento e disci- pulado do próprio Paulo. Ele tinha momentos a sós com Deus. Durante os três anos que passou na A rábia (v. 17,18), pre- sumimos que tenha aprendido de Deus muito do que mais tarde ensinou. Embora não devamos pensar que esse período na Arábia tenha sido de solidão (havia cidades prósperas ali), sabemos da importância do estudo, da reflexão e do desenvol- vimento da nossa própria familiaridade com Deus. Vivemos em uma época que enfatiza demais a atividade e a reali- zação, e não o suficiente a re- flexão e a contemplação. (Essa referência à Arábia é única no Novo Testamento. Se interpretarmos o versículo 17 como algo imediato, parece que surge um conflito com Atos 9.19-22, quando Paulo fez algumas pregações na sinagoga logo após seu batismo. Mas a questão que Paulo quer deixar clara aqui é que ele foi para a Arábia, em vez de Jerusalém, para seu primeiro período contínuo de reflexão e preparação.) O cristão tem m ais do que um a crença intelectual em Cristo. 33 G ála ta s 1.10-24 Tempo a sós com Deus é fundamental para a vida cristã; no entanto, a vida cristã não é solitária. Paulo subiu para Jerusalém não para ser instruído, mas para prestar contas e promover a união (v. 18). Até Paulo precisou trabalhar em união com os outros apóstolos e demonstrar que sua mensagem se coadunava com a deles. Será que nós, com muito mais razão, não precisamos ter a mesma responsabilidade? Nós também devemos estar profundamente enraizados em comunidades eclesiásticas. Temos de evitar o hábito de pegar o que necessitamos aqui e ali, sem jamais sermos enxertados em uma comunidade coesa, composta de outros crentes. Essa vida cristã enraizada no relacionamento com Deus, por meio de Cristo, mantendo a comunhão e servindo a outros crentes, leva à adoração a Deus. Os cristãos em Jerusalém “glorificavam a Deus por minha causa”, diz Paulo (v. 24). A mudança na vida de Paulo e seuserviço em favor dos outros não levou as pessoas a tratá-lo como uma celebridade, mas a amar a Deus. Surpreendente graça: com o e la n os transform a Esta seção inteira do testemunho de Paulo é introduzida pelo versículo 10: “Será que eu procuro agora o favor dos homens ou o favor de Deus?” — ele pergunta. Uma questão com resposta óbvia: o favor de Deus! O evangelho afasta o espírito de “agradar o homem” — o impulso para conquistar a aprovação dos homens. Ele substitui esse espírito por seu oposto — a ausência da necessidade de conquistar ou buscar a aprovação humana para o que se faz. Em outras palavras, o evangelho produz seguidores de Jesus confiantes e destemidos, que praticam o que é certo sem se preocuparem com a aprovação e a opinião favorável alheia. Paulo diz que não podería ser um “servo de Cristo”, se vivesse para agradar pessoas. 34 G á la ta s 1.10-24 Isso significa dizer que o cristão não pode ser e não será alguém que vive para agradar o homem. Isso com certeza enfatiza sua importância! A Bíblia fala sobre o pecado de agradar o homem sob vários títulos e em frases diferentes. Quando você os coloca todos juntos, descobre que há uma quantidade surpreendente de material sobre o assunto. Provérbios 29.25 diz: “Quem teme o homem arma-lhe ciladas”. Esse temor das pessoas é o oposto do “temor a Deus”. No Antigo Testamento, o temor a Deus não significa ter medo dele, mas estar cheio de respeito, admiração e fascínio por sua grandeza. Portanto, o “temor ao homem” deve referir-se a uma perspectiva humana (ou de uma pessoa em particular, ou de um grupo de pessoas) que faz com que alguém lhe eleve a importância, o venere, anseie pela aprovação dele e tema sua desaprovação. E uma situação em que o desejo pela bênção alheia chega às raias da adoração e da reverência. Quando isso acontece, significa que estamos dando a uma forma de aprovação humana direitos e poderes sobre nosso coração que só Deus deveria ter. Significa que a perda dessa aprovação nos deixará ™*a----------------------------------- O temor ao hom em se refere ao desejo p e la bênção a lhe ia que ch eg a ãs raias d a adoração . tão desolados como se estivéssemos sendo criticados ou condenados por Deus. O temor ao homem se apresenta de diversas ma- neiras. Quando Saul desobe- deceu a Deus, em 1 Samuel 15.24, foi porque teve medo da opinião pública. Quando Sansão cedeu a Dalila (Jz 16), foi porque teve medo de perder a atenção sexual dela. Em outros lugares, Paulo menciona mais uma forma comum de temor ao homem — que poderiamos chamar de “serviço sob o olhar” (Ef 6.6,7; Cl 3.22,23). Significa executar um trabalho apenas enquanto obtiver a aprovação ou recompensa daqueles 35 G aia ta s 1.10-24 que estão acima de você. Se trabalhar dessa maneira, você fará uma obra inconsistente, de qualidade inferior e negligente. Nunca criará nada para a excelência, pelo simples prazer de criar e fazer um trabalho bem-feito. Mas, afinal, como o evangelho destrói a necessidade de agradar o homem — o “temor ao homem”? Libertando-nos e motivando-nos para buscarmos “o favor de Deus” (v. 10). No evangelho, descobrimos que confiar em Cristo produz o favor e a aprovação totais e plenos de Deus. Ao olhar para o cristão, Deus enxerga Jesus (3.25-27) — e nos diz: “Em ti me agrado” (Mc 1.11). Deus se agrada de nós. E porque Deus se agrada de nós, podemos viver de maneira agradável a Deus, o Criador do cosmos. Paulo busca agradar a Deus, em vez de às pessoas (v. 10). Ele insiste com os cris- tãos para que obedeçam a Deus sacrificialmente, porque isso é “agradável a Deus” (Rm 12.1). Imagine um pai que está assistindo seu filho amado jogar no time do qual é treinador. Sentado no banco, ele ama o filho plena e completamente. Se o filho esquece suas instruções e comete um erro, isso em nada mudará seu amor por ele ou sua aprovação. O filho tem o amor do pai assegurado, independen- temente de seu desempenho. A aprovação divina nos liberta p a ra vivermos d a m aneira que Deus aprova. Mas, é claro, o filho quer fazer uma bela jogada. Não por si mesmo — para con- quistar o amor paterno —, mas por seu pai, porque já é amado. Se não souber que o pai o ama, seus esforços serão para si mesmo — para conquistar esse amor. Sabendo que o pai já o ama, seus esforços são pelo pai — para agradá-lo. O cristão tem a garantia do amor e da aprovação de Deus. Ele se agrada de nós em Cristo. Assim, o cristão anseia por obedecer a Deus não por si mesmo, para que Deus o salve, mas 36 G á la ta s 1.10-24 por gratidão, sabendo que Deus já o salvou. Por isso, Paulo vive como um “servo de Cristo” (v. 10). A aprovação divina nos liberta para vivermos da maneira que Deus aprova. O evan- gelho é, ao mesmo tempo, uma certeza e uma motivação po- derosa para viver em obediência radical. Não vivemos como Deus quer a fim de nos tornarmos seus filhos, mas em sinal de gratidão por já sermos seus filhos. O testem u n h o d e P au lo e o n o sso Paulo não compartilha seu testemunho por hábito, nem com o propósito genérico de inspirar pessoas, nem tampouco porque goste de voltar os refletores para suas experiências pessoais. Ele só o compartilha por acreditar que isso ajudará seus ouvintes a terem um encontro com Cristo e os encorajará a não deixá-lo (v. 6). Ele não tem a menor vontade de chamar a atenção ou de ser aclamado. Está focado por inteiro nos ouvintes. Não os usa para exaltar o próprio ego, mas utiliza seu testemunho para ajudar seus amigos. Paulo aqui é um bom exemplo para nós. Mostra-nos que devemos ter a coragem de ser vulneráveis e falar em nível pes- soai sobre o sentido do evangelho para nós. Por quê? Porque o cristianismo é um apelo para levarmos nossa vida inteira, mente e coração, a Cristo. Deixar de fora o que pensa- mos ou como nos sentimos é dar uma imagem incompleta do quanto o compromisso cristão é abrangente. Se excluímos nosso testemunho, também trans- mitimos uma imagem incompleta do quanto a realização cristã é ampla. Cristo não apela só à nossa mente, ele enche nosso coração. Culturas e personalidades diferentes dão ênfases dife- rentes ao cognitivo (compreensão intelectual) e ao experimen- tal (sentimento). Se você omitir seu testemunho, as culturas e Cristo nâo a p e la só à nossa mente, ele enche nosso coração. 37 G ála to s 1.10-24 temperamentos mais focados no coração deixarão de enxergar a capacidade de atração do cristianismo. Ao mesmo tempo, Paulo também nos lembra de que só devemos compartilhar nosso testemunho se ele for útil para outras pessoas. Por estranho que pareça, é muito fácil usá-lo de modo a ofuscar o evangelho. Se enfatizarmos detalhes dramáticos, sanguinolentos ou sexuais, talvez transmitamos apenas a mensagem: Vejam que caso incrível eu sou! Paulo recorre ao testemunho pessoal só para deixar claro o evangelho. Não compartilhamos nossa história em benefício próprio, mas para ajudar outros a entender e encontrar Cristo, para guiá-los em direção ao maravilhoso evangelho da graça que transformou nossa vida e que sabemos ser capaz de transformar a deles também. para reflexãoPerguntas 1. Como você pode viver de modo que as pessoas respeitem e louvem mais a Deus por sua causa? 2. Quando você se sente mais tentado a temer os homens e buscar a aprovação deles? O que mudaria se, nesses momentos, você vivesse para agradar ao Deus que se agrada de você? 3. Até que ponto você está comprometido em passar tempo com Deus... em passar tempo com outros crentes... em passar tempo contando seu testemunho a outros? 38 VERSÍCULOS 1-10GÃLATAS - CAPÍTULO 2 3. A UNIDADE DO EVANGELHO Deveriamos ler essa passagem com grande temor e gratidão. Ela nos leva a uma reunião em Jerusalém que talvez pareça distante das preocupações dos cristãos do século 21. Mas, na verdade, o que estava em jogo não podia ser mais precioso — foi uma reunião com consequências enormes para todos nós, mesmohoje. E, como veremos, Deus nos protegeu a todos — inclusive você e eu — naquele dia. O tem or d e Paulo: por q u e e le foi Ainda escrevendo em tom autobiográfico, Paulo nos trans- porta para “depois de catorze anos”, em relação a sua primeira visita a Jerusalém, quando subiu “outra vez”, acompanhado de dois integrantes de confiança da sua equipe missionária, Barnabé e Tito (v. 1). Por que ele resolveu ir até lá? “Por causa de uma revela- ção” de Deus é a razão externa, e o medo, a interna (v. 2). Isso deveria fazer com que parássemos um instante. O Paulo que conhecemos em Atos e por suas cartas não é homem propenso a sentir medo! Primeiro, ele fora um ousado perseguidor da igreja; depois, tornou-se um pregador do evangelho ainda mais ousado. Então, por que esse homem sentia medo agora? À primeira vista, podería parecer que Paulo estava preocupado com a possibiüdade de ter errado em sua mensagem ou métodos. Por isso, voltou a Jerusalém para se encontrar com os outros apóstolos “em particular”, a fim de expor “a eles [os líderes] o evangelho que prego entre os gentios” (v. 2) e obter confirmação de que estava agindo certo. Mas isso é impossível por diversas razões. Primeiro, Paulo foi a Jerusalém “por causa de uma revela- ção” de Deus (v. 2). Isso nos lembra que ele era um apóstolo com acesso direto a Deus. Recebera seu evangelho dos lábios do Cristo visível, ressurreto (1.12). Não faz o menor sentido alguém ter revelações de Deus e depois ir obter autorização de seja lá quem for! Segundo, caso se sentisse inseguro, por que esperar 14 anos antes de retornar a Jerusalém? E terceiro, Paulo disse em 1.8 que os gálatas deveriam rejeitar a ele próprio (“nós mesmos”) se chegasse e dissesse que mudara de ideia acerca do evangelho! Nada ameaçava sua certeza, mas alguma coisa estava amea- çando sua capacidade de darfrutos. Se os outros apóstolos não confirmassem sua mensagem e não renunciassem aos falsos mestres, seria muito difícil para ele manter seus convertidos. Falsos mestres andavam dizendo a esses jovens cristãos que Paulo pregava um evangelho inade- quado e não tão completo quanto o evangelho apostólico origi- nal pregado pelos líderes de Jerusalém. Insistiam em que Paulo ensinava um “credo fácil”, sua própria mensagem excêntrica. Paulo sabia que sua mensagem fora revelada por Deus, por- tanto era verdadeira. Mas ele não seria capaz de manter suas igrejas debaixo do ensino sadio do evangelho, se não conse- guisse refutar essas mentiras. Por isso temia o perigo de ter “corrido inutilmente” (v. 2). Receava que seu ministério fosse abafado e relativamente infrutífero. De igual modo, a viagem de Paulo não fora motivada por medo de que os apóstolos de Jerusalém não tivessem o evan- gelho verdadeiro. O que ele temia, isto sim, é que os apóstolos de Jerusalém pudessem não ser fiéis a esse evangelho. Talvez G á la ta s 2.1-10 não fizessem frente aos falsos mestres, mas, em vez disso, per- mitissem que os próprios preconceitos culturais os iludissem a ponto de deixar que esses mestres continuassem a fazer suas afirmações prejudiciais. O q u e e s ta v a e m Jogo: a v erd a d e ira u n id a d e d a igreja De um lado dessa disputa, temos Paulo a afirmar: O evangelho da fé em Cristo é para gente de todas as culturas. Do outro lado, temos seus opositores dizendo: Nem todo 0 povo judeu é cristão, mas todos os cristãos devem se tornar judeus. Se os apóstolos de Jerusalém tivessem tomado o partido de quem ensinava contra Paulo, ou mesmo se os tolerassem, teriam dividido a igreja em duas. Nenhum dos lados teria aceitado o ou- tro plenamente, e ambos questionariam se os membros do outro grupo eram mesmo salvos! As igrejas gentias de Paulo duvida- riam de que as igrejas judaicas tivessem mesmo fé em Cristo, e as igrejas judaicas também duvidariam da salvação dos gentios. John Stott analisa a questão do seguinte modo: Uma coisa era os líderes de Jerusalém aprovarem a conversão dos gentios; mas conseguiríam aprovar [...] o compromisso com o Messias sem a inclusão no judaísmo? A visão deles seria ampla o suficiente para enxergar o evangelho de Cristo não como um movimento reformista dentro do judaísmo, mas como boas-novas para o mundo inteiro, e a igreja de Cristo [...] como a família internacional de Deus?1 Os outros apóstolos haviam permanecido em Jerusalém e não tinham pensado nas implicações do evangelho para os gentios 1 The message o f Acts (Downers Grove: IVP, 1968), p. 241 [edição em por- tuguês: A mensagem deAtos (São Paulo: ABU, 1994)]. 41 G ála ta s 2.1-10 que estavam se convertendo do paganismo. Simplesmente, não tinham se defrontado com a maioria dessas questões na prática. Seria muito fácil para eles deixar de perceber as impli- cações do evangelho, quando se tratava de viver como um cris- tão gentio. Teria sido natural para eles dizer: “Claro que todos os cristãos devem comer comida k o s h e r ! ”, ou coisa parecida. Mas os desdobramentos desse “pequeno” erro teriam sido enormes. Existiríam dois partidos opostos dentro do cristianismo, hos- tis um ao outro na questão fundamental da necessidade de acrescentar comportamentos externos à crença interna em Cristo a fim de sermos salvos. Por isso Paulo disse que “a liberdade que temos em Cristo Jesus” (v. 4) se encontrava sob ameaça e que, portanto, “a verdade do evangelho” estava em jogo (v. 5). Essa reunião podia ter acabado por dividir a igreja, ainda em estágio tão inicial de sua vida, fazendo emergir duas religiões diferentes. Não admira que Paulo sentisse medo. O que estava em jogo não podia ser mais valioso. O veredicto: b em -vin d os Foi crucial que Paulo estivesse “levando Tito também” (v. 1). Ele era grego (v. 3) — um cristão incircunciso de corpo e alma. Os “falsos irmãos” (v. 4) de Paulo que “haviam se intrometido” na igreja teriam insistido em que, a fim de ser salvo, Tito pre- cisava confiar em Cristo e viver de acordo com os rituais judai- cos, como a circuncisão. Assim, em Tito, Paulo confrontou os outros apóstolos com um estudo de caso concreto. A reunião de Jerusalém não podia ser uma discussão abstrata. Exigiríam que Tito fosse circuncidado ou não? “Mas nem mesmo Tito, que estava comigo, foi forçado a se circuncidar, embora fosse grego” (v. 3). Pela graça de Deus, Os desdobram entos desse "pequeno" erro teriam sido enormes. 42 G á la ta s 2.1-10 os apóstolos de Jerusalém se mostraram à altura dos aconteci- mentos e passaram da teoria à prática. Não insistiram na cir- cuncisão de Tito antes de terem comunhão com ele. “Deus Paulo diz que “nada me acrescentaram” (v. 6), ou seja, à sua mensagem. Os apóstolos de Jerusalém concordaram que só a fé em Cristo, e não outra proeza ou ritual qualquer, é necessária para a salvação. A aceitação de Tito por parte deles foi prova de que tinham aceitado o ministério de Paulo e essas implicações radicais do evangelho. Tais implicações são fundamentais para nossa compreensão do que é a fé cristã. As inúmeras regras para “purificação” das leis de Moisés foram projetadas (entre outras coisas) para nos mostrar como é impossível nos tornarmos perfeitamente aceitáveis diante de um Deus santo. Mas os “falsos irmãos” tinham usado essas regras a fim de ensinar exatamente o oposto: que podemos nos tornar puros e mais aceitáveis a Deus mediante a estrita conformidade às regras. O número de vezes que o Novo Testamento fala sobre esse erro mostra como é fácil entender tudo errado. “Tanto ofertas como sacrifícios que se oferecem não podem aperfeiçoar quem presta o culto. Essas coisas se referiam somente à comida, bebida e às diversas lavagens cerimoniais, ordenanças humanas impostas até o tempo de uma reforma” (Hb 9.9,10; veja também Cl 2.16). Só em Cristo podemos nos tornar “santos, inculpáveis e irrepreensíveis diante dele” (Cl 1.22). Em outras palavras, as leis cerimoniais não foram tanto abolidas ou que ele fosse circuncidado ou não? Tito era umestudo de caso concreto. Os apóstolos exigiriam não considera a aparência humana” (v. 6). A aparência exterior tem a ver com nos- sos atos; a interior, com nosso ser; e o cristianismo tem a ver com quem sou em Cristo, não com o que faço por ele. 43 G aia ta s 2.1-10 substituídas, e sim cumpridas. Elas são cumpridas em Cristo; é Cristo que nos purifica (veja Mc 7.14-19; Jo 13.2-11). Portanto, a aceitação de Tito pelos crentes judeus serviu como uma ilustração vivida desse princípio, segundo o qual o indivíduo se torna espiritualmente puro e aceitável através de Cristo, e não por meio de quaisquer feitos ou rituais. Precisamos continuar repetindo essa verdade para nós mesmos e uns para os outros, como fez o Novo Testamento. Os gentios puderam tornar-se membros plenos do povo de Deus sem se tornarem judeus em costumes ou cultura. A aceitação de Tito foi uma declaração pública radical das implicações do evangelho. O resu ltado: lib erd a d e No versículo 4, Paulo caracteriza os dois lados desse argumento de maneira esclarecedora. Os “falsos irmãos” que haviam se infiltrado nas igrejas gentias queriam, diz ele, “nos escravizar”, impedindo-os de desfrutar da “liberdade que temos em Cristo Jesus”. Ele está dizendo que o evangelho bíblico dá liberdade, ao passo que a mensagem de seus oponentes — “faça por merecer sua salvação” — conduziría as pessoas só à escravidão. Esse é um assunto que ele retomará ao longo da carta (em especial em 4.21-31). Mas, afinal, como o evangelho pro- duz liberdade? Primeiro, o evangelho leva à liberdade cultural. A religião moralista tende a pressionar seus membros a adotarem regras e regulamentos muito específicos quanto ao que vestir e como se comportar no dia a dia. Por quê? Se sua salvação depende da obediência a regras, você quer que essas regras sejam muito específicas, exequíveis e claras. Você não quer um simples: Ame seu próximo como a si mesmo, porque esse é um padrão inatingível de tão alto, com implicações infinitas! Você quer: Não vá ao cinema ou Não ingira álcool ou Não coma esse tipo de comida. 44 G ála ta s 2.1-10 Mas regras e regulamentos desse tipo são da área da vida cultural diária. Se os falsos mestres tivessem imposto sua von- tade, um italiano ou africano não poderia tornar-se cristão sem se tornar culturalmente judeu. Os cristãos teriam de formar pequenos guetos cul- turais em cada cidade. Isso significaria dar muito mais ênfase à separação cultural externa do que à distinção interna de espírito, motiva- ção, percepção e perspectiva. Elevar a adequação cultural ao nível da virtude espiritual induz os cristãos a uma ênfase escra- vizante no culturalmente “bom” e “apropriado”, além de pro- mover atitudes intolerantes e preconceituosas. Segundo, o evangelho leva à liberdade emocional. Quem acre- dita que nosso relacionamento com Deus se baseia na observa- ção de um comportamento moral caminha sobre uma esteira móvel infinita de culpa e insegurança. Como revelam as car- tas de Paulo, ele não liberou os crentes gentios dos imperativos morais dos dez mandamentos. Os cristãos não podiam mentir, roubar, cometer adultério e assim por diante. Todavia, mesmo não estando livres da lei moral como um modo de vida, os cristãos estão livres dela como um sistema de salvação. Obedecemos, não por medo e insegurança quanto à esperança de merecer nossa salvação, mas na liberdade e segurança de saber que já estamos salvos em Cristo. Obedecemos na liberdade da gratidão. Logo, tanto os falsos mestres quanto Paulo disseram aos cristãos para obedecerem aos dez mandamentos, mas por razões e motivações completamente diversas. E, a menos que seu motivo para obedecer a lei de Deus seja a gratidão pela graça do evangelho, você está em escravidão. O evangelho oferece liberdade, tanto em termos culturais quanto emocionais. O “outro evangelho” destrói as duas coisas. Se sua salvação d ep en d e d a obed iência a regras, você quer que essas regras sejam muito específicas, exequíveis. 45 G aia to s 2.1-10 p ara reflexãoPerguntas 1. Já houve ocasiões em que você começou a pensar que seu desempenho conta para sua salvação? O que o levou a pen- sar dessa maneira? 2. Quais as atitudes “boas” e “apropriadas” que sua cultura e criação lhe ensinaram? Como você poderia acrescentar essas coisas à crença em Cristo como uma expectativa para outros cristãos? 3. Você já se sentiu culpado ou inseguro em seu relaciona- mento com Deus? O que isso pode lhe dizer a respeito do modo como você vê sua aceitação por parte dele? SEGUNDA PARTE D u as m a rca s d a v erd a d e ira u n id a d e Em uma época de igrejas divididas e rixas denomínacionais, é muito fácil deixar de perceber a repetida ênfase que o Novo Testamento coloca na unidade cristã. Afinal, como é a verda- deira unidade cristã? Primeiro, como temos visto, ela significa aceitar qualquer um e todos aqueles que estão “em Cristo Jesus” (v. 4), indepen- dentemente de seus antecedentes culturais e étnicos. O cristão norte-americano tem muito mais em comum com o crente no evangelho que leva uma existência nômade nas planícies mon- góis do que com o incrédulo que é seu vizinho de rua, que dirige um carro semelhante ao seu e cujos filhos frequen- tam a mesma escola que os seus. A unidade cristã não leva em consideração distinções culturais nem depende da similaridade cultural. Portanto, assim comoTito não foi “forçado a se circuncidar” (v. 3), não devemos hoje insistir em acréscimos à fé no evangelho. A u n id ad e crista não leva em consideração distinções culturais. 46 G ála ta s 2.1-10 Algumas igrejas ensinam que temos de crer em Cristo e ser batizados a fim de alcançarmos a salvação. Outras insistem em que devemos integrar seu rol de membros para que sejamos salvos. Muitos tipos de cristianismo acrescentam ao evangelho distinções próprias, como a crença na predestinação , a abstinência do álcool ou o falar em línguas como meios de termos certeza de que somos cristãos. Em outras palavras, muitas igrejas dirão que somos salvos só pela fé, mas que, para termos certeza de que somos cristãos de verdade, só se apresentarmos tais distinções. Muitas igrejas e grupos cristãos adicionam regras culturais à Bíblia — sobre coisas como o modo de vestir e de se divertir — e insistem em que ninguém que viole esses padrões pode ser cristão. Segundo, ela significa reconhecer que temos chamados diferentes. Os apóstolos reconheciam isso entre si: “viram que o evangelho da incircuncisão me havia sido confiado, assim como a Pedro o evangelho da circuncisão” (v. 7). Embora Pedro e Paulo pregassem “o [mesmo] evangelho”, reconheciam que existem modos diferentes de abordá-lo. Há quem tenha dons e habilida- des para transmitir o evangelho a determinado grupo de pessoas, e há quem os tenha para transmiti-lo a um grupo diferente. Disso se subentende que podemos adaptar o evangelho a diferentes pessoas, ao mesmo tempo em que lhe conservamos a essência. Essa é uma conclusão importante para a missão. Se falharmos por não adaptar a mensagem do evangelho ao interesse das pessoas, ou se exagerarmos ao fazê-lo e per- dermos sua essência, fracassaremos em convencer e conquistar outros para a alegria e a liberdade do evangelho. Quais são as maneiras mais comuns de fracassarmos na preservação da mensagem hoje? Algumas igrejas e cristãos têm adaptado o evangelho ao mundo moderno retirando os elementos “ofensivos”, como milagres de qualquer natureza ou a pretensão de que só se pode chegar a Deus através de Cristo. 47 G ála ta s 2.1-10 Mas, nesses casos, o próprio evangelho se perdeu, uma vez que ficamos na posição de ter de salvar a nós mesmos sendo bons. Esse é um fracasso de preservação. Por outro lado, é possível ir longe demais na direção oposta e deixar de se adaptar. Muitas igrejas e cristãos se vinculam de tal forma a sua música ou organização ou jargões, que não se dispõem a implementar mudançaspara incorporar gostos e suscetibilidades de quem vem de fora. Por irônico que pareça, se você subadapta ou superadapta, “perde” o evangelho. Se eleva suas tradições à condição de elementos inegociáveis, cria, basicamente, um sistema de legalismo . E como se dissesse: cristãos verdadeiros sempre fazem as coisas dessa maneira. Assim, tanto o conserva- dorismo e o legalismo (não adaptação) quanto o libe- ralismo (não preservação) conseguem ameaçar o evan- gelho. Os apóstolos estavam determinados a preservar a mensagem do evangelho e suas consequências para o estilo de vida; mas estavam igualmente preparados para adaptar os meios à mensagem. A terceira m a rca d e sa fia d o r a Terceiro, e talvez surpreendentemente: a unidade cristã signi- fica que deveriamos continuar nos lembrando “dos pobres” (v. 10). Pedro e Paulo podem ter sido chamados para cam- pos missionários diferentes, mas ambos estavam obrigados a cuidar dos pobres. Os apóstolos de Jerusalém queriam insistir nisso e encontraram em Paulo um trabalhador disposto, ávido por fazê-lo de qualquer maneira (v. 10). Por que lembrar-se dos pobres é tão fundamental para a unidade cristã? Se você eleva suas tradições à condição de elem entos inegociáveis, cria, basicam ente, um sistema de legalismo. 48 G á la ta s 2.1-10 Por dois motivos: um genérico e um particular. O motivo particular, no contexto da reunião em Jerusalém, dizia respeito ao fato de as igrejas judaicas serem muito mais pobres do que as igrejas que Paulo estava implantando nas regiões gentias. Donald Guthrie analisa a questão do seguinte modo: A condição dos cristãos judeus [era tal que] sua pobreza pro- vocou a solidariedade das igrejas gentias (veja Rm 15.25-28; IC o 16.1-4; 2Co 8— 9).2 Portanto, os apóstolos de Jerusalém insistiam em que as igrejas gentias e judias permanecessem firmemente interco- nectadas, compartilhando recursos umas com as outras, da mesma forma que os recursos eram compartilhados na igreja local (At 4.32). O motivo genérico é que o cuidado com os pobres é um tema constante na Bíblia. Aqui está um resumo (muito con- densado!) do ensinamento bíblico sobre o assunto. Jesus prova a João Batista que é o Cristo salientando que cura corpos e prega aos pobres (Mt 11.16־), como os profetas disseram que faria (Is 11.1-4; 61.1,2). Ele ensina que todo aquele de fato tocado pela graça de um Deus misericordioso será ativo na ajuda aos necessitados (como sugerido por Lc 6.35,36; M t 5.43-48). Deus julgará se temos ou não a fé justificadora observando nosso trabalho em favor do pobre, do refugiado, do enfermo e do encarcerado (Mt 25.44-46). E claro, Jesus serviu como o exemplo perfeito disso. Em sua encarnação, ele “passou a viver” com os pobres (Lc 2.24; 2C0 8.9). Viveu, comeu e se juntou com a classe mais baixa da sociedade. Deu a isso o nome de “misericórdia” (Mt 9.13). 2Galatians, New Century Commentary (London: Marshal, Morgan & Scott, 1973), p. 83. 49 A Bíblia nos manda imitá-lo (2C0 8.8-15). Os cristãos devem abrir as mãos ao necessitado conforme houver necessidade (1J0 3.16,17; veja D t 15.7,8), e, dentro da igreja, a riqueza deve ser compartilhada com grande generosidade entre ricos e pobres (2Co 8.13-15; veja Lv 25). Fazendo eco aos profetas, os apóstolos ensinam ser inevitável a fé verdadeira mostrar-se através de atos de misericórdia (Tg 2.1-23). O materialismo é ainda um pecado cruel (Tg 5.1-6; lTm 6.17-19). Não só todos os crentes têm essas responsabilidades, como também uma classe especial de oficiais — os diáconos — é estabelecida para coordenar o ministério de misericórdia da igreja (At 6.1-7). Isso mostra que o ministério de misericórdia é uma obra ordenada e obrigatória da igreja, assim como o ministério da palavra e a disciplina (Rm 15.23-29). Paulo diz aos presbíteros efésios, em seu discurso de despedida, que lhes ensinara todo o propósito de Deus (At 20.27). E bastante sig- nificativo, portanto, que em suas últimas palavras ele os exorte a ofertar para o fraco e 0 pobre (v. 35). Não só ele considerava a misericórdia para com o pobre uma parte do propósito total de Deus, como também acreditava que ela era crucial, a ponto de fazer dela objeto do último encorajamento que lhes ende- reçou — como fizeram os apóstolos de Jerusalém com ele, em Gálatas 2.10. Os cristãos devem estar unidos no cuidado com os pobres, e esse deve ser um dos traços que os caracterizam. Os lim ites d a u n id a d e É fácil fazermos pouco caso da unidade cristã hoje, concen- trando-nos naquilo que nos divide dos companheiros crentes no evangelho, em vez de focarmos no Senhor e Salvador que nos uniu. Mas o erro oposto é igualmente perigoso: dar impor- tância demais à unidade em detrimento de ela ser cristã. Lembre-se, essa questão — o motivo da viagem de Paulo a Jerusalém — surgiu “por causa dos falsos irmãos que haviam G a ia ta s ־2.110 se intrometido” na igreja (v. 4). A reunião só aconteceu porque Paulo não estava nada disposto a compartilhar a igreja com quem ensinava um evangelho diferente. O relacionamento de cooperação entre os apóstolos era baseado na verdade compar- tilhada do evangelho. Paulo e seus companheiros todos recebe- ram “a mão direita da comunhão” dos líderes de Jerusalém (v. 9). “Estender a mão direita” era um sinal de amizade, coopera- ção e aprovação no mundo antigo, assim como hoje. Era mais do que um gesto de cortesia. O gesto teve o efeito de isolar e desacreditar os falsos mestres. Eles não podiam mais dizer que representavam Tiago, Pedro e João (como evidentemente tinham feito; v. 2.12). Ao incluir Paulo, Barnabé e 0 incircun- cisoTito,os apóstolos de Jerusalém excluíam os falsos mestres. Ao estabelecer a unidade do evangelho, também marcavam os limites dessa unidade — e os “falsos irmãos” ficaram de fora. A comunhão com Cristo é base suficiente de comunhão um com o outro. Nunca devemos excluir alguém a quem Deus incluiu em seu povo. Mas, de igual modo, a comunhão com Cristo é a única base para a comunhão um com o outro. As igrejas não devem manter a unidade em detrimento do evangelho. são dois grandes anseios do Liberdade e com unhão em dogmas do tipo “faça por merecer sua salvação”. Eles di- videm as pessoas em fileiras culturais e as escravizam emo- da liberdade da aceitação por Deus, independentemente do nosso desempenho, e que podemos desfrutar de uma unidade que não dá atenção nenhuma às fronteiras de países ou cul- turas. Foi essa unidade e essa liberdade que 0 evangelho de Liberdade e comunhão são dois grandes anseios do coração hum ano. coração humano. Nenhum dos dois é satisfeito em defi- nitivo por qualquer visão de mundo ou religião baseada cionalmente. É “em Cristo Jesus” que conseguimos desfrutar 51 G ála ta s 2.1-10 Paulo ofereceu, e foi em defesa delas que Deus o instigou a ir a Jerusalém, dois mil anos atrás. Divisão e escravidão eram coisas a que Paulo não se submetería (v. 5) — tampouco nós devemos fazê-lo! p ara reflexãoPerguntas 1. Você consegue pensar em exemplos de igrejas que não valorizam o suficiente a unidade do evangelho ou que buscam a unidade institucional à custa da verdade do evangelho? 2. Como você tem cuidado dos pobres? Como Gálatas 2.10 encorajou e/ou desafiou você? 3. Tanto em sua vida pessoal quanto como parte de uma igreja, você tende a superadaptar ou a subadaptar o evange- lho à cultura que o cerca? 52 VERSÍCULOS Π -21GÃLATAS ■ CAPÍTULO 2 4. VIVENDO CONFORME O EVANGELHO A visita de Paulo a Jerusalém estabeleceu a grande verdade unificadora de que somos salvos pela fé em Cristo; nada mais, nada além. Agora ele muda o foco; em vez de se colocar ao lado de Pedro em Jerusalém, capital de Israel, coloca-se contra ele em A n tio q u ia , uma cidade gentia. Nas duas ocasiões, o que importa para Paulo, acima de qualquer coisa, é o evange- lho — evangelho que, neste trecho da carta, ele resume pela primeira vez como “justificação pela fé”.