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10 Anos GPDES Nuno Santos ........................................................................................................6 Apresentação Coordenadores do GPDES................................................................................. 7 Parte I CAMPOS DE PÚBLICAS: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS................................................ 10 INFODEMIA: EPIDEMIA BRASILEIRA E EM TEMPOS DE COROVAVÍRUS Alan Meira, Matheus Barbosa e Lalita Kraus ............................................................................................................................. 11 DIGITAIS A TODO CUSTO: AS CONTRADIÇÕES E RISCOS DO SISTEMA ON-LINE Fabíola Neves e Rafaela Barbosa ..................................................................................................................... 18 COMPREENDER O PASSADO PARA ENFRENTAR O PRESENTE E O FUTURO: NOSSOS CORPOS DESESTABILIZAM AS ESTRUTURAS IMPOSTAS Joyce Trindade .................................... 25 O CONSELHO DA JUVENTUDE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO COMO FERRAMENTA NO AUXÍLIO DE UMA GESTÃO PARTICIPATIVA E SEUS DESAFIOS Ully Sant’ Anna Ribeiro ............ 28 EDUCAÇÃO POLÍTICA Cecília Caiado, Karen Brêda, Lucas Lopes, Maria Julia de Oliveira e Thayane Gondim ................................................................................................................................. 35 GESTÃO E FINANCIAMENTO DO SUS E A PANDEMIA DO COVID-19: ENTRE VELHOS E NOVOS DESAFIOS Marcos Vinícius Rezende da Silva ................................................................................... 41 COVID-19: REFLEXÃO SOBRE O IMPACTO DO TRABALHO INFANTIL E A EVASÃO ESCOLAR Mayara Pinheiro ....................................................................................................................................... 48 PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL Lorena Alves Nogueira Costa ......... 50 DO DESALENTO À BUSCA POR NOVOS CAMINHOS Deborah Werner e Clarice Rocha ...... 53 VIDA PÚBLICA: OS TEMAS REPÚBLICANOS NOS ESPAÇOS ESCOLARES E DE ENSINO MAREENSES Adriano de Carvalho Mendes e Caio Matheus da Graça Santos .................... 66 SOBRE NOSSOS TEMPOS: HOMENAGEM A CARLOS LESSA Clarice Rocha e Lucas Dipp ..... 76 RENDA BÁSICA E INCLUSÃO FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISEMaria Fernanda Fontenele ....................................................................................................................................................................... 78 PRECISAMOS SER SMART? BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AGENDA NACIONAL PARA CIDADES INTELIGENTES Alexandre Henrique N. da S. Almeida e Tainá Farias da Silva Maciel .......................................................................................................................................................... 87 RELAÇÃO ENTRE AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DOS EUA COM O BRASIL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Carla Januário, Gabriela Duarte e Vanessa Mello ...................................... 94 Parte II CAMPOS DE PÚBLICAS E IMPACTO SOCIAL: 10 ANOS DO GPDES.................................... 101 DIVERSIDADE NA UNIDADE: OS 10 ANOS DO GPDES E O CAMPO DE PÚBLICAS Breno Seródio ...................................................................................................................................................... 102 AGÊNCIA IPPUR: HISTÓRIAS E DESAFIOS Equipe Agência IPPUR.. ............................................ 109 A DESCONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA SOCIAL E DA CIDADANIA URBANA NO BRASIL Maria Fernanda Fontenele, Laura Fernandes Oliveira Meres, Yeda Assunção e Ebraim Souza.......................................................................................................................................................... 117 POLÍTICAS SOCIAIS E PLENO EMPREGO: A TEORIA MODERNA COMO ALTERNATIVA Clarice Rocha e Lucas Dipp .............................................................................................................................. 121 O DESMONTE DAS POLÍTICAS DE PLANEJAMENTO NO BRASIL Clarice Rocha ....................... 124 OS “DESASTRES DA MINERAÇÃO” NO BRASIL Carla Beatriz Januario, Clarice Rocha, Suyá Quintslr e Deborah Werner .................................................................................................................. 126 SAÚDE MENTAL NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO Bruna M. M. Fagundes .................................... 130 MINERAÇÃO E TERRITÓRIOS EM TEMPOS DE COVID-19 Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro ......................................................................................... 132 O SEGREDO SOBRE O GASTO PÚBLICO QUE A PANDEMIA REVELOU AO MUNDO Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro ................................ 135 A RECONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO Maria Fernanda Fontenele .............................................................................................................................. 139 ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL DE SERVIDORES PÚBLICOS NA ÁREA DA SEGURIDADE SOCIAL Rodolfo Leonardo Nunes ..................................................................................................................... 141 EPIDEMIA E ORDEM PÚBLICA – A CIDADE DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX Beatriz Gomes de Souza, Daiane M Sousa Santos, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro ..................................................................................................................................................................... 143 6 10 Anos GPDES Por Nuno dos Santos1 No mar repousam as tuas cores, espelho do sol, brilho da juventude, aurora-polaris. Brasil, uma canção de Alcyr, aquarela de Ary, e nação de Aldir. Muitos são os versos e declarações que tu recebestes, espelho esmeralda, Fruto de vários corações, o futuro é a sua ambição. mas nada se compara ao amor que a filha de Minerva tem por ti! Momentos difíceis passarão perante a certeza da tua determinação (isso não é ilusão!), brilhante, fogo sagrado inextinguível, ilumina nossos caminhos, como uma benção. Nestas dez primaveras que mais parecem um verão, teu intenso calor despertou corações, antes gélidos, que agora encontram em ti a esperança da renovação 1 Egresso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ) e mestrando do Programa de Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR/IPPUR) 7 Apresentação A comemoração dos 10 anos da Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GPDES/UFRJ), apresenta-se como um ato de resistência diante do atual contexto de disputas sobre a importância da Universidade Pública, do valor da ciência e de diversas instituições coletivamente organizadas, bem como do papel do Estado em prol do interesse coletivo. Este livro, como parte das celebrações da primeira década de GPDES contribui para resgatarmos a trajetória do curso e relembrarmos o propósito de formarmos gestores e servidores públicos preparados para lidar com os desafios na construção do bem-estar comum e comprometidos com um projeto societário inclusivo e emancipatório. Na esteira da implementação da agenda neoliberal no Brasil nas últimas décadas do século XX e da crise de legitimidade da gestão pública, assistimos à proliferação de cursos de Administração de Empresas, restringindo-se a administração pública a uma subárea deste campo, entendido como prioritário. Tal trajetória foi revertida no início do século XXI, a partir da intensificação do debate teórico e político sobre a relação entre Estado e sociedade e de processos que possibilitaram a retomada do protagonismo estatal, da burocracia pública e dos investimentos em serviçospúblicos - o que demandaria, em tese, profissionais especializados em gestão pública. A necessidade de formação de pessoal especializado para atuar na gestão pública, todavia, não poderia ter sido atendida sem a implementação do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), política que possibilitou a proposição de novos cursos e abordagens nos diversos campos do conhecimento e em distintas porções do território nacional. A partir da implementação do Reuni, em 2007, pelo Governo Federal, diversos cursos, do que viria a se constituir como “Campo de Públicas”, foram criados nas principais universidades públicas do país. 8 A partir deste momento, a Administração Pública e a Gestão Pública deixam de ser compreendidas como uma subárea da Administração de Empresas e passam a designar uma área interdisciplinar que compreende diferentes saberes – com destaque para as Ciências Sociais Aplicadas (Administração, Ciências Contábeis, Direito, Economia, Planejamento Urbano e Regional e Serviço Social) e Ciências Humanas (História, Antropologia, Comunicação, Sociologia, Ciência Política e Geografia Humana) – de modo a primar pelo ethos republicano e democrático, a partir de uma visão interdisciplinar como caminho para a construção do conhecimento. Em 2010, mais um passo importante foi dado para a consolidação do campo com a aprovação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de graduação em Administração Pública no Brasil pelo Conselho Nacional de Educação, reconhecendo a singularidade e a identidade acadêmica destes cursos. Foi neste contexto e com este espírito que a Universidade Federal do Rio de Janeiro aprovou, em 2009, a criação da graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, recebendo sua primeira turma em 2010. Desde então, o curso passou por mudanças curriculares e institucionais, fruto do processo de amadurecimento de um campo em consolidação. Uma destas mudanças envolveu a alteração do projeto, inicialmente multiunidade, passando a integrar o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) em 2021. O IPPUR passaria então a responder acadêmica, pedagógica e administrativamente por sua condução e gestão. A segunda mudança que merece destaque é o processo de amadurecimento de seu currículo. Desde a proposta aprovada em 2009, a grade curricular passou por duas mudanças que refletem os debates do Campo de Públicas e o diálogo travado entre docentes, discentes e técnicos administrativos. Nestes 10 anos de história, o curso contribuiu com a consolidação do Campo de Públicas, tornou-se mais conhecido tanto pelos alunos que concluem o ensino médio e 9 buscam uma vaga na Universidade, quanto pelos órgãos públicos, o que se reflete na inserção de inúmeros alunos e egressos do GPDES na vida pública do país. O livro é composto por duas partes. A primeira parte, intitulada “Campo de Públicas: transformações e desafio”, traz artigos redigidos pelos discentes do GPDES e discute temas diversos do campo de públicas. A segunda parte do livro, intitulada “Campo de Públicas e Impacto Social: 10 anos do GPDES”, apresentam resenhas e memórias dos debates realizados no IPPUR e vinculados às atividades de ensino, pesquisa e extensão. A diversidade dos temas tratados revela a qualidade, a autonomia e a visão crítica dos graduandos de GPDES e confirma a importância do projeto iniciado há uma década! Coordenadores do GPDES 10 Parte I CAMPOS DE PÚBLICAS: TRANSFORMAÇÕES E DESAFIOS 11 INFODEMIA: EPIDEMIA BRASILEIRA E EM TEMPOS DE COROVAVÍRUS Por Alan Meira2, Matheus Barbosa3 e Lalita Kraus4 O presente texto é formulado a partir da pesquisa intitulada: “Whatsapp, opinião e políticas públicas”, desenvolvida atualmente no LabEspaço, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em tempos de pandemia causada pelo Covid-19, não há recuo da epidemia de fakenews. Acompanhamos 50 grupos de direita e pró- Bolsonaro com o intuito de compreender a gênese, a natureza e o impacto de sua produção discursiva. Compartilham-se nos grupos, diariamente, mensagens e mídias, podendo chegar a 1000 mensagens por dia, sobretudo em ocorrência de fatos políticos relevantes, como no caso da pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Ao mesmo tempo, novos grupos são constantemente criados, tecendo uma rede hiperconectada. Sabemos que a informação é um dos pilares fundamentais de qualquer sistema democrático, sendo determinante para a formação do sujeito enquanto ser político. Ao mesmo tempo, a informação possibilita e determina a formação da opinião pública. Nesse sentido, o Whatsapp se tornou um espaço importante de troca de informações de qualquer natureza e de consolidação de opiniões. Nos grupos pró-Bolsonaro, há produção e compartilhamento de discursos que consolidam posições misóginas, racistas e homofóbicas, assim como teorias conspiratórias que apresentam o Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) como salvador da pátria, contra as ideologias inimigas comunistas, esquerdistas e petistas. Mas como esses grupos interpretam e reagem aos acontecimentos epidêmicos do COVID-19? Em um momento trágico de pandemia, a informação é fundamental para conscientizar a população, incentivar ações e medidas tanto individuais quanto coletivas de prevenção, bem como atitudes solidárias. Trata-se de um momento em que é necessário evitar a propensão a atitudes individualistas para pensar o bem comum, mas, infelizmente, a trágica pandemia do COVID-19 gerou 2 Graduado em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 3 Graduando em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ 4 Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ 12 uma perigosa “infodemia”, a proliferação do vírus da desinformação. Esse vírus é mortal quando, como no caso do Irã, leva dezenas de pessoas a beber álcool adulterado por acreditar em boatos que apresentavam curas para o coronavírus5 e, em geral, pode ser mortal quando desorienta a ação individual e coletiva. No período de 04 a 23 de março de 2020, um dos principais assuntos comentados foi a responsabilização da China pela disseminação do vírus (Figura 1). Assim, foi disseminada a teoria do “vírus chinês”, iniciada pelo então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, reproduzida pela família Bolsonaro e compartilhada nos grupos de Whatsapp. Desta forma, a pandemia é instrumentalizada politicamente, de maneira oportunista, para atacar o grande inimigo: o comunismo! Isso é feito reproduzindo teorias conspiratórias que interpretam o vírus como uma nova arma biológica de desestabilização global (Figura 2), pois seria “muita coincidência esse vírus ter vindo de uma cidade onde tem um laboratório que trabalha com armas biológicas” (conversa do Whatsapp). Através disso, “a China coloca o mundo inteiro de joelhos e acaba de ganhar a 3ª guerra mundial sem dar um tiro com seu golpe de mestre sujo comunista: Corona Vírus!” (conversa do Whatsapp). Confirma-se a tese segundo a qual os movimentos populistas de direita sempre usaram, ao longo da história, teorias conspiratórias para instaurar o medo, ganhar o consenso e se autopromoverem como alternativa política. Mas onde fica, diante do incidente diplomático provocado em relação à China, o interesse pela saúde pública, sobretudo considerando que o Brasil depende fortemente de importações de insumos farmacêuticos para a produção de medicamentos e que a China é o principal exportador? 13 O presidente Bolsonaro, em muitas ocasiões, caracterizou o atual momento como sendo tomado pela“histeria”, como ressalta em entrevista à Rádio Tupi (16 de março): "Esse vírus trouxe uma certa histeria (...) A vida continua, não tem que ter histeria”. Em discurso dado no dia 22 de março, quando só na Itália o vírus já tinha matado mais de 5000 pessoas, o Presidente afirma: “Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses governadores e por grande parte da mídia nessa questão do coronavírus”. Por isso, não é surpreendente que, nos grupos apoiadores do Presidente, apareçam inúmeras mensagens que ridicularizam a seriedade da pandemia (Figura 3). Figura 3 A total ignorância ou desconsideração dos fatos, como as mortes e a superlotação dos hospitais europeus, é alimentada pela disseminação e viralização de mensagens que negam a importância de medidas preventivas como o isolamento social, conforme mostrado na transcrição do seguinte áudio: “tem que pegar esse vírus aí e viver com ele, algumas pessoas vão morrer outras pessoas vão viver e a maioria 99% vai viver; agora quem já tá lá em estado falimentar realmente vão dizer que morreu de coronavírus, morreu porque tinha que morrer mesmo. “Galera vamo parar com isso, vamo parar com esse mimimi (...) não aguento mais essa palhaçada de ficar em casa” (Áudio grupo Whatsapp). No dia 25 de março, apesar dos incrementos exponenciais dos contágios e das medidas recomendadas pelos organismos internacionais (Organização Mundial da Saúde e Organização das Nações Unidas), em pronunciamento dado em rede nacional, o Presidente negou a importância da quarentena e do fechamento do comércio, culpabilizando a mídia por espalhar o medo. No final, ele insiste que o vírus seria “apenas uma gripezinha ou resfriadinho” e, se o vírus é perigoso apenas para as pessoas de grupos de risco (idosos e pessoas com patologias), “por que fechar as escolas?”. Após o pronunciamento, os grupos bolsonaristas começaram a comentar, apoiar e compactuar com esse posicionamento de forma histérica (e, nesse caso, podemos sim falar em histeria!). Os fatos, portanto, não importam mais, as recomendações do mundo científico se tornam irrelevantes. É o reino da pós-verdade no qual o objetivo e o racional perdem peso diante do emocional ou de crenças pessoais. É importante ressaltar que boatos no Whatsapp tiveram efeitos devastadores em muitos países, provocando motins, linchamentos e mortes porque são capazes de desinformar, atiçar os instintos mais primitivos e colocar em risco a vida humana5. Em 2018, no México, um homem foi queimado vivo devido a um boato relativo ao envolvimento num caso de estupro6. 5 Shakuntala Banaji et al. WhatsApp Vigilantes: An exploration of citizen reception and circulation of WhatsApp misinformation linked to mob violence in India. Department of Media and Communications, London School of Economics. Disponível em: https://blogs.lse.ac.uk/medialse/2019/11/11/whatsapp-vigilantes-an-exploration-of-citizen-reception- and-circulation-of-whatsapp-misinformation-linked-to-mob-violence-in-india/ 6 https://www.bbc.com/news/world-latin-america-46145986 https://blogs.lse.ac.uk/medialse/2019/11/11/whatsapp-vigilantes-an-exploration-of-citizen-reception-and-circulation-of-whatsapp-misinformation-linked-to-mob-violence-in-india/ https://blogs.lse.ac.uk/medialse/2019/11/11/whatsapp-vigilantes-an-exploration-of-citizen-reception-and-circulation-of-whatsapp-misinformation-linked-to-mob-violence-in-india/ https://www.bbc.com/news/world-latin-america-46145986 No mesmo ano, na Índia, um boato parecido provocou o linchamento e a morte de 31 pessoas7. Qual poderia ser o efeito provocado por rotular as medidas de enfrentamento do COVID- 19 como resultado de histeria e do “mimimi”?8 Além do viés conspiratório e do negacionismo de fatos, o fenômeno da desinformação se alimenta de mentiras. Essas são um poderoso instrumento político porque surgem sempre com uma finalidade específica e têm o poder de gerar efeitos reais. Muitos boatos sobre possíveis curas e formas de prevenção do coronavírus circularam nos grupos, como esse áudio mostra em relação ao uso da hidroxicloroquina como possível tratamento: “Procede guerreiro (..) eu trabalho na marinha americana, quem estava infectado, quem queria ser cobaia para testar (...) e testaram e a pessoa ficou boa em 72 horas então é um milagre de deus, meu irmão. A empresa Bayer que é americana, tem aí no Rio de Janeiro né, já foi autorizada a produzir esse medicamento, essa droga para distribuir (...) a ordem do presidente é distribuir para os países aliados [com o] Brasil, graças a Deus, é um país aliado dos Estados Unidos, graças ao Bolsonaro, porque o Lula tinha se afastado do governo americano, essa é a nossa vantagem. Que Deus seja louvado, toda honra e glória para o nosso senhor”. Esse áudio condiz com as declarações públicas falaciosas do Presidente Bolsonaro e do Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (2017-2021). Na verdade, a hidroxicloroquina e a cloroquina estão ainda em fase de teste, mas, mesmo assim, essa informação falsa gerou pânico e uma corrida às farmácias, até mesmo por quem não apresentava nenhum sintoma da doença9. Isso levou ao fim do estoque necessário para os pacientes que tomam o medicamento de forma contínua para outras graves patologias como o Lúpus e Artrite. O fenômeno da “infodemia” é causado, agravado e incentivado por um conjunto de elementos que caracterizam a dinâmica comunicacional no Whatsapp. Os usuários podem ser descritos como pessoas comuns que, por serem parte de grupos que apresentam afinidade ideológica e se organizam em torno de um sentido comum, sentem-se membros de uma “comunidade”, de uma família virtual10. Isso cria uma sensação de 7 https://www.news18.com/news/immersive/death-by-whatsapp.html 8 Quando da publicação do livro, o Brasil já alcança mais de 3 mil mortes diárias e ultrapassa 310 mil mortes desde o início da pandemia [N.E.] 9 Quando da publicação do livro, os referidos medicamentos já se comprovaram ineficazes como tratamento para a Sars-CoV-2. 10 Cesarino, L. Populismo digital: roteiro inicial para um conceito, a partir de um estudo de caso da campanha eleitoral de 2018, 2018. Disponível em: https://www.news18.com/news/immersive/death-by-whatsapp.html https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_ empoderamento. Por isso, muitas vezes aquilo que circula nos grupos é encarado com mais confiança, incluindo as inúmeras fake news, e compartilhado de forma viral na onda da emoção. Cria- se uma espécie de corrente de compartilhamento que é movida por emoções atiçadas pela natureza provocatória de muitos dos conteúdos, como por exemplo o ódio ao PT ou a qualquer potencial “inimigo do povo brasileiro”, assim como é comumente definido nos grupos. Além disso, a naturalização do uso das mídias sociais mascara um sistema invisível de manipulação. Encontramos os mesmos administradores em muitos grupos e isso pode ser resultado de uma estratégia política, ao invés de um processo de construção espontânea de uma esfera pública. Porém, os usuários acham que o grupo é autêntico e espontâneo, ignorando a existência de uma estrutura superior, invisível, que prepara e direciona determinado conteúdo. Assim, no Whatsapp, é praticada uma estratégia de distribuição de mensagens microdirecionada e profundamente assimétrica, já que é ignorada pela maioria. Dessa forma, a digitalização do populismo de direita potencializa a sua capacidade de influência, direcionando o conteúdo e permitindo que o mecanismo seja replicado por qualquer pessoa da rede, como um verdadeiro exército de propaganda, enquanto o populismo tradicional contava principalmente com o carisma do líder. Em muitos casos, as notícias não possuem a fonte, dificultando a checagem de sua veracidade. Em outros casos, notícias sensacionalistas oriundas de blogsou jornais de direita, como o Jornal da Cidade, provêm de plataformas que possuem um modelo de negócio baseado na propaganda e precisam comercializar a atenção dos usuários para expô-los à propaganda e gerar um maior lucro11. A melhor forma de atrair audiência é através de conteúdos que atiçam emoções extremas como a raiva, o medo e o ódio. Assim opera o capitalismo das emoções, incentivando a produção e a divulgação de conteúdos sensacionalistas, sem nenhum comprometimento jornalístico com os fatos. Se, por um lado, assistimos ao show de desinformação, por outro, estão sendo tomadas medidas que comprometem o acesso à informação por parte da população. Desde a sua eleição, o atual governo age de forma opaca e não transparente e, no dia 23 de março de 2020, aproveitando- se da pandemia, aprovou a medida provisória n° 928, que ameaça a Lei de Acesso à Informação, https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_ de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_ 11 https://theintercept.com/2019/11/19/fake-news-google-blogueiros-antipetistas/ https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_ https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_para_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleitoral_de_2018_manuscrito_ https://theintercept.com/2019/11/19/fake-news-google-blogueiros-antipetistas/ suspendendo os prazos máximos para respostas às consultas. Ou seja, o estado de calamidade pública abre um precedente perigoso que tem a transparência e a informação como principal vítima. Diante desse grave cenário, como se defender da “infodemia” em tempos de COVID-19? Eis a questão. 18 DIGITAIS A TODO CUSTO: AS CONTRADIÇÕES E RISCOS DO SISTEMA ON-LINE Por Fabíola Neves12 e Rafaela Barbosa13 Desde o processo eleitoral de 2019, temos visto o elemento técnico assumir certa centralidade nos discursos da elaboração de novas políticas públicas e no presente contexto, o caráter técnico está diretamente associado à capacidade de coletar, filtrar e analisar dados em grande quantidade através de dispositivos eletrônicos. Assim, o que aqui queremos apresentar é uma breve reflexão sobre o modo como a coleta e o uso de dados tem aparecido dentro do desenvolvimento de políticas públicas de controle da pandemia do COVID-19. Para tal, levamos em consideração interesses do mercado, dos governos estaduais e federal e a contribuição, não consentida, da população para desenvolver a discussão. A partir do arsenal tecnológico disponível para o combate mais efetivo da pandemia do COVID-19, verificamos que há um leque muito amplo e atraente de possibilidades adotadas a partir da utilização de planos tecnológicos, que podem ser exemplificados desde a telemedicina para diagnósticos utilizada pelo SUS à previsão e ao monitoramento de risco de contágio. Através da utilização de grande quantidade de dados, é possível idealizar uma gestão pública inteligente, porém, no que diz respeito às Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC’s), existem sempre muitos interesses em jogo. No trabalho de controle da pandemia via dados, mais da metade dos Estados Brasileiros - 14 dos 27 - aderiram ao uso de ferramentas de geolocalização criadas pelas operadoras de telefonia e/ou por startups de tecnologia como alternativa para a gestão da crise. A geolocalização está sendo realizada através de uma ferramenta muito poderosa e cheia de possibilidades que está nas mãos de bilhões de pessoas ao redor do mundo, os smartphones. Segundo estudos publicados pela FGV, considerando a possibilidade do uso de mais de um celular por habitante, são mais de 220 milhões em uso no Brasil, porém somente cerca de 92% da população está conectada. O smartphone se destaca por sua capacidade de monitoramento, localização e conexão remota com diversos aplicativos instantaneamente, possibilitando a coleta de milhares de dados pessoais. No que diz 12 Doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ 13 Graduando de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ 19 respeito ao setor público, o discurso vigente é o de que acessar dados significaria melhor conhecer os cidadãos e, consequentemente, produzir políticas públicas mais assertivas. Dados fornecidos consensualmente, ou roubados, acerca de nossos deslocamentos na cidade, comportamentos de compra nos mercados e interesses de aprendizagem, poderiam ser usados pelas prefeituras para ofertar mais cursos em áreas nas quais mais pessoas se interessam, por exemplo, como também servem para identificar protestos e bloquear as vias antes que os manifestantes possam reivindicar qualquer questão. A pergunta inicial que aqui nos cabe é, você sabia disto? Talvez não. Mas, seu “não conhecimento” não o torna imune. Governos de diversos países estão adotando medidas tecnológicas baseadas em dados no trabalho de pandemia, no entanto, parece não haver qualquer tipo de excitação ou muita preocupação em como tal uso se dá em termos de seguridade ao direito à privacidade. No Brasil, quatro empresas de telecomunicação (Claro, Vivo, Oi e Tim)15 formalizaram um convênio com os governos estaduais para distribuição de dados de geolocalização sob a justificativa de que tais informações corroborariam com as medidas de isolamento social. Através destes, seria possível identificar e dissipar aglomerações de pessoas, um dos comportamentos de risco que aumenta as possibilidades de contaminação por coronavírus. No entanto, o processo de transferência dos dados aos Estados e sua utilização não são suficientemente transparentes e não garantem a proteção da identidade dos cidadãos. Segundo publicação recente do Estadão16, apesar de todas as medidas de proteção à privacidade, especialistas dizem que não há garantia total do anonimato. A Data Privacy Brasil adotou o termo “pseudo anonimização”17 para descrever a situação e toda sua complexidade, que de forma alguma é mero clichê. Os dados coletados e utilizados podem facilmente ser cruzados com outras informações e atingirem camadas mais “íntimas” das vidas das pessoas. A Coréia do Sul, a Rússia, o Chile e outros países estão utilizando a mesma estratégia tecnológica para o combate à transmissão do COVID-19 e já existem relatos sobre a violação da privacidade em prol de estratégias de ação por parte de gestores públicos e governos. Ao olharmos pela lógica do governo sul-coreano, quando alguém é diagnosticado com o vírus, a vida inteira da pessoa é investigada. O governo utiliza a tecnologia de geolocalização para ter acesso a outras ações particulares do indivíduo, como histórico de uso do cartão de crédito para saber os locais visitados pela pessoa. Pelo GPS do celular, realizam uma linha do tempo indicando todos os lugares pelos quais a pessoa andou revelando que de fato é possível passar do anonimato à exposição. 20 O Chile, país situado em um dos continentes mais desiguais do planeta, a América Latina, lançou o CoronApp, um aplicativo estatal com utilidade limitada e grande coleta de dados. Apenas para o cadastro inicial, o utilitário deve informar dados pessoais proibidos de serem acessados sem consentimento, devido à regulação de proteção de dados vigente no país. São, portanto, informações muito valiosas, pois com elas é possível traçar perfis dos hábitos de todos os usuários através da compilação de dados como o número de praticamente todos os documentos, estado de saúde, locais visitados e ambiente de relacionamento. Não há como afirmar que o anonimato dos dados será garantido e, por isso, a transparência e o direito à privacidade devem ser respeitados e inseridos como necessidade nos planos de ação realizados pelos governos ou até mesmo pelaspróprias empresas que fornecem os dados. Caso a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) já estivesse em vigência, teríamos um parâmetro de garantia à proteção dos dados e dos direitos fundamentais dos utilitários de celulares móveis no Brasil. A vigência da LGPD teria início em agosto de 2020, porém sua implementação poderá ser adiada, neste momento tão oportuno aos cidadãos, para janeiro de 2021. Desta forma, com toda a população focada nos riscos de contaminação e instabilidade política nas instâncias federais, estaduais e municipais, um grande volume de dados tem sido utilizado e muitos outros coletados. Existirá um limite de extração e utilização destas informações? É importante ressaltar que é a iniciativa privada que condensa a maior parte desses dados. Em outubro de 2015, a empresa Facebook lançou um projeto de fornecer internet para alguns países do continente africano, porém, o que a empresa chamou de fornecer internet se efetivou como oferecer acesso à sua rede social. O que o Facebook ganhou com esse projeto milionário? Dados! Informações em grande escala sobre um mercado consumidor pouco explorado pelas gigantes da tecnologia do Vale do Silício. A filósofa norte americana Shoshana Zuboff (2015) discorre acerca de uma nova variante do sistema vigente chamada Capitalismo de Vigilância, no qual a mercadoria mais valiosa são os dados. Através do monitoramento dos comportamentos dos indivíduos, dados são colhidos e vendidos de modo que seja possível, após análise, gerar a melhor descrição possível de quem é cada consumidor e quais mercadorias o interessariam. Em outras palavras, a Netflix não “nos conhece milagrosamente” quando nos indica um filme que parece ter sido feito para nós, ela tem nossos dados. Sem alimentar nenhuma espécie de teoria conspiratória, mas apontando o quanto os dados são valiosos no mercado mundial, grandes empresas de tecnologia estão à procura deles e já condensam grande volume de informações. Exemplo claro é o modo como muitas delas têm fornecido informações em larga escala no período da pandemia. Além do governo de São Paulo que vem monitorando o comportamento dos paulistanos através do uso dos dados das empresas de telecom, a Secretária de Educação do Estado do Rio usa o Google Classroom1421. como sua plataforma de Ensino à Distância (EaD) do período de pandemia. O contexto de pandemia é extremo, nem sempre se tem tempo de criar uma plataforma própria de ensino, por exemplo. Porém, o lugar que as gigantes da tecnologia têm ganhado na gestão pública não pode ser tomado tendo como parâmetro somente o contexto de expansão do COVID-19, porque faz parte de um pacote maior inserido no universo das Cidades Inteligentes. Onde a conexão é tida como um bem em si, a possibilidade de gerar dados sobre vários comportamentos é valiosa e, num período histórico onde uma grande parcela da população mundial vive nas cidades, as Smart Cities passam a ser o projeto com maior valor de troca no mercado de cidades. A contrapartida desse processo, no entanto, é uma relação de interdependência entre as esferas públicas e privadas na tomada de decisões de cunho público. Neste sentido, Morozov (2018) vai dizer que o “Solucionismo Digital” adotado por vários dos governos das cidades e Estados brasileiros, é um conto de fadas à medida que não supera as contradições do sistema, mas amplia as desigualdades. Enquanto a lógica de mercado permite definir o público para uma determinada mercadoria, não havendo qualquer necessidade de generalizações ou universalização, o Estado, por sua vez, deve levar em consideração todos os seus residentes, 14 Disponível em <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/30/alunos-da-rede-estadual-podem-acessar- plataforma-on-line-com-conteudo-de-aulas-a-partir-desta-segunda-feira.ghtml> Acesso em 20 de abril de 2020 expandir as fronteiras da região metropolitana e chegar às zonas rurais mais distantes. A pandemia do coronavírus evidenciou, no entanto, os limites do solucionismo digital, diante de tamanha desigualdade nas infraestruturas e acesso aos serviços digitais. No Estado do Rio, por exemplo, após a instauração do Google Classroom como plataforma a ser utilizada para rede estadual de ensino, várias questões emergiram, dentre as quais o fato de que o uso da plataforma possui uma condicionante: o acesso à internet. Comprar o direito de acesso à plataforma não é a solução, haja vista que o ensino online é apenas para aqueles que têm dispositivos eletrônicos e acesso à internet. À medida que os gestores públicos incorporam o “conto da democracia digital”, empresas ganham um vasto campo de coleta de dados sem que estejam claros os parâmetros democráticos da atuação privada na política pública. A fim de dissolver o conflito, o governo do Estado do Rio anunciou a distribuição de 750 mil chips para os estudantes22 da rede estadual acessarem a plataforma de seus smartphones, isso porque é plenamente presumível que todos os estudantes possuam um. Em outras palavras, o fator conectividade pode ser utilizado para maquiar as desigualdades pré-existentes como, por exemplo, a ausência de infraestrutura básica para o sistema EaD online: os dispositivos eletrônicos. Em âmbito federal, a despeito da desigualdade no acesso à digitalização e incertezas gigantescas quanto ao acesso aos conteúdos por parte dos estudantes da rede pública em meio a pandemia, o governo confirmou a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em 2020, com o anúncio de teste da versão digital da prova23. Não ficam fora desta discussão as unidades de ensino superior. A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em nota24, se posicionou quanto ao modelo EaD, deliberando que as disciplinas que já faziam uso de meios digitais, poderiam continuar com suas atividades. Apesar de não citar quais plataformas tais disciplinas utilizam, a UFRJ não possui um sistema digital composto com salas de aula virtuais, por exemplo, o que nos leva a concluir que tais plataformas são oriundas da iniciativa privada. É necessário ressaltar que as atividades de uma universidade pública não se resumem às aulas, mas grande parte das principais pesquisas do país são realizadas por instituições como a UFRJ. Em última instância, sob a perspectiva da coleta de dados em grande escala, fazer uso de plataformas como o Google Classroom pode significar ceder acesso a dados de pesquisas ainda em andamento, conhecimento de interesse e domínio público a setores que visam o lucro. Digitais a todo custo, ainda que isto nos custe o agravamento de nossas desigualdades sociais ou a violação de nosso direito à privacidade? Não somos tecnofóbicos, nem consideramos ser possível rejeitar completamente o uso de dados na gestão pública. Antes, consideramos que o discurso de proteção e prevenção no período de pandemia via utilização de grande quantidade de dados precisa encarar a complexidade que este formato impõe. A regularização e fiscalização do uso dos dados pessoais, para sua limitação e proteção, aumentariam a efetividade das políticas públicas, porém, como primeiro passo, a transparência deve ser uma espécie de princípio quando lidamos com Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). Segundo Nick Bostrom e Eliezer Yudkowsk (2011), transparência nas informações não é a única característica desejável na utilização de tecnologia, principalmente por órgãos públicos. Também é importante que os algoritmos utilizados nos programas desenvolvidos sejam previsíveis àqueles que os governam e que esses saibam o destino inicial e final dos dados utilizados para que não sejam suscetíveis a manipulação e vigilância. No Brasil, há pouca transparência sobre os termos do convênio entre o governo federal e as quatro empresas de telecomunicações citadas anteriormente e, até a redação deste artigo, havia apenas declarações contraditóriasda Anatel. Sem uma regulação e sem a vigência de uma lei forte de proteção de dados e da privacidade, as ferramentas tecnológicas utilizadas pelos governos podem se voltar contra os cidadãos e contra as políticas públicas. As escolhas de como esses sistemas e programas serão utilizados precisam de muito cuidado, assumindo um comprometimento com a ética e a privacidade de dados da população, além de exigir a inclusão dos gestores públicos como parte do processo de criação dos códigos de programação. Isto porque, percebendo a quantidade de dados que têm sido coletados durante a pandemia, é possível supor um agravamento da dependência de certas políticas públicas dos interesses da iniciativa privada. Qual valor nossos dados terão no mercado após pandemia? Referências BERGMANN, E. Conspiracy and populism: the politics of misinformation. Palgrave Macmillan, 2018. Bostrom, N. e Yudkowsky, E., The ethics of artificial intelligence. In Cambridge Handbook of Artificial Intelligence (org. Keith Frankish and William Ramsey). New York: Cambridge University Press, 2011. MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018. ZUBOFF, S. Big other:Surveillance capitalism and the prospects v.30, n.1, p.75–89, 2015. 25 COMPREENDER O PASSADO PARA ENFRENTAR O PRESENTE E O FUTURO: NOSSOS CORPOS DESESTABILIZAM AS ESTRUTURAS IMPOSTAS Por Joyce Trindade15 O processo de formação da nação brasileira, durante o contínuo holocausto negro e indígena, é marcado pelo extermínio, dominação, coisificação e negação. A tentativa de invisibilização dos corpos negros se apresenta no planejamento da cidade e na massacrante distância das regiões periféricas até os locais de tomada de decisões institucionais, que são ainda mais intensificadas com as estruturas subalternizadas e discriminatórias dos modais de transportes presentes nas capitais. Regiões periféricas mercantilizadas, segregadas e zoneadas com a autorização do Estado. Onde apesar da Constituição e das legislações urbanas preverem que o planejamento da cidade deve promover a democratização entre seus habitantes, notamos que as decisões tomadas em sua estruturação expressam os privilégios das elites – herdeiros das empresas escravistas, que sobretudo, são os principais interlocutores políticos e econômicos. Os processos de negação de direitos fundamentais, violências sofridas pelo descaso do governo e a subalternização dos corpos periféricos são institucionalizados nas raízes históricas que estruturam as capitais e atingem, predominantemente, suas/seus moradoras/es negras/os e empobrecidas/os. A população moradora de favelas no Brasil, em 2010, chegou a cerca de 11,4 milhões de pessoas e, somente no Rio de Janeiro, estavam em cerca de 1,4 milhão (IBGE, 2010). Uma nação de favelados! Soma-se a esse número os “territórios invisíveis”; locais periféricos não mapeados pelo Estado, que tornam-se campos de batalhas no processo de especulação imobiliária. 15 Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ 26 A omissão perpetua as estruturas da invisibilidade, através dos instrumentos privados de acumulação, que são arrojados de forma legal entre agentes econômicos e coalizões políticas. Múltiplos atores, distribuídos nas diversas hierarquias que constituem a vida urbana, disputam posições e recursos, sendo a cidade uma arena e objeto de disputa. Dessa forma, os territórios invisíveis apresentam-se como locais de maior vulnerabilidade, sendo alvos de rupturas nos espaços e dinâmicas sócio-espaciais. Periferia pautando o futuro? A construção do saber e as formas de vivenciar/estruturar os territórios e as bases legais estão intrinsecamente ligadas à imposição da branquitude, estruturando as normas e, consequentemente, a exclusão. Vocacionar novos arranjos sociais e expandir a compreensão legal do direito à terra e dos mecanismos do Estado é um agenciamento libertário e urgente, que se personifica nas ações de diversos movimentos e coletivos periféricos, onde cada vez mais se mostra notória a urgência de pautarmos o nosso futuro a partir da nossa ancestralidade e expertises adquiridas no caos, mas que com o tempo transformaram-se em tecnologias. Não devemos romantizar as favelas e os territórios periféricos, pois são espaços construídos dentro dos processos de dominação e exclusão. Entretanto, também se torna urgente reconhecermos que os mesmos são estruturas contrárias às imposições coloniais. Nações Periféricas que, diante da morte e das lutas contra os espaços marginalizados, estão se organizando – se aquilombando, para viver e revolucionar. Durante 2018, escutamos muitas pessoas afirmarem que “ninguém soltaria a mão de ninguém”. Pessoas de diferentes classes, cores e posicionamentos, convictas que aquele era o momento de criar articulações sociais e políticas da base e para base. Entretanto, querida/o leitora/or, as formas de agenciamento de sobrevivência e resgate de sonhos permanecem sendo consolidadas pelos periféricos e para os periféricos – Ubuntu16. Agenciamentos afrofuturistas de potencialidades e impulsionamento de microtransformações territoriais de intervenções coletivas de moradores locais. Microprocessos de 16 Conceito da filosofia africana, que trata da importância da dinâmica relacional entre as pessoas, segundo o princípio do “ser-com-os-outros” porque “eu sou porque nós somos”. 27 formulações de projetos de incidências sociais, organizacionais e políticas, que no futuro revelam-se em projetos de alcance revolucionários. Antes, éramos somente empregadas domésticas que insistiam na educação de seus filhos, hoje somos jovens doutores e mestres que estão alcançando espaços inimagináveis pelos seus antepassados – microagenciamentos revelando-se em macrotransformações. O nós por nós sendo efetivado na disseminação dos conhecimentos obtidos dentro dos muros universitários, revolucionando o acesso à informação e estruturando modelos de projetos baseados na identificação dos seus corpos como sábios. A insurgência a partir das nossas movimentações, pois nossos corpos desestabilizam as estruturas impostas. Compreender o passado, para enfrentar o presente e impactar o futuro. 28 O CONSELHO DA JUVENTUDE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO COMO FERRAMENTA NO AUXÍLIO DE UMA GESTÃO PARTICIPATIVA E SEUS DESAFIOS Por Ully Sant’ Anna Ribeiro17 Os conselhos de políticas públicas, sendo eles consultivos ou deliberativos, exercem um papel de controle social fundamental e são espaços de construção democrática. Os conselhos constituem um importante instrumento de consolidação da democracia representativa e de controle de políticas públicas, especialmente desde a Constituição de 1988. São instâncias que permitem a manifestação democrática a partir da participação ativa da sociedade no exercício de sua cidadania, nos espaços de representação coletiva, contribuindo para transformações sociais, bem como a realização dos direitos fundamentais18. Tendo em vista a importância da participação social, somada ao cenário de descrédito político instaurado no Brasil a partir das manifestações de 2013, a juventude conquistou alguns marcos nas diferentes instâncias de poder. Em nível municipal, destaca-se o Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro (CJCRJ), instância consultiva de participação social, constituída pelo Decreto-Lei de nº 40694 de 1º de outubro de 2015. Por meio do estudo de caso do CJCRJ, pretende-se exemplificar a importância e necessidade da participação cidadã e a disponibilização de mecanismos para exercê-la. Na sociedade moderna,com uma democracia de tão baixo impacto, com conselhos sendo desmantelados pelo poder público, faz-se essencial que tais ferramentas e mecanismos de controle e pressão social sejam garantidos e legitimados tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil organizada. 17 Graduada em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 18 Barbosa e Cunha. 2018, p.1. Disponível em < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=58845926c9bda650 > Acesso em 3 de janeiro de 2020 Integrar a formação multidisciplinar da gestão pública à prática vivida no Conselho faz emergir a necessidade de compartilhar essa experiência, e este trabalho nasceu a partir da visão e vivência da autora nesses dois contextos, e da pesquisa que resultou em nosso Trabalho de Conclusão de Curso apresentado no curso de Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Portanto, acreditamos que seja uma contribuição significativa para a comemoração dos dez anos do GPDES, já que relatar a construção de um conselho revela a possibilidade da participação social na gestão municipal. O Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro O CJCRJ era um dos projetos alocados e criados no Lab.Rio - Laboratório de Participação da Prefeitura do Rio de Janeiro, vinculado ao gabinete do Prefeito, e que tinha por objetivo promover novas formas de interação e participação social. Segundo Gadotti (2014), participação social se dá nos espaços e mecanismos do controle social, como as conferências, conselhos e ouvidorias, sendo esta uma forma de organização da sociedade civil fundamental para o controle, fiscalização, acompanhamento e implementação das políticas públicas, bem como para estabelecer diálogo e uma relação orgânica entre os governos e sociedades. Para exemplificar o CJCRJ, como um projeto que possibilitou aproximar a sociedade da instância municipal de poder, é importante se atentar ao processo de seleção dos conselheiros-membros e dos critérios envolvidos. As diretrizes do Conselho versavam sobre o formato de composição, pautada na distribuição territorial das cinco Áreas de Planejamento (AP)1929 do município do Rio de Janeiro e na equidade de gênero, ambos critérios fundamentais para garantir um espaço de consulta mais plural e diverso. Ao inserir o critério de distribuição territorial, a Zona Oeste do Rio, - região da cidade que concentra 21 bairros e 48% da população do município -, tornou-se a AP com maior número de conselheiros. Contudo, cabe destacar que este marco somente foi possível por conta de um trabalho anterior de mobilização territorial e social realizado por articuladores nos territórios mais vulneráveis falando sobre o processo aberto. Esta ação de articulação foi essencial para levar para dentro do 19 “Na face da administração municipal, a necessidade de uma divisão setorial para coordenação e planejamento foi atendida em 1981, quando o Rio de Janeiro passou a apresentar sua base estrutural atual. Institui-se, então, a codificação institucional das Áreas de Planejamento, conhecidas por “AP’, das Regiões Administrativas, conhecidas por “RA”, e dos Bairros, tendo sido, pela primeira vez, oficializados os limites dos bairros.” (Rio-Águas, 2012). 30 Conselho e da Prefeitura pessoas com vivências distintas, o que culminou no enriquecimento do projeto fomentado pelas diferentes realidades ali presentes. Para assegurar o objetivo de pluralidade a que se propunha a constituição do Conselho, além da articulação territorial citada acima, houve uma assessoria prestada aos grupos situados em localidades de maior vulnerabilidade social para que tivessem acesso à internet e pudessem efetuar suas inscrições no Conselho, e ainda a realização de uma votação popular online entre os candidatos ao Conselho, com posterior divulgação dos selecionados. Ao buscar envolver e garantir aos conselheiros uma gestão horizontal, propiciando uma rede de troca de experiências ampla, fazendo com que as proposições e preocupações dos membros presentes fossem consideradas no processo decisório, o CJCRJ, pautando-se na Organização Internacional para Participação Pública (IAP²)30, esteve associado ao nível três (envolver) da Escala de Participação da Associação Internacional para Participação Pública. O Conselho tinha por produto final a entrega de pareceres a respeito do Plano Estratégico da Cidade olhando para duas versões: 1) o de 2012/2016 que já estava em vigor e tinha por objetivo entender e questionar todas as metas propostas e o porquê de muitas delas não terem sido cumpridas em sua integralidade, isto por meio de encontros com representantes das secretarias e áreas específicas e 2) o de 2017/2020 Visão Rio 500 – O Rio do Amanhã, que buscava ‘refletir a cidade que desejamos para os próximos 50 anos’ (Paes, Eduardo. 2016). E os conselheiros deveriam assessorar e participar do processo de construção do plano. Os encontros tinham diferentes propósitos, de acordo com a necessidade e pautas a serem abordadas. Existiam os encontros de formação, os para proposição a partir da explanação e ou mentoria de determinada secretaria e outros para regulamentação interna do conselho como elaboração do regimento interno, definição de diretrizes e comunicação, encontros estes que definiram a rotatividade do local da reunião. Tendo em vista que a maior parte dos membros residiam na Zona Oeste do Rio de Janeiro – delimitada pela Área de Planejamento 5 e parte da 4 – não parecia coerente que todas as reuniões ocorressem de forma centralizada no eixo Centro-Zona Sul, buscando assim implementar a prática da justiça territorial como forma de superar as desigualdades socioespaciais. Esta decisão, por vezes, 31 gerou dúvidas acerca da sua sensatez. Entretanto, a aplicação do critério de justiça territorial era capaz de gerar esperança, quando se realizavam reuniões não-esvaziadas em localidades da Zona Oeste, por demonstrar a possibilidade de circular a cidade, realizar eventos importantes sob o ponto de vista político-econômico-social e romper o obstáculo da distância. Tendo em vista que a maior parte dos membros residiam na Zona Oeste do Rio de Janeiro – delimitada pela Área de Planejamento 5 e parte da 4 – não parecia coerente que todas as reuniões ocorressem de forma centralizada no eixo Centro-Zona Sul, buscando assim implementar a prática da justiça territorial como forma de superar as desigualdades socioespaciais. Esta decisão, por vezes, gerou dúvidas acerca da sua sensatez. Entretanto, a aplicação do critério de justiça territorial era capaz de gerar esperança, quando se realizavam reuniões não-esvaziadas em localidades da Zona Oeste, por demonstrar a possibilidade de circular a cidade, realizar eventos importantes sob o ponto de vista político- econômico-social e romper o obstáculo da distância. Após quatro meses e meio de mandato no Conselho da Juventude, o Lab.Rio apresentou uma ‘avaliação trimestral’. Entre os principais pontos que podem ser destacados, observa-se que 33% dos 44 membros que responderam ao questionário acreditavam que o maior valor do Conselho foi propiciar aos demais o conhecimento ou a convivência com pessoas novas e diferentes, conforme quadro abaixo (Quadro 1). Entre os aspectos relacionados aos desconfortos, respondidos de forma aberta e subjetiva no tópico “Análise qualitativa quanto aos desconfortos”, observa-se que das 33 inferências, apenas cinco foram sobre a questão do deslocamento para os encontros. As demais, criticavam a comunicação e organização por parte do Lab.Rio. 32 O importante é iniciar o entendimento de que há a necessidade de mudanças sistêmicas e reformulação do papel do Estado em relação a seus usuários e formas de aproximação dessa população que, ao invés de ser representadae ouvida pela administração pública, acaba excluída dos processos decisórios da cidade. O cidadão precisa ser protagonista, aproximar-se da comunidade em que vive e debater assuntos e demandas regionais a fim de que, a partir do microcosmo, do município, consiga trazer uma nova perspectiva sobre o que é fazer e discutir política. “Aos poucos, membros da sociedade civil entenderam que podem adquirir um papel protagonista nas questões sociais, nas tomadas de decisão e na mudança de mentalidade de sua comunidade” (Carvalho, Isabela. 2014). Como forma de se aproximar da sociedade civil em suas diferentes nuances de atuação e ativismo e também prestar contas do que o Laboratório em si já havia feito e de que forma o Conselho havia atuado em um ano de mandato, o Lab.Rio, junto dos conselheiros, elaborou uma conferência, intitulada ‘Desconferência Hacker’. O prefixo ‘des’ foi utilizado para fugir do padrão dos eventos tradicionais realizados no setor público. 33 Buscou-se uma proposta não-convencional, ao não abarcar palestras, com uma pessoa como detentora do conhecimento reproduzindo para as demais, e sim com diferentes participantes engajados trocando seus saberes teóricos e empíricos, com o objetivo de estimular o debate para apresentar e questionar o que tinha sido produzido pelo Lab.Rio e, principalmente pelo CJCRJ. Os grupos socioeconomicamente vulneráveis são, historicamente, postos em segundo plano no processo de construção e decisão de políticas públicas. Muitas vezes são estigmatizados e vistos de forma pouco humanizada, como carentes de instrução e conhecimento e que não precisam participar desses processos porque nada devem ter a acrescentar. Muitas especulações são feitas e, na prática, pouco espaço é concedido a estes grupos para que mostrem o quão capazes são de se organizar e se autogerir. O CJCRJ, além de representar um esforço no sentido de fomentar a discussão de políticas públicas de diferentes âmbitos pelos jovens e para além das questões diretamente relacionadas à juventude, promoveu, através da diversidade alcançada na seleção dos perfis, revisão do estereótipo de quem discute sobre a política e do lugar de onde se discute política. Colocar a periferia para construir pareceres sobre o planejamento estratégico da cidade do Rio de Janeiro, tendo a possibilidade de fazer isso em reuniões ocorridas em Campo Grande, Padre Miguel, Irajá, Jacarepaguá, Rocinha, Manguinhos é conferir, de forma institucionalizada, importância às opiniões dos diferentes perfis que compõem o município do Rio de Janeiro. Considerações Finais O Conselho permitiu a criação e fortalecimento de redes coletivas e propositivas ao redor da cidade, grupos de trabalho, produção e consolidação artística e acadêmica, e, a partir da rede formada, os ex-membros do Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro deram início ao processo de institucionalização do Conselho, culminando num projeto de lei escrito de forma coletiva e posteriormente articulado para ser apresentado pelo vereador Cesar Maia (vereador reeleito em 2020 pelo Democratas - DEM). Institucionalizar uma política pública é fundamental para que esta não fique ‘refém’ de mandatos e políticos específicos que detenham o poder de extinguir essa política quando não mais a acharem conveniente. Este fato já era sabido por muitos, mas foi fortemente sentido quando em 34 seu primeiro dia de mandato de 2017 o ex-prefeito Marcelo Crivella extinguiu o Lab.Rio e o Conselho. Ambos projetos eram vistos como uma iniciativa inovadora e muito importante para os cidadãos do Rio de Janeiro, inclusive na tentativa de proporcionar maior transparência e prestação de contas do governo municipal. Nesta nova gestão municipal (2021/2024), o prefeito eleito Eduardo Paes (DEM) pretende reativar o Conselho por meio de decreto e posteriormente garantir a aprovação de um projeto de lei de teor similar na Câmara de Vereadores para institucionalizar a política, como mencionado acima. Do lado da sociedade civil, tenta-se ficar contente com o aceno de Paes a rumos mais participativos e progressistas. Contudo, não se deve aguardar que esse processo de garantir mais espaços de participação parta apenas do poder público. Sabendo disso, os movimentos e coletivos estão cada vez mais organizados para cobrar seus lugares nas decisões e condução das políticas públicas para os próximos anos. Acreditamos que a pesquisa contribui para a consolidação dos temas desafiadores para o Campo de Públicas e, em especial, para o GPDES. Vida longa ao nosso curso, na expectativa de que cada vez mais gestores públicos ocupem os espaços de poder e construam, monitorem e avaliem políticas públicas eficientes e participativas! Referências RIBEIRO, Ully. O Conselho da Juventude da Cidade do Rio de Janeiro como ferramenta no auxílio de uma gestão participativa e seus desafios. Rio de Janeiro, p. 84. 2018. BARBOSA e CUNHA. A importância dos conselhos de políticas públicas para a efetivação dos direitos fundamentais e consolidação da democracia. Disponível em < http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=58845926c9bda650 > Acesso em 3 de janeiro de 2020. 35 EDUCAÇÃO POLÍTICA Por Cecília Caiado, Karen Brêda, Lucas Lopes, Maria Julia de Oliveira e Thayane Gondim20 A partir das atividades de extensão “Rodas de Diálogos, Acesso aos Serviços Públicos e Consolidação da Cidadania'', elaboramos o projeto Educação Política com o intuito de esclarecer para um público amplo os poderes, funções e competências municipais2132. As figuras a seguir sintetizam as responsabilidades dos três níveis de governo para a provisão de serviços públicos. 20 Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social 21 Série produzida dentro do projeto de extensão “Rodas de Diálogo, Acesso aos Serviços Públicos e Cidadania” (IPPUR/UFRJ), coordenado pelos professores do IPPUR Lalita Kraus e Deborah Werner, com a colaboração dos Professores Alberto de Oliveira, Renata Bastos e Nathália Azevedo, e em parceria com a Professora Carla Hirt, do Instituto Federal do Rio de Janeiro. 36 Competência Municipal É possível dividir as competências municipais em quatro ações gerais: auto-organização, autogoverno, autolegislação e autoadministração. Conforme a Constituição Federal de 1988, o Município é uma entidade federativa dotada de autonomia para exercer suas competências, as quais estão dispostas abaixo no artigo 30: Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir Distritos, observada a legislação estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual Além do Artigo 30, ressaltam-se ainda os seguintes: Artigo 23, que trata das competências comuns administrativas entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal, incluindo o saneamento básico; Artigo 24, que traz as competências comuns legislativas entre os entes federados; e o Artigo25, referente às questões metropolitanas, ao estabelecer que os Estados têm a competência de instituir, mediante lei complementar, as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Os Artigos 23, 24, 25 e 30 integram o Título II Da Organização do Estado e permitem compreender as competências dos federados e suas implicações na prestação de serviços públicos. A despeito das competências constitucionais, verifica-se que muitos dos serviços são negligenciados, o que compromete a qualidade de vida dos cidadãos. As figuras a seguir ilustram situações cotidianas na cidade do Rio de Janeiro e expressam essa situação: 37 Saneamento Básico As figuras 1, 2 e 3 referem-se a três bairros na cidade do Rio de Janeiro e revelam a precariedade dos serviços de saneamento básico, responsabilidade do ente municipal. Como mencionado anteriormente (Quadro 1), é competência do Município o recolhimento de lixo e realização de atividades de reciclagem. Entretanto, é possível observar que esses serviços 38 acabam se tornando falhos, permitindo acúmulo de lixo nas ruas e com isso comprometendo a limpeza urbana. O saneamento básico impacta diretamente na saúde pública e as negligências verificadas têm como consequência a proliferação de doenças. Vale ressaltar a desigualdade no acesso a diversos serviços a serem prestados pelo poder público: áreas mais afastadas do centro e em localidades de baixa renda são historicamente preteridas quando se verifica espacialmente a oferta e a qualidade dos serviços públicos. Dessa maneira, a população fica mais suscetível a doenças, poluição visual e mau cheiro. Qualidade das Vias A figura 4 evidencia a falta de manutenção das vias públicas na cidade do Rio de Janeiro, o que sugere uma inércia do poder público municipal. Logo, a necessidade de manutenção das ruas pavimentadas é uma forma de garantir um adequado tráfego de pessoas e veículos pelas ruas, proporcionando comodidade e segurança para seus moradores. 39 Mobilidade Urbana e Transporte Público A figura 5, por sua vez, ilustra um dos grandes problemas do cidadão que utiliza meios de transporte público: a superlotação. A garantia do serviço de transporte público é função do Município, além das competências de mobilidade urbana (ex: ciclovias e faixas de ônibus). No entanto, a carência de transportes suficientes para atender toda a demanda e a falta de qualidade e manutenção nos veículos circulantes comprometem essa atividade. Somado a isso, o desprovimento de um bom planejamento de mobilidade urbana também é representado pelas falhas dos poderes municipais em assegurar tais direitos aos cidadãos. Tais problemas vieram a se revelar ainda mais grave no contexto de pandemia de COVID-19. A figura 6, por sua vez, evidencia o agravamento da mobilidade urbana, que se expressa nos longos congestionamentos e podem sugerir como a má sinalização, infraestrutura deficitária das vias, insuficiência de investimentos em transporte coletivos de massa e ausência de políticas de planejamento urbano coordenadas. Sendo a gestão de trânsito uma competência do nível Municipal de modo a promover, coordenar e executar o controle de ações para a preservação do ordenamento e da segurança do trânsito. 40 Problemas na cidade: responsabilidade de quem? Os problemas urbanos são diariamente veiculados na imprensa. Tal informação é importante, pois o amplo conhecimento permite que a população cobre, do poder público, seus direitos. No entanto, são raros os esclarecimentos quanto à competência dos entes federados na cidade. Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro, são frequentes na mídia os problemas no saneamento da região metropolitana, o déficit de vagas em creches, a precarização da saúde e a má qualidade dos transportes públicos. Em linhas gerais, verifica-se a notável interdependência e interseção entre as ações de cada esfera governamental demonstrando, assim, a complexidade na formulação e atuação de políticas públicas, seja para obtenção de recursos, para a execução, monitoramento ou controle. Apesar da existência de mecanismos de participação social, ressalta-se a necessidade de maior disseminação de seu uso pela sociedade, como por exemplo, audiências públicas, conselhos participativos e consultas populares, de modo a fortalecer a participação popular nas decisões que envolvem a vida urbana e a democracia. Referências NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral brasileiro. In: AVELAR, L. e CINTRA, A. O. (orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. 2a ed. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed., 2007, p. 293-301. MATTOS, Alessadro Nicoli de. Três níveis de governo: o que faz o federal, o estadual e o municipal?. Politize. 16 de ago. de 2017. Disponível em: <https://www.politize.com.br/niveis-de-governo-federal-estadual- municipal/>. Acesso: em 2019 UM terço das crianças de 0 a 3 anos mais pobres do Brasil está fora da creche por falta de vaga, diz IBGE. G1. 20 de mai. de 2018 <https://g1.globo.com/educacao/noticia/um-terco-das-criancas-de-0-a-3-anos-mais- pobres-do-brasil-estao-fora-da-creche-por-falta-de-vaga-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 2019 KALLEMBACH, Julia. Funcionários de Clínicas da Família do Rio realizam greve. BandNews FM Rio. 14 de out. de 2019. Disponível em: <http://www.bandnewsfmrio.com.br/editorias-detalhes/funcionarios-de-clinicas-da- familia-do-rio-re>. Acesso em: 2019 https://www.politize.com.br/niveis-de-governo-federal-estadual-municipal/ https://www.politize.com.br/niveis-de-governo-federal-estadual-municipal/ https://g1.globo.com/educacao/noticia/um-terco-das-criancas-de-0-a-3-anos-mais-pobres-do-brasil-estao-fora-da-creche-por-falta-de-vaga-diz-ibge.ghtml https://g1.globo.com/educacao/noticia/um-terco-das-criancas-de-0-a-3-anos-mais-pobres-do-brasil-estao-fora-da-creche-por-falta-de-vaga-diz-ibge.ghtml 41 GESTÃO E FINANCIAMENTO DO SUS E A PANDEMIA DO COVID-19: ENTRE VELHOS E NOVOS DESAFIOS Por Marcos Vinícius Rezende da Silva22 Em meio à pandemia do Covid-19, o Sistema Único de Saúde (SUS) voltou a ocupar posição de destaque na cena pública nacional. Com isso, novamente evidencia-se a necessidade de que ele seja melhor compreendido tendo em vista sua importância na vida de milhões de brasileiros. Nesse sentido, o presente texto visa contribuir para a elucidação dos principais aspectos da gestão, financiamento e organização do SUS, expondo também alguns de seus principais problemas e desafios, em boa medida agravados pelo cenário pandêmico atual. Legado das lutas de movimentos, como o Movimento da Reforma Sanitária, e forjado na Constituição Federal de 1988, o SUS é uma das mais importantes experiências mundiais de instituição de um sistema público e universal de saúde, o único em um país com mais de cem milhões de habitantes. É também considerado uma experiência inovadora sob a égide do federalismo cooperativo (RIBEIRO et al, 2018). Desde que foi concebido, o SUS vem enfrentando problemas crônicos como o subfinanciamento, a fragmentação e a distribuição desigual de recursos – financeiros, humanos, tecnológicos etc. – entre os entes federados, entre outras questões. Agora, depois de passar por uma crise econômica recente e decisões que reforçaram ainda mais a trajetória de seu desmonte e precarização, o sistema se vê diante do desafio imposto pela maior pandemia já vista em mais de um século. A Saúde é parte integrante do Sistema de Seguridade Social brasileiro e, juntamente com a Previdência Social e a Assistência Social, compõe o esforço de provisão de uma rede de proteção para todos os membros da sociedade, conforme estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Direito fundamental dos cidadãos e dever do Estado, a provisão de serviços foi materializada na formação 22 Graduando do curso de Gestão Pública para o DesenvolvimentoEconômico e Social - IPPUR/UFRJ 42 de um sistema público de acesso universal e igualitário, dedicado a atuar na promoção, proteção e recuperação da saúde e orientado pelas seguintes diretrizes constitucionais: descentralização, atendimento integral e participação da comunidade (BRASIL, 1988). O desafio da gestão e financiamento do SUS A governança do SUS é uma das maiores expressões do federalismo brasileiro: sua gestão é feita de forma compartilhada entre União, Estados e Municípios. Apesar de ser esse um aspecto central na gestão do sistema, o Conass (2009) aponta que, com o silêncio da Constituição sobre o tema, restou à Lei n° 8.080 de 1990 – chamada de Lei Orgânica da Saúde – especificar o papel de cada esfera federativa na direção do SUS. Entretanto, o detalhamento feito pela referida lei ainda se mostrou insuficiente. Não tendo tratado a fundo a questão das competências de cada ente, a Lei Orgânica da Saúde delegou essa função às Comissões Intergestores. As Comissões Intergestores foram instituídas pelo artigo 14-A da Lei n° 8.080 de 1990, que as definiu como “foros de negociação e pactuação entre gestores, quanto aos aspectos operacionais do Sistema Único de Saúde (SUS)”. Elas vieram a ser regulamentadas pelo Decreto n° 7.508, de 2011. São três os tipos de Comissões Intergestores no âmbito do SUS: a Comissão Intergestores Tripartite (CIT), a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) e a Comissão Intergestores Regional (CIR). A primeira é composta por gestores da esfera federal e das esferas estaduais e municipais; a segunda reúne gestores estaduais e municipais no âmbito de cada estado; e a terceira, congrega gestores estaduais e dos municípios que constituem determinada região dentro dos estados. Além das Comissões Intergestores, foram instituídos também os Conselhos de Gestores. Estes representam os interesses dos gestores de cada esfera nas matérias relativas à saúde. Em âmbito federal, há o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e em âmbito estadual, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems). São esses conselhos que definem parte dos membros das Comissões Intergestores. A CIB tem metade de seus membros escolhidos pelo Secretário Estadual de Saúde, enquanto a outra metade é escolhida pelo Cosems. Já a CIT tem um terço de membros escolhidos pelo Ministro da Saúde, um terço pelo Conass e um terço pelo Conasems. Esse arranjo põe em evidência a condição de um sistema em constante pactuação por uma ampla rede de agentes com interesses frequentemente distintos. A disputa por recursos tem potencial de relegar a cooperação 43 ao segundo plano, provocando ampla desarticulação entre os nós constitutivos do SUS e até mesmo o aprofundamento das desigualdades na provisão dos serviços. Isso tende a ser agravado em contextos de escassez de recursos, com o que a mediação das relações interfederativas – e também as público-privadas – se mostra ausente ou precária. Torna-se nítido, assim, o desafio da gestão compartilhada do SUS, especialmente considerando sua magnitude e complexidade. No que se refere à estrutura de financiamento, a União concentra não só a maior capacidade financeira para operacionalizar o sistema de saúde, como também pode exercer interposições que afetam a capacidade fiscal dos entes subnacionais. Diversos dispositivos legais aprovados em âmbito federal, além da própria política macroeconômica adotada, provocam efeitos nos cofres dos estados e municípios – como apontado, dentre outros, por Arretche (2010). Uma política de redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), por exemplo, provocará repercussões no caixa subnacional via transferências aos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (FPE e FPM, respectivamente), cuja composição se refere, em parte, ao total arrecadado com o IPI. Lima (2007) põe em destaque a dimensão do problema gerado por essas questões quando mostra que cerca de 80% das receitas finais dos municípios originam-se de transferências interfederativas, das quais 50% provêm da União e 30% dos Estados. Apesar da situação adversa em termos de capacidades fiscais dos entes subnacionais, estes têm aumentado sua participação no financiamento da rede pública de saúde desde 2004, de modo que, em 2013, já eram responsáveis por 57,41% do total de recursos aplicados na área (CONASS, 2015). A Lei Complementar n° 141 de 2012 definiu percentuais mínimos de alocação de recursos financeiros em saúde. Para a União, ficou estabelecida a necessidade de aplicar “anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, apurado nos termos desta Lei Complementar, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual” (BRASIL, 2012). Em relação aos estados e municípios, a aplicação mínima definida foi de, respectivamente, 12% e 15% dos recursos provenientes de arrecadação de impostos e transferências. 44 Em um contexto de crise econômica, no qual as capacidades fiscais-financeiras dos entes subnacionais tendem a ser (ainda mais) deterioradas, determinadas decisões tomadas na esfera política podem tornar ainda mais complexo o problema. Foi o que aconteceu, em 2016, com a aprovação da Emenda Constitucional n° 95, que, ainda na esteira do impacto da severa crise econômica de 2015, estabeleceu um teto para os gastos da União, provocando repercussões no financiamento público da saúde. A referida emenda estabeleceu que, nas duas décadas subsequentes ao ano de 2018, os gastos públicos estariam limitados ao montante do ano anterior, corrigido apenas pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Com a latência dos prejuízos advindos dessa iniciativa e a emergência da pandemia do Covid- 19, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) pediu, recentemente, a revogação da emenda, citando um estudo apresentado em sua Comissão de Orçamento e Financiamento (Cofin). O relatório mostra que o prejuízo ao SUS já chega a R$20 bilhões desde que a E.C. 95/2016 entrou em vigor, valor que representará cerca de R$400 bilhões ao longo de suas duas décadas de vigência (CNS, 2020). Organização do SUS e infraestrutura de saúde O SUS está territorialmente organizado na forma de regiões de saúde, definidas pelo Decreto n° 7.508 de 2011 como “espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde” (BRASIL, 2011). No caso do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, foram construídas nove regiões de saúde, são elas: Baía da Ilha Grande, Baixada Litorânea, Centro-Sul, Médio Paraíba, Metropolitana I, Metropolitana II, Noroeste, Norte e Serrana. O Decreto n° 7.508 de 2011 determina, ainda, que cada região de saúde deve ter no mínimo cinco tipos de ações e serviços, sendo eles: (1) atenção primária; (2) urgência e emergência; (3) atenção psicossocial; (4) atenção ambulatorial especializada e hospitalar; e (5) vigilância em saúde. No âmbito de cada região de saúde, há uma Rede de Atenção à Saúde, definida pela Portaria nº 4.279 de 2010 do Ministério da Saúde como “arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, 45 logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado” (BRASIL, 2010). Essa rede se estrutura a partir da Atenção Primária à Saúde e, segundo Oliveira (2016), possui cinco elementos fundamentais: centro de comunicação (Atenção Primáriaà Saúde); pontos de atenção (secundária e terciária); sistemas de apoio (diagnóstico e terapêutico, de assistência farmacêutica, de teleassistência e de informação em saúde); sistemas logísticos (registro eletrônico em saúde, prontuário clínico, sistemas de acesso regulado à atenção e sistemas de transporte em saúde); e sistema de governança (da rede de atenção à saúde (grifos do original) (OLIVEIRA, 2016). Essa estruturação torna evidente a necessidade de diálogo e planejamento conjunto entre os municípios e destes com os governos estadual e federal, visto que os serviços e ações ofertados em seus territórios fazem parte de uma rede mais ampla, devendo levar em conta não só o atendimento aos seus munícipes, como também à população de toda a região de saúde. A ausência de condições locais para a oferta de determinadas ações e serviços – especialmente tratamentos em determinadas especialidades médicas e de alta complexidade, por exemplo – ou mesmo a insuficiência de leitos hospitalares, podem ser atenuadas com oferta em municípios adjacentes integrantes da mesma rede de saúde. Essa lógica, porém, impõe a necessidade de deslocamentos intermunicipais para que os usuários possam usufruir dessas ações e serviços não prestados em seus municípios. E, dessa forma, o custo que isso gera ao usuário também deve ser levado em consideração pelos governos, mais ainda em contexto de pandemia. O caso do leste metropolitano fluminense Na Região Metropolitana II do Rio de Janeiro – formada pelos municípios de Itaboraí, Maricá, Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá –, segundo dados (de abril de 2020) do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), há um total de 2.623 leitos de internação hospitalar do SUS. Entretanto, não há uma relação direta entre o número de leitos de internação hospitalar do SUS em cada município e o tamanho populacional. Apesar de São Gonçalo ser o município mais populoso da região, com pouco mais de 1 milhão de habitantes (estimativa do IBGE referente a 2019), ele tem 883 desses leitos, enquanto Niterói, com cerca 500 mil habitantes (estimativa do IBGE referente a 2019), tem 978. 46 Niterói e São Gonçalo são os municípios com maior infraestrutura de saúde e estão, constantemente, recebendo pacientes de outros municípios. Aliás, vale destacar também que dos seis hospitais públicos especializados da Região Metropolitana II, cinco estão em Niterói, evidenciando-se aí uma notável concentração dos serviços ofertados no território. Esse aspecto dá indicativos quanto aos fluxos intermunicipais para a utilização dos serviços públicos de saúde na Região Metropolitana II. E, considerando a atual restrição à circulação de pessoas imposta pela pandemia do Covid-19, sobretudo no município de Niterói, essa questão torna- se ainda mais relevante, uma vez que não se pode prejudicar as pessoas que necessitam de atendimento/tratamento nessa localidade. O desafio enfrentado pelo SUS, atualmente, conjuga uma série de fatores estruturais – que já tornam bastante complexa a gestão do sistema – com uma conjuntura crítica provocada pela crise pandêmica. E isso, cabe lembrar, pouco tempo depois da adoção de medidas que limitam os gastos federais em saúde. Nosso sistema de saúde, único aqui e no mundo, tem agora mais uma vez seus limites testados nessa nova luta imposta após anos de desmonte e precarização. Os resultados desse novo desafio, que provocou o colapso de sistemas de saúde de países como a Itália e a Espanha, ainda estão se desenrolando, e esperamos que ao menos tenhamos como legado um aprendizado que estimule a construção de um futuro melhor, no qual o SUS seja mais valorizado e fortalecido. Referências ARRETCHE, Marta. Federalismo e igualdade territorial: uma contradição em termos? DADOS, Rio de Janeiro, v. 53, n. 3, p. 587-620, 2010. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. SUS 20 anos. Brasília: CONASS, 2009. 282 p. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Gestão do SUS. Brasília: CONASS, 2015. 133 p. Disponível em: <https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/A-GESTAO-DO-SUS.pdf>. Acesso em: 20 set. 2019 BRASIL. Presidência da República. Lei complementar n. 141, 13-01-2012. Regulamenta o §3° do art. 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; estabelece os critérios de rateio dos recursos de transferências para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas 3 (três) esferas de governo; revoga dispositivos das Leis nos 8.080, de 19 de setembro de 1990, e 8.689, de 27 de julho de 1993; e dá outras providências. Lex. Brasília, DF: 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm>. Acesso em: 20 set. 2019. https://www.conass.org.br/biblioteca/pdf/A-GESTAO-DO-SUS.pdf%3e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm%3e. 47 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20 set. 2019. BRASIL. Portaria nº 4.279, 30-12-2010. Estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Lex. Ministério da Saúde, Brasília, DF, 2010. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html >. Acesso em: set. 2019. BRASIL. Decreto nº 7.508, 20-06-2011. Regulamenta a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Lex. Presidência da República, Brasília, DF, 28 jun. 2011. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7508.htm>. Acesso em: set. 2019. CNS. NOTA PÚBLICA: CNS reivindica revogação imediata de emenda que retirou verba do SUS, prejudicando enfrentamento ao Coronavírus. Conselho Nacional de Saúde, Brasília, DF, 14 mar. 2020. Disponível em: <https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1064-nota-publica-cns-reivindica-revoga LIMA, L. D. Conexões entre o federalismo fiscal e o financiamento da política de saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.12, n.2, abr. 2007. OLIVEIRA, N. R. C. Redes de Atenção à Saúde: a atenção à saúde organizada em redes. São Luís: EDUFMA, 2016, 57 p. PIMENTEL, V. et al. Sistema de saúde brasileiro: gestão, institucionalidade e financiamento. BNDES Setorial, v.46, p. 7-77, 2017. RIBEIRO J. M. et al. Federalismo e políticas de saúde no Brasil: características institucionais e desigualdades regionais. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, jun. 2018. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm%3e. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2010/prt4279_30_12_2010.html http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Decreto/D7508.htm%3e. https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1064-nota-publica-cns-reivindica-revogacao-imediata-de-emenda-que-retirou-verba-do-sus-prejudicando-enfrentamento-ao-coronavirus 48 COVID-19: REFLEXÃO SOBRE O IMPACTO DO TRABALHO INFANTIL E A EVASÃO ESCOLAR Mayara Pinheiro23 A questão da educação, no Brasil, é uma das principais pautas de discussão para estudiosos, frentes políticas e sociedade. Um dos maiores desafios que a abrange é conter a evasão escolar, problema agravado diante do cenário de crise sanitária mundial vivido em 2020. O contexto socioeconômico do país também impacta diretamente na educação, através de diversas perspectivas: uma delas sendo a evasão escolar como consequência da exploração do trabalho infantil, face à expressiva vulnerabilidade das famílias. OArt. 403 da Lei 10.097/2000 deixa claro que é proibido estabelecer qualquer relação de trabalho com pessoas menores de dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. O parágrafo único do artigo diz que "o trabalho do adolescente não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horário e locais que não permitam a frequência à escola”. Infelizmente, essa não é a realidade de muitas crianças e jovens que se submetem a trabalhos em condições ilegais para sobreviver, principalmente, em regiões agrárias. O Brasil está comprometido, desde 2015, com a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, que tem como um de seus objetivos erradicar o trabalho forçado e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil (Objetivo 8.7). Contudo, a expectativa não é otimista, não somente pela situação de crise da pandemia do coronavírus, mas também pelo desdém com que muitos de nossos governantes tratam a causa, a contar do Presidente da República. No começo de 2020, muitas cidades no país adotaram medidas de quarentena e lockdown com o objetivo de conter a disseminação do vírus. Com isso, além do fechamento de todos os estabelecimentos considerados não essenciais, diversas escolas e universidades também adotaram “férias antecipadas” para evitar o risco de contaminação. As grandes consequências dessas medidas são as demissões em massa e a onda de falência de estabelecimentos por todo o Brasil. Diante do cenário de desemprego e com crianças e adolescentes em casa, a luta contra o trabalho infantil ganha 23 Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ 49 novos obstáculos. Por conta da pandemia e suas implicações, há uma perspectiva de aumento dos índices de exploração do trabalho infantil no país. Posto que muitas famílias perderam suas fontes de rendimento, colocar os mais novos para trabalhar torna-se uma “opção” na luta contra a fome. Antes mesmo da pandemia, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) mostravam que havia, em 2016, um contingente de 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil, número que pode ser ainda maior por conta de atividades nunca denunciadas ou contabilizadas. Além da problemática do aumento nos casos de exploração no contexto de COVID-19, há de se pensar, no pós-pandemia, políticas voltadas a toda uma geração de jovens que sairão prejudicados deste momento. A forte crise econômica com altas taxas de desemprego, que vinha caracterizando o país nos anos que antecederam a pandemia,, inclina-se a persistir, em um cenário desfavorável para a população em situação de vulnerabilidade econômica e social. Visto isso, pode-se pensar que, mesmo com o retorno das aulas, ainda haverá um percentual de alunos que - por conta da situação financeira familiar ou até mesmo pelo desinteresse - não irão voltar para a escola, somando-se aos jovens que já estavam fora do ambiente de aprendizado antes da pandemia. Trata-se, portanto, de situação estarrecedora, mas previsível, que requer dos cidadãos e gestores públicos reflexões e encaminhamentos capazes de mudar essa expectativa. 50 PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL Por Lorena Alves Nogueira Costa24 A pandemia do coronavírus colocou em evidência o papel indiscutível da água enquanto bem essencial à manutenção de uma vida digna e, para além disto, trouxe ao foco a urgência da universalização do acesso à água e da coleta e tratamento de esgoto como questões de saúde pública, bem como elementos primordiais para a redução de desigualdades. Em decorrência do déficit no acesso ao saneamento básico no Brasil ainda ser elevado, o debate em torno da prestação do serviço está cada vez mais em voga. A principal questão, todavia, é a maneira como tal debate tem sido construído, delimitando-se de modo a incentivar a participação privada no setor, delegando a empresas operadas pela lógica mercadológica do lucro a efetivação do direito humano de acesso a água e esgoto de maneira igualitária. Sob o argumento de garantir a meta de universalização do saneamento básico nos próximos 13 anos e de promover melhorias nos serviços, o chamado “Novo Marco Legal do Saneamento” foi sancionado pela lei n° 14.026, de 15 de julho de 2020. A nova lei federal altera trechos do então marco regulatório (Lei n° 11.445/2007), trazendo como principal mudança o fim da prerrogativa de utilização da modalidade de Contrato de Programas. Este, por sua vez, constituía-se como instrumento jurídico que permitia aos municípios, detentores da titularidade dos serviços de saneamento, a celebração de contratos de concessão com companhias estaduais diretamente, por meio de dispensa de licitação. Ao exigir que sejam realizadas licitações para a concessão dos serviços de saneamento, o marco abre espaço para que mais empresas privadas assumam a prestação destes serviços. Um dos principais pontos na defesa da instauração da obrigatoriedade de licitação é o de estímulo à competição, e, desta forma, de maior garantia à plena eficiência. No que tange a este aspecto, cabe ressaltar que o saneamento básico é um monopólio natural. A expansão e manutenção da rede de esgoto e abastecimento de água é um investimento de alto nível, com longo prazo de maturação, e, portanto, naturalmente é um serviço que deve ter um único prestador em um 24 Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ 51 determinado território. Desta maneira, a defesa pela concorrência na prestação destes serviços não significa diversificação de prestadores no atendimento a uma determinada população, mas sim, na prática, pelo direito de gerir por 35 anos um serviço tão fundamental à população, limitando-se ao curto trâmite licitatório, sem que haja garantias reais de que este serviço será efetivamente operacionalizado da forma mais eficiente. No estado do Rio de Janeiro, concomitantemente ao debate regulatório federal, há a tramitação do processo de concessão dos serviços de abastecimento e água e tratamento de esgoto, atualmente sob a gestão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). A necessidade de concessão da CEDAE, que hoje é responsável pelo abastecimento de água de 64 dos 92 municípios fluminenses, surge a partir da utilização desta pelo governo estadual como garantia para o ingresso no Regime de Recuperação Fiscal da União, mas está intrinsecamente ligado ao mesmo processo de estímulo à privatização de todo o setor que pauta as agendas das últimas gestões do governo federal. Coube ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a modulação da proposta, que divide o estado em quatro blocos de concessão, unindo partes dos municípios às Regiões Administrativas da Capital, a fim de garantir que municípios menos rentáveis, que provavelmente teriam menor interesse econômico à companhias privadas, sejam atendidos de maneira igualitária quando em comparação às regiões mais lucrativas de seu bloco. Contudo, não fica claro neste modelo se ocorrerá a garantia do acesso a famílias que vivem em comunidades e assentamentos irregulares em todos os municípios do Rio. Neste molde, caberá às concessionárias vencedoras efetivar a distribuição da água e a coleta e tratamento do esgoto, mantendo-se como responsabilidade da CEDAE a captação e tratamento da água. Este modelo vem sendo amplamente criticado, não apenas por algumas questões técnicas, mas principalmente pela falta de participação popular em sua construção e pelo fornecimento de brechas na garantia da manutenção de valores tarifários justos e da efetivação da meta de universalização, bem como no que se refere ao atendimento qualificado para as populações mais carentes. Em um contrato,onde o objetivo final é o lucro, o reequilíbrio financeiro às custas do sacrifício da manutenção dessas promessas é inevitável. 52 Por fim, é primordial a análise atenta aos problemas enfrentados pela CEDAE nos últimos anos. Todavia, é importante ter em vista que trata-se de uma empresa pública estratégica, e que, embora em meio a um processo de sucateamento, se mantém lucrativa (com lucro anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, em 2019) e possui a prerrogativa de operar sob a fiscalização e regulação de todo o aparato estatal. Se a Administração Pública, hoje, “abre as portas” do setor de saneamento às companhias privadas num momento em que a tendência internacional é, justamente, a de remunicipalização destes serviços, é fundamental que este processo ao menos seja tratado sob uma ótica mais profunda, onde sejam analisadas todas as especificidades e pontos sensíveis inerentes ao tema. Tema este que deve ser tratado também como essencial para a manutenção da garantia da cidadania, e que precisa ser, portanto, próximo e aberto à participação popular. Referências AGB Rio. A CEDAE e a crise da água no Rio de Janeiro. In: AGB Rio Convida. Rio de Janeiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vx4y1w5M1Ys&t=534s. KISHIMOTO, S.; LOBINA, E.; PETITJEAN, O. Here to stay: water remunicipalisation as a global trending. TNI, PSIRU and the Multinational Observatory, Amsterdã/Paris/Londres, 2014. Disponível em: https://www.world- psi.org/en/here-stay-water-remunicipalisation-global-trend. TAVARES, V. Passando a Boiada no Saneamento. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/passando-a-boiada-do- saneamento. https://www.youtube.com/watch?v=vx4y1w5M1Ys&t=534s https://www.world-psi.org/en/here-stay-water-remunicipalisation-global-trend https://www.world-psi.org/en/here-stay-water-remunicipalisation-global-trend http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/passando-a-boiada-do-saneamento http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/passando-a-boiada-do-saneamento 53 DO DESALENTO À BUSCA POR NOVOS CAMINHOS Por Deborah Werner25 e Clarice Rocha26 Nada será como antes… amanhã ou depois de amanhã” (Milton Nascimento) “Pede perdão pela duração dessa temporada...” (Chico Buarque) O advento do coronavírus expôs ao mundo algo até pouco tempo atrás considerado ultrapassado pelo mainstream econômico: a importância dos Estados nacionais, o papel das políticas públicas e a falácia da ofensiva neoliberal como caminho para o bem-estar e alcance das potencialidades dos indivíduos e sociedades. No caso brasileiro, vínhamos de uma trajetória de retrocessos: cortes orçamentários em gastos primários (aqueles não relacionados ao pagamento da dívida), como saúde e educação, sobretudo com a Emenda Constitucional 9527; reforma trabalhista e previdenciária, que significaram perdas de direitos históricos da classe trabalhadora brasileira28; ode ao empreendedorismo como solução ao desemprego elevado, sob a ideologia do mérito e do esforço próprio como superação das adversidades; cortes no Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família29; retrocesso no programa habitacional Minha Casa Minha Vida30 desmonte da política de universalização do Ensino 25 Professora Adjunta do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ 26 Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -IPPUR/UFRJ 27 A Emenda Constitucional 95, ou “do Teto dos Gastos Públicos”, aprovada em 2016 durante o governo Temer, instituiu o Novo Regime Fiscal, congelando os gastos públicos por 20 anos. Assim, tanto as despesas quanto os investimentos públicos ficariam limitados aquilo ao estabelecido no ano anterior, corrigidos pela inflação por meio do Índice Nacional de Preços. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm> 28 A Reforma Trabalhista prevê a possibilidade de acordos entre patrões e empregados, além de determinar a não obrigatoriedade de pagamento do salário mínimo na remuneração por produção, a possibilidade de mulheres grávidas trabalharem em ambientes insalubres, dentre outras medidas que representam um retrocesso na Consolidação dos Direitos Trabalhistas. Já a Reforma Previdenciária, por sua vez, tem como principal proposta a implementação de um sistema de capitalização como resposta ao suposto déficit de arrecadação (G1, 28/04/2017 . Disponível em: <Veja principais pontos das reformas trabalhista e da Previdência> 29 Congresso em Foco, 04/03/2020. Disponível em: <Com crise e cortes no Bolsa Família, 3 milhões entraram na extrema pobreza 30 Brasil de Fato, 03/09/2019. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/09/03/governo-bolsonaro-corta- rdollar-19-bilhao-do-minha-casa-minha-vida-para-2020 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc95.htm https://g1.globo.com/politica/noticia/veja-principais-pontos-das-reformas-trabalhista-e-da-previdencia.ghtml https://g1.globo.com/politica/noticia/veja-principais-pontos-das-reformas-trabalhista-e-da-previdencia.ghtml https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/com-crise-e-cortes-no-bolsa-familia-3-milhoes-entraram-na-extrema-pobreza/ https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/com-crise-e-cortes-no-bolsa-familia-3-milhoes-entraram-na-extrema-pobreza/ https://www.brasildefato.com.br/2019/09/03/governo-bolsonaro-corta-rdollar-19-bilhao-do-minha-casa-minha-vida-para-2020 https://www.brasildefato.com.br/2019/09/03/governo-bolsonaro-corta-rdollar-19-bilhao-do-minha-casa-minha-vida-para-2020 54 Superior31; entre outras ações que ameaçam não apenas avanços de governos anteriores, mas colocam em questão o pacto societário da Constituição de 1988. Tal quadro, analisado sob uma perspectiva mais ampla, nos revela as limitações políticas das conquistas econômicas e sociais testemunhadas entre 2003 e 2014. Os retrocessos, em curso desde 2015 e que remetem ao segundo governo de Dilma Rousseff32, foram recrudescidos a partir do golpe civil-judiciário-parlamentar-midiático que culminou no processo de impeachment33. A isso se soma o histórico de neoliberalização da economia, inaugurado nos anos de 1990 e que levou ao processo de desindustrialização, de reprimarização da pauta exportadora e a constrangimentos fiscais e de ação do Estado, expressos em instrumentos normativos como a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Desvinculação das Receitas na União (DRU)34. A tendência neoliberalizante foi apenas amenizada, mas não rompida, durante os anos Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) - em decorrência da manutenção das taxas de juros elevadas e câmbio valorizado na maior parte do período e das amarras fiscais para a universalização de bens e serviços públicos. A crise econômica e o desemprego expuseram a fragilidade das políticas macroeconômicas adotadas e, somadas às questões estruturais como a regressividade da estrutura tributária e especialização produtiva, colocam em questionamento os anos de crescimento econômico e geração de emprego e renda. O rumo tomado após 2016 foi o de aprofundamento da pauta neoliberal e de desmonte das políticas públicas. A novidade foi que ele foi forjado, embutido e ocultado no discurso violento, reacionário, anti-ambientalista, terraplanista, avesso à Ciência e à Política, do Presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), eleito em 2018. Prenhe, portanto, de repulsa a mínimos princípios civilizatórios. Suas falas, de virulência crescente, tiveram grande ressonância na sociedade, e tornava quase impossível, dada a inércia da imprensa, do Legislativo e do Judiciário, uma contraposição por parte das forças progressistas, levando ao aprofundamento dos retrocessos valorativos na sociedade 31 Brasil de Fato, 01/08/2019. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2019/08/01/future-se-nao-garante-que-havera-gratuidade-da-educacao-superior-diz-reitor-da-ufabc 32 El País, 27/09/2014. Disponível em: <Dilma anuncia nova equipe para retomar o crescimento econômico> 33 G1, 01/06/2016. Disponível em: <Perícia conclui que Dilma não teve participação nas 'pedaladas fiscais'> 34 Sobre Desvinculação das Receitas da União DRU — Senado Notícias https://www.brasildefato.com.br/2019/08/01/future-se-nao-garante-que-havera-gratuidade-da-educacao-superior-diz-reitor-da-ufabc https://www.brasildefato.com.br/2019/08/01/future-se-nao-garante-que-havera-gratuidade-da-educacao-superior-diz-reitor-da-ufabc https://brasil.elpais.com/brasil/2014/11/27/politica/1417109092_975150.html http://g1.globo.com/hora1/noticia/2016/06/pericia-conclui-que-dilma-nao-teve-participacao-nas-pedaladas-fiscais.html https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/dru 55 brasileira. Qualquer voz dissonante era execrada. Foi assim ao longo do processo eleitoral. Continuou sendo em seu primeiro ano de governo. Até a pandemia COVID-19. A inércia em propor medidas de contenção da pandemia, a recusa em aderir aos protocolos internacionais e do próprio Ministério da Saúde para prevenção contra a proliferação da doença, a ela referindo-se como uma “gripezinha” em discursos oficiais e a intenção de realizar a campanha publicitária #oBrasilnãopodeparar35 expôs o caráter vacilante do Presidente. Soma-se a esses episódios a recusa em implementar, com a devida rapidez, a Renda Básica Emergencial, que ganhou unanimidade entre economistas e políticos de distintos partidos e correntes ideológicas como sendo o enfrentamento mais adequado, em termos das classes sociais desfavorecidas, às consequências econômicas do COVID-19. É crescente a percepção da necessidade do Executivo federal mudar os rumos econômicos e políticos para enfrentar a pandemia. A resistência, por sua vez, tem permitido amalgamar amplos setores da sociedade em torno de propostas alternativas, assim como enunciar as contradições que fazem com que estejamos entre as 10 maiores economias do mundo, ao passo que sustentamos níveis aviltantes de desigualdade, determinadas, entre outros fatores, pela concentração de renda e interdição do acesso universal da população aos serviços públicos (Souza, 2015). Trata-se, portanto, de uma chance histórica de reverter a tendência uníssona do discurso reacionário e fascista que assola o país, desnudar a retórica neoliberal e romper com os descaminhos anteriormente tomados, na busca por tornar a sociedade brasileira mais justa e menos desigual. Histórico da Renda Básica no Brasil Na década de 1990, sob o contexto de direitos sociais assegurados pela Constituição Federal de 1988, as discussões sobre renda mínima foram inseridas na agenda parlamentar brasileira por meio de um projeto de lei do Senador Eduardo Suplicy (PT/São Paulo), cuja proposta inicial se referia à implementação de um imposto de renda negativo. A despeito da aprovação inicial pelo Senado Federal, em 1991, o projeto remetido à Câmara dos Deputados nunca foi votado (Britto, 2010). 35 Conjur, 31/03/2020. Disponível em: Em liminar, ministro Barroso proíbe campanha “O Brasil não pode parar” https://www.conjur.com.br/2020-mar-31/liminar-barroso-proibe-campanha-brasil-nao-parar 56 A partir da década de 1990, teve início a implementação do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Constituição e pago a idosos e deficientes pobres, incapacitados para a vida independente e para o trabalho. Por outro lado, era crescente a adesão de políticos e acadêmicos à ideia de se vincular a proposta de renda mínima à escolarização de crianças das famílias beneficiárias, de modo a articular uma política de curto prazo, a de transferência de renda, aos objetivos estruturais de longo prazo, os quais seriam romper com os ciclos viciosos de transmissão de pobreza geracional e aumentar o capital humano das gerações futuras. Tal formato serviria de referência para os primeiros programas de transferência de renda adotados, primordialmente, por governos locais. Entre 1995 e 1996, o tema ganha espaço no âmbito do Poder Legislativo, a partir da criação de novos projetos de lei com o objetivo de instituir programas de transferência de renda em uma abrangência nacional, sempre associados a políticas de incentivo à educação No ano de 1997, a proposta da Renda Básica se transformou em um programa governamental, denominado Programa de Garantia de Renda Mínima Vinculada à Educação (PGRM). O projeto foi aprovado, limitando-se a conceder apoio financeiro aos programas de renda mínima ligados à educação municipal. No entanto, apenas os municípios que tivessem uma receita tributária e renda per capita inferiores às médias estaduais poderiam fazer parte do programa, além da exigência de que os estados entrassem com 50% dos recursos aportados pelo Governo Federal. Essas características foram responsáveis por inviabilizar a participação da maior parte dos municípios do país, tendo sido registrados, no ano de 1999, a adesão de cerca de 150 prefeituras, em contraposição à meta de 1.254 municípios. Concomitantemente, diversos programas de assistência social foram implementados no cenário nacional, à exemplo do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), condicionado à frequência escolar; o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza; o Programa Nacional de Bolsa Escola (PNBE); o Bolsa Alimentação, cuja condicionalidade se referia às atividades de saúde preventiva; entre outros. Em 2001, o Senador Suplicy retoma o debate da Renda Básica em perspectiva irrestrita, universal e incondicional, a partir da apresentação de um novo projeto de lei ao Congresso. Suplicy afirmava que a implementação de uma renda básica universal seria uma opção mais vantajosa para a população economicamente vulnerável do que imposto de renda negativo previsto na proposta anterior, uma vez que: i) permitiria maior cobertura da população-alvo; ii) inexistiria o estigma sobre 57 os beneficiários ou intrusividade do Estado para a verificação de meios dos cidadãos e; iii) inexistiria desincentivos ao trabalho, que poderiam ser causados com políticas focalizadas a partir do critério de renda. Em 2002, após a eleição do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) (2003-2010), o projeto, readequado às regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), foi aprovado por unanimidade pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Estabeleceu-se que a abrangência total da Renda Básica seria atingida em etapas, atendendo primeiramente às camadas da população que mais necessitavam da transferência de renda. No ano de 2003, na Câmara dos Deputados, o Projeto foi aprovado na íntegra pelas Comissões de Finanças e Tributação e de Constituição, Justiça e de Cidadania. Naquele mesmo ano, foi criado por Medida Provisória outro programa de transferência de renda: o Programa Nacional de Acesso à Alimentação. O modelo de transferência de renda, seja com base na renda básica, seja com base em transferência de renda com condicionalidades, se consolidava, portanto, como opção predominante nos meios acadêmicos e políticos. Ao final do ano de 2003, diversos desses programas, fragmentados e superpostos, já constavam nas esferas governamentais, o que gerou o reconhecimento da necessidade de unificação. Com a sanção da Lei da Renda Básica de Cidadania (Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004) e a criação do Programa Bolsa Família - PBF - (Lei nº 10.836, de 9 de janeiro, 2004), os demais programas de transferência de renda foram unificados. A Lei da Renda Básica de Cidadania determina que “se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário36". Apesar de sua abrangência universal, a renda básica seria implementada gradualmente,tendo seu início no ano de 2005, dando prioridade às camadas mais vulneráveis da sociedade. Ademais, o valor do benefício seria determinado a partir do grau de desenvolvimento do país, levando em consideração suas respectivas possibilidades orçamentárias. O Programa Bolsa Família (PBF), por sua vez, tinha como objetivo a transferência de renda com determinadas condicionalidades, sendo destinado a famílias em situação de extrema pobreza, 36 Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004. 58 e tendo valor variável ao número de crianças, adolescentes e gestantes vinculados. Esta política se configurou como uma das ações de combate à pobreza do governo federal, somada ao aumento real do salário mínimo, ampliação do crédito e geração de emprego formal. A despeito de sua implementação e de efeitos macroeconômicos e sociais importantes, o PBF foi um dos programas mais atacados ao longo dos governos de coalizão do Partido dos Trabalhadores (PT), com argumentos contrários carregados de preconceito e desconhecimento, sendo os mais comuns a acusação de que as mulheres engravidavam para receber o benefício e o efeito-preguiça proporcionado pelo valor recebido, que supostamente inibiriam o ato do cidadão de buscar emprego. No atual cenário de crise sanitária, a discussão da Renda Básica de Cidadania foi retomada como uma medida emergencial para fazer frente à recessão econômica causada pela pandemia COVID-19. Essa proposta, além de ser fundamental para o enfrentamento das desigualdades estruturais que foram acentuadas pela pandemia, pode ser considerada um grande passo para a implementação da Renda Básica de Cidadania, Permanente e Universal, como idealizada por Eduardo Suplicy em suas propostas iniciais. A aprovação de um projeto garantidor de Renda Básica Emergencial para aqueles que serão mais afetados pela crise econômica representa uma oportunidade para que haja uma melhor compreensão da relevância de uma renda mínima que atenda às necessidades vitais dos indivíduos, respeitando o princípio da dignidade humana, abandonado em contexto de intensificação da ofensiva neoliberal no Brasil. Para tanto, é necessário evidenciar a vulnerabilidade a que a sociedade brasileira é submetida em decorrência da manutenção de políticas de austeridade fiscal. De um lado, tais políticas impedem a prestação, por parte do Estado, de serviços públicos essenciais; por outro lado, não são supridos pela “livre força dos mercados” sem que uma adequada taxa de retorno dos investimentos, antecedida por medidas regulatórias favoráveis, sejam asseguradas. Por sua vez, lavar a mão com água e sabão, isolamento social, home office e trabalho remoto, medidas eficazes para evitar a propagação do vírus, se revelaram impossíveis em condições de ausência de saneamento 59 básico e acesso à água potável, de moradias precárias (ou mesmo a falta delas)37 em comunidades com elevada densidade populacional; e informalidade no mercado de trabalho38. A negligência histórica em se promover a universalização de serviços básicos e acesso à moradia digna faz com que os mesmos se apresentem, em contexto de pandemia, como privilégios das classes médias e altas, frente àqueles que são constantemente interditados de acessar seus direitos constitucionais em decorrência das desigualdades estruturais do país. Daí a tentativa de responsabilizar os indivíduos, seja pelo seu sucesso, seja pelo seu fracasso - sem problematizar os mecanismos estruturais da desigualdade, tão recorrente na retórica neoliberal - revelar-se incompatível com as condições impostas pela pandemia. Tal aspecto se evidenciou na crescente oposição que o Presidente vem sofrendo ao apresentar a falsa dicotomia entre economia e saúde e ao pressionar para que a população volte a trabalhar. Pressão essa que recai fortemente sobre o trabalhador informal, sem renda fixa, como se não houvesse outra solução que não a individual. Mais uma vez, a população economicamente vulnerável é deixada à mercê das atividades do mercado, para “não deixar a economia parar"39. Esse contingente de trabalhadores é submetido a extensivas jornadas de trabalho, muitas das vezes em condições precárias, sem direitos trabalhistas, em prol de garantirem sua sobrevivência. Tais aspectos revelam que os efeitos dessa crise impactam, principalmente, os mais vulneráveis, que não possuem garantia de renda, como se o Estado não tivesse condições políticas e econômicas para garantir renda mínima e amenizar a agonia causada pela crise sanitária. A proposta de instituir a Renda Básica em caráter emergencial ocupou centralidade, à medida que ficava evidente a necessidade de isolamento social e restrição das atividades econômicas como enfrentamento da pandemia, intensificada em torno da Campanha “Renda Básica que Queremos”, articulação entre a Rede Brasileira de Renda Básica de Cidadania, parlamentares e 37 Em estudo realizado pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC) e a Fundação Getúlio Vargas, estimou-se o déficit habitacional em 7,7 milhões de unidades, dos quais 12,4% decorrem de habitação precária, 41,3% coabitação; 42,3% ônus excessivo com aluguel; 3,9% adensamento excessivo. A metodologia utilizada foi desenvolvida pela Fundação João Pinheiro (Abraic, 2018; Fundação João Pinheiro, 2018) . Disponíveis em Nova Id e Déficit Habitacional no Brasil 38 Sem contar as condições desiguais da educação brasileira: soluções como Ensino à Distância (EaD) não são plenamente compatíveis com as condições infraestruturais e de acessibilidade digital, seja das próprias instituições do Ensino Público (Fundamental e Superior), seja dos estudantes. Como consequência, tais soluções reforçam e alimentam a desigualdade entre os estudantes de instituições públicas e privadas. 39 Correio Braziliense, 26/03/2020Disponível em: <Bolsonaro diz que Brasil não pode parar: ‘Devemos abrir o comércio’> https://www.abrainc.org.br/wp-content/uploads/2018/10/ANEHAB-Estudo-completo.pdf https://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/Publicacoes/capacitacao/publicacoes/deficit-habitacionalBrasil_2015.pdf https://www.cidades.gov.br/images/stories/ArquivosSNH/ArquivosPDF/Publicacoes/capacitacao/publicacoes/deficit-habitacionalBrasil_2015.pdf https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/03/26/internas_economia,836876/bolsonaro-diz-que-brasil-nao-pode-parar-devemos-abrir-o-comercio.shtml https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/03/26/internas_economia,836876/bolsonaro-diz-que-brasil-nao-pode-parar-devemos-abrir-o-comercio.shtml 60 sociedade civil40. A proposta, que refutou os R$200,00 inicialmente propostos pelo Ministro da Economia, Paulo Guedes, foi aprovada pelo Congresso Nacional41 em caráter de unanimidade entre políticos e economistas de distintos espectros ideológicos. Em linhas gerais, trabalhadores informais acima de 18 anos, microempreendedores individuais (MEI), contribuintes individuais ou facultativos do Regime Geral de Previdência Social (RGPS); famílias com renda per capita de até meio salário mínimo (R$522,50) ou renda mensal total de até três salários mínimos (R$3.135,00) teriam direito à renda de R$600,00 mensais, por três meses, no total de dois adultos por família, o que significava chegar a R$1.200,00 por família. Mães solo, que sejam as únicas fontes de renda das famílias, receberiam o total de R$1200,00. Não tiveram direito aos recursos menores de 18 anos; pessoas que recebem benefício previdenciário ou assistencial, seguro-desemprego ou outro programa de transferência de renda federal, exceto Bolsa Família42; e aqueles que obtiveram rendimentos tributáveis acima de R$28.559,70 no ano de 2018. O Cadastro Único (CadÚnico)43 permitiria que as famílias cadastradas recebessem a Renda Básica Emergencial. Para as famílias não cadastradas no CadÚnico, o governo precisou operacionalizar o acesso ao benefício,a partir da sanção do Presidente da República. De acordo com o IBGE, a taxa de desemprego no Brasil é de 10,6%, ou 11,6 milhões de pessoas44; os desalentados45; correspondem a 4,6 milhões de pessoas. Já a taxa de informalidade atingiu 40,6% da população ocupada, o que corresponde a 38 milhões de trabalhadores46. Por sua vez, o percentual de famílias chefiadas por mulheres no Brasil é de 40%47. Por sua vez, a estimativa 40 Disponível em http://rendabasica.com.br/ e https://www.rendabasica.org.br/ 41 Projeto de Lei nº9.236, aprovado na Câmara dos Deputados, em 26/03/2020 e PL 873/2020, aprovado no Senado Federal, em 30/03/2020. 42 Permitiu que duas pessoas de uma mesma família acumulem benefícios: um do auxílio emergencial e um do Bolsa Família. Caso o auxílio seja maior que a bolsa, a pessoa poderá fazer a opção pelo auxílio. 43 Cadastro Único dos Programas Sociais do Governo Federal identifica as famílias de baixa renda para concessão de benefícios sociais do Programa Bolsa Família, da Tarifa Social de Energia Elétrica, do Programa Minha Casa Minha Vida, da Bolsa Verde, entre outros. Também pode ser utilizado para a seleção de beneficiários de programas ofertados pelos governos estaduais e municipais. O cadastro confere ao cidadão o Número de Identificação Social, o NIS. https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/consulta_cidadao/ 44 Dados de desemprego correspondem ao 4° trimestre de 2019. Disponível em https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php. 45 Desalentados são as pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis, porém não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Os motivos que podem ter levado à desistência na busca por trabalho são: não encontrar trabalho na localidade; não conseguir trabalho adequado; não conseguir trabalho por ser considerado muito jovem ou idoso; não ter experiência ou qualificação. 46 Conforme PNAD Contínua, referente ao trimestre encerrado em fevereiro de 2020. Disponível em PNAD Contínua: taxa de desocupação é de 11,6% e taxa de subutilização é 23,5% no trimestre encerrado em fevereiro de 2020 47 IPEA, Retratos (2015). Disponível em Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça http://rendabasica.com.br/ https://www.rendabasica.org.br/ https://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/consulta_cidadao/ https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27259-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-11-6-e-taxa-de-subutilizacao-e-23-5-no-trimestre-encerrado-em-fevereiro-de-2020 https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/27259-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-11-6-e-taxa-de-subutilizacao-e-23-5-no-trimestre-encerrado-em-fevereiro-de-2020 https://www.ipea.gov.br/retrato/indicadores.html 61 feita pela Instituição Federal Independente (IFI) do Senado, o auxílio emergencial irá beneficiar 30,5 milhões de brasileiros (14% da população) e terá o custo de R$58 bilhões, ou 0,8% do PIB de 2019. Considerando esse quadro, verifica-se que, mesmo sem a pandemia, a população brasileira já se encontrava em um contexto de extrema vulnerabilidade, decorrente das políticas de austeridade fiscal, da crise econômica estrutural e da inércia governamental em revertê-la. A pandemia expõe, portanto, os entraves impostos à ação do Estado, que requereram a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal e a declaração do estado de calamidade, o que permite à União descumprir metas fiscais estabelecidas pela Emenda Constitucional 95 até 31/12/2020. Por outro lado, nos propicia-nos a oportunidade de debater a implementação da Renda Básica não apenas em caráter emergencial, mas permanente, posta a precariedade socioeconômica vigente no País, antes de qualquer viralização. Da Renda Básica Emergencial à Renda Básica Permanente: a utopia a ser perseguida A renda emergencial não é apenas uma questão ética e humanitária em contexto de pandemia, é absolutamente favorável à recuperação econômica, sobretudo em situação de crise, baixo crescimento, desemprego e informalidade, ao garantir o consumo de bens de primeira necessidade às famílias e promover efeitos multiplicadores via demanda efetiva. Considerando a capacidade ociosa e a contração da demanda que caracterizam contextos de recessão, preocupações em torno da inflação também não se confirmam. A pergunta é: por que, enquanto País, não a implementamos antes? Por que não tornar a renda emergencial uma renda permanente? Os incautos podem questionar de onde viriam os recursos. Para essa questão, é necessário levantar algumas outras. O Ministro da Economia tem alegado a indisponibilidade de recursos, desde a aprovação pelo Congresso Nacional da implementação da Renda Básica Emergencial: segundo ele, seria necessária a aprovação de uma Emenda Constitucional que tipificasse um “orçamento de guerra”, durante a vigência da calamidade pública, desonerando o governo quanto ao cumprimento da regra de ouro (norma que impede o endividamento para pagar despesas correntes). Caso contrário, 62 haveria insegurança jurídica para autorizar o gasto, pois haveria falta de fontes orçamentárias48. A oposição alega que o governo pode editar uma Medida Provisória para garantir o pagamento e que a flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), seria suficiente para o pagamento do auxílio. O Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), então Presidente do Congresso Nacional, apesar de concordar com a necessidade de uma “PEC do orçamento de guerra”, questiona, por outro lado, a solicitação do governo, realizada junto ao STF, para a flexibilização da LRF49, que supostamente seria suficiente para o governo. O impasse, colocado desta maneira, deixou milhões de brasileiros no aguardo de uma resolução atinente à própria sobrevivência durante a pandemia. Cumpre observar que tais entraves não existiram quanto a outras medidas. No dia 18 de março de 2020, o Ministro da Economia anunciou um benefício de R$200,00 por pessoa por mês aos trabalhadores informais, o que significaria liberar R$15 bilhões em 3 meses50, ou 0,2% do PIB. Na mesma semana, o Banco Central anunciava injetar no sistema financeiro R$1,2 trilhão, 16,4% do PIB, com a justificativa de garantir a liquidez dos bancos, para que as instituições financeiras pudessem continuar a realizar suas operações com os clientes, pessoas físicas e jurídicas. No entanto, sem a contrapartida de que os bancos irão reduzir suas taxas de juros, como assegurar que esses recursos circularão na economia real, ou seja, que os bancos irão, de fato, conceder empréstimos em contexto de pandemia, em vez de cobrir descasamento de prazos entre ativos e passivos? Chama a atenção a disparidade entre os recursos disponibilizados ao sistema financeiro e às famílias, o que apenas confirma a proeminência do capital bancário no Brasil, já explicitada quando do debate da Reforma da Previdência, do Teto dos Gastos Públicos (mormente em serviços sociais), da ampliação da Desvinculação das Receitas da União, entre outras políticas públicas direcionadas ao andar de cima. Concomitantemente às medidas junto ao sistema financeiro, e por certo prevendo a inércia dos bancos privados em repassar o dinheiro que lhes foi entregue pela ação do Banco Central, o 48 Rede Brasil Atual, 01/04/2020; e Agência Brasil, 31/03/2020. Disponíveis em Guedes faz 'chantagem' para Congresso pagar renda emergencial. STF e TCU reagem ; Liberação de renda básica depende de trâmites jurídicos e de PEC 49 Câmara dos Deputados, 31/03/2020. Disponível em Maia diz que governo pode editar MP para garantir pagamento de R$ 600 - Notícias 50 Reuters, 18/03/2020. Disponível em Guedes anuncia programa de R$15 bi para ajuda a trabalhadores informais https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/04/guedes-faz-chantagem-para-congresso-pagar-renda-emergencial-stf-e-tcu-reagem/https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2020/04/guedes-faz-chantagem-para-congresso-pagar-renda-emergencial-stf-e-tcu-reagem/ https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-03/liberacao-de-renda-basica-depende-de-tramites-juridicos-e-de-pec https://www.camara.leg.br/noticias/649971-maia-diz-que-governo-pode-editar-mp-para-garantir-pagamento-de-r-600/ https://www.camara.leg.br/noticias/649971-maia-diz-que-governo-pode-editar-mp-para-garantir-pagamento-de-r-600/ https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/03/18/guedes-anuncia-programa-de-r15-bi-para-ajuda-a-trabalhadores-informais-por-3-meses.htm 63 Ministério da Economia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) criaram uma linha de crédito de R$40 bilhões para financiar dois meses de folha de pagamento de empresas que faturam entre R$360 mil e R$10 milhões por ano, cuja característica mais marcante é a de serem intensivas em mão de obra51. Recursos desse tipo e magnitude, no entanto, ainda não foram disponibilizados a microempreendedores individuais e microempresas52, ou seja, junto com os trabalhadores informais, precarizados e desalentados, a imensa maioria dos empreendedores segue desassistida pelo Governo. Apontar essas contradições da política de austeridade não basta; outras precisam ser evidenciadas para se garantir um consenso societário capaz de tornar a Renda Básica Emergencial um benefício permanente. Entre elas, o caráter regressivo da carga tributária no Brasil, onde quem mais tem menos paga, dado o peso dos impostos indiretos53. Por sua vez, apesar dos lucros das empresas serem tributados, a distribuição dos dividendos aos acionistas é isenta de tributação, isenção conferida em 1995 pelo então Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e jamais revista. Outra fonte não implementada deriva do Imposto Federal sobre Grandes Fortunas: apesar de previsto na Constituição de 1988 (Art. 153), requer Lei Complementar, o que não teve ainda contexto político favorável para sua aprovação. O consenso formado em torno da Renda Básica Emergencial, portanto, pode suscitar um debate mais amplo sobre a necessidade de uma Reforma Tributária mais justa e o uso do fundo público para políticas públicas orientadas ao bem-estar (educação, saúde, infraestrutura, ciência e tecnologia, etc). Além disso, fortalecem o argumento em sua defesa as mudanças no mercado de trabalho, que independem da emergência pandêmica: de um lado, relacionam-se à automação das atividades produtivas, industrial e de serviços, típica do avanço tecnológico do capitalismo contemporâneo5465; mas, de outro lado, intensificam a permanente precarização e informalidade do 51 Estadão, 23/03/2020; e Folha de São Paulo, 30/03/2020; Disponíveis em Com crise, BC já anunciou R$ 1,2 trilhão em recursos para bancos e Desafio do BC é fazer R$ 1,2 tri sair dos bancos para empresas e famílias. 52 Microempreendedores individuais possuem faturamento de até R$81 mil e Microempresas de até R$360 mil. Disponível em Estudos e Pesquisas Sebrae 53 De acordo com a Receita Federal, 48% dos tributos derivam de bens e serviços. Salários, respondem por 26%; renda, lucros e dividendos respondem por 19% da arrecadação; e propriedade e transações financeiras respondem por 4,5% e 1,6%, respectivamente. Disponível em Carga Tributária 2017 – Receita Federal <Novembro 2018> 54 Tais mudanças dispensam mão de obra e desmobilizam crescentemente a população. https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/23/com-crise-bc-ja-anunciou-r-12-trilhao-em-recursos-para-bancos.htm https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/03/23/com-crise-bc-ja-anunciou-r-12-trilhao-em-recursos-para-bancos.htm https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/03/desafio-do-bc-e-fazer-r-12-tri-sair-dos-bancos-para-empresas-e-familias.shtml https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/estudos_pesquisas/quem-sao-os-pequenos-negociosdestaque5,7f4613074c0a3410VgnVCM1000003b74010aRCRD http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/carga-tributaria-2017.pdf 64 setor terciário no Brasil, sobretudo quando se consideram as capitais estaduais e as grandes cidades do país. Tais aspectos requerem do Estado a oferta de fontes de renda para além daquela proveniente do trabalho, o que equivale ao resgate de seu papel redistributivo e provedor de bem- estar. Outro aspecto a ser enfrentado relaciona-se à estrutura produtiva: a necessidade de garantir insumos fármacos, equipamentos e instrumentos hospitalares em função da pandemia, vis-a-vis a restrição de fluxos internacionais, exige políticas de reconversão industrial, mas também permite ampliar o debate para a pauta da tendência desindustrializante da economia brasileira. A partir do atual contexto, com miras a um futuro de melhores condições sanitárias e de saúde da sociedade, o investimento público poderia conduzir à retomada do crescimento econômico a partir de estímulos à demanda interna, o que resultaria na reconstituição do número e do faturamento de empresas, na agregação de valor à produção, na geração de emprego e renda, na reversão da desindustrialização e, portanto, em um maior potencial de arrecadação tributária para cumprir com os compromissos emergenciais assumidos no atual contexto. Tais diretrizes teriam o benefício de já contar com elevado potencial de coerência territorial, proporcionado pela experiência federativa brasileira com a operacionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). Com isso, haveria um reforço do sistema, ao mesmo tempo em que seria ampliada a capilaridade da oferta de serviços de saúde pública, resultando em melhores condições de vida em todo o País. Acoplado a uma estratégia geopolítica, tal intento, além de instituir uma tendência de superação da reprimarização da pauta exportadora, ainda poderia recolocar o País em posição de protagonismo político internacional, a qual estaria assentada em preceitos científicos e no desenvolvimento tecnológico liderados pela imensa rede pública produtora de ciência nele existente. Nada novo na história do capitalismo, a exemplo do contexto pós-Segunda Guerra Mundial e da implementação do Welfare State nos países centrais. Utopia, no entanto, em contexto de capitalismo periférico neoliberal! A lição, se é que já podemos tirar alguma, em decorrência da pandemia do Covid-19, é a necessidade de mudanças de rumos, ruptura com as políticas neoliberalizantes em curso no país e resgate do papel conferido ao Estado Brasileiro em assegurar o “bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, valores expressos na Carta Magna de 1988 e que foram subordinados à pauta 65 financeira e rentista imposta ao país há mais de três décadas. Momentos de crise podem ser uma oportunidade para a implementação de políticas inovadoras que apontem um caminho para transformações perenes. A Renda Básica Permanente, ao lado da reversão da austeridade e mudanças na estrutura produtiva do país, são condições sine qua non para promovermos justiça social no Brasil e retomarmos os rumos da história em bases soberanas, justas e libertárias. Referências Souza, P.H.G.F. “A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”, Tese de Doutorado, Universidade de Brasília (UnB), 2016; e Trovão, C.J.B.M. “Desigualdade Multidimensional: Uma abordagem keynesiana para o seu enfrentamento”, Tese de Doutorado, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2015. Britto, T., Soares. F.V. “Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania - um passo em falso?”, Textos para Discussão, Centro de Estudos da Consultoria do Senado, 2010. Disponível em Bolsa Família e Renda Básica de Cidadania - um passo em falso? https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-75-bolsa-familia-e-renda-basica-de-cidadania-um-passo-em-falsohttps://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-75-bolsa-familia-e-renda-basica-de-cidadania-um-passo-em-falso 66 VIDA PÚBLICA: OS TEMAS REPÚBLICANOS NOS ESPAÇOS ESCOLARES E DE ENSINO MAREENSES Por Adriano de Carvalho Mendes55 e Caio Matheus da Graça Santos56 Dedicado à memória de Marielle Franco O texto discute como a participação da sociedade, em conjunto com a gestão pública, pode propiciar transformações qualitativas, apesar da diversidade de atores intervenientes. O texto mostra a importância de uma gestão responsável para valorização cidadã. Propomos uma reflexão acerca da cidadania, da noção de pertencimento e desenvolvimento de mareenses, tendo como pilares a educação e a cultura. O grupo que deu origem ao Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré – CEASM era composto por moradores e ex-moradores mareenses, que militavam no Partido dos Trabalhadores (PT). Este grupo teve a oportunidade de ascensão e conclusão em um curso superior, na sua maioria em instituições públicas, e resolveu retornar às suas origens com o objetivo de oportunizar a outros essa possibilidade. Vale lembrar que no momento de criação do CEASM (1997), as políticas públicas educacionais vigentes no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-1998), eram baseadas numa discussão complexa que envolvia temários internacionais hodiernos e, simultaneamente, a tradição dos pioneiros da educação moderna brasileira. Observa-se que as políticas públicas vinculadas a essa démarche abriram espaço para o aumento da criação de instituições sem fins lucrativos, cujas atividades estivessem vinculadas à prestação de serviços públicos em concomitância com o Estado, de maneira a atender as necessidades de grupos sociais. Assim, este quadro político permitiu a criação do CEASM no modelo de gestão que será apresentado no decorrer deste artigo, numa narrativa histórica desde sua criação em 1997 até o ano de 2019. 55 Egresso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES/UFRJ) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PPG-PUR/IPPUR). 56 Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ. 67 O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré A Organização da Sociedade Civil (OSC) CEASM foi criada em 1997, por um grupo de moradores e ex-moradores mareenses, militantes do PT. Uma das características é o fato de que tiveram acesso à universidade, concluíram seus cursos e obtiveram acesso e participação na construção de movimentos sociais. Tais características possibilitaram a consciência das suas condições de exceção e da necessidade de superarem as suas presentes realidades. Dessa forma, a instituição tem como objetivo ampliar os acessos, potencialidades e possibilidades do exercício de cidadania aos mareenses. Segundo as informações colhidas na Maré em Dados: Censo 2000, realizado no Complexo da Maré, o CEASM iniciou suas atividades em fevereiro de 1998 com um Curso de Pré-Vestibular (CPV) da Maré. O corpo docente e discente do CPV era especificamente composto, inicialmente, por apenas moradores mareenses. Tal projeto obteve um índice de aprovação em Universidades Públicas muito satisfatório, que possibilitou mostrar a grande relevância social da existência do CEASM. Além disso, a rede sociopedagógica CEASM buscava articular grupos populares mareenses que objetivaram melhorias em suas qualidades de vida, o que evidencia a importância da instituição no conjunto de políticas em que atua, ao se revelar como um instrumento necessário para a construção do pertencimento dos mareenses. Foram estruturados 4 pilares pedagógicos considerados prioritários: 1. Educação: uma ideia de reforço escolar para que os moradores voltassem para a educação do Estado com mais instrução. Assim nasce o preparatório para as escolas de referências de ensino, com as federais, militares e os pré-vestibulares; 2. Comunicação: propiciar ao morador capacidade de encarar as mudanças do mundo e da sua vida com, por exemplo, o acesso a uma língua estrangeira; 3. Memória: vincula-se à criação do Museu da Maré como um projeto do CEASM, enquanto uma construção pedagógica para criar um vínculo local para com os moradores em relação a sua importância; e 68 4. Renda: esse pilar, apesar de importante, foi o único que não conseguiu se desenvolver em decorrência de divergências em torno de seu entendimento. De acordo com Lourenço César da Silva, havia o entendimento de que as pessoas precisavam trabalhar, porém, a ideia de cursos profissionalizantes se tornava tênue, pois com a aceleração da mudança do mundo, esse aprendizado se tornaria pretérito. Por sua vez, o conhecimento de língua estrangeira e habilidade tecnológica se revelavam urgentes. Esses pilares constituíram a organização enquanto movimento social, reforço escolar e formador de política pública. Não tratava de se opor aos níveis educacionais que conquistamos, como o ensino fundamental e o médio, mas lutar pela ampliação da qualidade de ensino que estava sendo ofertado. Os conceitos de rede e de cidadania que norteiam a estrutura organizacional, bem como todas as atividades do CEASM, estão no viés de construção de um círculo virtuoso que passa pela associação entre uma política pública distributiva e a ação voltada para o combate aos fundamentos econômicos, culturais, políticos e sociais da desigualdade do Rio de Janeiro e do país. O crescimento gera uma nova configuração para o CEASM As inquietações e demandas dos mareenses que acessaram a Universidade e concluíram o curso superior, assim como entraram em contato com movimentos sociais, ao retornarem para a Maré, foram determinantes para fazer com que algumas ações começassem a se instaurar no território em busca de uma modificação dos cenários. Os dados estatísticos governamentais sobre a Maré também foram indispensáveis para notarmos a configuração e o prosperar de uma nova perspectiva naqueles mareenses. Por isso, a construção de projetos, como o CPV, que mais tarde vão estruturar o que é o CEASM, nos possibilita entender os caminhos que foram traçados e que originaram os resultados e as conquistas que foram obtidas. Cabe agora relatar como a instituição se estruturou no começo de sua história, no sentido de dialogar com o surgimento das parcerias e patrocínios, tantos públicos quanto privados, que vão dar origem aos projetos que se desenvolveram ao longo dos anos, e que vão possibilitar que a entidade pudesse obter sua sede e instaurar novos projetos que se alinharam aos pilares que já foram apresentados. 69 Esse relato foi construído com base nas entrevistas realizadas com um dos atuais diretores do CEASM, Lourenço Cesar da Silva, no dia 3 de agosto de 2019. Ressalta-se que em toda a sua história com o Centro, Lourenço esteve presente enquanto discente do CPV na sua origem e em todo o processo de expansão e encerramento das atividades, quando da separação das sedes do Morro do Timbau e Nova Holanda. Segundo o Censo 2000, o Centro iniciou suas atividades em fevereiro de 1998 e, a partir do CPV, a sua implementação trouxe o desenvolvimento de forma muito qualitativa e satisfatória. A alta taxa de aprovação mostrou que o CEASM promovia potencialidades e se mostrava de grande relevância social, uma vez que a instituição trabalhava com a perspectiva cidadã em sua plenitude. Isso fez com que o Centro se tornasse reconhecido dentro e fora da Maré, fato que vai proporcionar a criação de novos vínculos de alianças entre organizações internas e externas à Maré, como as organizações públicas, privadas e comunitárias. Sendo assim, o Centro atuava em parceria com escolas municipais locais, associações de moradores, postos de saúde e outras organizações da sociedade, universidades, institutos de pesquisa, empresaspúblicas e privadas, embaixadas, Organizações Não-Governamentais (ONG) e outras. Antes de se tornar uma OSC, o CPV acontecia em uma sala da Igreja Católica Matriz Nossa Senhora dos Navegantes localizada às margens do Morro do Timbau, na Maré, conforme relato de Lourenço César da Silva. Diante disso, Carlinhos, que hoje além ser um dos atuais diretores, é educador de literatura do pré-vestibular, se encontrava no cargo de presidente da Associação dos Moradores do Morro do Timbau e, em contato com os primeiros organizadores do curso, informou que havia um espaço que estava se tornando um lixão e, com uma reforma, poderia se tornar um local para estudos: no local hoje se encontra a sede da instituição. Antes de ser um lixão, a Embaixada do Canadá construiu esse espaço para ser um local educativo de cursos profissionalizantes e por questões desconhecidas abandonou o espaço, assim, uma nova ONG chamada Ação Comunitária do Brasil, se apossa desse local. Porém, com a fundação da favela Vila do João em 1982, a Ação Comunitária do Brasil se deslocou para esse lado da Maré e quando Carlinhos assumiu a Associação dos Moradores do Timbau, as atividades paralelas não existiam mais. 70 De acordo com nossa entrevista, após todo esse processo e o abandono do espaço, quem estava à frente do CEASM relatou essa situação à Embaixada do Canadá, que financiou a reforma e a construção de duas salas. Assim, isso motivou a procura de mais financiamentos de outras instituições; num primeiro momento procuraram a Petrobras e adquiriram mesas e cadeiras. Por sua vez, a Petrobras insistiu que o repasse de materiais não poderia ser feito informalmente e solicitou que se criassem uma instituição, o que leva ao nascimento do CEASM, em 1997, como uma OSC. A reestruturação da “sonhada” sede possibilitará, ao longo dos anos, uma expansão das atividades. Durante o ano de 1999, o CEASM contava com o desenvolvimento e progresso de nove projetos: CPV; Curso Preparatório para a 5ª série e para o Ensino Médio; Núcleo de Línguas da Maré (NELM), que acontecia em parceria com a Faculdade de Letras da UFRJ e a Rede de Atendimento Local (RAL); Oficinas de Informática; Programa de Crianças Petrobras na Maré; Observatório Social da Maré; Projeto Adolescentro; a Biblioteca Popular na Maré; e o Jornal O Cidadão, que era editado mensalmente, com uma tiragem de 20.000 exemplares distribuídos gratuitamente. A comunicação comunitária permitia que os moradores pudessem acompanhar as mudanças do mundo, o que agregava a cultura, tradições, história e memórias locais e que possibilitaram também que os moradores trabalhassem com a informação da comunidade. No ano de 2000, com o andamento da instituição, o sentimento e os desejos de se expandir cada vez mais pelo território mareense se tornaram presentes. O CPV foi ampliado para mais duas turmas, oito turmas de alfabetização de jovens e adultos, dez turmas de Ensino Fundamental e duas turmas de Ensino Médio. Também estavam vinculados ao Projeto Multissetorial de Políticas Sociais para a Maré os projetos: Adolescentro, Rede Trabalho Educação da Maré, Memória da Maré e o Censo Maré, vinculado ao Observatório Social da Maré. Como complemento às ações educativas, o CEASM dispõe de dois espaços que são únicos em toda a Maré: uma biblioteca e um laboratório. Uma das etapas tinha como objetivo a memória, no entendimento de preservar, divulgar e valorizar a história. Para tanto, surge o Projeto de Memória da Maré, em 2000, atrelado à rede de Memória da Maré, e o Censo Maré 2000: Quem somos? Quantos somos? E para onde vamos?, financiado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES), em parceria com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), o Instituto Pereira Passos e a Escola Nacional de Ciências e Estatísticas (ENCE). 71 O Censo Maré 2000, de construção coletiva e pluri-institucional, foi mais além do que se esperava, em termos de dados qualitativos e quantitativos. Inaugurado em 2006, o Museu da Maré, reconhecido pelo Ministério da Cultura como o primeiro museu em favela do Brasil, faz parte de uma instalação maior que é a Casa de Cultura da Maré. Em razão de sua dimensão espacial, o CEASM, instalou oficinas culturais de vídeo, fotografia, desenho e produção gráfica, artes plásticas, capoeira, teatro, dança afro, música, percussão e cinema, além dos projetos ligados à memória. O Programa Petrobras Criança na Maré teve como finalidade trabalhar a questão da participação, isso quer dizer que as atividades desenvolvidas trabalham a continuidade das ações e necessidades do CEASM. Novas configurações vão começar a surgir. Em 2002, a ONG se organizou e traçou novos objetivos como, por exemplo, a obtenção de uma expansão para fora das paredes da instituição, ou seja, após a consolidação da atuação para além do Morro do Timbau, o CEASM inaugurou seu segundo núcleo na Maré, com apoio do governo do estado do Rio de Janeiro e de uma ONG internacional. Essa estrutura se expandiu para a favela Nova Holanda e Ramos. Dentro do CEASM existia uma estrutura grande e complexa, com departamentos especializados em prestação de conta dos projetos, que eram realizados a partir de editais. Todo projeto tinha uma equipe responsável pela relatoria do projeto, para o acompanhamento do orçamento, a execução da verba e todos os trâmites necessários para a realização do projeto. Tais procedimentos foram reconhecidos com várias premiações. Apesar dessa nova experiência, tão singular na Maré, nem tudo caminhou de maneira positiva para o futuro da ONG. Por essa razão, após sete anos de existência, as tensões ocorridas tornam o ambiente e os processos decisórios conflituosos no âmbito da diretoria, quanto aos direcionamentos, rumos e novos caminhos a seguir. Os problemas internos gerados ao longo do tempo têm como fator a grande expansão, que fez com que alguns diretores questionassem se esse efeito condizia com as primeiras ideias de construção da ONG. Enquanto uma parte concordava e acreditava que o processo de expansão poderia ser ainda maior, a outra parte entendia que os valores iniciais se perderam ao longo do processo de expansão. 72 A partir da intensificação das tensões entre 2006 e 2007, houve a cisão da instituição em duas: Redes de Desenvolvimento da Maré, a partir da unidade que existia na favela Nova Holanda; e o CEASM. Essa divisão enfraqueceu gradativamente a participação nas atividades, porque havia o sentimento de medo por parte dos moradores que habitavam os polos do CEASM no Morro do Timbau e da Nova Holanda, em relação às facções distintas existentes nessas duas favelas, o que contribuiu para inviabilizar o desenvolvimento das ações e dos projetos por elas realizados. A separação da instituição fez com que a maioria das atividades que tinham algum tipo de vínculo e apoios com o setor público e privado, através de parcerias, se encerrassem. Como consequência, apenas o CPV, Preparatório para o 5º ano do ensino fundamental e para o Ensino Médio continuaram sendo realizados no âmbito do CEASM, cujas aulas eram ministradas por egressos. O encerramento das atividades trouxe problemas para o Centro, pois foram perdidos vários recursos e apoio institucional para o CEASM. A descoberta de malversação foi um fator que levou ao rompimento das atividades. Lourenço César da Silva afirma que com a crise de 2008, foi quase impossível captar recursos através da Lei Rouanet, ao deixar de ser uma estrutura grande e complexa e se tornado uma instituição menor. Portanto, finalizamos tentando mostrar a ascensão e queda do CEASM, não como fim, mas como reflexão sobre a existência e resistência do Centro frente às lutas diárias. Trata-se de uma organização não-governamental que atingiu patamares elevados em termo de estrutura, magnitude de projetos e impactos sociais, porém hoje sobrevive por meio da ação voluntária dosegressos do CPV. Ainda assim, continua sendo de grande relevância por possibilitar o acesso à Universidade Pública aos moradores da Maré. Conclusão Diante do exposto, é importante ressaltar diversos aspectos que devem ser considerados para a construção e o caráter do CEASM como um todo. A realização do CEASM, “significa uma grande conquista e demonstra que a intervenção local não deve ser confundida com precariedade ou superficialidade das formulações e das ações” (Censo 2000). 73 O bairro Maré é uma localidade traçada por estigmas de violência e pobreza, e que sempre esteve à margem da esfera pública. A Maré vive à mercê de problemas estruturais, educacionais, saúde e de tudo aquilo que configura a dignidade. Diante disso, os formuladores do CEASM se apropriaram dessa realidade de forma criativa ao entenderem a necessidade de resistir e construir tudo aquilo que estava ausente para uma vida digna, ou seja: é necessário que se determine caminhos e objetivos que se sobreponham às dificuldades para se alcançar patamares de dignidade e cidadania. As políticas de ações afirmativas existem para possibilitar acessos, pois o que afasta um pobre, negro e/ou periférico desse espaço é o acesso negado causado por uma situação histórica de desigualdades. A Maré ainda é muito carente em termos de acesso ao Ensino Médio, tendo apenas o Colégio Estadual Bahia, na modalidade noturna. Além disso, a Maré também tem como fator determinante as diferenças das facções criminosas que comandam o Complexo, que se somam aos conflitos entre tais forças e o Estado, de modo a impossibilitar várias atividades. Isso faz com que aqueles que buscam o acesso à universidade estejam ainda mais premidos. A grande estrutura física do CEASM permitiu o arquivamento dos documentos relacionados aos aprovados, às listagens de presença, todo o histórico discente dos que passaram pelo CPV. Porém segundo Lourenço César da Silva, as chuvas danificaram seus compartimentos e boa parte do acervo, impedindo de se verificar com exatidão o percentual discente ao longo de sua história. Para além disso, a finalidade desse trabalho é lançar luz sobre os pré-vestibulares e sua importância para a Maré. Segundo o Jornal do Brasil, os CPVs do CEASM e da Redes de Desenvolvimento da Maré, ao longo da história, quadruplicaram o número de moradores dentro das universidades, em sua maioria instituições públicas. A reportagem afirma que “Na Redes, há cinco turmas de 50 alunos em três localidades: Vila do João, Nova Holanda e Vila Pinheiros, com 250 alunos. “Conseguimos aprovar mais de 70 alunos por ano, a maioria em universidades públicas”, diz Eliana, Diretora da Redes da Maré. O CEASM, por sua vez, tem mais de 100 alunos estudando na sua sede no Morro do Timbau, com aprovação de pelo menos 40%. Ao todo, somando os dois pré-vestibulares, mais de 1.600 moradores da Maré chegaram à universidade. Todo esse movimento criou uma cultura universitária na Maré”. 74 Os moradores que passam pelo curso e entram no mundo universitário são luzes e muitos sentem a necessidade de retornar a este espaço que os acolheu para que possam de alguma forma contribuir, fazendo com que novos alunos possam desfrutar e alcançar seus objetivos. Lourenço Cesar da Silva, Renata Souza e Marielle Franco são frutos desse movimento. Portanto, em meio às dificuldades, o CEASM, com o seu pré-vestibular, permanece até hoje, mesmo na pandemia do COVID-19, que dificulta os estudos, a despeito das formas online, em decorrência dos atravessamentos da desigualdade, como a perda de empregos e de acesso à internet e planos de qualidade, área de cobertura, etc. Seus educadores egressos constroem aquele espaço de maneira voluntária, recebendo todos os anos centenas de mareenses e até mesmos discentes de outros bairros do Rio de Janeiro e Região Metropolitana, que desejam ingressar na universidade pública, construindo, dessa forma, uma nova expectativa de vida, uma ressignificação, uma nova experiência, ou seja, outro mundo para as favelas a partir do olhar de mareenses. Referências A Maré em Dados: Censo 2000 – Análise da 1ª fase. Rio de Janeiro, CEASM, 2003. CEASM. A Maré em dados: Censo 2000. Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, Rio de Janeiro, 2003. ____________________. Estatutos sociais. 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O Cidadão e a Cultura. http://jornalocidadao.net/wp-content/uploads/2016/07/24676.pdf SOUZA. Valores Primordiais do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. Rio de Janeiro, agosto de 2002. http://jornalocidadao.net/wp-content/uploads/2016/07/24676.pdf 76 SOBRE NOSSOS TEMPOS: HOMENAGEM A CARLOS LESSA Por Clarice Rocha e Lucas Dipp57 Estamos presenciando, pela primeira vez, em consciência, a mudança de uma geração. Não apenas porque nos aproximamos dos 22 anos de idade e já vemos os nascidos na década de 2010 com opiniões próprias, gostos e saberes. Mas, principalmente, porque as referências que construíram e orientaram o mundo em que nascemos, em toda sua complexidade, contradições e utopias, deixam-nos sem ter clareza dos valores e utopias que orientarão nosso futuro. Vivemos a quarentena do Coronavírus, em que se intensificam as incertezas e os medos quanto ao devir, como se estivessem suspensos no ar, com o vírus, com a nossa desigualdade histórica, mas também com os nossos sonhos, por ora interditados. Tentamos fingir normalidade, criar uma rotina, planejar o futuro, mas a realidade se impõe sem que qualquer expectativa faça sentido. Não sabemos quanto tempo esse período vai durar, de sentimentos tão intensos, tão à flor da pele. É impossível passar por tudo isso e continuar da mesma forma. Há de haver mudanças, mas o sentido da transformação ainda é incerto, está em disputa e não será transformado se forem mantidos os caminhos que nos trouxeram até aqui. Bem, há o que se tirar disso tudo. Mas em outra perspectiva, não nesta onde nos encontramos.Os mestres e demiurgos de um projeto de país deixam cadeiras vazias. Uma nova geração se inicia, pois a página nunca esteve tão em branco para nós. Oportunidade única de se reconstruir a história. É o fim do pós-guerra e o início do pós-pandemia. Somos sempre o “pós” alguma coisa. Poucos momentos na história nos permitem testemunhar a fundação de algo. Em geral, somos o que somos pelo simples fato de ter que lidar com um mundo herdado. E nós herdamos um mundo que se consumiu sem a certeza das bases que orientarão o novo mundo, se é que ele virá. Para além das Guerras Mundiais que se apresentaram em um continente, 57 Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ 77 lidamos com ideologias impregnadas no planeta. Lidamos com a morte e a solidão, não a morte e a glória. Lidamos com a solidão solidária por proteção e defesa, não por esperança. Lidamos com a morte omitida diariamente. A morte esquecida e ignorada. Entre tantos e tantos mortos pela negligência e pela violência, e tantos silêncios cobertos de pranto, certos nomes marcam as manchetes e a pele. O que nos choca, mas também nos inspira e nos clama a resistir. Em meio aos sentimentos de torpor e resistência, perdemos Carlos Lessa. Lessa era um defensor do pensamento nacional desenvolvimentista e um apaixonado pelo Brasil, quando teve que deixá-lo. Mentes totalitárias destruíram (e destroem) as vidas e as mentes daqueles que lutam por mudanças nas estruturas desiguais da sociedade. Uma de suas provocações mais marcantes era: como está a Alma Brasileira? Uma pergunta simples, mas nada fácil. A Alma Brasileira está cada vez mais solitária. Nosso povo se tornou um número, nosso estudo se tornou balbúrdia, e nossa luta se tornou terrorismo. O patriotismo hoje se confunde com outros “ismos”, o que faz da nossa resistência uma obrigação. Muitos dedicaram a vida para que tivéssemos espaços como esse, de debate, reflexão e desabafo. Nas páginas a nós reservadas há de se marcar com tinta que não será derramado mais sangue. Que não há espaço para as velhas práticas e padrões. E a paz, não mais horizonte, é o caminho. E é essa energia que os titãs nos entregam. Carlos Lessa nos deixou um legado de esperança. Para além dos textos e aulas, dos títulos e feitos, há coisas que não cabem em linhas. Há o legado em família e carinho que não conhecemos, o que virá com os carnavais e sorrisos, e com o recordar das falas e ideias. Todos os textos e debates que ajudou a criar, e os debates que estão por vir... Em nome do legado, do exemplo e da esperança, deixamos essa singela homenagem. 78 RENDA BÁSICA E INCLUSÃO FINANCEIRA EM TEMPOS DE CRISE Por Maria Fernanda Fontenele58 Desde o século XIV o mundo vem sendo assolado por doenças, como a peste bubônica, passando pelo surto do cólera, no século XIX, até as mais recentes, como a gripe espanhola. No período do entre guerras, surgiu a ideologia do estado de bem-estar social, que deu início à implementação de políticas sociais. Apesar disso, as necessidades e dificuldades sociais sempre existiram, todavia passam a ser consideradas como uma questão social a partir do momento que ameaçam a coesão e a ordem sociais, precisando de uma intervenção do governo. No entanto, com o fim do estado de bem-estar social, a partir da década de 1970, e o surgimento do estado neoliberal, a proteção social vem sendo desmontada, principalmente pelos governos periféricos. Sônia Fleury (Fleury, 2020) apresenta três modalidades fundamentais dessa proteção, que tendem a variar de acordo com a localidade em que são aplicadas. A primeira delas é o assistencialismo, baseado em valores liberais, cujos indivíduos devem buscar sua ascensão no mercado, ao passo que aqueles que fracassarem serão cobertos por transferências governamentais. Esse modelo gera uma cidadania invertida, pois o cidadão deve mostrar sua incapacidade de sobrevivência para garantir o auxílio. O segundo modelo é o de previdência, no qual os benefícios são meritocráticos, acarretando em uma cidadania regulada pela ocupação no mercado de trabalho. A última modalidade é a da seguridade, oferecida pelo estado de bem-estar social, cuja cidadania é universal, financiada pelo trabalho, mas também através de subsídios governamentais. Em contradição a essas proteções sociais, Guy Standing (Standing, 2013) introduz uma nova classe social, o “precariado”, que ou não tem acesso, ou tem pouco acesso, a essas modalidades de cidadania industrial. Com o avanço de políticas neoliberais, a ascensão de governos populistas, em países periféricos, vincula a possibilidade de acesso à proteção e à seguridade por parte dessa nova 58 Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ 79 classe, a partir da implementação de programas sociais de assistência, como o Programa Bolsa Família (PBF), no Brasil. Apesar dessa amplitude gradativa das formas de garantia e segurança de trabalho, associadas a uma segurança mínima de renda, promovida por avanços sociais, os programas assistencialistas apresentam, ainda, teor patriarcalista, que limita a participação de boa parte da população. Entretanto, há uma tendência de combater esse viés com o acesso amplo de mulheres ao mercado de trabalho e também com o aumento da expectativa de vida, a partir do tríplice: Estado, mercado e cidadania. Ainda que haja essa expansão, esse triângulo vem sendo modificado com a globalização, tendo em vista o surgimento de poderes supranacionais (as empresas transnacionais que se tornam mais fortes que o próprio Estado) e mercados internacionalizados (desterritorialização da produção), como aponta Fleury (Fleury, 2020). Hoje, frente à pandemia do COVID-19, os Estados-Nações, independentemente do viés políticos seguido, intensificaram a demanda por uma Renda Básica Universal, apontando como cerne da questão o fato de como financiar políticas públicas desse porte, uma vez que o Estado nem sempre consegue arrecadar o suficiente e o pouco que arrecada, muitas vezes, é destinado ao pagamento de juros da dívida. A partir disso, o mercado financeiro ganha cada vez mais força, tornando o capital o grande gerenciador da questão social. Além disso, as novas tecnologias devem ser adicionadas a tal questão pois alteram a forma produtiva, acarretando em uma precarização do trabalho e em políticas de austeridades, através de contenção dos gastos públicos e redução da proteção social. O presente artigo pretende estabelecer, na seção 1, a intrínseca relação entre a Renda Básica da Cidadania e o combate ao desemprego. Na seção 2, busca-se estabelecer as bases legais e repercussões empíricas desse modelo, no Brasil, enquanto, na seção 3, apresenta-se a possibilidade de uma inclusão financeira comunitária, em tempos de crise do COVID-19. Por fim, em sua conclusão, a intenção é nortear a volta da democracia social e da cidadania urbana, como um plano tríplice. 80 Renda Básica da Cidadania e o (des)emprego O precariado é definido por Guy Standing como uma classe-em-formação, derivada de processos neoliberais de flexibilização das leis trabalhistas, em todo o mundo, desde a década de 1980. Cercado pelas categorias dos desempregados e dos marginalizados sociais, Standing reforça que ainda remanesce a falta de integração e reconhecimento pelas partes, devido à existência de um descompromisso político, para que o precariado possa se tornar uma classe-para-si (Standing, 2013). Fazer parte dessa classe é ter como base o oportunismo, a flexibilidade do mercado de trabalho e a dupla identidade de vítima/herói propagada pelos ideais neoliberais. Por conseguinte, o precariado reconhece-se como tendo insegurança do vínculo empregatício, renda precária e falta de identidade ocupacional. Dentre essas características, é possíveldelimitar os grupos trabalhistas presentes no precariado, que passam pelos empregos temporários, empregos de meio período e autônomos (Standing, 2013). A associação entre o capitalismo e a globalização possibilitou o surgimento dessa classe, uma vez que é inerente a essa combinação o crescimento da pobreza e, com isso, a existência de uma desigualdade social permanente (Silva, 2020). A crise financeira de 2008 deixou exposta a visão do Estado Mínimo, que vinha sendo consolidada, mundialmente, e trouxe a necessidade de uma re- expansão desse ator social. Com o aprofundamento da pandemia do COVID-19, uma vez que havia insuficiência de políticas públicas de garantia de cidadania, apontou-se para a problemática dessa classe precarizada de subsistir à crise por conta própria. Com isso, o apontado por Josué Pereira da Silva pode servir de ilustração para essa realidade: A desconstrução programada ao longo dos anos da legislação trabalhista, (...) com suas contrarreformas neoliberais que só visavam aos interesses do mercado, contribuindo para aumentar ainda mais a informalidade nas relações de trabalho e a vulnerabilidade de grandes camadas da população (Silva, 2020). A crise sanitária enfrentada em decorrência da pandemia traz à tona o impacto do isolamento e do distanciamento social sobre a economia e, consequentemente, sobre os empregos. É possível conceber que a classe trabalhadora será permeada por inseguranças no emprego e aumento da pobreza, uma vez que o mercado de trabalho é a primeira variável a ser afetada, ao passo que os empregadores operam com as demissões em massa, ainda mais em um cenário de legislações trabalhistas favoráveis a uma suposta flexibilização (Cardoso, 2020). 81 Com esse cenário de demissões à vista e amparados pelas permissões governamentais instituídas enquanto durar o estado de calamidade pública, os empregadores viram como alternativa a redução da jornada de trabalho com a proporcional redução de salários, a suspensão temporária de contratos, a antecipação de férias coletivas, entre outras medidas. Em contrapartida, o avanço do desemprego oculto, reforçado pelo inchaço da classe precariada, aponta que “a subocupação por insuficiência de horas trabalhadas é uma medida que merece atenção especial, uma vez que indica o grau de insuficiência da renda vigente para atender às necessidades dos trabalhadores” (Mattei & Heinen, 2020). Tendo em vista a lógica intrínseca do capitalismo e o reforço desigual à classe precariada, surgiu, ainda no século XX, o pensamento sobre uma Renda Básica Universal (RBU). Dessa maneira, traçaram-se dois paralelos: o liberal, que condicionava a RBU à alocação universal de recursos, cujo beneficiário não teria vínculo trabalhista; e a social, onde se vincularia ao trabalho, possibilitando a abertura de mais vagas de trabalho, uma vez que as pessoas precisariam trabalhar menos. Por conseguinte, foram implementados alguns conceitos norteadores para uma Renda Básica, a partir da sua incondicionalidade. Essas prerrogativas da concessão da Renda Básica podem ser diferenciadas entre universalização ou focalização. A Renda Básica poderia ter, portanto, incondionalidade forte, ou seja, fornecida a todos, sem quaisquer distinções; incondicionalidade débil, associada a um imposto de renda negativo, para aqueles que não dispõem do mínimo para viver dignamente; ou ainda workfare, cuja concessão do benefício é condicionada ao trabalho (Diniz, 2007). Diversos países, como a Dinamarca, Alemanha, Irlanda e França, definiram núcleos comuns às suas RBU, tais como o Princípio da Universalidade, demanda por parte do próprio interessado, prerrogativas e contrapartidas e valor baseado nas demais contribuições sociais existentes. Com o intuito de garantir uma renda mínima aos cidadãos, de tal maneira a combater os níveis de desemprego e poder estimular o desenvolvimento econômico e social do país, “o Brasil foi o primeiro país no mundo a aprovar lei para instituir, por etapas, uma Renda Básica da Cidadania” (Suplicy & Dallari, 2020). Na próxima seção, será trabalhado o caminho que esse tema vem percorrendo dentro da legislação brasileira e quais suas repercussões empíricas. 82 Legislação e repercussões empíricas no Brasil Em 2020, a globalização serviu para demonstrar quais as diferentes tomadas de decisão estavam sendo colocadas em prática no enfrentamento à pandemia do COVID-19. A principal delas foi a aplicação de uma Renda Básica Emergencial (RBE), proveniente de intervenções massivas do Estado, além de pacotes de medidas sanitárias e econômicas para mitigar as possíveis consequências de uma crise. Dentre essas intervenções, pode-se citar, como exemplo, o pacote de US$ 2 trilhões investidos pelo governo estadunidense, os € 500 bilhões assistidos pela União Europeia e os £ 38 bilhões de ajuda que o Reino Unido disponibilizou (Cardoso, 2020). No Brasil, a crise resvalou em um processo perene de desindustrialização e reprimarização da pauta exportadora, que se apoia em um mercado de trabalho cada vez mais subocupado e informal, tendo como o seu maior parceiro econômico a China, epicentro da pandemia do coronavírus. Com isso, atingindo em grande parte a população inserida na informalidade e tendo em vista o aumento do desemprego, a solução viável que o governo brasileiro adotou foi a concessão do Auxílio Emergencial, viabilizado pela Lei nº 13.982/2020, que dispunha de um valor de R$ 600,00 para os beneficiários que se adequassem aos pré-requisitos estabelecidos. No entanto, a estratégia que os atores políticos devem adotar é mais do que aumentar meramente a circulação monetária na economia no curto prazo, mas elaborar “uma política de desenvolvimento econômico voltada ao pós-pandemia” (Costa, 2020). Para isso, é necessário relembrar o histórico brasileiro de tentativas de viabilizar uma Renda Básica da Cidadania à população. Em 1992, o então Senador Eduardo Suplicy (PT) elaborou o Programa de Imposto de Renda Negativo, que teria uma implantação gradual, ao longo de sete anos, desde as pessoas com mais de 60 anos até as pessoas com 25 anos. Esse público seria formado por aqueles que tivesse uma renda inferior ao equivalente a 45 dólares (cotação de 1998). A correção do valor aconteceria em dois momentos do exercício financeiro ou quando a inflação acumulada atingisse 30%. O Programa, que não foi aprovado pelo Congresso, teria uma base de cálculo específica e o seu financiamento dar-se- ia por parte da União, o que não poderia exceder 3,5% do PIB, enquanto fossem desativadas as políticas compensatórias então vigentes (Diniz, 2007). 83 Alguns anos depois, em 1995, o Deputado Nelson Marchezan (PSDB) elaborou um projeto que concederia R$ 30 mensais a famílias com renda que não ultrapassasse um salário mínimo, por filho ou dependente na faixa entre 0 a 14 anos, onde as crianças maiores de 7 anos deveriam estar matriculadas em uma instituição de ensino. Ainda, como uma condição extra, o membro responsável pela família deveria frequentar cursos de capacitação profissional, estando ou não empregado. Os recursos do projeto seriam divididos, proporcionalmente, entre a União e os Municípios, sua vigência seria de 10 anos, com avaliações anuais, e a correção do valor aconteceria pela inflação e ajuste no salário mínimo (Diniz, 2007). O projeto foi transformado na Lei nº 9.533/1997, após ajustes pelo relator, onde somente os municípios insuficientes poderiam ganhar o incentivo financeiro e o público-alvo foi delimitado apenas entre as famílias que recebessem menos do que meio salário mínimo. Diniz aponta que o caráter autorizativo do programa poderia ser um entrave ao combate à pobreza e à marginalidade social, mas que a aproximação da escala municipal seria um fator positivo na fiscalização e na modelagem do programa. (Diniz, 2007) No primeiro Governo Lula (2003-2006), a aprovaçãodo Programa Bolsa Família, consolidado pela Lei nº 10.836/2004, unificou a existência de alguns programas pré-existentes, tais como Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás. O público-alvo seria aquele composto por famílias em situação de pobreza, cuja renda familiar fosse de até R$ 120, e em extrema pobreza, com renda até R$ 60. (Diniz, 2007) A estipulação do benefício seria de R$ 50 mensais para as famílias em extrema pobreza, independente da composição familiar, e de um benefício variável por gestantes, crianças e adolescentes até 15 anos. Haveria, ainda, o pagamento de um benefício variável de caráter extraordinário para famílias em migração entre projetos. As contrapartidas estabelecidas seriam um acompanhamento do Programa Nacional de Vacinação por parte das crianças de até 06 anos e crianças e adolescentes até 16 anos completos deveriam frequentar pelo menos 85% das aulas (Diniz, 2007). Ainda no mesmo ano, foi promulgada a Lei nº 10.385/2004, que estipulava o Programa de Renda Básica da Cidadania, também proposto pelo Senador Eduardo Suplicy (PT), que tinha como intuito o pagamento de um benefício igual a todos os cidadãos, que fosse suficiente para o 84 atendimento das necessidades básicas. O Programa seria implementado por etapas e o valor seria definido pelo Poder Executivo, de tal maneira a não desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2000) (Diniz, 2007). Reitera-se, aqui, a diferença entre um Programa que busca a universalização, levando em conta o Princípio da Igualdade, e outro que procura estabelecer uma focalização, isto é, busca atender ao Princípio da Equidade. A partir dessa lógica, a seção 3 irá discorrer sobre formas de integrar o Auxílio Emergencial, em tempos de crise, e a inclusão financeira comunitária como uma forma de se alcançar essa desejável universalização, em busca de retomar, no país, a cidadania urbana e industrial. Inclusão financeira comunitária Com a chegada da pandemia, a classe precarizada viu-se em um afluxo de demissões e queda dos rendimentos, cujo impacto chega até o orçamento familiar. O processo de realocação no mercado de trabalho, em tempos de crise, costuma ser demorado e traz consigo uma perda nominal os salários, quando se comparados com os anteriormente recebidos. Com isso, essa classe já marginalizada e subocupada vê-se dependente das transferências estatais discricionárias, buscando aporte em uma das três modalidades de proteção citadas anteriormente. Enquadrado em uma das seis categorias de renda social, estabelecidas por Guy Standing, o Auxílio Emergencial brasileiro retomou o debate da Renda Básica da Cidadania. Por conseguinte, impasses na questão da implementação e operacionalização demandaram respostas rápidas da Administração Pública para garantir que o benefício chegasse o mais breve possível às mãos daqueles que, de fato, poderiam ser caraterizados como público-alvo. O caminho mais intuitivo a ser seguido era o de experiências prévias, ou seja, idealizar o novo benefício com base na funcionalização de um já conhecido, Bolsa Família. Entretanto, por questões de distanciamento social e intenção de ampliação da base de dados do Cadastro Único (CadÚnico), uma ferramenta governamental que concentra todos os beneficiários de programas sociais públicos, fez-se necessária a inovação da metodologia, usando das Tecnologias da Informação para aprimorar esse sistema de concessão. 85 Lotado no Ministério da Cidadania, a gestão dos recursos para todos os beneficiários era feita dentro do Poder Executivo, cujas informações dos beneficiários eram operadas pela DataPrev e, posteriormente, validadas pelo CadÚnico. O Agente Pagador desse sistema foi a Caixa Econômica Federal (CEF), que, de fato, operacionalizou o processo até chegar ao consumidor final: o público- alvo (Cardoso, 2020). Dessa maneira, a atualização cadastral e a transferência de recursos foram feitas por meio de dois aplicativos, criados pela CEF, para poder facilitar o processo e evitar aglomeração nas agências bancárias ou instituições governamentais equivalentes. Apesar dessa tentativa de viabilizar um acesso democrático e fluído, respeitando as medidas de segurança sanitária, o resultado final não se consolidou como o esperado. Por conseguinte, mesmo que a previsão de inclusão do público-alvo fosse abrangente, desde o trabalhador formal ativo até a mãe adolescente, muitos cidadãos não tiveram acesso ao benefício, ora por rejeição dos dados, ora por falta de acesso ao sistema financeiro. (Lauro Gonzalez, 2020) O viés financeiro pode ser explorado e aprimorado através das possibilidades de inclusão fornecidas por Bancos Comunitários de Desenvolvimento e fortalecido pelo uso de Moedas Complementares. Um grande exemplo dessa integração é o Instituto Palmas, um banco comunitário, desenvolvido para atender às demandas da Conjunto Palmeira, em Fortaleza-CE. A classe precarizada, beneficiária do Auxílio Emergencial em sua maior parte, nem sempre possui acesso ao sistema financeiro formal, seja por desinformação, seja pelos custos empreendidos. Para tanto, exemplos como esse benefício em específico poderiam embasar-se de experiências locais, onde, como já apresentado, a ideia de fiscalização e operacionalização é mais suscetível a acertos. Conclusão Evidencia-se, portanto, que essa construção da lógica universal de uma renda básica perpassa não só aspectos políticos e econômicos, mas, principalmente, a inclusão comunitária, seja social, seja financeira. A nova classe perigosa, segundo Standing, precisa desenvolver um símbolo característico, intrínseco à luta própria do precariado. Sendo assim, a partir desses conflitos, a busca por 86 reivindicações poderia abrir caminho frente ao crescente aumento do desemprego e à marginalização desses grupos, aproximando-se da definição de classe-para-si. Ao longo do último ano, pôde-se observar o aditamento expressivo do Auxílio Emergencial. Contudo, tendo em vista suas limitações de acesso e operacionalização, seu alcance tornou-se cada vez menor, uma vez que a inclusão de novos beneficiários não foi possível e as transferências apresentaram problemas técnicos, como a demora. Para tanto, permanece a necessidade de um alinhamento financeiro do sistema, visando que seja feita uma aproximação maior com experiências locais e já consolidadas, como a do Instituto Palmas, onde o público-alvo pode ser de certo melhor atendido. A transformação do Auxílio Emergencial, em um país periférico como o Brasil, em uma Renda Básica da Cidadania, pode parecer distante, mas em microescalas já é implementada, através de moedas complementares e sistemas totalmente digitais, respeitando o distanciamento social, recomendado em tempos de pandemia. Com um esforço entre a tríplice, é possível que haja um Estado operacional, uma cidadania reivindicada pelo precariado e uma explosão do mercado, tendo em vista o seu desenvolvimento comunitário. 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Brazilian Journal of Political Economy, 566-583. 87 PRECISAMOS SER SMART? BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A AGENDA NACIONAL PARA CIDADES INTELIGENTES Alexandre Henrique N. da S. Almeida59 Tainá Farias da Silva Maciel60 Introdução A necessidade de “transformar ‘cidades tradicionais’ em cidades inteligentes” (BOUSKELA, M et al., 2016) começou a ser uma demanda a partir dos anos 1990, quando o rápido crescimento urbano e as mudanças climáticas evidenciaram a iminência de um plano internacional de desenvolvimento sustentável. Com o transcorrer dos anos, cúpulas multilaterais conceberam estratégias e ações para transformar as cidades em territórios inclusivos, resilientes e sustentáveis. Nesse contexto, surgiram propostas como a Agenda 2030, um acordo entre os 193 países da Organização das Nações Unidas que estabeleceu 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); e a Nova Agenda Urbana, um documento que alinhado com os ODS – em especial ao objetivo 11: cidades e comunidades sustentáveis – recomenda à governos, autoridades municipais e organizações, “padrões e princípios para o planejamento, construção, desenvolvimento, administração e melhora das áreas urbanas” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019, p. 8). A NAU (Nova Agenda Urbana) traz, inclusive, em seu corpo o compromisso das nações que a compõem de adotar abordagens do que seria uma “cidade inteligente” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2019, p. 19). Outrossim, tanto a NAU (2019) como a Agenda 2030 (2015) contêm diversas diretrizes sobre a adoção de tecnologias, sobretudo da informação e comunicação, além de possuírem em seu escopo o fomento da transformação das cidades e assentamentos humanos em ambientes mais “verdes”, “acessíveis” e “seguros”. Assim, com o propósito de mitigar os problemas urbanísticos e tornar as cidades mais “eficientes”, “humanas” e “sustentáveis”, governanças globais empreenderam por um processo de 59 Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ 60 Graduanda do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ 88 smartificação dos territórios, no qual a transformação digital apresentou-se como solução indispensável para a gestão e o planejamento urbano. No entanto, apesar dos inúmeros projetos de Smart City que emergem pelo mundo, não existe – até o momento – um conceito uníssono que delimite o que seja uma cidade inteligente. Essa falta de definição padronizada sobre o tema, contribui para que os projetos nomeados smart sejam vinculados a agendas heterogêneas que se articulam de acordo com interesses e interpretações específicas de cada governança. Ou seja, os atributos inteligentes podem ser incorporados de diferentes formas e enfoque, de modo que cada gestão acabe por selecionar as estratégias que considere mais importantes ou mais convenientes do ponto de vista político, econômico e social. Alguns governos podem, por exemplo, implementar ações smart que priorizem demandas mais técnicas, como o uso de dispositivos eletrônicos que otimizem operações e serviços de mobilidade, segurança ou sistema de energia; enquanto outros, podem ser mais sensível à questões ambientais, de transparência, participação etc. Outra característica significativa, que diferencia esses novos modelos de gestão, diz respeito ao nível de implementação no qual se encontram. Apesar de a maioria das estratégias smart serem organizadas a nível local, países e nações vêm a cada dia se reestruturando para tornarem-se um “país inteligente” (ANGELIDOU, 2014). Um dos motivos para essa mudança reside na possibilidade de ampliar a coordenação entre as políticas de smartificação, visto que na corrida rumo à inovação, algumas cidades acabam desenvolvendo projetos smart com base em conceitos e metodologias díspares. Em alguns casos, um município ou até mesmo um bairro se diz inteligente sem efetivamente promover políticas urbanas inteligentes e sustentáveis. No contexto brasileiro, tal situação não é diferente. Na cidade de São Gonçalo do Amarante no Ceará, por exemplo, existe o projeto Smart City Laguna (figura 1) que se denomina como “a primeira cidade inteligente inclusiva do mundo”. O empreendimento 1, construído do zero por uma empresa Italiana, se apresenta como uma Smart City pelo simples fato de utilizar dispositivos tecnológicos em seus lotes residenciais. Mas, seria isso uma cidade inteligente? Será que apenas esses recursos são suficientes para garantir que São Gonçalo do Amarante seja um território desenvolvido e sustentável? O que uma empresa privada é capaz de garantir em termos de moradia e qualidade de vida? Esses projetos dispersos e pontuais, que alegam possuir o “certificado de inteligência”, podem deixar em segundo plano questões primordiais para um planejamento voltado para a redução das desigualdades socioespaciais e uma gestão pública voltada para a inclusão e o acesso 89 democrático aos serviços públicos. Uma visão mais completa do conceito de cidades inteligentes demandaria a junção de um uso estratégico de todo tipo de recurso, inclusive, do capital humano, de modo a incentivar a educação, a criatividade e a participação política de seus cidadãos, promovendo soluções inovadoras que priorizem a qualidade de vida da população (ANGELIDOU, 2014). Figura 1 - Imagem por Planet Smart City Assim, no intuito de evitar essas controvérsias, o Governo Federal começou a articular a produção de diretrizes e políticas públicas sobre o tema das cidades inteligentes. A Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano e o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em parceria com o Ministério das Comunicações (MC), o Ministério do Meio Ambiente (MMA), a Agência Alemã de Cooperação (GIZ) e representantes da sociedade civil, elaboraram recentemente um documento que visa unificar, orientar e articular os programas, iniciativas e investimentos público em cidades inteligentes: a Carta Brasileira Para Cidades Inteligentes. A Carta Brasileira para Cidades Inteligentes A Carta Brasileira apresenta-se como “um documento político que expressa uma agenda pública brasileira.” (BRASIL, 2020, p.14). Como supracitado, este documento foi redigido por diversos setores da sociedades, dentre eles: agências internacionais, agentes do setor privado, órgãos do setor público das três esferas – municipal, estadual e federal–, entidades de ensino e pesquisa e 90 membros da sociedades civil. O processo de criar este documento foi iniciado em março de 2019 e foi concluído em setembro de 2020, sob a gerência da Secretaria Nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano do Ministério do Desenvolvimento Regional (SMDRU/MDR). A Carta é o produto de atividades, dentre elas oficinas, realizadas entre atores que a compuseram com a finalidade de “apoiar a promoção de padrões de desenvolvimento urbano sustentável” (BRASIL, 2020, p.16), e estabelecer um conceito nacionalmente unificado sobre o que são cidades inteligentes. O documento é dividido em três seções – Contexto brasileiro, Agenda pública e Perspectivas futuras –, que nos mostram um breve panorama sobre a situação brasileira acerca deste tema e declara algumas características que deseja que as cidades inteligentes tenham, dentre elas: diversidade, inovação no uso de tecnologias, inclusão de sua população, economia fértil e padrões sustentáveis de produção e consumo. Seu conteúdo é resultado de uma ação prática motivada pela assinatura do Brasil em acordos internacionais, como por exemplo as já supracitadas Nova Agenda Urbana (BRASIL, 2020, p.10) e a Agenda 2030. Além disso, a carta afirma ser um instrumento “para que o país se desenvolva com redução das desigualdades em todos os níveis, formas e dimensões.” (BRASIL, 2020, p.15). Porfim, outro motivo apresentado seria a adoção de TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) que estão frequentemente surgindo e transformando nossa sociedade atual, para que haja diminuição da exclusão digital e pleno direito de acesso a internet. Já na primeira seção, a Carta Brasileira apresenta seus alvos ao elencar os atores a quem se dirigem – políticos e gestores públicos, órgãos de controle, organizações sociais, instituições de ensino e pesquisa e o setor privado. É importante destacar que o documento versa sobre o que cada agente deve realizar: instituições de ensino e pesquisa devem “gerar e disseminar conhecimento, além de apoiar agentes locais por meio de atividades acadêmicas de extensão”(BRASIL, 2020, p.14); gestores e órgãos públicos devem implementar estratégias, articular iniciativas e dar suporte financeiro para a criação das cidades inteligentes; e o setor privado deve “oferecer soluções criativas e inovadoras para as cidades enfrentarem problemas públicos relevantes, indicados e reconhecidos pela população local e socialmente legitimados”(BRASIL, 2020, p.14). Outras diretrizes abrangem o fomento para que toda a população das cidades tenha acesso a internet, o estímulo à participação popular em todo o processo de implantação de tecnologias, e o estabelecimento de padrões para uso de sistemas de governança de dados e uso da tecnologia visando a transparência, a segurança e a privacidade. O ponto central da Carta são os Oitos Objetivos Estratégicos para cidades inteligentes. Que 91 nada mais são do que diretrizes que visam “a transformação digital sustentável nas cidades brasileiras.” (BRASIL, 2020, p.27) Além disso, trazem detalhes de como atingir cada um dos objetivos e como cada ator previamente mencionado deve se portar para alcançar tais realizações. Alguns objetivos se tornam contraditórios, pois, ao mesmo tempo que a Carta revela uma preocupação com a segurança e o uso consciente e transparente dos dados, em outro propõe a implementação de políticas, leis, regulamentos e outros instrumentos que estabeleçam um mercado de dados ético e inclusivo (BRASIL, 2020, p. 53). O que nos leva a questionar se tal mercado não poderia criar uma problemática acerca do uso dos dados, afinal: como comercializar dados com setores que visam primordialmente o lucro e mantém seu modo de operação fechado e longe da observação da população de maneira geral e, ainda assim, manter o controle e a ética no uso dos dados? E, além disso, qual seria o papel do poder público e outras instituições públicas ou regulatórias na gestão e controle dos dados em uma eventual “venda” desses ativos? Seguindo esta linha de pensamento da Carta, podemos questionar e problematizar inclusive o uso do termo “mercado de dados” para um ponto tão crucial acerca da gestão de uma cidade. Como Morozov e Bria (2019, p. 36) destacam, a maioria das cidades que se aventuraram pelo universo das Smart Cities foram capturadas pelos dispositivos regulatórios do neoliberalismo, onde o “empresariamento da gestão urbana” (HARVEY, 1996 apud VAINER, 2007, p. 5), permite que agentes privados passem a ser encarregados de funções que antes eram restritas às instituições públicas. Nessa nova dinâmica mercadológica os dados atuam como moedas de troca, um elemento crucial para selar acordos. Para cidades depauperadas que já estão sob o suplício fiscal da austeridade, esta é uma proposta muito mais atraente: dados não entram em considerações ou em suas medições e, assim, podem ser facilmente cedidos em troca da oferta de wi-fi ‘grátis’ para cidadãos ou de softwares avançados de análise de tráfego para o planejamento urbano (MOROZOV; BRIA, 2019, p. 67). Para mais, a Carta recomenda o uso de TICs de processamento de dados para identificação de fenômenos urbanos e a sistematização de dados que sejam relevantes para o desenvolvimento urbano e sustentável; a criação e utilização de indicadores que avaliem a situação das cidades; e também a criação de um Sistema Brasileiro de Maturidade para Cidades Inteligentes – uma plataforma de monitoramento das ações que cada cidade estaria tomando frente aos objetivos propostos. Para nós esse é um dos pontos mais problemáticos do documento. A concepção de um método de avaliação pautado pelo “grau de maturidade” de indicadores pode acirrar a 92 competitividade entre as cidades e ampliar as desigualdades territoriais. Como citado anteriormente, o uso de métodos avaliativos – rankings, premiações, indicadores etc. – fazem parte de uma estratégia que movimenta um mercado global de empreendimentos e inovações tecnológicas, no qual cidades concorrem entre si para atrair capital. Os rankings aumentariam a dependência dos municípios por linhas de crédito e fundos financiados pelo Governo Federal. Por consequência, grande parte das cidades ficariam dependentes desse processo, uma vez que muitas já passam por períodos de condições econômicas desfavoráveis, permeadas por crises fiscais e financeiras, que podem ser agravadas se levarmos em conta que uma parcela de seus orçamentos são estipulados pelo governo federal e são passíveis de cortes. Além disso, é preciso considerar que, no geral, as classificações são construídas a partir de diretrizes internacionais, como o International Telecommunication Union (ITU) e o ISO 37122/2019, que não consideram as particularidades brasileiras e podem até camuflar algumas realidades. A título de exemplo podemos citar o caso da cidade do Rio de Janeiro que já recebeu o prêmio de cidade mais inteligente do mundo pelo Smart City Expo World Congress de 2013, mas até hoje enfrenta inúmeros problemas, como os elevados índices de criminalidade, saturação do sistema de saúde, sucateamento do transporte público e ausência de esgotamento em vários pontos do município. Como uma premiação baseada nos critérios de inovação, impacto e viabilidade, que tinha entre seus princípios o estímulo à sustentabilidade, qualidade de vida, competitividade e eficiência administrativa pode considerar inteligente uma cidade que não consegue transformar positivamente a realidade de sua população? Como podemos atribuir inteligência a cidade cujo projeto de gestão Smart amplia as lacunas sociais (ANGELIDOU, 2014)? Considerações finais A Carta Brasileira considera que “O futuro das cidades brasileiras depende de entender que a transformação digital é um processo dinâmico, inédito e capaz de ser gerido. E também entender os impactos que essa transformação causa nas cidades e nas pessoas” (BRASIL, 2020, p. 68). Sua proposta é ser um produto base que incentivem outras instituições e organizações a construírem produtos similares que fomentem o desenvolvimento sustentável e a construção de cidades que façam uso de governança inteligente. Contudo, acreditamos que para além de pensar o que seria uma Smart City no contexto brasileiro, deveríamos refletir sobre os caminhos que queremos percorrer na busca pela cidade do futuro e por fim nos perguntarmos: precisamos ser Smart? 93 Referências Bibliográficas ANGELIDOU, M. Smart city policies: A spatial approach. Cities, v. 41, p. S3-S11, 2014. BRASIL. Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento Regional, 2020. 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Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. 94 RELAÇÃO ENTRE AS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DOS EUA COM O BRASIL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Carla Januário, Gabriela Duarte e Vanessa Mello61 De acordo com a historiografia, a democracia dos EUA como nação soberana começou a se desenvolver a partir da Declaração de Independência, em 4 de julho de 1776, rompendo oficialmente os laços políticos e econômicos que as 13 colônias tinham com o então Império Britânico, de Jorge III. Com a ratificação da nova constituição dos EUA em 1788, foi criado um sistema voltado para o equilíbrio entre a forte autonomia de cada estado e a organização estatal federal. Dessa forma, o poder central característico dos Estados federados passou para a figura do presidente da República, representando o executivo, num sistema de “freios e contrapesos” expresso com a presença das atividades congressuais e dos tribunais. Assim, o sistema político democrático, federativo, republicano e presidencialista dos Estados Unidos é mantido por uma democracia representativa assegurada por eleições indiretas. Conforme o art. 2°, § 1, e a nova redação dada pela Emenda n° 12 (1808) ao art. 2°, § 1, Cláusula 3, da Constituição Federal dos Estados Unidos, as eleições para presidente e vice-presidente se dão nos seguintes termos, entre outros: Cada Estado nomeará, de acordo com as regras estabelecidas por sua Legislatura, um número de eleitores igual ao número total de Senadores e Deputados a que tem direito no Congresso; todavia, nenhum Senador, Deputado, ou pessoa que ocupe um cargo federal remunerado ou honorifico poderá ser nomeado eleitor. [...] Os eleitores se reunirão em seus respectivos estados e votarão por escrutínio para Presidente e Vice-Presidente, um ao menos dos quais não será habitante do mesmo estado que os eleitores; enumerarão em listas distintas os nomes de todas as pessoas sufragadas para Presidente e para Vice-Presidente, assim como o número de votos obtidos por cada uma delas; assinarão e autenticarão essas listas e as enviarão seladas à sede do Governo dos Estados Unidos, dirigindo-se ao Presidente do Senado. Todas as cédulas serão por este abertas, perante ambas as Câmaras, contando-se os votos. Será eleito Presidente o candidato que reunir maior número de votos para esse posto, se esse número representar a maioria dos eleitores designados (UEL, Tradução de J. Neto). 61 Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 95 Isto é, os eleitores citados na constituição são os delegados designados de cada estado, que compõem o Colégio Eleitoral. Os estados têm direito a um delegado por distrito e dois por seus senadores no Congresso, e eles votam nos candidatos de sua preferência. Então, o cidadão norte- americano comum entrega seu voto aos delegados para que estes votem no seu candidato, e quem alcançar o maior número de votos dos delegados vence a eleição. Além disso, pela autonomia característica do sistema estadunidense, cada ente federado pode ter normas eleitorais específicas, como a possibilidade de alguns deles permitirem recontagem de votos, se houver uma margem suficientemente pequena de um oponente ao outro, ou o fato de a maioria usar o sistema winner- takes-all (vencedor leva tudo), em que, caso o candidato conquiste mais da metade dos delegados naquele estado, conquista todos os votos disponíveis do mesmo. É a partir desse sistema, que incentiva uma configuração de estados-chaves cujos votos têm mais peso de decisão, que a disputa eleitoral norte-americana para a presidência do país, entre Donald Trump (Republicanos) e Joe Biden (Democratas), ocorreu. Apesar de os maiores veículos midiáticos, os estados, o Colégio Eleitoral e o Congresso terem pronunciado a vitória de Biden, Trump se nega a dar a eleição por vencida, e, provavelmente, nunca aceitará a derrota. Com mais de 50 processos negados nos tribunais estaduais, e 2 rejeitados na Suprema Corte (mais alta esfera judicial do país em que ele e seus defensores contavam como certo o apoio da maioria de seus juízes), só restou ao republicano apelar para a disposição de seus seguidores ao protesto violento. Com o intuito de reverter a eleição em seu favor, no dia da certificação do pleito dada pelo Congresso, em 6 de janeiro, convocou o povo ao Capitólio, acarretando pelo menos 5 mortes. Dessa forma, fica nítido o caráter ideológico do governo trumpista de propagar ação política por meio da força, e apoiado por Bolsonaro. Diante disso, o cenário geopolítico dos últimos anos tem sido marcado pela ascensão de governos que propagam um discurso baseado em ideias neofascistas (de incentivo à microviolências não assumidas às minorias sociais, disseminação de mentiras óbvias, de cunho racista, religioso e de apoio político e econômico voltado para as elites) aliadas ao pensamento neoliberal. O presidente Trump, eleito pela primeira vez em 2017, foi o precursor desse tipo de discurso com amplo alcance político, seguido por Bolsonaro, no Brasil e, em menor medida, por Boris Johnson, no Reino Unido. Isso foi possível, entre outros fatores, pela configuração das relações internacionais predominante vigente (realista e liberal), que permite a determinados países, como os EUA, um poder de influência política econômica maior no âmbito global. 96 De acordo com uma live exibida no canal do jornal Brasil 247, Igor Fuser (Prof. Doutor do curso de Relações Internacionais da UFABC), explica que a política externa dos EUA não é gerida apenas a partir dos ideais do presidente ou de seu partido, mas é também determinada pela influência nas políticas que vão de encontro aos interesses de atores políticos e econômicos dominantes daquele país (Wall Street e Vale do Silício, como exemplo). Consequentemente, o objetivo atual principal daquela nação é reaver a hegemonia econômica e política no cenário internacional, que vem perdendo espaço para a economia chinesa, porém sem prejudicar as gigantes multinacionais norte- americanas que desenvolvem sua cadeia produtiva naquele mercado. Dessa maneira, para impedir esses avanços, eles pressionam seus aliados na Europa e na Ásia para que adotem posições contra o Estado chinês. Já no cenário latino-americano, sobretudo no Brasil, as pressões são em favor de governos neoliberais, conservadores de direita, que têm maiores incentivos para direcionar o mercado aos interesses norte-americanos (aprofundando as relações estruturais desequilibradas entre países centrais e periféricos), reduzindo as chances de uma política social e econômica mais justa. Portanto, essa configuração não vai mudar e é independentemente de qual presidente esteja à frente da Casa Branca. Nesse sentido, o que pode mudar para o Brasil com a derrota de Trump é a ocorrência de uma inflexão de força moral do discurso bolsonarista no âmbito das relações internacionais, pois o ponto de apoio pelo qual o Bolsonaro baseia suas falas vem da influência específica do presidente norte- americano. Conforme declarações já proferidas pelo próprio, especula-se que Bolsonaro, caso não consiga se reeleger, tentará usar a mesma estratégia de Trump, que gerou indignação e ainda mais isolamento político internacional, para deslegitimar o pleito de 2022 através da violência e do caos social. Assim, a política externa brasileira atual se apoia no discurso antissistema e extremista do Trump, causando diversos constrangimentos nos fóruns mundiais, e abalando o relacionamento cordial entre os demais governos com o Brasil, em especial com a Europae a China. Porém, a principal consequência política e econômica que a perda dessa influência poderá gerar, será no debate da questão ambiental. No primeiro debate presidencial entre Biden e Trump, os então candidatos falaram sobre o tema da política ambiental brasileira feita pelo governo Bolsonaro. Algo sem precedentes num debate político dessa natureza. Inclusive, Biden disse que no governo dele, se Bolsonaro não mudar a condução da questão ambiental no Brasil, que promove a destruição da Amazônia e rompe com 97 direitos humanos ao lidar com reivindicações indígenas, ele fará uso de sanções econômicas e comerciais para refrear essa política. Esse tipo de sanção é previsto pelo Conselho de Segurança da ONU, nos termos do art. 41 da Carta das Nações Unidas, em que dita a possibilidade de aplicar: ...as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas", que poderão incluir "a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie. e o rompimento das relações diplomáticas (CNU, 1945, Art. 41). Em vista disso, os EUA (sozinho ou em conjunto com outros países) sob a gestão de Biden, podem aplicar sanções no intuito de pressionar o governo brasileiro a emitir medidas de proteção ao meio ambiente e aos Direitos Humanos. Ou seja, com a eleição de Biden e com a ascensão de Estados menos conservadores, principalmente na América Latina, a promessa é de que esse cenário sofra mudanças na esfera internacional, logo, será difícil para Bolsonaro obter apoio estrangeiro. Mas, na esfera interna, é pouco provável que algo mude de fato, já que nas últimas eleições municipais ainda houve grande preferência da população por candidatos conservadores e de direita. Essa análise geopolítica da influência dos EUA no âmbito político e econômico é compatível com as vertentes teóricas positivistas (realistas e liberais), que segundo os autores Nogueira e Messari (2005), prevalecem como teorias de relações internacionais dominantes desde o pós-guerra, em 1945. Apesar de terem nascido na Europa, no imediato pós-Primeira Guerra Mundial, com o intuito de prevenir guerras de grandes proporções entre os Estados e preservar a soberania de cada nação assim como foi estabelecido no Tratado de Westfália (sem repudiar as tendências hegemônicas e de desequilíbrios na balança de poder), as teorias foram desenvolvidas a partir dos debates de relações internacionais promovidos com base na visão de mundo complexa e muitas vezes contraditória dos EUA. Essas teorias mais convencionais partem do pressuposto de que cada Estado, por ser soberano na esfera internacional, opera num sistema anárquico em que a busca pela realização de seus interesses por quaisquer meios necessários, com o acúmulo de poder econômico num ambiente de livre mercado (especialmente para o uso da violência na resolução de conflitos), é natural. Além disso, ela persegue a manutenção das relações através do equilíbrio de balanças de poder, que impedem uma desconfiguração do arranjo internacional vigente por alguma nação em ascensão 98 (exemplo da China ameaçando tomar a dianteira hegemônica da economia mundial, através de um modelo de socialismo de mercado). Logo, para eles, não há o que se fazer além de elaborar planos que guiem a ação do Estado no sentido de reduzir ao máximo as possibilidades de guerra. É a visão ser da concepção realista, que não se preocupa em como as relações internacionais e o mundo deveriam ser. É percebida tanto nas políticas externas do governo Obama (com Biden como vice) quanto do Trump. Já a teoria liberal prega que, a partir da concepção funcionalista de observar o mundo como ele é (em contraponto com a sua própria visão idealista antes da Segunda Guerra), a estrutura das organizações depende da função que ela desempenha. Consequentemente, o foco nas funções e não nas instituições, tira a conotação política das ações, restringindo-as ao terreno técnico. Essa forma de pensar promoveu o fortalecimento das redes de cooperação para a resolução de problemas e a maior integração econômica mundial. Pela ótica da interdependência, a interligação entre as economias e a exportação mútua de cultura e padrões de consumo faz com que seja mais difícil os conflitos escalonarem para guerras propriamente ditas. Com isso, os efeitos políticos e econômicos em um país são sentidos nos demais. Desde sua origem, o pensamento liberal acredita que apesar de todos nascerem iguais entre si, nem todos são adeptos da competição e do conflito. Porém, a igualdade permite que as pessoas enxerguem situações em que é possível a harmonização das ações em prol de interesses mútuos. Essas ideias partiram inicialmente do trabalho de John Locke, que defendia o Estado como uma instituição capaz de regulamentar ou mediar os direitos naturais intrínsecos ao indivíduo, como a liberdade. Os EUA bem difundem essas ideias, porém, na nossa opinião, somente quando estas seguem sua agenda política e, constantemente, acabam sendo uma “fonte de conflitos”, como dizem os autores Keohane (1971) e Nye (1977), para os demais países. Para enxergar uma visão crítica desse sistema, e de acordo com Messari e Nogueira (2005), teorias conhecidas como críticas e marxistas foram elaboradas. Elas se contrapõem, entre outros pontos, aos ideais realistas e liberais na medida em que não consideram o sistema anárquico como um dado natural no ambiente externo, mas que ele é construído historicamente pelas ações dos seres humanos a partir de limitações das estruturas sociais aos quais estão inseridos, sendo, portanto, capazes de mudá-lo. Assim, as teorias marxistas, de dependência e sistema-mundo, se preocupam com o desenvolvimento desigual promovido pela configuração do capitalismo global em países centrais (ricos) e periféricos (pobres). Nessas teorias, cada uma com um enfoque específico, a ação estatal é 99 um instrumento capaz de mudar a posição dos países na divisão internacional do trabalho, através de investimentos, comércio e tecnologia, e de restringir a troca desigual e os desequilíbrios das balanças de pagamentos (como importações mais fortes que exportações). Já a teoria crítica, moldada a partir dos ideais da Escola de Frankfurt, considera fluida a realidade hegemônica dos países na configuração internacional, no sentido de que ela não depende só da ação dos Estados, mas de um conjunto de elementos capazes de promover mudanças estruturais, como capacidades materiais (tecnologia e organização do Estado), ideias (comunicação entre o povo a partir da cultura, ideologias e regras sociais) e instituições (arranjo jurídico-político que traduz as capacidades materiais e ideias em ações dos atores sociais). Além disso, critica o fato de que as teorias predominantes deixam de fora do debate o papel dos diversos atores na política mundial, permitindo a marginalização das mulheres, negação dos direitos de refugiados e ignorância quanto à importância de identidades étnicas e culturais. Desse modo, elas mostram que, ao contrário dos discursos liberal e realista, uma mudança menos desigual do sistema atual de relações internacionais é possível. 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The New York Times, 2020. Elections. Disponível em: <https://www.nytimes.com/interactive/2020/11/03/us/elections/results-president.html> - Acesso em: 15 de jan. de 2021. MAZZUOLI, V. O. Curso de Direito Internacional. 5° Edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. NOGUEIRA, J. P e MESSARI, Nizar. Teorias das Relações Internacionais: correntes e debates. 1° Edição. GEN Atlas, 2005. https://www.nytimes.com/interactive/2020/11/03/us/elections/results-president.html 101 Parte II CAMPOS DE PÚBLICAS E IMPACTO SOCIAL: 10 ANOS DO GPDES 102 DIVERSIDADE NA UNIDADE: OS 10 ANOS DO GPDES E O CAMPO DE PÚBLICAS62 Por Breno Seródio63 Extensão Universitária e Reforma Administrativa O curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, em seus 10 anos de existência, testemunhou diversas transformações, tanto no ambiente político, econômico e institucional do país, como oriundas do próprio Campo de Públicas. De acordo com Maria Aparecida Abreu, as transformações da última década conferiram relevância ao curso de Gestão Pública e ao Campo de Públicas, enquanto instrumentos de aprimoramento democrático e fortalecimento das instituições. Após uma década de criação do GPDES, a esperança transpôs-se em resiliência e a graduação se tornou fundamental para combater o enfraquecimento da democracia e o aumento das repressões às dinâmicas sociais. Ao analisar os fatores causadores da instabilidade política desde o início da década de 2010, Abreu aciona uma complexa leitura não binária, atribuída aos movimentos que tomaram as ruas de todo o Brasil no ano de 2013, como percurso analítico para se compreender o período recente. Inicialmente, o caráter reivindicativo das demandas era acerca do aumento da passagem dos ônibus, mas, em seguida, o movimento ganhou uma característica multifacetada ao lado da despolitização, apresentando-se como uma resposta à supressão de políticas sociais, escândalos de corrupção e crise econômica que assolavam o país. Por consequência dessa dinâmica, em 2016, a Presidenta Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2916), em seu segundo mandato, sofreu o processo de impeachment, considerado por muitos estudiosos como um golpe à democracia. 62 Memória do evento em comemoração aos 10 anos do GPDES, realizado em novembro e dezembro de 2020 https://youtube.com/playlist?list=PLLxJl5m48l9Q2acx7cqOaXLoyWgS6bcyw 63 Graduando do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social - IPPUR/UFRJ https://youtube.com/playlist?list=PLLxJl5m48l9Q2acx7cqOaXLoyWgS6bcyw 103 Outro elemento político a ser considerado nas análises referentes aos últimos dez anos é a existência da Operação Lava-Jato, no qual o Poder Judiciário apresentou-se como uma espécie de bastião da moral diante dos outros Poderes, principalmente em relação ao Executivo. Para Abreu, esse quadro tem como implicação para o Campo de Públicas a excessiva presença de carreiras jurídicas sem a devida responsividade de suas atribuições, provocando uma paralisia nas tomadas de decisão originadas pelo Poder Executivo. Os recentes episódios políticos tiveram importantes implicações no Campo de Públicas e na atuação de seus profissionais. O professor Fernando Coelho busca contextualizar a dinâmica brasileira na qual o Campo de Públicas foi inserido, tendo em vista o Processo de Redemocratização, a partir de 1985, e que, posteriormente, transformou-se em uma série de incertezas e regressos no âmbito das políticas públicas. Através deste exame, Coelho elenca os principais eventos para o fortalecimento do Campo de Públicas no Brasil, desde a Constituição Federal de 1988, quais sejam: abertura comercial inserida na dinâmica de globalização; estabilidade monetária e redefinição do quadro fiscal; processo de reforma estatal e o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE); processo de descentralização de políticas públicas; agenda da diminuição de desigualdade social; ampliação das políticas sociais e sua agenda transversal; e o debate acerca da qualidade dos serviços públicos. Não menos importante são as mudanças estruturais na Administração Pública por dimensão/geração. As transformações na dimensão econômica do Estado, através de suas funções reguladora, promotora e provedora, acompanhadas de equilíbrio fiscal e empoderamento da fiscalização e controle são conceituadas como de primeira geração. A segunda geração, de caráter administrativo, refere-se à melhoria na prestação do serviço público, desburocratização da gestão e transparência administrativa. A terceira geração se consolida a partir dos graduais avanços sociopolíticos, fomentados pelo reconhecimento dos Direitos Sociais, mecanismos de Participação Social e tradução desses avanços em políticas públicas. O Campo de Públicas, enquanto domínio intelectual, acadêmico e disciplinar autônomo do âmbito da Administração de Empresas, se consolida nos anos de 2000, concomitantemente à disseminação acadêmica promovida pelas políticas públicas de expansão universitária, como o Programa Universidade para Todos (PROUNI); a Reestruturação e Expansão das Universidades 104 Federais (REUNI); o Programa Nacional de Formação em Administração Pública, do Sistema Universidade Aberta do Brasil; (PNAP/UAB); e a expansão das universidades estaduais. A partir de dados do INEP, de 2018, o campo conta com aproximadamente 300 cursos e 35.000 matrículas, mostrando a relevância da área juntamente à institucionalização do movimento estudantil (FENECAP) e docente (ANEPCP). Por conta da multidisciplinaridade do campo e transformaçãodo perfil de gestor público, que anteriormente exercia um viés mais tecnocrático e pragmático, o profissional do campo de públicas se torna mais sensível às nuances e complexidades das políticas públicas, apresentando domínio em diversas áreas do conhecimento relevante à gestão e, assim, ressignificando o burocrata padrão do século XX e o tornando mais responsivo aos tempos modernos. Com relação ao mercado de trabalho da Gestão Pública, Coelho ressalta sua amplitude e diversidade, o que permite que os egressos tenham uma gama de opções para exercerem suas atribuições. O setor público se apresenta como principal campo de inserção, seguido da Carreira Acadêmica e posições em Organizações Internacionais, porém não se restringindo nessas diretrizes e se expandindo para o Mercado Privado, o Terceiro Setor e o “Setor 2.5” referente aos negócios de impacto social. Desta forma, o Professor enfatiza o caráter multidisciplinar do profissional da área, assim como seu olhar holístico diante dos desafios a serem enfrentados nesse ofício. O efeito do bolsonarismo na agenda de políticas públicas O professor Fernando Abrucio, primeiro presidente da ANEPCP, destaca a dificuldade de construção de instituições democráticas no Brasil, fato esse que enriquece ainda mais a relevância dos dez anos do GPDES. Ao analisar a conjuntura atual, Abrucio chama a atenção para a dicotomia dos modelos de políticas públicas (ou antipolítica) do bolsonarismo em relação aos avanços objetivados no Campo de Públicas, tendo em vista o processo de redemocratização brasileira, apesar de seus problemas e complexidades, como o maior rival do projeto de Bolsonaro. A importância dos 30 anos (1988-2018) de mudanças e progressão da esfera pública no país são inegáveis aliados na implementação de políticas públicas e parceiras de uma gestão pública eficiente em prol do desenvolvimento. A construção do Campo de Públicas se materializou como agente fundamental nessa transformação. 105 A luta pela construção e desenvolvimento do Campo de Públicas se configura como um processo de suma importância no avanço do conceito de esfera pública, pois dialoga com a sociedade civil gerando uma redemocratização para além do Estado. O retorno em potencial que esse campo apresenta para o bem social e avanço do Estado de Direito no país é motor crucial para o avanço social e governamental que pode ser visto no período abordado. As eleições passam a ser veículo da representatividade e consolidação democrática, que é complementada pela busca de suprir as demandas sociais a fim de fortalecer o regime republicano tão importante para os gestores. Aprofundando o paralelo entre o Campo de Públicas e a redemocratização, o período recente é considerado como um retrocesso nas conquistas dos últimos 30 anos. Fernando Abrucio entende que o atual presidente tem o objetivo de destruir todas as conquistas ao longo do processo pós-ditadura. O maior inimigo de Bolsonaro é o amplo funcionamento das Instituições Republicanas e essas por sua vez, são a força motriz das Políticas Públicas. Esse governo apresenta uma clara intenção de combater o Estado de Bem-estar Social introduzido no período da redemocratização, apesar de suas nuances e complexidades. Houve avanços e retrocessos ao longo desse caminho, contudo a ruptura é contemplada pelo governo de Jair Messias Bolsonaro. Com relação à gestão do atual Governo no combate à crise sanitária imposta pela pandemia da COVID-19, ressaltou-se que o chefe do Poder Executivo foi publicamente contrário a qualquer implantação de política pública de apoio às populações mais vulneráveis. Ancorado pela ideologia neoliberal, representada pelo Ministro Paulo Guedes, Bolsonaro não apresentou nenhum projeto ou planejamento de enfrentamento concreto. Contudo, o auxílio emergencial foi aprovado pelo Congresso, com apoio principalmente de partidos de oposição. Abrucio faz o seguinte questionamento: “Qual seria o destino da população e do país como um todo, se não houvesse o auxílio emergencial?”. Ao dialogar com toda a conjuntura atual, que é crucial para o desenvolvimento de políticas públicas assertivas e uma gestão pública cada vez mais atualizada e alinhada com o real interesse coletivo, Fernando Abrucio anuncia que sua reação ao (des)governo Bolsonaro é exatamente o inverso do que se espera, o inverso do desânimo e da apatia. O professor, que é peça chave na história da construção do Campo de Públicas, ressalta a importância, mais do que nunca, da formação de gestores qualificados, acadêmicos que possam transpor apenas do regime teórico e essencial fomento dessa área fundamental para a manutenção da República brasileira. 106 Desafios e perspectivas do Campo de Públicas Com a participação da Professora Gabriela Lotta (FGV/EAESP) e do Professor Daniel Conceição (IPPUR/UFRJ), a comemoração dos 10 anos do GPDES debateu os “Desafios e perspectivas do Campo de Públicas”. O Professor Daniel ressaltou a importância da construção de um Estado de caráter justo, sustentável e desenvolvido em aspectos sociais e econômicos, por meio da atuação do Campo de Públicas. A contaminação de agentes provedores de ideais contrários às ações estatais na atual composição governamental, com enfoque no nível Federal, torna a situação muito delicada e de certa medida insustentável, na ótica do Professor. Ainda no âmbito das Ciências Econômicas, é abordada a grande influência de setores de economistas que disseminam ideais falaciosos, a fim de contribuir para o desmonte do poder do Estado como tomador de decisão. O Professor Daniel enfatizou que a principal justificativa – tendenciosa e ao mesmo tempo refutável – é a falta de verba do Governo Brasileiro, sendo instrumento de causa para diminuição de políticas sociais, diminuição do investimento em tecnologia, saúde e educação, por exemplo. Daniel abordou o fenômeno do desgaste das ações e serviços governamentais que enfrentamos nos tempos atuais. O modelo propaga que os serviços provindos do Setor Público são ineficientes, com excesso de procedimentos burocráticos e com dinâmicas de corrupção enraizadas, sendo assim os serviços prestados pelo ente privado ganham espaço, são aceitos pelo senso comum e recebem legitimidade na sociedade. Entretanto, existem diversas situações em que as falhas e ineficiências do Setor Privado se evidenciam em nossa rotina, porém não são atribuídas a uma falência desse setor, como é feito com a esfera pública. A pandemia COVID-19, por sua vez, levou à tona a real capacidade de mobilização por parte do Estado de prover ações estratégicas e ser um agente fundamental no desenvolvimento de um país, em contradição ao Setor Privado. Ao ressaltar a importância do papel estratégico do Estado, como provedor do desenvolvimento e gerador de inovações de fomento e melhorias sociais, o Professor Daniel cita a economista italiana Mariana Mazzucato, que ressalta a origem estatal de inovações que impressionam a humanidade na área tecnológica, por exemplo. Inicialmente são projetos governamentais que ao ganharem notoriedade e relevância em seu determinado mercado são capturados pela iniciativa privada. As contribuições da Professora Gabriela partem de uma ótica 107 da Administração Pública, no qual se ressalta a principal agenda dos setores progressistas e dos que acreditam no Estado e buscam uma atuação estratégica: a melhoria e fortalecimento do Estado brasileiro. Em sua análise, a destruição do campo estatal imposta pelo Governo brasileiro sucede os Governos Petistas, que também agiram de forma insuficiente no que se refere à melhoria concreta das condições de vida da população. Tal crítica não invalida ou nega as grandes ações desses governos, porém busca alinhar um horizonte futuro, de modo a refletir sobre possíveis caminhos pelos quais o Estado deve buscar se fortalecer. O projeto de Bem-estar SocialBrasileiro, da Constituição Federal de 1988, instrumentalizou avanços primordiais citados pela Professora. O Brasil construiu instituições democráticas nos últimos 30 anos, a exemplo da criação dos conselhos de política pública: até 2015 o país apresentava 30.000 conselhos em operação, o que revela a importância da construção institucional levantada por Lotta. A partir disso, é necessário fazer um diagnóstico desses avanços e os limites encontrados em seu desenvolvimento, a fim de formular agendas e prioridades públicas para atingir a universalidade das ações estatais. Tendo em vista a expansão no sentido de promover a universalização dos serviços públicos, o grande desafio contemporâneo do Campo de Públicas consiste na melhoria e fortalecimento das áreas já consolidadas e atenção às áreas que não foram incluídas no processo de universalização. Um exemplo é a universalização do Ensino Fundamental nas escolas públicas, porém o Brasil ocupa uma posição não satisfatória no PISA, Programa Internacional de Avaliação dos Alunos, indicador importante no meio da educação. Por isso, além de continuar com a expansão, que foi desacelerada nos últimos anos, uma perspectiva essencial é fomentar a qualidade desses serviços já conquistados. A construção da legitimidade se impõe como advento fundamental para o fortalecimento das Instituições Democráticas, ao olhar popular o Estado brasileiro não apresenta caráter eficiente e representativo, tornando a necessidade do diagnóstico estratégico crucial para o fomento de superação dessa narrativa neoliberal. A formulação de uma agenda que busque a redução da desigualdade se compõe de maneira intrínseca a essa construção, pois o entendimento de falhas por parte do Setor Público irá possibilitar a ação nas pautas prioritárias, tornando-se uma perspectiva fundamental para o profissional do Campo de Públicas. 108 Por fim, Gabriela Lotta elenca ações em que os componentes do Campo de Públicas necessitam se engajar a fim de que o Estado alcançe uma eficiência mais satisfatória. O avanço na integração intra-estatal, para que os circuitos de acesso dos cidadãos (principalmente os que se encontram em maior vulnerabilidade) aos serviços públicos sejam mais facilitados com o aumento da intersetorialidade do Estado; o desenvolvimento das relações e dinâmicas do modelo Federativo, para que Estados e Municípios com maior vulnerabilidade sejam capazes de fomentar a produção de Políticas Públicas efetivas; e uma agenda de construção de capacidades municipais, de fortalecimento dos municípios são alguns aspectos ressaltados pela Professora. Outro ponto explicitado pela Professora é uma agenda de Reforma do Estado – que nada tem a ver com a agenda representada pelo Governo Bolsonaro – uma agenda que passe pela profissionalização dos agentes que atuam no campo, acompanhado de uma reestruturação organizacional para a eficiência do setor. Assim como a agenda da Transparência, de suma importância no processo de melhoria dos serviços públicos, visto que o atual Governo Federal nos deixou claro que a dependência da boa conduta ética de um determinado governo é uma alternativa falha. Para que alcancemos um aumento de legitimidade do Estado, o aumento da Transparência se apresenta como instrumento orgânico importante. 109 AGÊNCIA IPPUR: HISTÓRIAS E DESAFIOS Equipe Agência IPPUR Em clima de comemoração - 10 anos do curso de Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES), 100 anos da UFRJ e rumo aos 50 anos do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) -, compartilhamos a história, perspectivas e desafios da Agência IPPUR, parte recente dessa trajetória. O ano era 2016 e o contexto era de greve nas Universidades Federais. No intuito de contribuir para a produção de textos que pudessem "traduzir" para um público mais amplo os enquadramentos analíticos produzidos pelos alunos do IPPUR, o mestrando Felipe Villela de Miranda, que vinha realizando pesquisa etnográfica e discutindo o "jornalismo gonzo" com a orientadora Soraya Simões, convidou um colega jornalista da BBC para participar de um dos Grupos de Trabalho formados durante a greve. Com a contribuição do jornalista, foram organizadas oficinas de textos com aquela finalidade. A orientação da pesquisa de Felipe viria a ser marcada por esse interesse comum na produção do texto do gênero etnográfico e do chamado "jornalismo gonzo". A Agência IPPUR nasce então do engajamento político do corpo discente, com o objetivo de promover o imbricamento entre o pensar e o agir na realidade, marca histórica do IPPUR. Em 2017, a Professora Soraya Simões, jornalista de formação e antropóloga, então coordenadora de Pesquisa e Divulgação, hoje nossa Coordenadora de Pós-Graduação stricto sensu, propôs a Agência IPPUR como um projeto institucional. A proposta, realizada sob a Direção do Professor Pedro de Novais, teve como concepção estruturar um núcleo gerador de informação e divulgação das questões e debates produzidos pelos pesquisadores do IPPUR, “o que ganha contornos mais nítidos quando apresentamos a proposta nos termos de uma agência de notícias, a Agência IPPUR. A Agência IPPUR teria como objetivo tornar acessível ao público mais amplo a produção do IPPUR, através do estímulo à participação do corpo de pesquisadores nos debates públicos”, conta Soraya Simões. Entre suas atribuições estão: i) acompanhar políticas de planejamento urbano e regional e gestão pública, para noticiar pontos de vista e interpretações formuladas nas pesquisas em curso no instituto; ii) fazer o levantamento de dissertações e teses defendidas no IPPUR; iii) estabelecer esta 110 produção como referência para a qualificação dos mais variados debates públicos nos campos do planejamento e da gestão; iv) realizar entrevistas com os pesquisadores do instituto sobre temas concernentes às suas pesquisas que estejam em pauta na arena pública; v) divulgar o andamento das pesquisas do corpo discente, em um espaço próprio destinado a apresentar entrevistas, filmes, fotografias e relatos das ações de pesquisa; vi) publicar pequenas notas sobre as atividades acadêmicas do Instituto, como defesa de teses e dissertações, oficinas PUR-GPDES, PUR e GPDES, seminários, ações de extensão; e vii) acompanhar o noticiário, visando inserir o conhecimento produzido pelo IPPUR nos debates públicos concernentes ao planejamento territorial e à gestão pública. A ideia de pensar o projeto em termos de agência é “a possibilidade de produzir reportagens com vídeos, fotografia, notas, etnografias e se consolidar como um espaço de exercícios metodológicos e explicitação de “modos de olhar”, ou seja, das teorias e abordagens que informam e formam as pesquisas no IPPUR”, completa Soraya, idealizadora do projeto. Além da Agência IPPUR, o projeto contou com a criação do Boletim Informativo do IPPUR, divulgado aos contatos do IPPUR com notícias de lançamento de livros, congressos, editais, bolsas, cursos e eventos acadêmicos, de modo a criar um espaço de circulação de informações de interesse comum a todos. Sob a Direção Colegiada de Orlando Alves dos Santos Júnior, a coordenação de Pesquisa, Divulgação e Documentação foi assumida por Deborah Werner e Lalita Kraus, momento em que a Agência IPPUR foi articulada à área de Comunicação Social do curso de graduação em GPDES. Através do Boletim IPPUR, damos publicidade às atividades do Instituto, artigos informativos, pesquisas, seminários, editais para o público acadêmico e não acadêmico, o que se torna um grande desafio pela linguagem a ser utilizada, as ferramentas de comunicação a serem dominadas, a gestão de redes sociais, um mundo novo a ser conhecido. Desde a concepção do projeto, a Agência IPPUR vem se configurando em um espaço aberto não apenas para a Comunidade do IPPUR, maspara outros cursos de graduação, pós-graduação e centros de pesquisa no Brasil e no exterior, além do público não acadêmico. O Boletim chega a cerca de 2 mil pessoas, entre estudantes, pesquisadores, professores, técnicos, instituições parceiras e movimentos sociais; número que se amplia quando se considera a interação promovida pelas redes 111 sociais. Para tanto, conta com o apoio de profissionais de jornalismo, pesquisadores da área de programação, pesquisadores da pós-graduação do IPPUR e extensionistas do GPDES, além dos Professores e Técnicos do IPPUR, e se consolida como um projeto de construção coletiva, comum, que envolve várias mãos, mentes e ideias! O Boletim IPPUR Stephanie Assad e Rafael Vidal, doutorandos do IPPUR, foram os responsáveis pelo layout do Boletim IPPUR, relançado em novo formato a partir de 2019. “A concepção do Boletim foi iniciada pelo esforço de elaborar uma ferramenta simples de criação/edição – o BenchMark, com o intento não apenas de que toda a equipe pudesse contribuir com a diagramação do Boletim, mas com a intenção de criar diálogos mais fluidos e horizontais, permitindo a adesão de novos membros na Agência, sem uma relação de dependência com aqueles que participaram da concepção da empreitada”, ressaltam eles. O desenvolvimento da diagramação optou por um padrão, um layout, simples, de fácil edição, mas com uma identidade visual forte que permitiu tanto a periodicidade do Boletim, sem um novo e exaustivo processo de diagramação, como a abertura de novas peças gráficas a partir de uma base estabelecida. “Destacamos que acionamos uma paleta cromática alinhada com a usada no universo representativo do IPPUR: mantendo a relevância dos tons vermelho, branco e preto. O Boletim foi diagramado com o esmero merecido para um boletim institucional, mantendo uma relação de diálogo e proximidade com outros boletins informativos de instituições/universidades públicas nacionais. Por fim, o mais importante: houve um imenso cuidado na criação de um produto acessível para os leitores, divulgado por email e com links diretos para o já existente site institucional do IPPUR, sendo imperativo manter tanto a qualidade como a acessibilidade do Boletim”, completam. Com o apoio de Thiago Pereira, obtivemos, em 2020, uma nova conquista. A criação de uma ferramenta de elaboração própria para o Boletim, realizada a partir do layout anteriormente criado por Stephanie e Rafael, que nos permitiu autonomia para elaborar o informativo em uma plataforma original, criada sob as demandas da Agência IPPUR. Thiago Pereira é estudante de Física da UFRJ e de Análise e Desenvolvimento de Sistemas da Estácio e compartilha a experiência: 112 “Participar do processo de criação de uma nova ferramenta para o Boletim foi um grande desafio, visto que precisávamos manter um layout já existente e criar uma ferramenta de usabilidade mais simples que a anterior, aproveitando os pontos positivos de outras ferramentas similares e ao mesmo tempo adicionando funcionalidades exclusivas feitas especialmente para um boletim acadêmico. Vem sendo um trabalho muito gratificante também, pois estamos promovendo a autonomia técnica do Instituto, através de um serviço customizado que possa ser ampliado de acordo com as necessidades do IPPUR. A criação da ferramenta foi feita no formato de módulos, para permitir a implementação de novas funcionalidades com as seguintes facilidades: módulos de criação e edição de boletim, de disparo dos boletins via e-mail, de visualização dos boletins no navegador e os módulos de gerenciamento de listas de recebimento. Atualmente, o foco tem sido criar funcionalidades adicionais para os módulos existentes e criar outros módulos para adicionar novos recursos a plataforma”. Thiago ressalta, ainda, que a característica modular possibilita a adaptação e reutilização desse sistema para uso em outros institutos, laboratórios, núcleos de pesquisa etc., o que permite que essa autonomia chegue à universidade como um todo. Por esse aspecto, a partir da Agência IPPUR, vinculamos o campo de públicas e planejamento urbano e regional, ao campo tecnológico, com ênfase na inovação. “Atualmente, vem sendo desenvolvida uma nova versão dessa plataforma que será utilizada e disponibilizada em breve no Github sob licença GPLv3, podendo assim ser usada por outras instituições que desejarem”, enfatiza Thiago. A Pauta do Boletim A partir das orientações de Breno Procópio, jornalista contratado por seis meses pela Agência IPPUR, aprendemos várias técnicas editoriais, linguagem jornalística e instrumentos e ferramentas de mídia, transmitidos aos nossos colaboradores, estudantes do GPDES, da pós- graduação e dos laboratórios do IPPUR. Com a vinda de Raquel Isidoro, Clarice Rocha, Maria Paula Gusmão e Maria Fernanda Fontenele, as atividades de redação foram por elas assumidas para a elaboração e consolidação do Boletim desde a pauta até o envio aos leitores. A pauta é montada de maneira colaborativa, com envio de artigos, chamadas de editais de eventos, revistas, temas relacionados aos campos de PUR e Públicas e áreas correlatas. 113 Além das chamadas temáticas para artigos, recebemos propostas de publicação dos leitores, que encontram no Boletim IPPUR um espaço de intensa e profícua troca. Todas as matérias publicadas no Boletim IPPUR estão disponíveis no site do IPPUR que, a partir do informativo, é continuamente alimentado com temas diversos, o que o torna mais dinâmico. As colaborações são propostas pelo corpo social do IPPUR, mas também por pesquisadores de outras instituições da UFRJ, do Brasil e do exterior, como México, Argentina, Chile, entre outros, e podem, portanto, ser em português, inglês ou espanhol. Essa experiência evidencia a importância do informativo para o intercâmbio de ideias e divulgação de pesquisas acadêmicas e contribuições não acadêmicas, como poemas, crônicas, vídeos, podcasts. De acordo com Clarice Rocha, “em um ano trabalhando na Agência IPPUR, consegui perceber claramente o impacto do Boletim IPPUR na divulgação das pesquisas e eventos do Instituto como um todo. Principalmente no âmbito da graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES), acredito que o Boletim teve um papel fundamental para a maior integração do curso às atividades do Instituto, proporcionando o espaço necessário para que os graduandos pudessem fazer parte da construção de iniciativas dentro do IPPUR. Recentemente, percebemos um grande aumento no número de contribuições de discentes nas matérias lançadas pelo Boletim, além de fazerem parte de sua própria construção, através da Agência IPPUR. Na minha perspectiva, eu percebo que o Boletim é espaço de diálogo fundamental para a difusão do conhecimento acadêmico, além desse trabalho servir como uma prestação de contas da universidade para a sociedade como um todo, criando um espaço de debates tão relevante para o atual cenário do país, frente aos ataques que o espaço acadêmico sofre constantemente”. Com a pandemia do Covid-19 e diante da necessidade de manter a coesão do corpo social do IPPUR em tempos de trabalho remoto e isolamento social, o Boletim IPPUR foi lançado semanalmente e se consolidou enquanto importante meio de comunicação institucional, mas mais que isso, proporcionou um espaço de manifestação de ideias, reflexões e debates no árduo e hostil momento em que vivemos. A retomada das atividades de ensino em período excepcional exigiu a adaptação do fluxo do informativo, agora quinzenal. 114 As redes sociais Uma ação de suma importância para ampliar a divulgação do Instituto é a gestão das mídias sociais, que passaram a ser monitoradas por Raquel Isidoro, pesquisadora do Laboratório Espaço e colaboradora da Agência IPPUR. “Na atualidade, fazer comunicação científica é aprender sobre o impacto que as mídias sociaisdesempenham, impulsionam e influenciam no cenário científico, social, político, cultural”, afirma Raquel. As mídias sociais são um importante espaço para compreensão da defesa de investimentos públicos em ciência, educação e tecnologia. Além de favorecer a interdisciplinaridade, o aprendizado e o reconhecimento do pesquisador, da pesquisa e da ciência. Entretanto, visualizar as mídias sociais como um canal apenas de difusão abafa o intenso processo de produção de conteúdo, cuja finalidade é promover uma comunicação que ensine, engaje, atraia e informe. “As mobilizações para que instituições de ensino e fomento incentivem pesquisadores a produzir conteúdo nas mídias sociais aumentaram. No entanto, a produção de conteúdo e a gestão das mídias sociais com qualidade é trabalhoso, exige técnica, recursos financeiros e, em alguns casos, reconhecimento do próprio campo científico. As mídias sociais ainda não são populares nos espaços científicos. Um dos debates sobre a produção de conteúdo no ciberespaço é sobre pontuação em métricas de avaliação acadêmica, ou seja, que possam ser pontuados de modo semelhante aos artigos científicos. Nesse sentido, algumas revistas passaram a exigir, além do artigo, um mini vídeo do resumo do artigo”, ressalta Raquel. No caso do Boletim IPPUR, nos últimos cinco meses, o objetivo foi consolidar o IPPUR nas mídias sociais. Apesar das plataformas do Facebook, Instagram e Twitter já existirem, não tinham engajamento e interação. O Facebook tinha um grande número de seguidores, aproximadamente 5 mil, mas com apenas 1% de interação. Ao assumir a gestão das mídias sociais, Raquel teve como proposta a consolidação da lista de e-mails internos para melhorar o fluxo de ações internas ao Boletim e engajar a rede interpessoal dos colaboradores e pesquisadores do Instituto. Além disso, o projeto envolve a consolidação do IPPUR no Instagram, uma plataforma em crescimento no aspecto de busca de conteúdo rápido, informativo e educativo. Como resultado, os engajamentos das mídias 115 sociais do Instagram e Facebook, aumentaram para 8%. O número parece baixo, porém sem um investimento específico e sem impulsionamento de campanhas, nosso caso, a média é de 5%. Além disso, as visitas ao site do IPPUR aumentaram. “Ter uma instituição nas mídias sociais envolve entender qual é a melhor mídia e o objetivo em um período de tempo específico, análise de rede, métricas e outros, além de assumir o risco de não ter o resultado esperado. No momento que assumi a gestão das mídias sociais, eu não era especializada em plataformas e mídias sociais. Sou pesquisadora científica sobre o que podemos chamar de ciência do digital, mas as expertises de ação demandaram horas de dedicação. Na Agência IPPUR tive esse incentivo, de aprendizado contínuo. O trabalho em equipe e assumindo as redes sociais dentro da Agência IPPUR fui aprimorando meu conhecimento, realizando cursos de análise e gestão de mídias sociais e de ciência de dados, além de monitorar páginas diversas (desde empresas, institutos e projetos). Recentemente, passei a focar minhas consultorias em projetos de impacto social para mídias sociais. Participar da Agência IPPUR foi e é ser direcionada a diversas possibilidades de crescimento. Eu cresci, a Agência cresceu, nossa comunicação cresceu e as interações nas mídias sociais também. O resultado foi superior ao esperado”, conta Raquel Isidoro, que é colaboradora voluntária da Agência IPPUR. Os Debates IPPUR e o Canal da Agência IPPUR Em função da pandemia, outros projetos que estavam apenas nos planos precisaram ser executados. Esse foi o caso do Canal Youtube da Agência IPPUR. A partir da proposta da doutoranda Nathália Azevedo, o canal foi criado para promover os Debates IPPUR, com o intuito de promover a discussão sobre temas relevantes da área de planejamento urbano e regional, gestão pública e áreas afins, a partir de propostas dos pesquisadores, graduandos, pós-graduandos, técnicos e professores do Instituto. Durante a suspensão das atividades de ensino, os debates ocorreram semanalmente. Com o retorno do período letivo excepcional, a atividade ocorre nas terceiras segundas-feiras de cada mês. Desde abril de 2020, quando realizamos o primeiro debate, já foram transmitidas inúmeras atividades, com a participação da Comunidade IPPUR e do público externo. O canal conta com mais de 2 mil seguidores que acompanham as transmissões do canal e enviam comentários, perguntas e sugestões. 116 A criação do canal viabilizou ainda a realização de seminários, cursos e atividades de extensão em caráter remoto, assim como um espaço para a postagem de entrevistas, vídeos e palestras. O Canal se consolida, portanto, como mais uma ferramenta de difusão do conhecimento e troca de saberes. Para a transmissão, contamos com a colaboração de extensionistas dos projetos de extensão do Instituto e do servidor Will Boente, que realizam a divulgação, a transmissão e matérias sobre o evento para o Boletim, entrevistas, etc. A partir do canal da Agência IPPUR, ampliamos o alcance de nossas discussões para além do Boletim IPPUR e de produções acadêmicas, se configurando em uma excelente ferramenta de difusão para públicos distintos. Desafios para o futuro As ações futuras envolvem a publicação do Boletim em outros idiomas, o que demanda uma reformulação e tradução do site institucional do IPPUR; a tradução Português-Libras das atividades no Canal da Agência IPPUR; e a consolidação da ferramenta própria de envio do Boletim. Além disso, a Agência está organizando os vídeos institucionais dos laboratórios, núcleos e grupos de pesquisas do Instituto, entrevistas com professores, técnicos e discentes, assim como a publicação em nosso canal de palestras e atividades realizadas presencialmente, por ora arquivadas. Dessa maneira, buscamos consolidar a Agência IPPUR como um informativo de referência para as áreas de Planejamento Urbano e Regional e Gestão Pública e um espaço de difusão do conhecimento e promoção do intercâmbio entre o público acadêmico e não acadêmico. Todos esses desafios estão subordinados a um maior: o de fortalecer o projeto institucional da Agência IPPUR, como um espaço de registro e preservação da memória, perene, capaz de expressar a pluralidade, a diversidade e interdisciplinaridade que marcam o IPPUR, sua contribuição intelectual e política em seus 50 anos de história. 117 A DESCONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA SOCIAL E DA CIDADANIA URBANA NO BRASIL64 Maria Fernanda Fontenele Azevedo, Laura Fernandes Oliveira Meres, Yeda Assunção e Ebraim Souza65 Depoimentos de Liara Lima, Leandro Tavares e Matheus Mendonça A Professora e Pesquisadora Sonia Fleury, expoente da Reforma Sanitária no Brasil, que resultou na criação do Sistema Único de Saúde – SUS, em 1988, abordou, em conferência virtual, a questão das políticas sociais no contexto democrático contemporâneo. Fleury apresentou o surgimento do estado de bem-estar social, que deu início à implementação de políticas sociais, no segundo pós-guerra, e o seu desmoronamento, a partir da década de 1970, com o advento das políticas neoliberais. A proteção social nos estados se consolida em torno de três modalidades: o assistencialismo, a previdência e a seguridade social, sendo a última comum ao Estado de bem-estar social. A primeira delas, o assistencialismo, baseia-se em valores liberais, segundo os quais os indivíduos devem buscar sua ascensão no mercado, restando aos que fracassarem as transferências governamentais. Esse modelo geraria uma cidadania invertida, pois o cidadão deve mostrar sua incapacidade de sobrevivência para garantir o auxílio e ser reconhecido como cidadão. O segundo modelo é o de previdência, no qual os benefícios são meritocráticos, acarretando uma cidadania regulada pela ocupação no mercado de trabalho. A última modalidade é a da seguridade,oferecida pelo estado de bem-estar social, cuja cidadania é universal, financiada pelo trabalho, mas também através de subsídios governamentais. Fleury apresenta a questão do patriarcalismo frequente nos programas sociais, que vem sendo combatida com a entrada das mulheres no mercado de trabalho e também com o aumento 64 Memória da aula inaugural do IPPUR em 2020 com Sonia Fleury. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UA6mTkWN8tg&t=25s 65 Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. https://www.youtube.com/watch?v=UA6mTkWN8tg&t=25s 118 da expectativa de vida, a partir do tríplice: estado, mercado e cidadania. Contudo, esse triângulo tem sido alterado pela globalização, tendo em vista o surgimento de poderes supranacionais (as empresas transnacionais que se tornam mais fortes que o próprio Estado) e mercados internacionalizados (desterritorialização da produção). De acordo com a pesquisadora, a única variável que se mantém é a cidadania. Diante da dominância financeira, o Estado deixa de ser um ente arrecadador para se tornar devedor. A grande questão torna-se o fato de como financiar políticas públicas, já que o Estado não consegue arrecadar o suficiente e o pouco que arrecada é destinado ao pagamento de juros da dívida. Desse modo, gera-se uma desconfiança quanto à legitimidade da democracia e da participação popular no processo decisório. A partir disso, o mercado financeiro ganha cada vez mais força, tornando o capital o grande gerenciador da questão social. Para a Sonia Fleury, a individualização dos riscos torna as pessoas ricas ainda mais ricas, o que foi ilustrado durante a atual pandemia, em que houve maior concentração de grupos ativos na bolsa de valores. Além disso, segundo a sanitarista, as novas tecnologias devem ser adicionadas a tal questão pois alteram a forma produtiva, acarretando uma precarização do trabalho e em políticas de austeridades, através da contenção dos gastos públicos e redução da proteção social. Após o projeto social-democrata ruir no Brasil, sobretudo a partir de 2016, a cidadania universalizada vem sendo cada vez mais fragilizada e ameaçada, dando lugar ao processo de instauração de uma democracia oligárquica. Sonia Fleury resgata a Constituição Federal de 1988, com ênfase nos artigos que tratam da cidadania e da questão social, para afirmar que as demandas sociais deveriam ser equacionadas, com o propósito de encontrar soluções para problemas cruciais no atendimento da população em relação às questões sanitária, de saúde, de mobilidade social, habitação, entre outras, em busca de uma estratégia para o enfrentamento desses desafios, abarcada na tecnologia e na ciência, trazendo para a cena política tanto novos sujeitos como aqueles à margem do processo decisório. O enfrentamento da questão social não deve ser apenas uma proposta de combate à pobreza, mas deve promover a construção da cidadania. A partir dos anos 1990, houve a implantação dos planos universais com arquitetura democrática-participativa, inovadora, promovendo o acesso da população a uma diversidade de benefícios antes reservados às elites: educação pública, regras 119 para o salário mínimo, saúde universalizada, cotas raciais etc, de modo a propiciar à população um conjunto de direitos. Por outro lado, o período também foi marcado pela política de austeridade, aspecto recrudescido a partir de 2016, o que promoveu um retrocesso nos direitos adquiridos: redução de direitos trabalhistas, desmantelamento das forças sindicais, precarização do trabalho e a Emenda Constitucional 95, o “teto dos gastos”, entre outras medidas, que expressam o fortalecimento da extrema-direita no país. Por tais aspectos, a construção da cidadania no processo democrático tem sido ameaçada por um populismo autoritário e assistencialista que aparece em resposta à pandemia do Covid-19. A discussão do estabelecimento de uma renda mínima universal, hoje, está distante da realidade brasileira. Expressa esse quadro as condições de moradia e mobilidade precárias em contexto de pandemia: evidencia-se que as pessoas mais afetadas são as que têm acesso precário ou inexistente aos serviços públicos, o que revela as consequências da pandemia em contexto de ausência de políticas públicas, o que as torna mais vulneráveis. As desigualdades sociais sempre existiram, mas apenas quando ameaçam a coesão social, os fundamentos da ordem social, é que são vistas como questões sociais. A despeito desses aspectos, é necessário reconhecer também o crescimento das lutas em torno do comum, o que tem mobilizado e propiciado a formação de lideranças forjadas nessas lutas. Em linhas gerais, devemos lutar por políticas públicas eficazes e combater o arrefecimento de direitos e a perpetuação da cidadania invertida, por uma reforma urbana-sanitária e um sistema de políticas justas e universais. Depoimentos A brilhante contextualização histórica e teórica da pesquisadora Fleury permitiu compreender, de forma crítica, o contexto em que estamos vivendo hoje, possibilitando visualizar a relevância das questões urbanas e como as mesmas passaram a ser questões sociais com demandas inadiáveis, tendo em vista o cenário de grande desordem política, social e econômica oriunda de transtornos sanitários. 120 Para nós, futuros gestores públicos, o entendimento de questões sociais vinculadas às questões urbanas é de suma importância para que possamos compreender, estudar essas problemáticas e, consequentemente, elaborar soluções e intervenções políticas. Além disso, a palestra foi um convite para que tenhamos propostas que possam ir além do auxílio emergencial, promovendo, por exemplo, uma renda universal de cidadania, uma reforma urbana e o fortalecimento dos sistemas universais de proteção social. 121 POLÍTICAS SOCIAIS E PLENO EMPREGO: A TEORIA MODERNA COMO ALTERNATIVA66 Clarice Rocha e Lucas Dipp67 Colaboração de Daniel Conceição e Kaio Pimentel68 O Seminário “Políticas Sociais e Pleno Emprego: a Teoria Moderna da Moeda como alternativa”, contou com a participação de Randall Wray, professor de economia no Bard College, senior scholar no Levy Economics Institute e um dos principais autores sobre a Teoria Moderna da Moeda. O evento, realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), também contou com a mediação de Carlos Gadelha, professor do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz, além da presença de Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Unicamp, e José Márcio Camargo, professor do Departamento de Economia da PUC-Rio. A partir da perspectiva brasileira sobre a “crise econômica” hoje vigente no país, o debate trazido por Randall Wray é de fundamental importância para o entendimento das finanças públicas como propulsoras do desenvolvimento econômico no país. O discurso predominantemente aceito pela opinião pública sugere que o Estado está quebrado e precisa urgentemente reduzir o crescimento dos gastos públicos. No entanto, a Teoria Monetária Moderna (MMT, sigla em inglês), proposta pelo professor, apresenta uma perspectiva distinta a essa, compreendendo que, para um governo que gaste na moeda que ele mesmo emite, é possível o financiamento de políticas públicas enquanto houver capacidade produtiva suficiente para atender um aumento na demanda agregada. Nesse sentido, há, segundo Wray, a possibilidade de adoção de novas políticas públicas, responsáveis por atender as demandas da população. Levando em consideração a disseminação do pensamento hegemônico, é de relevante necessidade que outras perspectivas, assim como a MMT, sejam 66 Evento ocorrido em 26 de novembro de 2019. 67 Graduandos de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 68 Professoresdo IPPUR/UFRJ. 122 apresentadas ao público brasileiro, com o objetivo de abrir espaço para novas concepções sobre o atual cenário econômico em que o país se encontra. Durante o seminário, Randall Wray apresentou brevemente seu estudo, iniciado há 25 anos. Segundo ele, a MMT não seria exatamente inovadora, mas sim uma adaptação à atualidade de diversas teorias econômicas heterodoxas, ajustadas às características da sociedade contemporânea. Assim, o professor refutou a visão convencional de que estados soberanos enfrentam restrições orçamentárias e que as políticas monetárias existem apenas com o objetivo de controlar a inflação. Alternativamente, a teoria do professor apresenta a moeda como uma criatura do Estado, e requalifica os impostos como os principais instrumentos para dar valor às moedas estatais, ao invés de serem caracterizados como financiamento do gasto público. Assim, a Teoria Moderna Monetária apresenta as origens e a natureza da moeda, o papel do Estado nesse entendimento, junto ao papel das taxações, a criação de uma moeda soberana e também gera o questionamento sobre a possibilidade de um governo ficar sem dinheiro. De maneira bastante simplificada, as proposições centrais da Teoria Monetária Moderna focam na relação entre Estado, emprego e inflação. Segundo essa teoria, o Estado deve direcionar seus gastos em busca do pleno emprego, com a estabilidade de preços, através das chamadas Finanças Funcionais. A partir disso, Wray contesta diretamente a ideia que se precisa aceitar desemprego para que não haja inflação, assim como rejeita a hipótese de que exista uma taxa de desemprego natural. Segundo ele, seria possível superar essa relação a partir da atuação do Estado como o “empregador de última instância” (Employer of Last Resort, ou ELR). O ELR, por sua vez, é uma política pública que garante emprego a todo indivíduo que assim desejar, com um salário base, mínimo, que ajudará a estabilizar os preços da economia. A ideia é que, no cenário de vigência do ELR, o governo incremente não apenas a demanda agregada - tendo um salário para todos os que quiserem um posto de trabalho - mas também aumente o produto da economia. Portanto, a oferta agregada seria estimulada, nesse sentido, pelos esforços do governo. Um ponto a ser destacado na teoria de Wray é a relação dos trabalhadores do ELR com o setor privado, onde o último poderia facilmente absorver trabalhadores no programa governamental mediante uma oferta de emprego com acréscimo de salário. O fato dos participantes do programa já demonstrarem disposição para trabalhar facilitaria a sua absorção pelas firmas. Assim, o que sustentaria essa política seria a troca do desemprego como estabilizador de preços da economia pelo 123 salário do ELR. Isso não significaria, por outro lado, abandonar todas as demais políticas fiscais e monetárias, mas sim direcioná-las como políticas anticíclicas, buscando induzir a demanda do setor privado para o equilíbrio dos preços e pleno emprego. Em outras palavras, o desemprego deixaria de servir como âncora dos preços graças ao exército industrial de reservas, deixando de lado o pressuposto de que exista uma taxa “natural” de desemprego que não acelera a inflação, baseando o nível de preços da economia no salário mínimo pago aos participantes do programa. A ideia de manter a população economicamente ativa em atividade, mesmo em períodos de crise, com o objetivo de estabilizar a economia é bastante atrativa, e os estudos da Teoria Monetária Moderna se aprofundam nesse sentido. Assim, há oferecimento de um contraponto ao senso atual de contracionismo ferrenho e à análise orçamentária voltada para a adequação à agenda neoliberal internacional. Sendo assim, o seminário tratou, basicamente, da importância da conexão entre a economia com as políticas sociais, a saúde e os direitos humanos, o que se sustenta como uma barreira no âmbito acadêmico e prático. Tanto José Márcio Camargo quanto Pedro Rossi relacionaram a Teoria Moderna da Moeda à perspectiva econômica brasileira. Enquanto Camargo discordou de Wray e afirmou que o estado brasileiro enfrenta uma restrição orçamentária, Pedro Rossi concordou com Wray sobre a inexistência de restrição orçamentária e alegou que o orçamento deve se ajustar às demandas sociais para a consolidação de um sistema político e econômico democrático. Deste modo, foi evidenciado o papel fundamental do Estado brasileiro na reafirmação dos direitos sociais em meio à crise vigente no país, em divergência com a insistência em cortes de gastos realizados pelo governo. Nesse sentido, as políticas de austeridade centradas na redução do gasto público acabam implicando em recessão e desemprego, o que diminui a arrecadação tributária. Por outro lado, assim como no Brasil desde 2015, o conjunto de medidas de austeridade sequer consegue resolver o “problema” das contas públicas que diz combater. 124 O DESMONTE DAS POLÍTICAS DE PLANEJAMENTO NO BRASIL69 Clarice Rocha70 A mesa de encerramento da XXV Semana PUR, teve como tema “O desmonte das políticas de planejamento no Brasil”, e contou com a presença de Cristiano Vilardo, analista ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Claudio Crespo, antigo diretor de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Nabil Bonduki, arquiteto, urbanista, professor universitário e político. Neste espaço, foi construída a ideia de que o evento organizado pelo IPPUR é uma resistência frente ao atual cenário político-estrutural brasileiro. O tema do evento, nesse sentido, foi considerado de extrema relevância para as instituições brasileiras de modo geral, principalmente aquelas que possuem a pesquisa como principal meio de sobrevivência, assim como a UFRJ propriamente dita. Claudio Crespo iniciou a fala a partir do entendimento da “informação” como principal elemento produtor de conhecimento, configurando-se como um meio de detenção do poder. Atualmente, tal poder passou a representar um instrumento do retrocesso, sendo necessário que haja o questionamento sobre a maneira de dar sentido ao conjunto de informações diariamente disponibilizadas. Como defender a informação, uma vez que ela está sendo usada para o uso ideológico do atraso? Neste cenário defensivo, Crespo analisa que o ataque à informação é uma das principais causas dos enfrentamentos às instituições responsáveis por criá-las, estando inserido o desmonte de políticas públicas como meio de desconstrução do conhecimento científico e de ataque direto à democracia. Este processo acentuou-se ultimamente, sendo responsável por gerar uma reconfiguração da estrutura social brasileira – iniciada a partir da ruptura política – que impactou diretamente os segmentos da população que representam a força de trabalho. A irracionalidade da informação e do trabalho, nesse sentido, impactou diretamente as estruturas do IBGE, que sofre constantemente ataques contra sua estrutura e seu ideal. Por fim, Crespo deu fim à sua fala 69 Memória da mesa de encerramento da XXV Semana PUR – 2019. 70 Graduanda em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 125 incentivando a criação de uma unidade das forças de trabalho, sendo esta necessária a partir da complexidade da sociedade contemporânea. Como conseguinte, Cristiano Vilardo evidenciou a desconstrução da pauta ambiental hoje presente nas estruturas do governo vigente, sendo responsável por realizar embates diretos a tudo aquilo conquistado frente às lutas populares. Nesse sentido, o discurso ambiental possui um caráter extremamente importante em sua simbologia, uma vez que é responsável por criar uma realidade almejada, transformando a ideia em uma mudança concreta. Ele analisa que está em curso, nesse sentido, a tentativa de destruição – ou da reduçãoda importância – de mecanismos fundamentais para a preservação ambiental, como, por exemplo, por meio de ataques diretos ao CONAMA. Assim, os impactos diretos na preservação do meio ambiente, de comunidades indígenas, populações tradicionais e instituições componentes do arcabouço de proteção ambiental estão sendo concretizados por meio da paralisação de órgãos responsáveis pela manutenção orgânica dos mesmos. Vilardo conclui, nesse sentido, que a resistência por meio da narrativa é extremamente necessária frente às mudanças vigentes no âmbito das políticas públicas. Por fim, Nabil Bonduki contribuiu para o debate a partir de uma ampla caracterização acerca do desmonte do Estado, analisando a desconstrução daquilo que foi democraticamente conquistado pelo povo. A destruição das políticas públicas, deste modo, se dá em diversas esferas governamentais, estando impregnada até mesmo no discurso do corpo social brasileiro, que cada vez mais acredita que o Estado deve ser liberalizante e não regulador. Sabe-se que o Estado é responsável por conter os avanços dos interesses privados frente aqueles de interesse público, no entanto o que ocorre é a desconstrução desta maneira de governança estatal. Deste modo, assim como os outros participantes da mesa, Bonduki apresenta a necessidade da luta pelo direito à cidade e da resistência como principal meio de combater o pensamento retrógrado então incorporado pela sociedade brasileira. 126 OS “DESASTRES DA MINERAÇÃO” NO BRASIL71 Carla Beatriz Januario, Clarice Rocha72 Colaboração Suyá Quintslr e Deborah Werner73 A Aula Pública “Desastres da mineração no Brasil”, vinculada à disciplina de Política e Planejamento Ambiental, do curso de Graduação em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, foi ministrada pelo Professor Luiz Jardim Wanderley e discorreu sobre as implicações territoriais da exploração de minérios no Brasil. A partir dos desastres ocasionados pelo rompimento das barragens do Fundão, em Mariana e da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, ambas em Minas Gerais, nos anos de 2015 e 2019, e sob a responsabilidade das empresas Samarco e Vale, respectivamente, Luiz Jardim enfatizou os efeitos socioambientais, econômicos e jurídicos decorrentes da dependência econômica das regiões às atividades da mineração, assim como as contradições oriundas da perspectivas de desenvolvimento que derivam desses projetos. Mineração e Impactos Territoriais A expansão da mineração deve ser compreendida à luz das transformações territoriais decorrentes da atividade mineradora e dos conflitos territoriais que envolvem, de um lado, a apropriação de recursos naturais para a acumulação capitalista e, de outro, a apropriação dos territórios por outros grupos sociais como camponeses, ribeirinhos, posseiros e povos tradicionais que, frente aos ditames econômicos da acumulação capitalista, têm inviabilizadas suas formas de reprodução social. Agrava-se o caráter conflituoso, a ocorrência de racismo ambiental e processos de desigualdade ambiental vinculados à exploração mineral, perspectiva que denuncia que os riscos e as violações de direitos humanos associados aos projetos recaem, recorrentemente, sobre grupos vulneráveis em termos étnicos, raciais e socioeconômicos. 71 Memória de palestra proferida pelo Professor Luiz Jardim Wanderley (UFF) em aula pública intitulada “Os desastres da mineração no Brasil. A palestra ocorreu em 13 de novembro de 2019. 72 Graduandas em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 73 Professoras do IPPUR/UFRJ. 127 Em contraposição à sustentabilidade atribuída à mineração, Luiz Jardim destacou os impactos cotidianos na vida das populações afetadas pela exploração mineral, como a contaminação do lençol freático e a inviabilidade de outras formas de relação com a natureza. Aponta-se ainda a incompatibilidade da mineração aos preceitos de sustentabilidade, uma vez que a recomposição físico-ambiental torna impossibilitada a retomada de sua estruturação original. Portanto, a atividade de mineração por si só, a despeito de “desastres”, deve ser considerada como geradora de impactos e processos disruptivos, o que remete ao conceito de “Amputação da Natureza”, de Gudynas. A recompensa viria pelo bom desempenho da balança comercial, geração de empregos e aumento da renda, elevação nas receitas fiscais, desenvolvimento tecnológico, entre outros aspectos relacionados ao entendimento da ideia de desenvolvimento. No entanto, tais aspectos devem ser relativizados, em decorrência da especialização em produtos primário-exportadores de baixo valor agregado, baixos salários dos trabalhadores da mineração, dependência da região à atividade mineradora e vulnerabilidade diante do ciclo de preços das commodities, conforme os dados apresentados por Jardim. Fragilidade e Negligência fiscalizatória Os conflitos mencionados, somados ao caráter disruptivo da própria atividade mineradora, em decorrência dos procedimentos para a extração de minério, requerem a gerência territorial intensiva por parte de órgãos reguladores do Estado. No entanto, os casos analisados revelaram indícios de negligência por parte das empresas aos procedimentos de segurança das barragens, assim como a corrupção de agentes públicos e privados vinculados aos procedimentos regulatórios e de fiscalização. Por outro lado, revelaram-se também a fragilidade financeira, humana e material dos órgãos fiscalizadores por parte do Estado em seus diferentes níveis de governo e o inadequado marco regulatório, que estabelece o processo de autorregulação por parte das empresas, responsáveis por fornecer informações para que, a partir delas, os agentes fiscalizadores emitam pareceres sobre os danos e riscos das barragens. Os casos de Mariana e Brumadinho evidenciaram conflitos de 128 interesses entre as empresas contratantes e as auditorias contratadas para a elaboração de relatórios de fiscalização, que alegaram a segurança das barragens. Entretanto, apesar da ocorrência de 9 desastres entre os anos de 1986 e 2019 (1986, 2001, 2006, 2007, dois em 2008, 2014, 2015 e 2019), ainda se tem consolidada na opinião pública a ideia de que a mineração é uma atividade de “baixo ou insignificante” risco para a população e o meio ambiente, o que evidencia o poder desse setor em conformar um discurso contrário às evidências empíricas, para o que contribui a campanha midiática em favor da mineração. Cabe ressaltar o imbricamento entre os interesses da classe política e os interesses das empresas de mineração. O financiamento das campanhas no ano de 2014 revelou a importância dos recursos oriundos da mineração aos candidatos, o que pode justificar a influência das mineradoras sobre os legisladores, aspectos identificados na elaboração do Plano Nacional de Mineração, na participação de Conselhos e Fóruns deliberativos e na elaboração de propostas de marcos regulatórios e flexibilização da legislação ambiental. Ainda assim, cada vez mais gestores privados têm ocupando cargos públicos, o que leva a uma transferência da lógica privada para a gestão pública e para a forma de planejar e gerir os territórios. Diante dos impactos sociais e ambientais, por que ficar à mercê das barragens? A resposta estaria na dependência econômica da União, dos estados e municípios à exploração mineral, o que leva à especialização, à vulnerabilidade e à subordinação econômica e política do país e das regiões aos processos decisórios dessas empresas. Além da dependência na geração de empregos diretos e indiretos gerados pela mineração, apesar dos baixos salários médios pagos, as regiões tornam-se dependentes das contrapartidas financeiras das empresas aos municípios, estados e União - a Compensação Financeira pela Exploração de recursos minerais (CFEM). Ressalta-se que para muitos municípios essa éa principal receita, o que reforça a dependência dos entes federados aos recursos e dificulta maiores questionamentos por parte do poder público e da sociedade à ação das mineradoras. A situação dos entes federados é agravada pela Lei Kandir (lei complementar n°87, de 1996), que isenta de pagamento de ICMS as exportações de produtos primários e semielaborados, a serem compensados aos estados pela União, repasse esse ainda não regulamentado. Como consequência, 129 os estados primário-exportadores alegam perda de arrecadação em suas receitas. Se de um lado a mineração geraria receitas para a região, por outro, a especialização primário-exportadora condena os estados a renunciar sua principal fonte de receita, impactando inclusive o pacto federativo. Frente à oscilação dos preços dos minérios, as empresas buscam compensar perdas financeiras, quando da queda dos lucros, o que pode levar à contenção de gastos com segurança das barragens e medidas compensatórias, culminando nos “desastres”. Logo, além das condições fiscais e da dependência econômica dos estados e municípios à mineração, agrava-se a vulnerabilidade dos territórios à reversão cíclica dos preços no mercado de commodities. Jardim apresentou uma relação estreita entre a queda dos preços das commodities minerais e os rompimentos de barragens, o que evidencia que as empresas alteram não apenas suas decisões de investimentos frente às expectativas de lucro, mas também seus dispêndios com medidas de segurança e compensações ambientais, caso tais gastos afetem sua rentabilidade frente à queda das receitas. Tal situação, somada à fragilidade regulatória, revela a grave situação a que são expostos os territórios da mineração. Mineração e Desenvolvimento? Resta-nos o questionamento quanto a possibilidade de desenvolvimento das regiões mineradoras e para o próprio país, caso sejam mantidas a subordinação de geração de emprego e renda aos mercados internacionais, a fragilidade regulatória em termos ambientais, sociais e trabalhistas e a estrutura fiscal oriunda da especialização primário-exportadora de commodities minerais que caracterizam a economia brasileira. Tal modelo nos coloca à mercê das reversões cíclicas nos preços internacionais, inibe atividades econômicas de maior valor agregado, restringe os encadeamentos produtivos e pressiona pela eliminação de grupos sociais e ecossistemas não vinculados ao uso intensivo e espoliativo dos territórios. O alcance de um desenvolvimento entendido como autônomo, potencializador da diversidade econômica, social, ambiental e cultural, que amplie os horizontes de possibilidade da sociedade brasileira, exige imediata alteração da rota em curso. 130 SAÚDE MENTAL NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO74 Por Bruna M. M. Fagundes75 Em roda de conversa organizada pelo Centro Acadêmico do curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (GPDES), tratou-se da saúde mental do corpo social da Universidade. A mesa foi composta pelas psicólogas Driele Francisco, Gabriela Leite e Rebecca Alcici e pela médica Gabriela Fidelis, que fazem parte do Projeto Ressignificar. Foram discutidas as medidas de prevenção ao sofrimento psíquico no ambiente universitário, do trabalhador ao estudante, na medida em que se verifica o aumento de doenças como a síndrome do impostor, a depressão e ansiedade no meio acadêmico. Possivelmente, a cobrança por produtividade, a competição, a incerteza de um futuro e a quantidade de informações relativas ao futuro da Ciência no Brasil têm gerado o aumento das doenças psíquicas. A roda de conversa abordou diversos assuntos, como as pressões sociais que os estudantes recebem das famílias, da sociedade e de si próprios. Vale ressaltar que a UFRJ recebe muitos estudantes de outros estados brasileiros, e que, muitas vezes, fazer a formação universitária longe da família exige mais do aluno e, por isso, recomenda-se que tenha um acompanhamento psicológico ao longo do curso. O corpo docente foi citado diversas vezes, pois são eles que estão diretamente relacionados na troca de conteúdo intelectual e no acompanhamento do semestre. Por conseguinte, entende-se a necessidade de escutar esses, pois lidam com uma rotina de prazos e pressões diárias. Os técnicos administrativos — que são profissionais vistos muitas vezes como invisíveis dentro do espaço acadêmico — também foram lembrados pela importância no funcionamento da instituição. Por fim, foram discutidos o papel do SUS, o funcionamento do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) e o desmonte na saúde pública como um todo. Com isso, levantou-se a questão dos cortes que já estão recebendo as áreas da psicologia e psiquiatria, e como tudo isso irá afetar a saúde 74 Memória do debate promovido pelo Centro Acadêmico dos Estudantes de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social (CAGesP/GPDES/IPPUR), no dia 04 de novembro de 2019. 75 Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. 131 daqueles que precisam desses atendimentos em especial a população vulnerável, composta em sua maioria por negros, pardos e indígenas. 132 MINERAÇÃO E TERRITÓRIOS EM TEMPOS DE COVID-1976 Por Beatriz Gomes, Daiane Sousa, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro77 A primeira live do Ciclo de Debates IPPUR, ocorrida no dia 25/05/2020, abordou a temática “Mineração e territórios em tempos de Covid-19”, com a participação Thiago Ferreira, doutorando no IPPUR/UFRJ e funcionário da Petrobrás na área de Responsabilidade Social da empresa, e Francine Damasceno Pinheiro, advogada popular atuante nos direitos humanos e pesquisadora pós- doutoranda do IPPUR/UFRJ, debateram, em conferência virtual, os efeitos da pandemia Covid-19 nos territórios da mineração. Thiago Ferreira abordou a temática a partir da Mina Guaíba, no Rio Grande do Sul, e Francine Pinheiro tratou dos casos de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Em um primeiro momento, expôs-se a exploração mineral a céu aberto de carvão na Mina Guaíba, um projeto da empresa nacional COPELMI, localizada a 16km de Porto Alegre/RS e que, segundo os dados de Thiago Ferreira, se tornará a maior mina deste tipo da América Latina. Com isso, o pesquisador apontou que esta área, segundo o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) elaborado pela empresa, proporcionará geração de empregos em massa, royalties e crescimento econômico. Contudo, movimentos sociais apresentam divergências em relação ao diagnóstico ambiental realizado pela empresa devido à desocupação crescente em outras atividades essenciais para a economia local, como o turismo e os serviços. Além disso, há na região um assentamento pioneiro na produção de arroz orgânico que será compulsoriamente removido, todavia mantendo resistência à atividade mineradora. Ressalta-se, ainda, que o papel ativo do Poder Público como viabilizador da atividade, fornecendo apoio jurídico e embasamento econômico, assoma às disputas de narrativa a dicotomia de benefícios socioeconômicos desvinculados dos impactos ambientais causados pelas empresas mineradoras. Desse modo, menciona-se a condição atual de atividade essencial deferida pelo 76 Memória do 1º Debates IPPUR, realizado em maio de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=22w2Tc8QtL4 77 Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. https://www.youtube.com/watch?v=22w2Tc8QtL4 133 governo, em meio à pandemia do Covid-19, menosprezando as consequências da poeira tóxica, emitida pela exploração, aos pacientes com quadros de insuficiência respiratória. Considerando o contexto pandêmico, Thiago Ferreira apresentou a condição enfrentada pelos trabalhadores da mina, ressaltando a relação direta entre o número de infectados e a precariedade da atividade. É questionada, portanto, a primazia atribuída à exploração mineral como retomadado crescimento pós-pandemia, pois desconsidera a posição da sociedade civil, que a identifica como propensa a causar doenças respiratórias na população local, além dos reassentamentos compulsórios. O eixo do debate encaminha-se para a questão humanitária com a apresentação de Francine Pinheiro, ao abordar as violações das empresas mineradoras, com foco naquelas da Bacia do Rio Doce. Analisa-se, então, a trajetória da atividade mineradora, configurando-se como um conflito socioambiental, visto que viola os direitos difusos desde o início da proposta de implementação da exploração mineral, quando, no momento decisório, são omitidas informações, processo que suscita embates com populações locais. As empresas mineradoras buscam compensar os danos socioambientais causados através de doações, todavia muitos dos projetos são implementados em regiões já marcadas pela negligência do poder público em prover serviços públicos de qualidade, o que tende a se agravar com a instalação dos projetos. A pandemia adiciona mais um fator de precariedade ao impactar a saúde dos trabalhadores, já expostos a altos níveis de contaminação. Francine Pinheiro cita os desastres de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019), abordando questões técnicas de implementação dos projetos, como a construção de um refeitório ao lado da barragem, e questões financeiras, como as indenizações, realizadas de forma lenta para os atingidos pelos rompimentos das barragens, aspectos que impactam na integridade física dos trabalhadores. No âmbito da pandemia, o Poder Público definiu a atividade mineradora como essencial, o que se opõe à preservação da saúde da população local. Francine Pinheiro atenta-se, ainda, para o compromisso estatal com políticas públicas capazes de reparar integralmente a sociedade, preservar áreas ambientais determinantes, além de rever os impostos cobrados sobre a exploração mineral. 134 Diante da pandemia do Covid-19, a questão sobre mineração e territórios trazida à tona por Thiago Ferreira e Francine Damasceno Pinheiro aponta para a necessidade de ação assistencialista e reparadora por parte das autoridades públicas aos trabalhadores e moradores locais. As disputas de narrativas em torno da mineração demonstram a precariedade promovida pela atividade mineradora e a luta social que vai de encontro aos graves impactos ambientais causados pelas empresas. De acordo com os pesquisadores, ao final do debate, em resposta às perguntas do público, a destinação do carvão explorado no Sul brasileiro para geração de energia, tratado como o novo pré-sal, torna-se preocupante, assim como o devido cumprimento do Marco Regulatório da Mineração, cuja efetivação reforçaria conflitos sociais entre as populações indígenas, quilombolas e agrárias contra os empresários e o Poder Público. Os debatedores também apontaram para o fato da essencialidade da atividade mineradora, em tempos de Covid-19, ser de interesse privado e não público, confrontando com os direitos humanos no que concerne à proteção do indivíduo. Em suma, os pesquisadores destacam como problemática a prevalência da questão econômica frente à social, uma vez que os retornos à população não são tão benéficos quanto a repercussão negativa da exploração mineradora, o que leva à necessidade de rever o próprio modelo de desenvolvimento brasileiro, orientado para a exportação de commodities agrícolas e minerais. 135 O SEGREDO SOBRE O GASTO PÚBLICO QUE A PANDEMIA REVELOU AO MUNDO78 Beatriz Gomes, Daiane Souza, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro79 Diante do contexto da maior crise sanitária desde a Gripe Espanhola (1918-1920), a discussão sobre o futuro da economia no Brasil tem sido pauta de diversas frentes políticas e preocupação geral de toda a população brasileira. Daniel Conceição explicou como o governo precisou aumentar muito os seus gastos, em um momento no qual a arrecadação de impostos caiu substancialmente, para amenizar os efeitos econômicos da pandemia. A importância do gasto público é defendida, principalmente, a partir da atuação do Estado como transferidor de renda, em um momento de recuo da economia, uma vez que o cidadão com dinheiro poderá continuar consumindo o que ainda pode ser produzido. Conceição apresenta que, antes da pandemia, o entendimento de que o Estado não precisava se preocupar com os gastos até certo ponto, ou seja, até o limite da inflação, era visto como insensatez. A partir do quadro crítico desenvolvido ao longo da quarentena, a população deixou de lado essa visão limitada e, assim, Daniel Conceição defende a importância do gasto público e afirma que, após a pandemia, será inevitável que os Estados aprendam sua necessidade ativa, independente da arrecadação. O pesquisador aponta que, por conta da pandemia, a “Teoria Monetária Moderna” veio à tona e o mundo precisou admitir que o discurso dos Estados não poderem emitir moeda é falacioso, tendo em vista que o Banco Central sempre pode financiar o gasto deficitário do governo federal de qualquer tamanho. Casos ao redor do mundo assim ocorreram, como nos EUA, cujo Federal Reserve System (Fed) emitiu base monetária para conter o colapso do sistema financeiro, inclusive através da oferta de empréstimos a governos municipais. Mesmo na Inglaterra a cultura de austeridade não impediu o financiamento em massa de políticas públicas no combate ao Covid-19 pelo Banco da Inglaterra. Por conseguinte, a “Teoria Monetária Moderna” molda-se a partir do entendimento diferenciado sobre moeda, permitindo imaginar políticas fiscais de acordo com a realidade social e 78 Memória do 2º Debates IPPUR, realizado em 1 de junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OySZRLR_u_U 79 Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. https://www.youtube.com/watch?v=OySZRLR_u_U 136 econômica, ao passo que encontra o equilíbrio sobre as demandas socioeconômicas da atual crise sanitária. Conceição alega, então, ser necessário pensar a economia em função de dois fatos pouco conhecidos. Primeiramente, deve-se reconhecer que o Banco Central (Bacen) pode criar recursos para satisfazer as necessidades do Tesouro Nacional. Por isso, os Estados podem gastar mais do que arrecadam. Afinal, a moeda é uma relação contratual, ou seja, uma relação de crédito estabelecida entre o Estado e a sociedade. Para Daniel Conceição, entender o que é moeda compõe entender que a moeda em si é uma dívida pública e, portanto, o endividamento estatal é uma inevitabilidade em uma economia monetária. O problema não é se o Estado terá dinheiro para gastar, pois é ele quem emite a moeda, todavia a preocupação deve ser com a aplicação dos recursos e a formulação de políticas públicas já que a má compreensão sobre a definição de dinheiro e sobre a natureza dos títulos públicos limita a ação estatal. Kaio Pimentel argumenta que o debate econômico no Brasil está orientado pela defesa da austeridade fiscal e aponta que, por mais que concorde com Daniel Conceição sobre o fato do Estado brasileiro não ser fiscalmente restrito, existem diversos posicionamentos contrários a isso. Diante da pandemia, muitos dos agentes econômicos defensores da austeridade estão mirando no pós- pandemia. Apesar de aceitarem que devem haver uma expansão dos gastos públicos deficitários para enfrentar a pandemia, não abandonam a ideia de que será necessário equilibrar as contas públicas no futuro. É importante frisar que, para Pimentel, foi crucial o fato de o governo suspender as medidas que regulam as políticas fiscais do país, a partir do reconhecimento do estado de calamidade pública e o teto dos gastos (EC 95), para que o Estado brasileiro pudesse dar resposta à pandemia. Partindo-se de um relativo consenso de que o governo deve agir para combater os impactos econômicos da pandemia, deve-se definir a maneira como o TesouroNacional obterá recursos para gastar. Neste caso, há certa controvérsia, pois há quem acredita que o financiamento via emissão monetária, por meio do Banco Central (Bacen), teria um custo menor em termos de impacto no nível de endividamento público. No entanto, a ideia de que o déficit público não viraria dívida pública é uma falácia, pois a transformação de base monetária em dívida pública remunerada é regulada pelo setor privado, através da compra e venda dos títulos públicos. Outro fator relevante, apresentado 137 por Pimentel, é a rotatividade do dinheiro na classe trabalhadora, tendo em vista que os mais pobres consomem sua renda integralmente, retornando aos bancos as reservas bancárias que poderiam então ser aplicadas em dívidas públicas remuneradas. Dado que os economistas em geral concordam com a atuação do governo, há quem defenda o retorno das políticas de austeridade no pós-pandemia. Isto significa que o Brasil voltaria a respeitar o teto de gastos e a Lei de Responsabilidade Fiscal, suspensa por conta do decreto de Calamidade Pública. Kaio Pimentel aponta que o governo pediu empréstimos externos para pagar o auxílio emergencial e que, com isso, elabora uma narrativa visando a volta da austeridade, no pós-pandemia. Contudo, a pandemia mostrou que o governo não se encontra quebrado, sendo essa uma falácia utilizada para constranger o gasto público e restringir o espaço para a implementação de políticas. Por conseguinte, o pesquisador aponta que, se o possível que aconteça uma abrupta queda na reconstrução econômica do país, visto a crise ocasionada pela pandemia. Sobre a possibilidade do risco de inflação, os Professores entendem como remoto, pois mesmo num contexto de significativa desvalorização cambial os índices não têm sido afetados, existindo apenas uma mudança relativa nos preços de alguns produtos, como, por exemplo, a inflação de alimentos cuja concentração de consumo está mais alta, devido à quarentena. Contudo, isto não tem contaminado o restante dos preços, apesar da existência de um problema, causado pela desvalorização cambial, em certos produtos, como combustível e custos da indústria, que podem ser repassados ao longo da cadeia produtiva. Kaio Pimentel aponta, ainda, que o perigo inflacionário derivado de aumento de emissão de moeda é falacioso, tendo em vista a queda da demanda. Daniel Conceição afirma que pressões inflacionárias não são por excesso de demanda agregada, que seria a única razão para um esforço contracionista. Além disso, o país encontra-se em situação de rearranjo de comportamento de gastos individuais como da estrutura produtiva, podendo causar eventos pontuais de inflação, como acontecido no começo da quarentena em produtos como álcool em gel e máscaras cirúrgicas. Quanto aos setores importantes no pós-pandemia, Conceição aponta que o esforço mais urgente é aquele que funciona como resposta à crise sanitária. Em segundo momento, a melhor forma de combater os desarranjos pontuais através de políticas públicas não é reduzir gastos, mas apontar os setores críticos, estimulando a produção. De um modo geral, para sair dessa depressão 138 socioeconômica, o professor aponta que o estímulo do setor público deve ser capaz de reverter a queda da demanda privada. No que se refere à taxação dos mais ricos e à implementação de uma Renda Básica Universal, apesar de bem-vindas do ponto de vista redistributivo (macroeconômico), Daniel Conceição afirma que não se deve usar como forma de financiamento para o Estado, visto que não é necessário, já que o Estado pode simplesmente criar mais moeda para gastar, e não seria suficiente para tal objetivo. Sobre a questão de um auxílio permanente, o professor afirma que tais políticas dialogam com as políticas de garantia de emprego, pois são formas de colocar dinheiro na mão das pessoas e de mobilizar recursos materiais da economia. Seria importante avançar, assim, na proposta de renda básica, não somente como forma de garantir a sobrevivência das pessoas, mas também para nos preparar para o processo de automatização dos processos produtivos. Por fim, no debate sobre o gasto público durante a pandemia e a recessão, devido à crise sanitária, os pesquisadores ressaltam a necessidade de desmistificações de conceitos econômicos falaciosos. O primeiro deles, a teoria de falência do Estado e por último, o conceito de moeda. As reflexões dos Professores contribuem para esclarecer sobre diversos conceitos macroeconômicos e sanar confusões acerca do tema durante o cenário de crise sanitária e econômica, enfrentado pelo Brasil atualmente. 139 A RECONSTRUÇÃO DA POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO80 Maria Fernanda Fontenele81 Em conferência virtual, Ana Paula Bruno, doutora em Arquitetura e Urbanismo e servidora pública federal, e Marco Aurélio Costa, economista e técnico em Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), abordaram a temática do desenvolvimento urbano no cenário político atual. Com atuação no antigo Ministério das Cidades e atual Ministério do Desenvolvimento Regional, Ana Paula Bruno ilustra a transformação pela qual o mesmo passou, desde o início da gestão do Presidente Jair Bolsonaro (2018-2022). Apresentou a fusão de cinco secretarias nacionais, com eixos diversos, perpassando segurança pública, mobilidade, saneamento e habitação. Para a servidora pública federal, deve-se assinalar as perdas e ganhos dessa incorporação, tendo em vista como positiva a possibilidade de resolução e abordagem de assuntos territoriais dentro de uma instituição estruturada. Contudo, desde 2007, aponta-se que não há protagonismo da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU), à medida que os temas urbanos passam a ocupar um papel secundário no debate político. Ao apresentar as bases da PNDU, Bruno afirma que há incorporação de novas agendas e perspectivas sistêmicas, como o desenvolvimento urbano sustentável, que abarca temas transversais em torno da dimensão do desenvolvimento econômico. Desse modo, é indicada a organização geral da política, que possui uma visão estratégica sobre o território brasileiro, com uma abordagem multiescalar e interfederativa. Ao fim de sua fala, Ana Paula Bruno apresenta as parcerias estratégicas da política, como entre Brasil e Alemanha (Projeto Andus) e com o IPEA. Marco Aurélio Costa, por sua vez, contextualiza e ilustra as diretrizes gerais da PNDU, tendo em vista a Constituição Federal de 1988. Desse modo, o economista destrincha a política, explorando os pormenores da lei, abordando, também, questões de financiamento, a partir de limites e conflitos 80 Memória do 6º Debates IPPUR, realizado em 29 de junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gi_1pK-2Ovc 81 Graduanda de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ https://www.youtube.com/watch?v=gi_1pK-2Ovc 140 do federalismo fiscal brasileiro. Além disso, Costa reforça as agendas, temas e desafios que Ana Paula Bruno aborda, a partir de uma diversidade territorial e múltiplas escalas. Por fim, são respondidas questões dos internautas, como a questão do processo de elaboração da Carta Brasileira sobre Cidades Inteligentes e sobre a possibilidade de inserção da temática metropolitana no processo da PNDU, no contexto atual. Evidencia-se que, em um momento de reformulação política, a questão urbana passa por uma reestruturação conceitual, alinhando desenvolvimento sustentável com produção econômica, baseada em uma visão multidimensional do território. 141 ATUALIZAÇÃO PROFISSIONAL DE SERVIDORES PÚBLICOS NA ÁREA DA SEGURIDADE SOCIAL82 Rodolfo Leonardo Nunes83 O IPPUR (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) participou ativamente do Festival do Conhecimento da UFRJ de 2020. Ressalta-se, neste artigo, a atividadepromovida pela Professora Renata Bastos da Silva, do IPPUR, e da egressa da Escola de Serviço Social da UFRJ, Aline Souto Maior. A proximidade das participantes com o tema, no caso da professora Renata, adveio de sua atuação como coordenadora da Secretaria de Educação do Município de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, onde também teve proximidade com a Secretaria de Saúde da municipalidade. Também atuou como professora no curso de História do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF) para alunos do curso de Serviço Social. É Membro-Fundadora do Instituto Gramsci Brasil. É professora do IPPUR, e na graduação atua como professora no curso de Gestão Pública para o Desenvolvimento e Social e faz pesquisas nas áreas de políticas públicas, educação, assistência e também na área das políticas públicas ligadas à economia e cultura. Já Aline Souto Maior, com 23 anos de experiência na área, é formada em assistência social pela UFRJ, Mestre em Política Social pela UFF e Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Guanajuato no México. A atividade do Festival do Conhecimento decorreu do curso de extensão da UFRJ coordenado pela professora Renata Bastos com o tema “Busca de Capacitação por Profissionais da Área de Seguridade Social”, que fora ministrado no ano de 2019 pela equipe da professora na Prefeitura do Rio de Janeiro. O curso tem por premissa a capacitação para profissionais da área e está disponível para outras Secretarias da Seguridade Social, bastando que se tenha disposição de local 82 Memória da live no Festival do Conhecimento da UFRJ, realizada em 20 de julho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-dQ1yOCXPDQ 83 Graduando de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social -IPPUR/UFRJ. https://www.youtube.com/watch?v=-dQ1yOCXPDQ 142 com equipamento para sua realização. O curso de extensão foi criado a partir do reconhecimento, por parte da Pró-reitoria de Extensão (PR5), de demandas por profissionais da área. O diálogo entre as participantes tratou dos desafios do caráter gratificante da atuação na área, tanto do ponto de vista da intervenção quanto do ponto de vista da formação para subsidiar e influenciar tais intervenções. As participantes falaram sobre a importância do marco fundamental da política de assistência social, a Constituição Federal de 1988. Com a CF/1988, ficou posto que as políticas de assistência social, um dos pilares da Seguridade Social, são um tipo de política pública e, como tal, seria dever do Estado realizá-la. Também foram tratadas algumas particularidades desta política, como o seu caráter não contributivo, fortalecendo a ideia de cidadania onde este tipo de política se ancora. 143 EPIDEMIA E ORDEM PÚBLICA – A CIDADE DO RIO DE JANEIRO NO SÉCULO XIX84 Por Beatriz Gomes de Souza, Daiane M Sousa Santos, Maria Fernanda Fontenele e Mayara Pinheiro85 A partir de uma perspectiva histórica, a Professora Fania Fridman, o doutor em Planejamento Urbano e Regional, Carlos Henrique Ferreira Júnior, e o doutorando do Programa de Pós- Graduação em Planejamento Urbano e Regional, Rafael Vidal, abordam a cidade do Rio de Janeiro, no século XIX, no que diz respeito à relação entre os problemas de saúde pública decorrentes de diversas epidemias da época e o território. Os pesquisadores apresentaram as duas correntes ideológicas que pautaram os debates da época e as proposições feitas para abrandar os efeitos das crises sanitárias que assolaram a cidade no início do século. Com base no artigo de autoria de Friedman e Ferreira Jr., publicado no livro “Na Saúde e na doença: história, crises e epidemias: reflexões da história econômica na época da Covid-19”, organizado por Rita Almico, James Goodwin Jr. e Luiz Fernando Saraiva, a professora Fania aponta as diversas epidemias que afligiram o território central do Rio de Janeiro no século XIX, sob as perspectivas do Socialismo Romântico e do trabalho do médico, vereador e presidente da Junta de Saúde, José Pereira Rego, o barão do Lavradio. Por conseguinte, os autores aprofundam as análises sobre as medidas adotadas do ponto de vista do planejamento urbano e regional. Em primeiro lugar, cabe ressaltar a definição teórica de Socialismo Utópico, definido por Friedman como uma forma de denúncia da modernidade europeia, desde o século XVIII. Desse modo, apesar dos avanços civilizatórios, a modernidade causava enorme sofrimento às grandes cidades. Em função disso, propunha-se, como via de resolução de conflitos, a criação de um socialismo cristão ou de uma cidade republicana, cuja organização possuísse respaldo no setor industrial, no descanso dominical, na igualdade das mulheres, nas sociedades de auxílio mútuo e na homeopatia. 84 Memória do 4º Debates IPPUR, realizado em 15 de junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AG86yc2IKg0 85 Graduandas de Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social – IPPUR/UFRJ. https://www.youtube.com/watch?v=AG86yc2IKg0 144 A higiene pública, tratada como um movimento higienista, consistia em uma medicina com o intuito de implementar políticas de prevenção de doenças e para ornar uma cidade sã. Era, para os Socialistas Românticos, um modelo de organização para tornar a cidade um corpo saudável. Além disso, Fania Fridman apresenta duas perspectivas complementares à noção higienista. A primeira é que as doenças podem ser transmitidas pelas condições sociais, isto é, pela insalubridade do ambiente de trabalho e o excesso da jornada de trabalho, e, por fim, com a filosofia presente no Socialismo Utópico, com autores como Charles Fourier, Victor Considerant, Saint Simon e Pierre Leroux, a professora ressalta a contribuição destes no processo de formação do planejamento urbano como forma de solução aos problemas sanitários das cidades. Fourier afirma que as cidades são o epicentro das graves dificuldades sociais, sendo uma das soluções a organização em falanstérios. Contudo, o discípulo de Fourier, Victor Considerant, também contribuiu para a reflexão do higienismo nas cidades, a partir da ideia de construção de uma cidade com a eliminação dos cafés e casas de jogos, limpeza das ruas e abolição da escravidão. Entretanto, Saint Simon defende que a verdadeira higiene ou verdadeira base cristã estaria na organização científica da indústria e dos homens. O discípulo de Saint Simon, Pierre Leroux, por sua vez, defende que o socialismo consiste na não repressão das mulheres pelos homens, dos estrangeiros pelos nacionais e dos proletários pelos burgueses. Os higienistas propunham soluções mais concretas com um viés global, tal como um rascunho para a solidificação de ideais de planejamento urbano a partir de uma reestruturação total das cidades. Considerada a primeira experiência concreta do Socialismo Romântico no Brasil, o fracasso dos falanstérios na cidade do Rio de Janeiro contrapõe-se à chegada de médicos como Benoit Mure, editor do jornal O Socialista da Província do Rio de Janeiro, assim como a construção de Casas de Saúde Homeopáticas e de um Instituto para o ensino da homeopatia. O periódico de 1845 já abordava a questão socialista como um progresso universal e o seu fim no ensino aos homens a se amarem uns aos outros. Por isso, eram abordadas questões como a demarcação de terras indígenas, a abolição da escravidão, reformas e a conservação do que era bom e o aperfeiçoamento do insuficiente. A partir da análise de diversos periódicos, Fania Fridman conclui que, para os discípulos de Fourier, fundadores do Instituto Homeopático, a distribuição de medicamentos homeopáticos era de suma importância, já que, a homeopatia era considerada a medicina dos pobres. É o caso observado, 145 por exemplo, no periódico A Nova Minerva, que veiculava os benefícios da homeopatia, em 1846, cujas críticas ao uso da violência no controledas epidemias eram feitas constantemente. Era criticada a ideia de que os pobres eram responsáveis pela sua condição de pobreza e falta de higiene. Muitos dos autores do periódico, inclusive, criaram Juntas de Caridade, resguardadas por um fundo municipal de impostos sobre aluguéis. O semanário A Abelha afirmava a importância da fiscalização de estabelecimentos pelas autoridades sanitárias e administrativas e, além dos processos industriais com preceitos da higiene pública, propunha a criação de uma legislação de regulação de duração do trabalho nas oficinas. A professora encerra sua fala pontuando a importância do grupo de médicos homeopatas que propunham uma intervenção nas cidades, no sentido de amenizar os efeitos das epidemias, sem violência. Isto significaria, portanto, uma maior atuação do Poder Público. Em seguida, o professor Carlos Henrique Ferreira Jr aborda os comentários do Segundo Barão do Lavradio, José Pereira Rego, na obra ‘Esboço Histórico das Epidemias Que Tem Grassado na Cidade do Rio de Janeiro: Desde 1830 a 1870”, na qual o autor faz um grande levantamento a partir de todas as fontes então existentes sobre as doenças que afetaram o território. O professor Ferreira Jr. define as décadas de 1850 e 1860 como foco de sua pesquisa, as quais coincidem com a ocupação pelo barão de um cargo na Junta de Higiene e Saúde. Devido ao cargo ocupado, José Pereira Rego tinha acesso a dados para estruturação de seu estudo. Sendo assim, é apresentada uma série de comentários sobre as medidas e as propostas a respeito do sucesso e do fracasso das políticas aplicadas na época em função das crises sanitárias. A partir disso, o autor aproxima-se e afasta-se do Socialismo Utópico, especialmente em relação à condenação da escravidão que, segundo José Pereira Rego, partiria de uma visão estritamente epidemiológica, sendo degradadora da moral pública e disseminadora de doenças provenientes do continente africano. Visto isso, o Barão menciona a criação de um órgão estatal especializado em ações públicas voltadas à saúde e à política sanitária. A partir da consolidação da ideia da importância da promoção de saúde pública e seu controle, criou-se, no Rio de Janeiro, um órgão capaz de levantar dados estatísticos e epidemiológicos sobre as causas mortis na cidade. Evidencia-se uma preocupação do médico em levar em conta o conhecimento acerca dos aspectos de saúde, como a causa das mortes dos indivíduos e as condições 146 em que os mesmos viviam, configurando para o autor uma melhoria do sistema administrativo de saúde para o controle de epidemias na cidade. Carlos Henrique Ferreira Jr. aponta para outro ponto interessante no texto de Rego que enfatiza a importância da criação de um hospital offshore para marinheiros, ou seja, fora da mancha urbana da cidade do Rio. A existência de um local específico para alocar os marinheiros e tripulantes em quarentena garantia à cidade uma infraestrutura que salvaguardava os navios mercantes de aportarem na cidade. Em suma, em caso de uma epidemia a bordo, haveria um espaço adequado para tratamento. Ademais, Rego também aponta para os melhoramentos públicos da estrutura pública urbana como um dever do Estado, dialogando com as ideias dos Socialistas Românticos, como a criação de uma rede de abastecimento de água e de esgoto para melhoria no saneamento básico da cidade. Por outro lado, entende que não é papel do poder público a criação de moradias sociais. Aposta, portanto, na criação de uma legislação a ser cumprida para a criação de casas e expansão da cidade, embora uma das principais dificuldades para o enfrentamento de epidemias na cidade do Rio de Janeiro fosse a negligência da Câmara Municipal em cumprir a legislação da Repartição de Saúde. O professor Ferreira Jr afirma que, de um modo geral, o barão do Lavradio compreendia que o papel de construção das casas e extensão das cidades, exceto água e esgoto, era de responsabilidade dos particulares e cabia ao Poder Público cobrar o cumprimento das regras pré- estabelecidas pela Repartição de Saúde e Polícia Sanitária. Em decorrência da exposição dos pesquisadores, surgiram questionamentos sobre a atuação dos grupos políticos frente às epidemias, também como as instituições de polícia e justiça se posicionavam tendo em vista a possibilidade de implementação de medidas autoritárias e sobre a dicotomia entre política pública e processo disciplinador nesse período. Em resposta, Fridman apresenta as epidemias da Febre Amarela, considerada uma doença de 'branco', e do Cólera, considerado uma doença de 'negro'. Nesse sentido, segundo Fridman, as medidas contra a Febre Amarela eram mais intensas que o Cólera, um tipo de racismo 'abrasileirado', pois a expectativa era a substituição de negros por brancos estrangeiros. Desta forma, Fridman conclui que esse combate contra as epidemias, na época, era muito ideológico, assim como o higienismo, no sentido de que 147 existem técnicas de prevenção contra o surgimento de determinadas doenças e técnicas neutras que iriam funcionar em qualquer lugar. Ferreira Jr complementa falando sobre a existência de jornais operários e de medicina, de diversas e variadas tendências, nos quais aconteciam os debates dos grupos políticos. Na época, existia um número grande de analfabetos, que recebiam uma informação mediada, existindo assim aqueles capazes de ler e de reproduzir as opiniões e outros não. Por fim, Ferreira Jr elucida diversos pontos do texto de Rego e suas contribuições para o que se entende hoje como importante para a manutenção da saúde pública. Vale refletir sobre o atual cenário político que o Brasil tem vivido, desde o negacionismo científico até a censura de dados sobre as mortes por conta da COVID-19, e como isso deve impactar diretamente no desenvolvimento de pesquisas e elaboração de políticas públicas, sobretudo saneamento básico. 148