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29.1 29 JÜRGEN HABERMAS: RAZÃO COMUNICATIVA E DIREITO A razão comunicativa habermasiana Jürgen Habermas (1929-), membro da segunda geração da Escola de Frankfurt, à qual se ligam expoentes como Theodor Adorno e Max Horkheimer, tem-se destacado por pensar os principais problemas sociais e humanos a partir da matriz da comunicação. Toda mediação e toda relação estão entrelaçadas a fatos linguísticos e suportando uma relação discursiva; é certo que, para Habermas, esta dimensão não poderia ser negligenciada, mas sim tornar-se-ia o cerne das questões investigativas que o tem movido numa intensa jornada de produção filosófica acerca de múltiplos assuntos de grande relevância e importância, inclusive para temas da ciência, da política, da bioética, da responsabilidade social, da cidadania, da democracia. São testemunhas desta sua intensa produtividade as seguintes obras: Estudante e política (1961); Mudança estrutural da esfera pública (1962); Teoria e prática (1963); Conhecimento e interesse (1968); Técnica e ciência como ideologia (1968); Movimento de protesto e reforma nas escolas de nível superior (1969); Para a lógica da ciência social (1970); Problemas de legitimação no capitalismo tardio (1973); Para a reconstrução do materialismo histórico (1976); Teoria do agir comunicativo (1981); Consciência moral e agir comunicativo (1983); O discurso filosófico da modernidade (1983); Teoria dos meios de comunicação (1989); A ética da discussão (1991); Direito e democracia (1992); entre outras obras. A teoria do agir comunicativo1 surge como uma teoria voltada para a compreensão da dimensão da verdade não enquanto conformidade da mente com as coisas, mas como fruto de uma experiência intersubjetiva e dialógica no espaço social.2 Mais que buscar a solução do problema da verdade, desmistificada de qualquer correlação com o gênio singular, ou mesmo com a criação pura do teórico na solidão,3 Habermas quer falar de uma linguagem que constitua uma proposta de pragmática universal, que possui seus pressupostos para existir.4 Na concepção compartilhada, em sua formação, entre Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel, a ideia de consenso dialógico parece ser o único meio, ou a única via, para que não se resvale num apriorismo desnecessário (ética do dever ou ética de princípios)5 ou num moralismo reacionário e autodefensivo de seus valores. O consenso é uma ideia comunitária a ser desenvolvida pelo grupo que pensa seus problemas em comum, e, portanto, constrói, comunicativamente, suas soluções (morais e jurídicas). Assim, toda a discussão sobre a ética do discurso perpassa a temática do consenso enquanto finalidade mesmo da realização discursiva. No sentido de valorizar a dimensão da intersubjetividade e de combater a unilateralidade da ideia da razão solitária é que se funda a teoria do agir comunicativo. No lugar da ratio, eivada de categorias lógicas e transcendentais, como pós-metafísico e pós-kantiano, é que Habermas aparece como um pensador ligado à questão do compartilhar que a comunicação permite. Desacredita-se, neste modelo, que o cogito ergo sum possa ter qualquer significação maior para a fundamentação da ética: “O princípio do ‘eu penso’, que segundo Kant – assim como já segundo Descartes e ainda segundo Husserl – marca para a reflexão transcendental o ponto iniludível, esse ‘eu penso’ não permite por si mesmo nenhuma fundamentação transcendental da ética” (Apel, Karl-Otto, Ética do discurso como ética da responsabilidade, Cadernos de Tradução, no 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 11). Nenhum sujeito falante que se apropria de uma língua para dela usar estará somente praticando um mero ato isolado de fala. Muito menos ainda estruturará seu 29.2 pensamento e suas categorias de organização mental a partir da imanência. Tanto a fala quanto a organização do pensamento são decorrências de um processo de troca de experiências comunicativas que são constitutivas da ordem social e da própria noção de intersubjetividade. Pensar estas trocas e os modos pelos quais se tornam condições de realização da ação comunicativa, eis o modus desta teoria.6 Ademais, o que há de distintivo na contribuição da ética discursiva habermasiana? Para responder a esta questão, é necessário acompanhar o filósofo, quando, lucidamente, afirma: “A ética do Discurso não dá nenhuma orientação conteudística, mas sim, um procedimento rico de pressupostos, que deve garantir a imparcialidade da formação do juízo. O Discurso prático é um processo, não para a produção de normas justificadas, mas para o exame da validade de normas consideradas hipoteticamente. É só com esse proceduralismo que a ética do Discurso se distingue de outras éticas cognitivistas, universalistas e formalistas, tais como a teoria da justiça de Rawls” (Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, 1989, p. 148). A particular preocupação desta ética discursiva são as condições de validade pelas quais se produzem os diversos discursos (jurídicos, políticos, morais, educacionais...). No lugar do apreço aos valores, no lugar da indicação do bom e do mal, no lugar de afugentar pelo maniqueísmo escatológico os vícios humanos, esta proposta tem a sóbria tendência a identificar-se menos com conteúdos morais e axiológicos e mais com os modos pelos quais se fazem discursos. Eis aí seu proceduralismo. A correlação, portanto, com os temas da política, da moral e do Direito é evidente. Não há como se pensar qualquer tipo de norma moral, qualquer tipo de relação social, qualquer tipo de coerção jurídica sem antes se pensar em como estas coisas se podem construir, de modo legítimo, para uma determinada comunidade, e, neste caso, a resposta habermasiana aponta para o agir comunicativo. A proposta ético-procedural acerca do Direito Pensar o Direito a partir da teoria do discurso é considerá-lo na perspectiva de uma razão que age, enquanto se comunica, e, por isso, menos se experimenta seja como razão teórica, seja como razão prática,7 mas sim como razão comunicativa, pela ética do discurso (Diskursethik), tal como vem identificada na perspectiva habermasiana.8 Isto significa que o uso público da razão é o lugar de encontro das possibilidades de construção de regras comuns, uma vez congruentemente construídas a partir das deliberações no espaço público. Ora, é o procedimento garantidor da participação e do consenso que estabelece a eticidade do agir comunicativo, condição sine qua non para a formação legítima da vontade jurídico-política. A falibilidade dos modelos teóricos anteriores, para Habermas, decorre do fato de oscilarem na definição do direito ora para o lado da validade, o que ocorre com o modelo kelseniano, ora para o lado da facticidade, o que ocorre com as correntes sociológicas, como a de Niklas Luhmann, como aponta em seu famoso e marcante texto para a história da Filosofia do Direito, Direito e democracia: entre facticidade e validade (Faktizitat und Geltung. Beitrag zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratichen Rechsstaats): “Arrastada para cá e para lá, entre facticidade e validade, a teoria da política e do direito decompõe-se atualmente em facções que nada têm a dizer umas às outras.”9 No lugar de eliminar a tensão entre faticidade e validade, Habermas a mantém em suspenso, admitindo-a no interior das práticas do direito, para discutir a sua ideia e o conjunto de elementos que sustentam a sua legitimidade. A razão comunicativa produz verdades a partir do exercício da interlocução mediada por instrumentos institucionais garantidores das condições de aparição do discurso. Com Habermas: “A intersubjetividade de um grau mais alto (die höherstufige Intersubjektivität), que comunga a perspectiva de cada um com a perspectiva de todos, pode constituir-se apenas sob os pressupostos comunicativos de um discurso ampliado universalmente, no qual todos os possivelmente envolvidos possam participar e tomar posição com argumentos numa postura hipotética em vista das pretensões à validade (tornadas problemáticas a cada momento)de normas e modos de ação.”10 Isso significa que pensar e agir em comum se somam, no processo da produção de sentido que se dá em comum entre falantes, abandonando-se a ideia de que as verdades são formadas por um sujeito (ou alguns sujeitos) que buscaria em normas abstratas e unilateralmente deduzidas verdades contidas em uma razão solitária, autossuficiente, como ocorre no pensamento kantiano.11 A verdade aqui é fruto de um procedimento de engajamento argumentativo (semelhante ao procedimento jurídico) que consente a produção compartilhada de normas do agir.12 A formação discursiva da vontade é questão central de discussão habermasiana, que vem claramente influenciada pelo pressuposto extraído das regras do jogo democrático, segundo as quais os atores e participantes atuam conforme pautas e procedimentos previamente constituídos para a garantia do exercício do direito à voz e à participação. É aí que a inspiração de Habermas se dá para apresentar uma proposta de entendimento da cultura do direito. Diferentemente do princípio moral, que opera orientando o processo interno de determinação do conteúdo argumentativo de cada fala, o princípio da democracia serve como parâmetro para “a institucionalização externa e eficaz da participação simétrica numa formação discursiva da opinião e da vontade, a qual se realiza em formas de comunicação garantidas pelo direito”.13 O Direito tem uma participação expressiva, significativa e necessária na constituição e determinação dos modos de ação social, determinando, desta forma, o esquema de atuação de cada um dentro do jogo de troca social. Por isso mesmo se torna importante pensar o Direito, fundando-o em um solo muito concreto, que parte de evidências reais e possibilidades concretas de realização. Mas esta realidade é plural, é o mundo da vida, de onde se extraem as múltiplas experiências que atravessam a condição humana (injustiças, sentimentos, dificuldades, debilidades, instituições, tradições, moralidades...), e que não pode ser reduzido a uma categoria única e organizadora de todo o real, como o econômico em Marx. Se há um atributo, diferentemente do pensamento marxista, que marca a condição humana, este atributo é a capacidade de produção de linguagem e de interação comunicativa através da 29.2.1 linguagem. Isto porque se o Direito não for considerado um sistema empírico coordenador de ações, a própria discussão filosófica fica vazia, exatamente porque ideal e descolada da realidade.14 Se torna especialmente importante pensar o Direito, de forma concreta e empírica, seja pela necessidade de sua existência, seja pelo fato de se constatar uma clara crise de fundamentação do direito e das práticas políticas, especialmente se considerada a problemática necessidade de refundar a ideia de Estado de Direito dentro de nossa cultura, como único mecanismo possível de manutenção da coesão social, sabendo-se que o estado atual da questão é exatamente o de crise, talvez gerada pela carência de efetiva presença e exercício de seus próprios princípios.15 O direito em face da moral: diferenciando as esferas normativas Para pensar o Direito, é necessário assumi-lo em toda a sua problemática condição. Isto está a comandar a ideia de que a base de moralidade estrutura o Direito. Então, é da tensão entre coerção e liberdade, assim como entre facticidade e validade, que se alimenta a ideia de Direito.16 Isto significa aproximá-lo também das experiências sociais que lhe são próximas, ou das quais retira também grande parcela de seu modus. Eis a aproximação existente entre a experiência do direito e a experiência da moral. Para distinguir o direito da moral, dada a sua proximidade deontológica de outras esferas de normação, já destacadas por Jhering,17 é imperioso passar pela compreensão da dinâmica da vida social. Quando se está a falar de Direito, esclareça-se, se está a falar desta forma assumida pelo Direito desde a modernidade, qual seja, juntamente com Habermas, a de um Direito além de normatizado, que se pretende sistemático, de interpretação obrigatória e predisposto pela força ao exercício da imposição do comportamento obrigatório. Quando se está a falar de moral, considere-se que se está a considerar uma forma do saber cultural, fator relevante para manutenção das instituições sociais. O Direito é mais que isto, exatamente porque o direito reclama mais que saber, reclama ação, e é desta forma que se trata de um sistema que preside as ações, que intercede nas ações, que define e pauta as ações e que comanda pela força o cumprimento de determinadas ações. O Direito forma “um complexo de reguladores da ação”, na concepção de Habermas, que não deixa de compartilhar com a moral a capacidade de influenciar na tomada de decisão, mas que não se define por isso, e sim pela capacidade de produzir uma eficácia direta sobre a ação. É de um elevado grau de racionalidade que se nutrem as práticas institucionais do Direito, contrariamente ao que ocorre com as normas morais, cujos apelos sentimental, emocional, axiológico, por vezes, são turbadores da sua própria consistência. É isto que lhe garante um forte traçado autônomo, a partir da ideia de validade (Kelsen), que consente à teoria a sua descrição como sendo um sistema diferenciado de outros sistemas sociais (Luhmann).18 Enquanto sistema, no entanto, o Direito recolhe da moral os princípios vitais e constitutivos dos processos de eleição de valores e formas de compreensão de conteúdos de ações humanas específicas.19 É isto que define o direito para além da moral, ou seja, se trata de um “sistema de saber e, ao mesmo tempo, sistema de ação; ele pode ser entendido como um texto repleto de proposições e interpretações normativas ou como uma instituição, isto é, como um complexo de regulativos da ação”.20 As ações individuais, portanto, se coordenam e se organizam a partir de preceitos normativos escalados como sendo referenciais do modo de agir em sociedade (pagar o tributo; omitir-se de causar dano material a outrem; dirigir como licença administrativa etc.). Como comando para a ação, o Direito age organizando os mecanismos de interação do convívio social, modulando desta forma os encontros entre subjetividades e interesses de cunho social. A legalidade é, sem dúvida alguma, importante face do direito moderno, mas não sua única e última fonte de legitimidade.21 O Direito que se organiza como sistema, que se funda na coerção e que realiza pela força seus preceitos, e assim o é desde a modernidade, retira dos indivíduos “o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem compatibilidade das liberdades de ação”.22 Se a moral, como forma de influenciação sobre os comportamentos sociais demanda a consciência do agente para condicionar-se a ter esta ou aquela escolha, o Direito cumpre a função de pré-dizer quais escolhas são válidas e quais não são válidas, tolhendo, de certa forma, a possibilidade de exercício de liberdades de escolha para além daquelas normadas como essenciais para o convívio social. Mas, ao tolher a livre-arbitrariedade das decisões de consciência individuais, também regula o encontro das vontades no espaço público. O Direito, neste sentido, reclama menos consciência e mais obediência. Uma sociedade regulada pelo Direito não significa uma sociedade esvaziada de preceitos morais. O Direito os incorpora em suas interfaces discursivas e, ao fazê-lo, desdobra a sua pretensão de validade para que se torne também legítima do ponto de vista moral. Certamente, o Direito pode se fechar autopoieticamente e autorreferir-se, porém isto não garante que sua condição de sobrevivência social se dê independentemente da moral, ou de qualquer mínimo moral. No entanto, há que se reconhecer que em sociedades racionalizadas, burocratizadas e normatizadas, exatamente porque complexas, os preceitos da moral somente encontram efetividade objetiva quando transformados para a linguagem do Direito.23 Mais que isto, para uma teoria do agir comunicativo, não interessa simplesmente pensar, ao modo kantiano,acentuado na perspectiva kelseniana, a diferenciação destes sistemas, mas sobretudo pensar no não acantonamento da moral provocado pela intensa especificação dos subsistemas sociais, na medida em que quanto mais a moral “se interioriza e se torna autônoma, tanto mais ela se retrai para domínios privados”.24 Para esta visão, portanto, esta relação não é de mera complementaridade, entre a esfera da interioridade e da exterioridade, mas sim de entrelaçamento, na medida em que o agir comunicativo pressupõe esta participação do juízo moral na produção de decisões social e juridicamente relevantes.25 De fato: “Por conseguinte, se as qualidades formais do direito são encontráveis na dimensão dos processos institucionalizados juridicamente, e se esses processos regulam discursos jurídicos que, por seu turno, são permeáveis a argumentações morais, então pode-se adotar a seguinte hipótese: a legitimidade pode ser obtida através da legalidade, na medida em que os 29.2.2 processos para a produção de normas jurídicas são racionais no sentido de uma razão prático-moral procedimental. A legitimidade da legalidade resulta do entrelaçamento entre processos jurídicos e uma argumentação moral que obedece à sua própria racionalidade procedimental.”26 O Direito e o mundo da vida O Direito pertence ao domínio do mundo da vida (Lebenswelt), enquanto reunião de personalidade, sociedade e cultura. É dentro dele, portanto, que se deve perceber e acolher a definição de Direito. O mundo da vida resume a complexidade de fatores que condicionam o agir social. O mundo da vida está impregnado de consensos da experiência de vida. O mundo da vida cria as condições para o diálogo e o consenso, para o encontro das vontades e para a deliberação político-jurídica na dimensão da esfera pública. Isto porque os indivíduos “compartilham do chamado mundo da vida, onde possuem uma tradição cultural comum e crescem internalizando valores, expectativas e identidades em comum”.27 Pode-se mesmo dizer que a sociedade civil, na acepção habermasiana, se estrutura a partir de sua capacidade de entendimento, presidida que é pelo princípio do discurso. Assim, todo agir social que corresponde a uma troca recíproca entre atores sociais acaba sendo também e invariavelmente uma troca que pressupõe consensos mínimos extraídos do mundo da vida. Ora, esta troca é codificada por instrumentos que sintetizam valores, ideias, experiências, consensos, e a linguagem é o medium portador deste processo. A linguagem opera a síntese indivíduo/universal codificando a razão objetivada através das instituições sociais. O mundo da vida, como forma condensada de saber e poder,28 com suas evidências e consensos admitidos, é o pano de fundo da ideia de que o agir comunicativo se dará a partir das experiências extraídas desta esfera. O mundo da vida corresponde a “um complexo de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades pessoais”,29 e o agir comunicativo extrai a sua vivacidade daí. Extraído da teoria da comunicação, o conceito de mundo da vida evita que a realidade seja encarada de modo partilhado, na medida em que significa esta “rede ramificada de 29.2.3 ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas”. Ora, é evidente que todas as práticas que assumem ao nível da comunicação alguma significação, já incorporaram tradições culturais, valores, instituições, sabedorias acumuladas. A originariedade, o imprevisto e o indeterminado são a marca do processo de constituição desta grande trama constituída a partir do convívio de indivíduos socializados, que buscam apoio nas condições de reconhecimento recíproco. Esta é mesmo a condição para, em meio ao social, afirmar-se como sujeito. Isto é o que faz com que sejam reciprocamente pressupostas e condicionantes a pessoa, a cultura e a sociedade.30 Direito e esfera pública O Direito depende da esfera pública. A esfera pública é uma noção evidente da vida social, tão comum e tão instantaneamente presente na estrutura do convívio quanto a ação, os atores sociais, o grupo e a coletividade. Trata-se de uma noção evidente na medida em que o próprio homem, na concepção habermasiana, é “um ser plural, nascido em comunidade linguística e convivendo em um mundo marcado pela intersubjetividade e no qual compartilha expectativas, visões culturais, ideais comuns”.31 Quando se fala em espaço público, esta noção não retrata uma instituição, uma organização, pois não permite a formação de papéis e competências específicos e funcionalmente diferenciados, assim como também não é um sistema, uma vez que seus horizontes são abertos, permeáveis e maleáveis. Trata-se sim de uma verdadeira rede de feixes comunicacionais, de encontros e desencontros de tomadas de posição e de ações comunicativas, que pressupõe a base da linguagem natural para se realizar, lugar onde se sintetizam as opiniões públicas. É para ela que convergem as dicotomias, as disputas, as diferenças, os dilemas, os debates, as contraposições axiológicas.32 A existência de uma esfera pública sólida e consistente, sistematicamente predisposta à vivência da condição dialogal, é a garantia da radicalização da capacidade de produzir vontades democráticas nas tomadas de decisão que marcam a vida política, e que determinam as decisões formadoras do discurso jurídico. Ante os déficits de democracia, ante a crise de legitimação, ante o excesso de burocracia, ante a distância entre o poder instituído e o representado do poder, deve-se caminhar no sentido de, pela esfera pública, “alargar e aprofundar o campo político participativo em todos os espaços estruturais de interação social, revalorizando o primado da comunidade com todas as suas feições solidárias e permitindo uma libertação da sociedade civil, quer dos controles burocráticos empreendidos, quer dos imperativos econômicos impostos pelo mercado”.33 Nesta esfera, a disputa é por hegemonia de influenciação. O reconhecimento das capacidades e habilidades de influenciação da opinião pública depende da habilidade e da competência políticas adquiridas, o que faz com que haja convergências significativas de determinados grupos, instituições e/ou partidos cuja conquista de notoriedade lhes confere também o prestígio necessário para determinar opiniões na esfera pública (cientistas, artistas, juristas, políticos, padres, partidos, ONGs...). A esfera pública é aberta e democrática, indeterminada e informe, e por isso está sempre acolhendo a divergência, a diversidade e a pluralidade. O novo sempre pode irromper. Ainda que a mídia alcance cada vez mais predominância na determinação das orientações da esfera pública, ainda carece do público como destinatário e assentidor último de suas práticas.34 O espaço público pressupõe liberdade de encontros comunicativos, o que de certa forma significa que seu caráter espontâneo não é determinado nem pela mídia, nem pelo governo e nem por outras forças totalizantes. É claro que a ideia de uma esfera pública que supere a lógica do individualismo burguês iluminista sem recair no comunitarismo tem alguns pressupostos, quais sejam: (1) uma base cultural mínima que consinta o compartilhamento de visões de mundo; (2) uma base democrática de expressão livre da vontade, onde haja a possibilidade do encontro dos diversos segmentos de representação da sociedade, sem a preponderância de nenhum; (3) uma base mínima de direitos que garantam a liberdade individual e a solidez do espaço da política; (4) uma base mínima de desenvolvimento moral e liberdade de crítica à regras estabelecidas pelo jogo político.35 29.3 A noção de espaço público é, portanto, incentivadora do pluralismo, do encontro da diversidade, do incremento da politicidade nas sociedades modernas diferenciadas e complexas, pois os critérios de entrada e participação não estão vinculados a pressupostos totalizantes. Por uma teoria pós-metafísica do Direito O inapelável compromisso mantido por Habermas de pensar a legitimidade do Direito a partir do problema da legalidade, extraída da experiênciade afirmação do Direito positivo na modernidade, considerando especialmente o papel da experiência democrática e de discuti-lo a partir da ideia de radicalização do processo de compartilhamento de vontades é de grande significação para a cultura do direito positivo contemporâneo.36 Sem apelos metafísicos, e considerando o estado atual da cultura hodierna, completamente secularizada, é mister assumir como premissa de argumentação a necessidade de trabalhar o Direito como um fundamental instrumento de solidificação racional do convívio humano em sociedade. Neste sentido, o pensamento habermasiano reafirma a necessidade do Direito, na exata medida em que representa uma alternativa aos sistemas que funcionam capitaneados pelo poder ou pelo dinheiro. O Direito representa a alternativa fundada na razão de constituição de um agir comum, determinado por mecanismos e procedimentos, que garantam aos interessados o envolvimento na produção dos consensos sociais expressados por meio de normas. A necessidade imperiosa do Direito decorre do fato, concreto e real, de que pensar em sua abolição só pode conduzir a uma insanidade, na medida em que os níveis éticos para a integração social não são suficientes – somente eles – para suportar o imperativo da socialização. A proposta marxista se esgotaria, se trazida do pensamento à ação, num retorno ao desregramento do próprio convívio. E se é verdade que a natureza humana está mais próxima da “sociabilidade insociável”, na leitura de Kant, e menos próxima da gregariedade aristotélica, o Direito se torna uma necessidade do próprio convívio, como elemento conservador do próprio convívio. Nesta medida, o Direito participa da atual condição de necessidade do exercício da própria sociabilidade. Esta necessidade não está descartada do pensamento habermasiano. O Direito que exerce todo o seu potencial é, acima de tudo, um Direito indicativo, enunciativo, libertário, emancipatório, porque capaz de estimular (mais que reprimir) o desenvolvimento dos esforços sociais para o alcance e a realização de fins comuns. É, nesta acepção, emancipatório, porque abraça, na perspectiva da teoria do agir comunicativo, a ideia da radicalização da democracia. Estes fins comuns nunca são passíveis de serem fixados a priori, pois são sempre fruto daquilo que se delibera como sendo fim comum dentro de cada novo contexto, e a partir de cada nova necessidade sócio-humana. O direito que meramente se retira, para só aparecer quando a norma é violada, não é o melhor modelo de instituição social que se deseja. O direito que intervém a ponto de totalizar as vivências individuais em vivências coletivas, sufocando liberdades e deixando pouco espaço à autonomia individual, muito menos. Isto porque sufoca o potencial de autonomização ética da vontade pela autonormação do indivíduo pela razão, incrementos que são fundamentais na articulação criada pela própria cultura do Estado de Direito, como avalia Habermas.37 O direito que se quer é um medium entre estes dois tipos, é um direito que simboliza ação para frente, e representa a admissão do éthos maduro de uma sociedade na querença da realização de metas comuns razoáveis. Seu diferencial, portanto, não está no fato de ser produzido pelo Estado ou de se realizar por regras contidas em lei (Kelsen). O conceito de direito necessariamente deve abrigar em sua visão a ideia de que a sociedade civil, na acepção habermasiana, o que implica a esfera pública política, é o centro produtor do direito. Conclusões Afinal, como se pode avaliar o Direito a partir da concepção apresentada por Jürgen Habermas? Partindo da ideia da razão comunicativa, é possível pensar que o Direito legítimo se funda sobre as experiências ordinárias colhidas no mundo da vida, de onde se extraem condições para a participação na arena da esfera pública, através da qual os circuitos de comunicação habilitam os atores sociais à produção de decisões social e juridicamente relevantes. Assim, pode-se, com Habermas, pensar no Direito como sendo um instrumento necessário da experiência social, mas sobretudo imprescindível para a vivência governada pela razão, enquanto razão comunicativa, em lugar da irracionalidade e do atomismo sociais. É assim que o Direito se anela à ideia de ser uma prática social de deliberação, compartilhamento e estabelecimento de referenciais do agir comum; é, certamente, linguagem, codificada ao nível normativo, comprometida com a salvaguarda da liberdade, o que só é possível por meio do exercício de escolhas entre valores diversos, para que comportamentos se tornem socialmente vinculativos, consentindo-se a sobrevivência da coesão social e o crescimento das perspectivas de alcance da justiça na vida compartilhada por uma comunidade linguística. __________________ 1 Para um estudo mais aprofundado desta noção, pesquise-se Habermas, Teoria do agir comunicativo, Frankfurt, 1981; Habermas, Esclarecimentos acerca do conceito do agir comunicativo, in Habermas, Estudos preliminares e suplementos à teoria do agir comunicativo, Frankfurt, 1984. 2 Cf. Stieltjes. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, 2001, p. 67. 3 Habermas chega a afirmar expressamente em um de seus textos: “(...) la ética del discurso supera el planteamiento meramente interno, monológico de Kant, quien cuenta con que cada individuo particular realice la verificación de sus máximas de acción en su fuero interno (‘en la solitaria vida del alma’, como decía Husserl)” (Habermas, Jürgen, Aclaraciones a la ética del discurso, 2000, p. 23 e 24). 4 “Encontramo-nos, portanto, diante de quatro pretensões de validez: 1) inteligibilidade, 2) verdade, 3) veracidade, 4) retidão. As pretensões de validez estabelecem o fundamento da pragmática universal: não lhe atribuem nem o objetivo, nem o conteúdo. O fim da pragmática universal, como já mencionamos neste texto, é instituir uma forma de razão, um tipo de racionalidade – A Razão Comunicativa. Este é o seu teor” (Stieltjes, Claudio. Jürgen Habermas: a desconstrução de uma teoria, São Paulo, Germinal, 2001, p. 57). 5 “A meu ver a ética do discurso pode aqui ser compreendida como tentativa de uma mediação entre a preocupação kantiana e a hegeliana com vistas a um novo fundamento para um paradigma intersubjetivo da transcendentalidade” (Apel, Karl- Otto, Ética do discurso como ética da responsabilidade. In: Cadernos de Tradução, no 3, Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, 1998, p. 18). 6 Cito em especial este trecho esclarecedor: “A pragmática universal demonstra que a utilização cotidiana da linguagem implica a coordenação das ações de um ator social com pelo menos outro ator acerca de um estado de coisas nos mundos objetivo, subjetivo e social. A reconstrução racional das condições universais da comunicação é a base da teoria da ação comunicativa” (Mattos, As visões de Weber e Habermas sobre direito e política, 2002, p. 77). 7 Esta é uma constatação que se encontra também na interpretação de Castelo Branco: “O projeto normativo do autor tem a finalidade de emancipar a vontade e opinião política através de uma razão comunicativa – não só substitutiva, mas também crítica da razão prática, exatamente como se viu na tradição da Aufkläung – que se adeque a exigência discursiva de uma sociedade moderna em que a política é inteiramente secularizada” (Castelo Branco, O paradoxo de Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, v. 9, no 20, p. 144, jan./jul. 2002). 8 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 19. 9 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 23. 10 Habermas, Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: Boletim de Estudos Avançados da USP, USP, IEA, tradução de Márcio Suzuki, set./dez. 1989, v. 3, n. 7, p. 15. 11 “A razão comunicativa, ao contrário da figura clássica da razão prática, não é uma fonte de normas do agir” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 20). 12 “Por isso, Karl-Otto Apel e eu sugerimos tomar a própria argumentaçãomoral como processo adequado para a formação racional da vontade. Ora, o exame de pretensões de validade hipotéticas representa esse processo, pois todo aquele que deseja argumentar seriamente tem que entrar em contato com as suposições idealizadoras de uma forma de comunicação exigente. Todo aquele que se envolve numa prática de argumentação tem que pressupor pragmaticamente que, em princípio, todos os possíveis afetados poderiam participar, na condição de livres e iguais, de uma busca cooperativa da verdade, na qual a única coerção admitida é a do melhor argumento” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. v. II, p. 215). 13 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 146. 14 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 94. 15 “Os indícios de uma erosão do Estado de direito assinalam, sem dúvida, tendências de crise; no entanto, nelas se manifesta muito mais a insuficiente institucionalização de princípios do Estado de direito do que uma sobrecarga da atividade do Estado, tornada mais complexa através desses princípios” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 180). 16 Habermas, Direito e democracia: entre faticidade e validade, 2003, p. 52-54. 17 “A ordem ética do mundo contém três categorias desses imperativos abstratos: do direito, da moralidade e da ética” (Jhering, A finalidade do direito, apud, Morris, p. 413). 18 “Kelsen desengata o conceito do direito do da moral e inclusive do da pessoa natural, porque um sistema jurídico que se tornou inteiramente autônomo tem que sobreviver com suas ficções autoproduzidas; ele introduz as pessoas naturais no seu próprio ambiente ou “mundo circundante”, nos termos da nova guinada naturalista de Luhmann” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003. p. 118). Também, e seguindo Luhmann: “Do ponto de vista sociológico, ambos se diferenciaram simultaneamente do ethos da sociedade global, no qual o direito tradicional e a ética da lei ainda estavam entrelaçados entre si. Com o abalo dos fundamentos sagrados desse tecido de moral, têm início processos de diferenciação” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 141). 19 Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 110- 111. 20 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 150. 21 “O surgimento da legitimidade a partir da legalidade não é paradoxal, a não ser para os que partem da premissa de que o sistema do direito tem que ser representado como um processo circular que se fecha recursivamente, legitimando-se a si mesmo. A isso opõe-se a evidência de que instituições jurídicas da liberdade decompõem-se quando inexistem iniciativas de uma população acostumada à liberdade. Sua espontaneidade não pode ser forçada através do direito; ele se regenera através das tradições libertárias e se mantém nas condições associacionais de uma cultura política liberal. Regelações jurídicas podem, todavia, estabelecer medidas para que os custos das virtudes cidadãs pretendidas não sejam muito altos. A compreensão discursiva do sistema dos direitos conduz o olhar para dois lados: De um lado, a carga da legitimação da normatização jurídica das qualificações dos cidadãos desloca-se para os procedimentos da formação discursiva da opinião e da vontade, institucionalizados juridicamente. De outro lado, a juridificação da liberdade comunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes de legitimação das quais ele não pode dispor” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 168). 22 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 114. 23 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 145. 24 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 217. 25 “A questão acerca da legitimidade da legalidade fez com que o tema do direito e da moral predominasse. Esclarecemos como o direito, exteriorizado de modo convencional, e a moral interiorizada se complementam. Porém não nos interessamos apenas nessa relação complementar, e sim no entrelaçamento simultâneo entre moral e direito” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 218). 26 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 203. 27 Tendrich, O conceito de espaço público na concepção de J. Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, PUC-Rio, 1997, p. 167. 28 “Durante o agir comunicativo o mundo da vida nos envolve no modo de uma certeza imediata, a partir da qual nós vivemos e falamos diretamente. Essa presença do pano de fundo do agir comunicativo, latente e imperceptível, que tudo perpassa, pode ser descrita como uma forma condensada e, mesmo assim, deficiente, de saber e de poder” (Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 41). 29 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 42. 30 Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, p. 111-112. 31 Tendrich, O conceito de espaço público na concepção de J. Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, PUC-Rio, 1997, p. 158. 32 Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 92. 33 Tendrich, O conceito de espaço público na concepção de J. Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, PUC-Rio, 1997, p. 156. 34 Cf. Habermas, Direito e democracia: entre facticidade e validade, 2003, v. II, p. 95-96. 35 Cf. Tendrich, O conceito de espaço público na concepção de J. Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, PUC-Rio, 1997, p. 162-263. 36 Cf. Castelo Branco, O paradoxo de Habermas. In: Direito, Estado e Sociedade, v. 9, n. 20, p. 145, jan./jul. 2002. 37 Vide, especialmente, Habermas, Para o uso pragmático, ético e moral da razão prática. In: Boletim de Estudos Avançados da USP, tradução de Márcio Suzuki, v. 3, n. 7, p. 5-19, set./dez. 1989.