Prévia do material em texto
Indaial – 2021 Teoria da argumenTação Jurídica Prof.a Ivone Fernandes Morcilo Lixa 1a Edição Copyright © UNIASSELVI 2021 Elaboração: Prof.a Ivone Fernandes Morcilo Lixa Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. Impresso por: L788t Lixa, Ivone Fernandes Morcilo Teoria da argumentação jurídica. / Ivone Fernandes Morcilo Lixa. – Indaial: UNIASSELVI, 2021. 206 p.; il. ISBN 978-65-5663-612-2 ISBN Digital 978-65-5663-611-5 1. Argumentação jurídica. - Brasil. II. Centro Universitário Leonardo da Vinci. CDD 340 apresenTação Olá, caro acadêmico. Seguramente, você já ouviu que o profissional do Direito tem como principal ferramenta o domínio da linguagem e das técnicas de convencimento. É sabendo se expressar adequadamente que direitos são requeridos, defendidos e assegurados nos tribunais. Com o domínio das expressões e do vocabulário jurídico, o operador do Direito se diferencia e se destaca em sua permanente luta pela justiça. Através da linguagem e da capacidade de argumentar é possível peticionar, apelar, recorrer, sustentar teses jurídicas, persuadir, provar, julgar e até mesmo condenar ou absolver. Sem dúvida, a argumentação jurídica, como capacidade de exteriorizar através do domínio da linguagem, o sentido e alcance da norma no caso concreto é que o Direito concretiza na realidade fática. Mais do que conhecer leis e conceitos jurídicos, é necessário que o jurista tenha habilidades e competências que lhe permitam ser ao mesmo tempo pensador do direito, orador e escritor de excelência. Pensando em lhe possibilitar a aquisição de boa capacidade argumentativa e interpretativa do Direito é que elaboramos este livro especialmente para você, selecionando temas atuais e relevantes para que seja um profissional diferenciado e de sucesso. Metodologicamente, o livro está dividido em três grandes unidades, subdivididas em tópicos que lhe permitirão um estudo minucioso e sistemático sobre o tema da argumentação e interpretação jurídica. Na Unidade 1 serão estudados os conceitos básicos acerca da Linguagem, Comunicação e Vocabulário Jurídico, de forma a particularizar o campo do Direito com o objetivo de compreender as distintas e múltiplas inter-relações dos sentidos e significações jurídicas com vistas a dominar as técnicas de persuasão de maneira correta e eficaz. Na Unidade 2, o principal foco do estudo será a Argumentação Jurídica, em que você conhecerá essa importante ferramenta para a atividade do profissional do Direito nos dias de hoje. Vivemos um momento em que se compreende o Direito para além do mero texto legal, exigindo-se do intérprete, o domínio de um raciocínio lógico e argumentativo para que seja possível solucionar o caso concreto de maneira justa e razoável. Na Unidade 3, quando então já dominados os conceitos básicos e fundamentais da argumentação jurídica, chegaremos ao estudo da hermenêutica jurídica e os novos desafios no campo da interpretação e aplicação do Direito. Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade. Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos! NOTA Ao final de cada tópico, você terá à disposição autoatividades que lhe permitirão avaliar e aprofundar melhor os estudos realizados. Leia atentamente os textos selecionados e indicados em cada unidade. Bons estudos!!! Você não estará só nesta jornada que se inicia. Estaremos sempre juntos. Prof.a Ivone Fernandes Morcilo Lixa Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! LEMBRETE sumário UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA ......................................................... 1 TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS ............................................................................................... 3 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................... 3 2 LÍNGUA E LINGUAGEM: CONCEITOS INICIAIS .................................................................... 3 3 FUNÇÕES DA LINGUAGEM ......................................................................................................... 10 4 NÍVEIS DE LINGUAGEM ............................................................................................................... 14 5 LINGUAGEM ORAL E ESCRITA .................................................................................................. 17 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 23 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 24 TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA .......................................................................................... 27 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 27 2 LINGUAGEM JURÍDICA ................................................................................................................ 28 2.1 JARGÃO JURÍDICO E PODER SIMBÓLICO ........................................................................... 31 2.2 AS CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM JURÍDICA ........................................................ 35 3 TÉCNICO-CIENTÍFICA ................................................................................................................... 36 3.1 LÓGICA E ESTILO ....................................................................................................................... 39 3.2 CONCISÃO .................................................................................................................................... 40 3.3 ESTÉTICA ..................................................................................................................................... 40 4 OS NÍVEIS DA LINGUAGEM JURÍDICA ..................................................................................41 RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 47 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 48 TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO ..................................................................................... 51 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 51 2 POLISSEMIA ...................................................................................................................................... 51 3 HOMONÍMIA .................................................................................................................................... 53 4 SINONÍMIA E PARONÍMIA .......................................................................................................... 54 5 AMBIGUIDADE E VAGUEZA ....................................................................................................... 55 LEITURA COMPLEMENTAR ............................................................................................................ 60 RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 64 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 65 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 66 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ............................................ 67 TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS .............................................. 69 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 69 2 ORATÓRIA ......................................................................................................................................... 69 3 A ORATÓRIA NO CAMPO JURÍDICO ....................................................................................... 75 4 RETÓRICA .......................................................................................................................................... 80 RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 89 AUTOATIVIDADE .............................................................................................................................. 90 TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES .......93 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 93 2 ARGUMENTAÇÃO ........................................................................................................................... 93 3 TIPOS DE ARGUMENTOS ............................................................................................................. 97 4 FALÁCIAS ARGUMENTATIVAS ................................................................................................ 101 5 FIGURAS DE LINGUAGEM......................................................................................................... 105 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 110 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 111 TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA ..................................... 113 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 113 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA .................................................................................................... 113 3 LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO .................................................................................................... 120 4 O DIREITO COMO SISTEMA LÓGICO ................................................................................... 125 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 134 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 137 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 138 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 140 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA ..................................................................................................141 TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA ........................ 143 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 143 2 A RACIONALIDADE CIENTÍFICA MODERNA ..................................................................... 143 3 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO MODERNO .............. 149 4 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO MODERNO NO MARCO DO POSITIVISMO LEGALISTA ....................................................................................................................................... 154 RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 160 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 161 TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO ............................................................................. 163 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 163 2 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO ................................................................................... 163 3 EMERGÊNCIA DO NOVO CONSTITUCIONALISMO COMO PARADIGMA DE DIREITO E DE INTERPRETAÇÃO .............................................................................................. 166 4 A ARGUMENTAÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS .................................. 171 5 A PONDERAÇÃO COMO TÉCNICA INTERPRETATIVA .................................................... 174 RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 180 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................ 181 TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO ................................................... 183 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................................... 183 2 HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO: CONCEITOS INICIAIS ...................................... 183 3 HERMENÊUTICA JURÍDICA ...................................................................................................... 190 4 DESAFIOS PARA A HERMENÊUTICA JURÍDICA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO ...... 194 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................................... 198 RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 202 AUTOATIVIDADE ............................................................................................................................203 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................... 205 1 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender a diferença entre língua, linguagem e fala de forma a definir a língua como o conjunto de palavras organizadas através de regras gramaticais específicas; • identificar o processo de comunicação como um interativo entre sujeitos – emissor e receptor – situados histórica e culturalmente de forma a diferenciar a comunicação humana como específica estabelecida através de um conjunto de sinais e respectivas regras de diferentes níveis que servem de instrumentos de comunicação; • diferenciar a linguagem oral da escrita como modalidades distintas, cada qual com características específicas; • particularizar a linguagem jurídica como uma metalinguagem e manifestação específica da língua portuguesa que se justifica por ser o direito um espaço comunicativo no qual o domínio da linguagem é essencial; • caracterizar a linguagem jurídica em sua particularidade técnica e científica própria com estilo e lógica que permite não ser apenas informativa, mas expressa termos de distintas significações e sentidos que se inter-relacionam com vistas à persuasão; • compreender o vocábulo jurídico como um conjunto de termos que devem ser utilizados de maneira adequada, usando-se corretamente as figuras de linguagem quando forem necessárias, evitando ambiguidades e/ou vaguezas de forma a garantir a prestação de um serviço eficaz. Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – CONCEITOS INICIAIS TÓPICO 2 – LINGUAGEM JURÍDICA TÓPICO 3 – VOCABULÁRIO JURÍDICO Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 3 TÓPICO 1 — UNIDADE 1 CONCEITOS INICIAIS 1 INTRODUÇÃO A linguagem é o instrumento que garante ao ser humano estabelecer diálogo com seu semelhante ao mesmo tempo que confere sentido à realidade e a seu agir. Através da linguagem nomeamos coisas e fatos, além de organizarmos nosso pensamento sobre nosso mundo existencial. Desde a infância, o ser humano se comunica através das distintas formas de linguagem – choro, sons, olhares e gestos – que é compreendida por nossos familiares. Aos poucos, adquirindo a cultura do meio em que vivemos, vamos adquirindo a linguagem através dos signos, e assim, é estabelecida a relação entre um significante e um significado. Em síntese, a linguagem é o instrumento de comunicação através do qual é possível a atividade ou a ação entre os membros de um grupo social, sendo construída por um conjunto de sinais e respectivas regras que estabelecem combinação entre eles, podendo ser classificada em verbal, não verbal e mista. Variando os níveis de linguagem, desde a coloquial e informal até a mais sofisticada e culta, podemos utilizar as modalidades oral e escrita como “recursos” expressivos de acordo com a oportunidade e necessidade persuasiva. Pronto para iniciar os estudos? Vamos adiante! 2 LÍNGUA E LINGUAGEM: CONCEITOS INICIAIS Embora no cotidiano os termos linguagem, língua e fala sejam utilizados sem rígida distinção são expressões que não podem ser confundidas. Apesar de serem conceitos relacionados entre si revelam aspectos diferentes da comunicação humana estudados pela linguística. A linguística é definida como campo do conhecimento que estuda a linguagem verbal humana que, com base em teorias e estudos específicos, possibilita compreender as transformações das línguas e seus desdobramentos em distintos idiomas. Ainda, também tem a preocupação de analisar a estrutura das palavras, expressões e a particularidade fonética de cada idioma. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 4 A linguística se ocupa de discussões e definições que, em geral, não são preocupações dos “seres humanos falantes”. Seguramente, poucos se preocupariam em conhecer a origem e evolução da língua que utilizam, bem como a classe gramatical das palavras e sua função no contexto da oração ou frase. Isso porque a língua e a linguagem são atividades próprias da natureza humana e qualquer indivíduo tem a habilidade de compreender sua língua quando em diálogo com outro ser falante “naturalizando” o processo comunicativo. Na linguística são encontradas inúmeras distinções entre língua e linguagem, já que essa discussão é uma constante nessa área do conhecimento e não é uma tarefa fácil. Desde o início é importante salientar que o termo “linguagem”, como melhor veremos mais adiante, é relacionado a fenômenos bastante diversos. Além de referir-se a uma capacidade humana, é utilizado para compor expressões como “linguagem corporal”, “linguagem literária”, “linguagem jurídica”, dentre outras. Porém, em termos gerais linguagem é definida como instrumento de comunicação e, desde tal concepção, a língua é entendida como um “código” através do qual se estabelece a comunicação entre um emissor (aquele que codifica) e um receptor (aquele que decodifica). É o que se conhece como esquema ou processo comunicativo que envolve diferentes elementos, quais sejam: • Emissor: também chamado de locutor ou remetente. É aquele que emite a mensagem para um ou mais receptores, o que comunica, que solicita ou que expressa algo. • Receptor: conhecido por interlocutor, destinatário ou ouvinte. É aquele que recebe a mensagem emitida pelo emissor. • Mensagem: é o conteúdo ou conjunto de informações transmitidas pelo emissor. Pode ser um texto verbal (uso de palavra oral ou escrita) ou não (corporal, gestos ou sinais). • Código: é o conjunto de signos utilizados na mensagem que são comuns tanto para o emissor como para o receptor. • Canal de comunicação: meio utilizado para a transmissão da mensagem, tais como: televisão, revista, meios virtuais etc. • Contexto: podendo ser chamado também de referente. É a situação comunicativa que emissor e receptor estão inseridos. • Ruídos na comunicação: ocorre quando a mensagem não é decodificada de forma correta pelo interlocutor, causados por diversos fatores, tais como: código utilizado pelo locutor desconhecido pelo interlocutor; barulho no local; tom de voz do locutor etc. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 5 FIGURA 1 – ELEMENTOS DA COMUNICAÇÃO FONTE: <https://www.metamorfose.adm.br/ELEMENTOS-DA-COMUNICAcaO+54851>. Acesso em: 20 abr. 2021. Nesse processo de comunicação há um componente relevante a ser acrescentado: a cultura. Não basta apenas que o emissor e receptor partilharem o mesmo código para haver uma comunicação eficiente. É também necessário que pertençam a meios ou tradições culturais semelhantes ou comuns, uma vez que os códigos linguísticos não são homogêneos para indivíduos que falam a mesma língua, nem tampouco a mesma competência linguística. A linguagem é também uma interação entre sujeitos históricos e culturais que utilizam a linguagem para agirem e transformarem seu meio social. Essa concepção é aceita pelo moderno conceito de linguagem e é importante na análise do discurso e na argumentação. Nesse sentido, nos explica Mikhail Bakhtin (2006, p. 72): [...] para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos – emissor e receptor ao som –, bem como o próprio som, no meio social. Com efeito, é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade linguística, a uma sociedade organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam integradosna unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham relação de pessoa para pessoa sobre terreno bem definido. Apesar da dificuldade em reduzir os termos linguagem a um único conceito, é possível afirmar que é um sistema de sinais complexo utilizado pelo ser humano para exprimir e transmitir ideias e pensamentos. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 6 Atualmente, considera-se a linguagem como ação, como atividade que permite a um determinado grupo social a prática de diversos atos que exige do semelhante reações, comportamentos e vínculos. Há que se frisar que a comunicação não é exclusiva de seres humanos, existindo também entre os animais não humanos. Mas embora tendo a capacidade comunicativa através de linguagem própria, os animais não humanos não desenvolvem a língua. Apesar de ser complexa em algumas espécies, a comunicação natural dos animais não humanos é muito diferente por utilizar uma linguagem natural como cheiro, toque, movimento, sinais visuais e faciais. A linguagem são sinais adquiridos genericamente ou ensinado pela vida em grupo servindo para procriação, afastar inimigos, como forma de submissão etc. Embora demonstrando possuir raciocínio analítico e capacidade de emitir sons e pronunciar palavras, não elaboram cultura e, ao que parece, a linguagem é limitada e sem capacidade de combinar e aprimorar informações. A linguagem sempre estará presente no processo comunicativo, tornando possível a relação entre os comunicadores. Tradicionalmente é definida como um sistema de sinais utilizados pelos seres humanos desde os tempos mais remotos para exprimir e transmitir ideias e pensamentos. Muitas foram as formas de linguagem utilizadas pelo ser humano ao longo da história, desde sistemas de sinais, como gestos e gritos até a fala e meios técnicos sofisticados como nos dias de hoje. FIGURA 2 – A EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO FONTE: <https://miro.medium.com/max/558/0*dFCXziBhDFkiLIy_.jpg>. Acesso em: 20 abr. 2021. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 7 A Evolução da Comunicação O homem começou a sentir a necessidade de se comunicar desde que começou a viver em sociedade, fosse para alertar sobre alguma coisa ou expressar sua cultura ou sentimento. Ao longo dos tempos, a comunicação evoluiu paralelamente com o homem até hoje. A evolução da comunicação pode-se dividir em duas partes: Pré-História e História. Pré-História é toda a forma de civilização anterior à invenção da escrita. O surgimento da escrita marca o início da História. Paleolítico e Mesolítico de 500.000 a.C. a 18.000 a.C. Foi quando o homem começa a dominar a natureza, fabricar utensílios, usar trajes para se proteger do frio, usar o fogo e, dentre outras coisas, desenvolver a linguagem para se comunicar. Nesse processo, inicia-se o que hoje conhecemos como pinturas rupestres, ou seja, desenhos feitos em cavernas ou pedras para conseguir se expressar. FIGURA – PINTURA RUPESTRE FONTE: <http://twixar.me/RZ8m>. Acesso em: 20 abr. 2021. Neolítico de 18.000 a.C a 5.000 a.C. O homem passou a viver em grupos maiores, as habitações passaram de cavernas a casas construídas por ele próprio, os trajes eram feitos por tear, e a comunicação passou a ser expressa através da técnica de gravar o cotidiano em ossos, pedras e madeiras, assim como apareceu a modelagem em argila. Idade dos metais de 5.000 a.C a 4.000 a.C. É assim denominada porque o homem começou a utilizar cobre, ferro e bronze no seu dia a dia; as civilizações viram centros urbanos e o homem descobre a importância de se desenvolver perto de rios. Os seus meios de locomoção também se desenvolvem, porém, o meio de comunicação continua o mesmo. A transição da Pré-história para a História se dá no final da Idade dos Metais, que foi por volta de 4.000 a.C. Os historiadores aceitam como certo o aparecimento da escrita na Mesopotâmia e no Egito. Agora, chegamos à História que é assim denominada, pois nessa Era temos arquivos que registram e datam os acontecimentos. Através dessa época é que temos uma real noção de como o homem vivia e se comunicava, o que pensava e o que sentia em relação ao mundo ao seu redor. Se o surgimento da escrita marca o início da história, a invenção da técnica de imprimir ilustrações, símbolos e a própria escrita promove a possibilidade de tornar a informação acessível a um número cada vez mais crescente de pessoas, alterando assim, o modo de viver e de pensar de uma sociedade. NOTA UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 8 É a linguagem atividade ou ação que possibilita a interação entre os membros de um grupo social para a prática de diversos e distintos atos que exigem reações e/ou comportamentos que estabeleçam vínculos entre os indivíduos. É constituída por um conjunto de sinais e respectivas regras que estabelecem combinação entre eles e utilizada como instrumento de comunicação. Podemos afirmar, em síntese, que linguagem é todo sistema de sinais convencionais através dos quais os sujeitos interagem uns com outros. São inúmeras as formas de linguagem. Exemplo: linguagem corporal, linguagem falada, linguagem da informática etc. É importante destacar que de acordo com o sistema de sinais que se utiliza, a linguagem é classificada em: • Linguagem verbal: é aquela que utiliza as palavras para a comunicação. O termo “verbal” é de origem latina “verbale”, vem de “verbu” que significa “palavra”. Essa é a maneira mais convencional de linguagem utilizada por ser momentânea e pode transmitir ideias e pensamentos de qualquer nível de complexidade. Podemos classificar a linguagem verbal em dois tipos: ◦ Escrita: essa maneira de se comunicar verbalmente é utilizada, em geral, quando o receptor não está presente na conversa e, na maioria das vezes, a interação não é momentânea. ◦ Oral: diferente da escrita, em sua maioria, apresenta a interação imediata. Ela pode ocorrer independente do fato de o interlocutor estar no mesmo local, como é o caso de uma conversa por telefone. Para uma boa comunicação oral é preciso estar atento à naturalidade e à objetividade da mensagem. • Linguagem não verbal: é aquela que utiliza qualquer outro tipo de sinal como gestos, sons, imagens etc. Por exemplo: quando alguém, por alguma razão, não tem ou perde a capacidade de fala, utiliza linguagem não verbal. • Linguagem mista: é quando ocorre uma mescla entre a linguagem verbal e a não verbal, utilizando simultaneamente palavras e sinais (ou outros códigos) para comunicar uma mensagem ao interlocutor. Por exemplo: quando chamamos alguém pelo nome ou concordamos com um “sim” ao mesmo tempo que movimentamos a cabeça com sinal positivo. FIGURA 3 – LINGUAGEM VERBAL, NÃO VERBAL E MISTA FONTE: <https://sites.google.com/site/linguagemverbalenaoverbal/introduo>. Acesso em: 20 abr. 2021. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 9 É comum utilizarmos a combinação da linguagem verbal e não verbal, do tipo mista. Nos dias de hoje, utilizamos mensagens via internet com palavras (mensagem verbal) e com emojis (linguagem não verbal). Você já notou isso? A língua é a linguagem que utiliza a palavra como sinal de comunicação, sendo assim, um aspecto de linguagem. Para Terra (2018, p. 13), em geral, define- se a “língua como um sistema de natureza gramatical, que pertence a um grupo de indivíduos, formado por um conjunto de sinais (o léxico) e por um conjunto de regras para a combinação (gramática em sentido amplo)”. A língua é uma construção social de caráter abstrato que se concretiza através da fala, que é um ato individual de vontade e inteligência. Para Ferdinand de Saussure (1972, p. 27) há uma clara distinção entre língua e fala: [...] esses dois tipos objetos (língua e fala) estão estreitamente ligados e se implicam mutuamente: a língua é necessáriapara que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça; historicamente o fato da fala vem sempre antes [...] Existe, pois, interdependência da língua e da fala; aquela é ao mesmo tempo o instrumento e produto desta. Tudo isso, porém não impede que sejam duas coisas absolutamente distintas. A língua, portanto, é uma construção sociocultural que existe independente do comunicador. Ao nascermos, a língua já está formada e partilhada pelo grupo humano e subsistirá independente de nossa existência. Em geral, em todas sociedades, a escrita é posterior à língua e não é raro que se faça uso da língua sem que se saiba utilizar sua escrita. VOCÊ JÁ OUVIU FALAR EM CULTURAS ÁGRAFAS? O que é uma sociedade ágrafa? Sociedade ágrafa é aquela que não desenvolveu por si mesma um sistema próprio de escritura. Exemplo: os Incas foram uma civilização avançada, mas nunca tiveram uma escritura; eram ágrafos. Como se registra a história de uma sociedade ágrafa, já que a escrita é uma das mais conhecidas fontes histórias? Com a colaboração de outras ciências, como antropologia, arqueologia e paleontologia, novos materiais passaram a servir de indícios do passado de um povo: imagens, relatos orais, vestígios, artefatos, ossos, armas, fotografias, músicas, construções e outros objetos. Essas podem ser tão importantes quanto a escrita no processo de resgate do passado de uma civilização ou comunidade. INTERESSA NTE UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 10 Sendo assim, sabendo que as sociedades ágrafas ou que fazem parte da história antiga não possuíam recursos como fotografias, músicas e outras fontes mais modernas, para estudarmos essas sociedades, utilizamos as fontes materiais, que são os vestígios materiais. Sinais que o homem deixa pelos lugares por onde passa, que podem ser vistos em vários sítios arqueológicos abertos à visitação pública ou em museus especializados. Exemplos: cerâmicas com elementos femininos, pedras talhadas e polidas, fósseis, ruínas, entre outros. FONTE: <https://brainly.com.br/tarefa/21508142>. Acesso em: 20 abr. 2021. A língua é o elemento que possibilita a interação entre os indivíduos em um determinado grupo social que torna os signos realidade através da associação entre significantes sonoros e significados. É um fenômeno de grande diversidade e complexidade cujas forças que lhe dão dinâmica são inúmeras, tais como os meios de comunicação em massa. 3 FUNÇÕES DA LINGUAGEM Segundo a utilização da linguagem pelo comunicador ou falante, a linguagem possui diferentes funções que dependem dos elementos utilizados na comunicação, ou seja, do emissor, receptor, mensagem, código, canal e contexto. As combinações desses elementos determinam o objetivo do ato comunicativo. De acordo com Petri (2017), as funções da linguagem podem ser classificadas em: função referencial, função emotiva, função conotativa, função poética e função metalinguística, cada qual possuindo características bastante particulares. Veja a seguir: • Função Referencial ou Denotativa: é também chamada de função informativa, a função referencial e tem como objetivo principal informar ou referenciar algo. Por sua função, esse tipo de texto é escrito na terceira pessoa (singular ou plural) enfatizando seu caráter impessoal. Como exemplo: a linguagem de textos jornalísticos e científicos. São textos que por meio de uma linguagem denotativa (sentido literal ou real) informam a respeito de algo, sem explicitar aspectos subjetivos ou emotivos à linguagem. São textos claros e objetivos (PETRI, 2017). Exemplo: Na linguagem jurídica, tem-se função referencial, por exemplo, em uma qualificação de parte. Observe a objetividade do texto. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 11 QUADRO 1 – FUNÇÃO REFERENCIAL FONTE: A autora João Paulo de Souza Filho, brasileiro, casado, comerciante, portador do documento de identidade RG n° 123.456.78-910, inscrito no CPF sob n° 109.876.543-21, com endereço eletrônico jpsilva@marte.com.br, domiciliado e residente na Rua: Das Flores n° 67, Bairro Oliveira, São Caetano do Sul, SP. CEP: 89.056-240, nesta Comarca onde recebe intimações, vem respeitosamente ante Vossa Excelência propor: • Função Emotiva ou Expressiva: essa função traz as emoções do emissor e é também chamada de função expressiva e tem como objetivo principal transmitir suas emoções, sentimentos e subjetividades por meio da própria opinião. É o tipo de função que explicita, que evidencia, as opiniões e emoções de quem escreve a mensagem, por isso é escrito em primeira pessoa e está voltado para o emissor, porque possui um caráter pessoal. Como exemplos temos: os textos poéticos, as cartas, os diários. Em geral são textos marcados pelo uso de sinais de pontuação, por exemplo, reticências, ponto de exclamação etc., a fim de dar ênfase à mensagem transmitida (PETRI, 2017). Exemplo: Na linguagem jurídica, exemplos de função emotiva aparecem num boletim de ocorrência ou numa sentença. Veja um trecho da sentença do famoso “Caso Nardoni”, destacando trecho do texto de função emotiva: QUADRO 2 – FUNÇÃO EMOTIVA FONTE: <https://www.conjur.com.br/dl/sentenca-nardoni.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021. “Há crimes, na verdade, de elevada gravidade, que, por si só, justificam a prisão, mesmo sem que se vislumbre risco ou perspectiva de reiteração criminosa. E, por aqui, todos haverão de concordar que o delito de que se trata, por sua gravidade e característica chocante, teve incomum repercussão, causou intensa indignação e gerou na população incontrolável e ansiosa expectativa de uma justa contraprestação jurisdicional. A prevenção ao crime exige que a comunidade respeite a lei e a Justiça, delitos havendo, tal como o imputado aos pacientes, cuja gravidade concreta gera abalo tão profundo naquele sentimento, que para o restabelecimento da confiança no império da lei e da Justiça exige uma imediata reação. A falta dela mina essa confiança e serve de estímulo à prática de novas infrações, não sendo razoável, por isso, que acusados por crimes brutais permaneçam livre, sujeitos a uma consequência remota e incerta, como se nada tivessem feito” (grifo nosso). UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 12 • Função Conativa ou Apelativa: o objetivo é influenciar o receptor a partir do apelo, por essa razão é chamada também apelativa. É caracterizada por uma linguagem persuasiva que tem o intuito de convencer o leitor. Por isso, o grande foco é no receptor da mensagem. Essa função é muito utilizada nas propagandas, publicidades e discursos políticos, de modo a influenciar o receptor por meio da mensagem transmitida. Esse tipo de texto costuma se apresentar na segunda ou na terceira pessoa com a presença de verbos no imperativo e o uso do vocativo (PETRI, 2017). Exemplo: Na linguagem jurídica, encontra-se a função apelativa nas alegações finais. Destaca-se, a seguir, trecho com função apelativa. QUADRO 3 – FUNÇÃO APELATIVA FONTE: <https://sites.google.com/site/wwwcostalinsadvogadoscombr/a-151>. Acesso em: 20 abr. 2021. Efetivamente, o réu empreendeu desforço defensivo, tendo se contraposto, no tempo oportuno, a intentona patrocinada pela vítima, a qual anelava, com todas as veras de sua alma, por termo a vida do primeiro, malgrado tenha fracasso em seu ignóbil intento, ante a oposição expedita do réu, o qual para salvaguardar seu bem maior (vida) neutralizou a truculenta investida ao abrigo da lei. Já proclamava o axioma: “matar para não morrer, não é crime”; logo, na controvérsia entretida, o réu encontra-se “a cavaleiro de qualquer censura” na feliz assertiva debitada a PEDRO A. PINTO. Ou, como diria com maior engenho e arte o jurista CARLOS BIASOTTI, em repto à peça prodrômica: “antes que réu, é vítima o acusado do equívoco,se não do arbítrio”. • Função Poética: essa função tem como objetivo enfatizar a mensagem, ressaltando a maneira como ela é estruturada para dar destaque ao seu significado. Ao escolher a função poética, a preocupação é muito mais com as rimas, que pode ser tanto em prosa como em verso, com a estrutura e com a imagem do que com as palavras em si. O texto não é objetivo e transmite pouca informação (PETRI, 2017). Exemplo: Embora sendo raro no campo jurídico pode-se encontrar peças processuais em forma de versos, como a sentença prolatada nos Autos do Processo n° 0301112-67.2017.805.0244 (Restituição de Coisa Apreendida) pela Vara Criminal da Comarca de Senhor do Bonfim (Tribunal de Justiça do Estado da Bahia). TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 13 QUADRO 4 – LINGUAGEM POÉTICA FONTE: <https://migalhas.uol.com.br/arquivos/2018/3/art20180326-09.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021. Não sei quem é o proprietário/ Mas, o possuidor do melhor documento (fls. 62)/ É presumido o signatário/ Dono daquele instrumento/ Ficando com o direito/ De recebê-la no peito como fiel depositário/ Não decido por decidir/ Mas, por a lei me permitir (art. 120, § 4°, CPP)/ Colocar em suas mãos/ Que outrora foi tirada, do povo e dos cidadãos/ Sem piedade e compaixão/ Aquela sanfona velha que imortalizou Gonzagão/ Nilvado o direito é seu, como fiel depositário/ Visto o seu opositor não ter provado o contrário/ Até que se finde a contenda/ Delegado me atenda/ Como da outra vez foi buscar/ A bela sanfona do povo, vá agora entregar/ E para finalizar/ Hei por bem declarar/ Que fui competente para buscar/ Sou também para entregar/ Cumpra-se, sem titubear! • Função Metalinguística: a função metalinguística é caracterizada pelo uso da metalinguagem, ou seja, a linguagem que se refere a ela mesma, como a que se usa nos dicionários, cujos verbetes explicam a própria palavra. Ou ainda no filme que tem por próprio tema o cinema. No poema que tem por tema o fazer literário ou em uma peça de teatro que tem por tema o teatro e demais gêneros em que a linguagem está preocupada com o próprio código. Nesses casos, o emissor explica um código utilizando o próprio código (PETRI, 2017). Exemplo: No caso jurídico, a metalinguagem é utilizada para definir conceitos jurídicos, por exemplo, o Conceito de Crime previsto no artigo 1° do Decreto- Lei n° 3.914/1941 (BRASIL, 1941): QUADRO 5 – FUNÇÃO METALINGUÍSTICA FONTE: <http://www.planalto.gov.br/>. Acesso em: 20 abr. 2021. Considera-se crime a infração penal a que a Lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou de ambas, alternativa ou cumulativamente. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 14 FIGURA 4 – AS FUNÇÕES DA LINGUAGEM E SUA RELAÇÃO COM OS ELEMENTOS DA COMUNICAÇÃO FONTE: <http://twixar.me/Drtm>. Acesso em: 20 abr. 2021. 4 NÍVEIS DE LINGUAGEM Você já deve ter percebido que são inúmeras as variações linguísticas de um idioma como resultado de contínuas e dinâmicas relações comunicativas de um determinado grupo social. O Brasil, por exemplo, é um país com imensa variedade de línguas. Somos o oitavo país com maior número de línguas em uso, sendo a maioria das comunidades indígenas. São 190 línguas indígenas que atualmente estão em perigo de extinção. O Brasil, além dos diferentes sotaques regionais, é um país multilíngue. FIGURA 5 – REGISTRO ESCRITO DE LÍNGUA INDÍGENA EM PERIGO DE EXTINÇÃO FONTE: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43010108>. Acesso em: 20 abr. 2021. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 15 Portanto, somos parte de um país com uma população de mais de 210 milhões de indivíduos distribuídos em um território de proporções continentais, com forte influência de povos indígenas e distintas ramificações estrangeiras de origem africana, europeia e norte-americana, cada qual contribuindo historicamente para uso e desuso de termos e a criação de expressões linguísticas. Ao longo do tempo, nossa língua sofreu mudanças constantes. Por exemplo, a palavra “Você”; antigamente era “Vossa Mercê”, que se transformou sucessivamente em “Vossemecê”, “Vosmecê”, “Vancê” e, com o passar do tempo, foi sendo modificada, por populações, culturas, povos diferenciados. Assim, vamos nos dando conta de que é comum nos depararmos com linguajares diversificados de uma região à outra, o que vai contribuindo de maneira significativa para a complexidade de nosso idioma. Mas como unificar essa grande variedade linguística? Isso é possível? A escola é o centro de referência para o ensino da língua vernácula, a língua “pura” sem “estrangeirismos”, a chamada linguagem culta, sem elementos descaracterizadores, constituída por normas gramaticais. Entretanto, há uma permanente dicotomia entre a norma culta e o universo linguístico dos indivíduos, em que o falar/escrever “certo” sobrepõe-se às variantes linguísticas. Há um “falar brasileiro” que é um modo de se utilizar a língua portuguesa, que é a língua nacional, com enormes variedades linguísticas. Haveria uma forma “certa” para uso da língua? Para Marcos Bagno (2007), a língua é um enorme iceberg que flutua no mar do tempo e a gramática normativa é a tentativa de descrever apenas uma parcela mais visível, que é a chamada “língua culta”. Mas, esta é parcial e não pode ser aplicada a todo resto da língua, sob o risco de ser reproduzido um tipo de preconceito comum na sociedade brasileira: o preconceito linguístico. Chamando a atenção para o preconceito linguístico, afirma Bagno (2007, p.16): Como a educação ainda é privilégio de muito pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta. Assim, da mesma forma como existem milhões de brasileiros sem terra, sem escola, sem teto, sem trabalho, sem saúde, também existem milhões de brasileiros sem língua. Afinal, se formos acreditar no mito da língua única, existem milhões de pessoas neste país que não têm acesso a essa língua, que é a norma literária, culta, empregada pelos escritores e jornalistas, pelas instituições oficiais, pelos órgãos do poder – são os sem-língua. É claro que eles também falam português, uma variedade de português não-padrão, com sua gramática particular, que, no entanto, não é reconhecida como válida, que é desprestigiada, ridicularizada, alvo de chacota e de escárnio por parte dos falantes do português-padrão ou mesmo daqueles que, não falando o português-padrão, o tomam como referência ideal — por isso podemos chamá-los de sem-língua. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 16 Superar o preconceito linguístico é um enorme desafio porque são muitos os aspectos comunicativos de nosso idioma. Desde o espaço físico, no qual interagimos, que é um campo de atividade social de grande importância quando se refere à atuação linguística que, por natureza, se concretiza no terreno geográfico onde suas qualidades geológicas e produtivas influenciam significativamente em nossa maneira de se comunicar, de se comportar, de agir, de viver (SANTOS, 2018). Em região de floresta densa, por exemplo, a linguagem local/regional será repleta de termos que se referem às especificidades da natureza local, por exemplo, a palavra “buriti” – do tupi-guarani: mbur = alimento; iti = árvore alta; = árvore alta de alimento ou de vida. Ainda, conforme as relações sociais vão se desenvolvendo vão sendo criadas novas palavras e expressões que condizem com a necessidade de nomear novos bens de consumo e entretenimento. Um exemplo é o estrangeirismo que atribui valores linguísticos a produtos e bens de serviço atravésda língua do país de origem, como é o caso de internet, pendrive, hot-dog, videogame, shampoo etc. Ainda, Santos (2018, p. 6) nos esclarece que: Toda sociedade é heterogênea, ou seja, ela é portadora de diferentes tipos de cenários onde as ações humanas podem se manifestar: cenários culturais, religiosos, artísticos, profissionais, de lazer, comerciais etc., e entre esses cenários há um elemento divisor de águas que difere entre si e estabelece limites de comportamentos que acabam restringindo, de certa forma, o desenvolvimento da outra, são as classes sociais dos indivíduos. O modo de comunicação das diferentes classes sociais se estabelece perante o modo de vida dos falantes e das formas de expressões características das mesmas. Tem-se, superficialmente, disseminado a ideia de que, dependendo da classe social, pode-se estabelecer um determinado linguajar para cada uma delas; todavia, essa ideia acaba entrando em contradição ao inferir-se que mesmo inseridos em uma classe social específica um ou mais indivíduos podem possuir e exercer maior ou menor domínio linguístico em qualquer classe social. Portanto, as diferenças sociais não podem servir de condição para que os indivíduos sejam considerados aptos a exercerem a comunicação “certa ou errada”. Na verdade, são adequações e conformidades da língua estabelecidas que não podem excluir indivíduos, mas contribuir para coesão e coerência em momento que necessitam de maior ou menor dedicação de atenção. A escolarização pode levar a pensar que a linguagem correta é a linguagem escrita, que é, por natureza, lógica, clara, explícita, ao passo que a linguagem falada é mais confusa, incompleta, sem lógica etc. Essa percepção é equivocada. A fala tem elementos contextuais e pragmáticos que a escrita pode revelar, e, por outro lado, a escrita tem elementos que a linguagem oral não utiliza. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 17 Utiliza-se a expressão “linguagem culta” para designar uma variedade linguística representada pelas pessoas de alta escolarização formal e com acesso à cultura letrada. Linguagem de nível culto é aquela considerada ideologicamente como “certa” e é definida como aquela que o grupo social atribui valor distinto da linguagem popular que é aquela que se constrói nas múltiplas relações comunicativas entre os indivíduos de diferentes espaços e vivências sociais. É aquela que tende a ser coloquial e, muitas vezes, é responsável pelo surgimento de termos comuns como gírias, jargões e figuras de linguagem, dentre outras manifestações e expressões linguísticas. FIGURA 6 – LINGUAGEM CULTA E LINGUAGEM COLOQUIAL FONTE: <https://mundotexto.files.wordpress.com/2014/02/norma-culta-charge-surfista.jpg>. Acesso em:20 abr. 2021. 5 LINGUAGEM ORAL E ESCRITA A linguagem comporta duas modalidades distintas e bastante utilizadas: a linguagem oral e a linguagem escrita. São formas diferentes tanto em “recursos expressivos” como gramaticalmente. Não há dúvida de que a linguagem falada é o primeiro e mais importante meio de comunicação. Não é sem razão que o ser humano é considerado um “animal que fala”. Como adiante veremos, sob o ponto de vista argumentativo, a comunicação oral possui vantagens em relação à escrita, apesar de algumas desvantagens também. Usando a oralidade é possível mais agilidade e interação comunicativa, além de outras formas de linguagem, como a corporal, o que garante mais eficácia da comunicação. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 18 Ao estarmos presencialmente com nosso interlocutor podemos estar mais atentos à reação dos que nos ouvem e sendo possível “moldar” ou reorientar a linha argumentativa de acordo com a interação com os receptores. Gestos ou postura corporal podem indicar necessidade de reformular ou reforçar a argumentação a fim de persuadir o público-alvo. A linguagem oral ou a “palavra falada” possui relevância e validade no campo jurídico produzindo efeitos, como veremos. Imagine, por exemplo, uma situação em que ocorreu grave ofensa verbal a alguém que pleiteia danos morais em juízo. Como produzir prova se não há documento escrito para produzir o convencimento do magistrado? É possível provar o alegado através de prova testemunhal, audiovisuais, depoimento pessoal do ofendido etc. Outro exemplo jurídico em que a oralidade é relevante é o caso do artigo 107 do Código Civil que afirma: A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir (BRASIL, 2002). Observe que, neste caso, a forma dos negócios jurídicos é livre, podendo, sem prejuízo de sua validade, ser celebrada verbalmente. Evidentemente, a escrita representa maior segurança jurídica porque fica o registro de um ato ou um fato com relevância na vida social e jurídica. Mas, a informalidade da palavra falada permite mais agilidade nas revisões e possibilidade de persuasão. Em síntese, segundo Petri (2017, p. 26), são características da linguagem oral: 1. É mais abrangente uma vez que mesmo pessoas não alfabetizadas, mas que conheçam o código, são capazes de se comunicar, usando essa modalidade; 2- Faz uso de recursos da linguagem não verbal como gestos, olhares, etc.; 3- Entonação e ritmo que se modificam de acordo com o sentido da mensagem; 4- Maior interação entre emissor e receptor uma vez que estão “face a face”; 5- Pode ser mais repetitivo a fim de reforçar o significado da mensagem; 6- Não há possibilidade de ser apagada a mensagem como ocorre na escrita; 7- A frase pode utilizar complementos e ser feito o uso de pausas; 8- É possível o uso de marcadores conversacionais, ou seja, expressões utilizadas para confirmação como: “né”?; “certo?”; “não é mesmo?”, etc. 9- Pode utilizar expressões populares e gírias. Portanto, no uso da linguagem oral é comum que o emissor utilize TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 19 recursos que permite ao receptor sentir-se participante ativo da comunicação. A informalidade, típica da linguagem oral, pelo desapego gramatical e forma de interação possibilita agilidade na comunicação e, em alguns casos, dependendo da competência e habilidade do comunicador, maior convencimento. A linguagem escrita, historicamente, posterior à oral em todas as culturas, estima-se que teve sua origem na antiga Mesopotâmia, há cerca de 5.000 anos por meio da chamada escrita cuneiforme, dado a seu formato em forma de “cunha” e também no Egito antigo, por meio dos hieróglifos. Sem dúvida, a escrita foi um grande marco para o desenvolvimento da humanidade, permitindo, entre outras coisas, o acúmulo e aprimoramento do conhecimento. Portanto, a escrita não é apenas uma questão de mero registro de saberes, sentimentos, ideias e culturas, mas representa a possibilidade de agregar conhecimento, o que permitiu o avanço da ciência. FIGURA 7 – AS PRIMEIRAS FORMAS DE ESCRITA / EVOLUÇÃO DA ESCRITRA FONTE: <https://conhecimentocientifico.r7.com/escrita-origem-historia/>. Acesso em: 22 abr. 2021. UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 20 FIG U R A 8 – E SC R ITA C U N E IFO R M E / E SC R ITA H IE R O G LÍFIC A D O S E G ÍP C IO S FO N T E : < h ttp ://c p d e c .c o m .b r/a-e vo lu c ao -d a-e sc rita-d o s-h ie ro g lifo s-ao -w h atsap p /> . A c e sso e m : 2 2 ab r. 2 0 2 1. TÓPICO 1 — CONCEITOS INICIAIS 21 Sob o ponto de vista argumentativo, a linguagem escrita possui a vantagem de ser produzida antes de ser apresentada ao receptor, o que permite planejar com cuidado a produção textual, escolher o nível de linguagem a ser utilizado e rever antecipadamente antes de sua exposição. Por outro lado, não há interação imediata com o receptor não havendo a possibilidade de correção ou esclarecimento caso a mensagem não seja bem compreendida, umavez que, em regra geral, a leitura do texto não é feita na presença do escritor. Assim, a escrita de um texto exige clareza, coerência e coesão na exposição das ideias e enunciados de forma a afastar obscuridades ou lacunas. Um texto jurídico, por exemplo, exige a verificação cuidadosa de sua objetividade e compreensão, uma vez que ao ser, as peças processuais são lidas e consideradas pelo magistrado sem a presença do peticionário. O inverso também é verdadeiro. Uma decisão judicial também deve ser clara e perfeitamente compreensível pela parte e seu advogado. Tanto assim é que há como recurso os chamados embargos de declaração ou embargos declaratórios, que são utilizados em processos judiciais para pedir que o magistrado esclareça a decisão por ela dada. Tal recurso está previsto no artigo 1022 do Código de Processo Civil (BRASIL, 2015, s.p.): Art. 1.022. Cabem embargos de declaração contra qualquer decisão judicial para: I- esclarecer obscuridade ou eliminar contradição; II- suprir omissão de ponto ou questão sobre o qual devia se pronunciar o juiz de ofício ou a requerimento; III- corrigir erro material. Parágrafo único. Considera-se omissa a decisão que: I- deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento; II- incorra em qualquer das condutas descritas no art. 489, § 1°. Considera-se obscuridade quando a decisão não é feita de maneira clara e objetiva, faltando clareza na decisão, o que pode fazer com que ela não seja bem compreendida. A contradição se aplica quando a decisão apresentar pontos que não estejam de acordo entre si ou se a conclusão não for compatível com a fundamentação legal da sentença. Por outras palavras, quando o que foi dito na sentença não está de acordo com a lei usada para o caso em apreço. A omissão pode acontecer de duas maneiras. No primeiro caso, o juiz pode deixar de analisar alguma questão que foi apontada por uma das partes do processo. No segundo caso, o juiz não decide sobre fatos que ele tem o dever de se decidir. Portanto, o jurista deve ter muito cuidado na elaboração de um texto, em razão de que, apesar dos modernos e ágeis meios virtuais de comunicação, no campo jurídico, a maioria dos atos processuais se realiza por meio da escrita: UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 22 petições, atas, documentos, certidões, mandados, laudos, despachos, sentenças, acórdãos etc., apesar de a comunicação oral ser bastante presente na seara jurídica, por segurança jurídica os atos praticados devem ser devidamente registrados a fim de serem consultados a qualquer momento. Para Petri (2017, p. 26-27), são características da linguagem escrita: 1- É menos abrangente uma vez que apenas pessoas alfabetizadas podem fazer uso dela; 2- Não aproveita os mesmos recursos da linguagem oral; 3- Não é possível ao emissor perceber a reação do leitor; 4- Não há normalmente repetição de palavras; 5- Há a possibilidade de correção; 6- Utiliza raramente gírias e expressões populares; 7- É mais permanente que a linguagem oral; 8- Utiliza pontuação para representação a entonação e ritmo da modalidade oral; 9- É mais prestigiada socialmente. Na linguagem oral há compartilhamento de situação espaço-temporal, o que permite ao emissor direcionar sua atividade de maneira a garantir um discurso explícito. Já na linguagem escrita há outros recursos importantes, como a pontuação que indica pausas dando mais função expressiva à comunicação. 23 Neste tópico, você aprendeu que: • Embora os termos linguagem, língua e fala sejam utilizados sem distinção, um estudo mais atento permite compreender que são aspectos diferentes utilizados na comunicação humana e estudados pela linguística. • A linguagem é definida como um instrumento utilizado no processo comunicativo e envolve: emissor, receptor, mensagem, código, canal de comunicação, contexto e ruídos. • Ao longo da história da civilização humana, a linguagem tem servido para a interação dos membros de um grupo social e se manifesta de distintas formas sendo classificadas em: verbal, não verbal e mista. • A linguagem possui distintas funções, quais sejam: denotativa, emotiva, conotativa, poética, metalinguística, dentre outras. • É possível a utilização da linguagem em diferentes níveis, servindo todas para a comunicação de acordo com o contexto e necessidade. • É um equívoco admitir a linguagem culta, a “escolarizada”, como “a correta”. Tal concepção é uma forma de segregação ideológica que desconsidera e marginaliza as diferentes formas de comunicação. • A linguagem tanto escrita como oral são modalidades de comunicação e recursos expressivos, cada qual com vantagens e desvantagens, ambas utilizadas no campo jurídico exigindo cuidado e domínio linguístico. RESUMO DO TÓPICO 1 24 AUTOATIVIDADE 1 “Comunicação” é uma ação natural e inerente à vida social humana através da qual é possível conhecer, divulgar ou informar; expor ou noticiar; divulgar ou transmitir ideias, saberes, conceitos e valores etc. Acerca do propósito da comunicação, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) Toda comunicação é uma finalidade em si mesma. b) ( ) A comunicação possibilita estabelecer relações e conexões entre os indivíduos de uma sociedade. c) ( ) O objetivo da comunicação independe da vida social. d) ( ) A comunicação independe de sua forma, não tem objetivo definido, uma vez que é um ato imediato e autoexplicativo. 2 A comunicação verbal é a forma mais utilizada de comunicação por ser momentânea e poder transmitir ideias e pensamento de qualquer nível de complexidade, podendo ser definida como todo tipo de troca de informação através da linguagem. Considerando tal afirmação é CORRETO afirmar que: a) ( ) A comunicação verbal é caracterizada pelo uso de palavras através de linguagem escrita ou falada. b) ( ) A comunicação verbal é exclusivamente a linguagem “falada” que utiliza o acervo de vocábulos – palavras – do emissor. c) ( ) A transmissão de ideias não pode ser realizada através da comunicação verbal, mas somente escrita. d) ( ) Com o avanço tecnológico nos dias atuais, pouco se utiliza a comunicação verbal. 3 Alguns elementos são primordiais para a realização do processo comunicativo, dentre os quais o emissor, receptor, referente, canal, código e mensagem. Cada um dos elementos possui função específica e possibilita uma adequada compreensão da mensagem. Acerca da função do EMISSOR no processo comunicativo, assinale a assertiva CORRETA: a) ( ) O emissor é aquele que idealiza e codifica a mensagem. b) ( ) A codificação ou transmissão da mensagem é a função do emissor no processo comunicativo. c) ( ) A interpretação da mensagem é a função do emissor. d) ( ) Emissor e receptor são elementos do processo comunicativo compostos por um conjunto de signos escolhidos para a transmissão da mensagem. 25 4 Comunicação é uma atividade que faz parte do cotidiano e pode ser realizada através de distintos meios e fundamental em inúmeros campos da atividade humana. Assim, considere as seguintes afirmações. I- "Comunicar" é uma habilidade exclusivamente humana. II- A comunicação é a forma e habilidade através da qual se estabelece o relacionamento entre os membros de um grupo social. III- O ato de transmissão de uma mensagem é um ato de comunicação. IV- "Comunicar" é estar em contato ou em relação com alguém com a finalidade de expor, noticiar ou veicular. Assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) As afirmações I, II, III e IV estão corretas. b) ( ) As afirmações II, III e IV estão corretas. c) ( ) As afirmações I e III estão corretas. d) ( ) As afirmações I, III e IV estão corretas. 5 A comunicaçãoé a arte de tornar algo comum para duas ou mais pessoas, o que era monopólio de um ou poucos. Permite o intercâmbio de conhecimentos e ideias, além da criação de vínculo entre as pessoas. Sobre o considerado, analise as asserções a seguir e a relação entre elas: I- A comunicação interliga e quebra as distâncias entre as pessoas. É um elo que possibilita encontros de sujeitos isolados. PORQUE II- Quando interagimos uns com os outros, aquele que era solitário passa a ser integrado com outros (duas ou mais pessoas). Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As asserções I e II são verdadeiras, sendo a I a justificativa correta da II. b) ( ) As asserções I e II são verdadeiras, sendo a II a justificativa da I. c) ( ) A asserção I é verdadeira e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é falsa e a II é uma proposição verdadeira. 26 27 TÓPICO 2 — UNIDADE 1 LINGUAGEM JURÍDICA 1 INTRODUÇÃO Comunicar utilizando diferentes tipos de linguagem é parte das relações humanas. Cada profissão cria e aprimora expressões próprias com características comuns que são utilizadas por seus membros, definindo-se, assim, a linguagem jurídica de cada campo técnico. No campo jurídico não é diferente. Para os profissionais do direito, a linguagem e seu domínio é a principal ferramenta utilizada para convencer, transigir, demandar, enfim, atuar na luta pela defesa e garantia de direitos. Você verá em seus estudos como é importante o domínio do vocabulário jurídico. Conhecer o sentido dos termos utilizados nas leis e códigos, as relações das palavras nos textos jurídicos e as variações nas estruturas sintáticas das palavras que permitem dar ênfase ao discurso. O conhecimento e domínio do vocabulário jurídico, com o cuidado de não cometer excessos, é a tarefa primeira que se impõe aos que abraçam o campo profissional do direito. Por meio da palavra, o direito se concretiza. Além de falar bem para as necessidades do cotidiano aos que se dedicam ao mundo jurídico é necessário ir além: é dominar a linguagem jurídica com precisão. Manter o formalismo, o estilo e a ética, os profissionais do direito devem se modernizar constantemente para persuadir e convencer. Sem o “juridiquês” desenfreado, que é filho da inútil e ingênua afetação, para não cair no ridículo, a linguagem jurídica deve ser clara e precisa, porém culta e erudita. Vamos conhecer um pouco sobre a linguagem jurídica! 28 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 2 LINGUAGEM JURÍDICA A linguagem jurídica é uma das manifestações específicas da língua portuguesa aplicada à uma área específica do conhecimento com características próprias. Embora, em não raras vezes, utilizando signos linguísticos da linguagem comum não é compreendida imediatamente por um não jurista, por um leigo. Sem dúvida, esse é um obstáculo a ser superado quando do início da formação acadêmica no direito. As definições e conceitos específicos com que o direito opera são elementares e necessárias para o campo jurídico, mas sem sentido fora do direito porque não têm outra função a não ser exprimir termos e expressões que apenas possuem pertinência exclusivamente jurídica. São, basicamente, duas as razões para que se justifique a linguagem do direito: • Há um vocabulário jurídico próprio. • Confere sentido ao discurso e argumentação jurídica. A linguagem jurídica é utilizada em situações particulares pela necessidade de, no exercício profissional, serem conceituados fenômenos relacionados ao Direito e estabelecer seu sentido jurídico, que em regra geral não têm o mesmo ou não encontram qualquer significado no uso corrente. Isso ocorre porque tem natureza técnico-científica própria, uma vez que utiliza palavras para o campo teórico-prático do Direito, que é onde reside o problema do vocabulário jurídico. E aí está o primeiro obstáculo a ser enfrentado, porque como qualquer ciência, os termos devem ser utilizados com exatidão, devendo o termo técnico ser empregado adequadamente, sendo absolutamente indispensável não só para a compreensão rápida dos argumentos utilizados como também para a correta identificação dos fenômenos discutidos. Há que se observar que nenhum termo está dissociado de sua significação comum ou lexical (da língua, da linguagem natural ou do código abstrato), em geral relacionada a sua etimologia (origem), e que, quando se estabelece sentido mais específico (técnico-científico) há necessidade de ser verificado seu sentido contextual que identificará a forma mais precisa ou técnica, uma metalinguagem, ou seja, é uma linguagem que descreve outra linguagem artificial, termos utilizados para designar fatos da vida social que possuem sentido e relevância no campo jurídico. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 29 METALINGUAGEM A metalinguagem nada mais é do que a preocupação do emissor totalmente voltada ao próprio código que está sendo utilizado. Isso quer dizer que o código é o tema da mensagem ou, então, ele é usado para explicar sobre ele mesmo. O código, no texto verbal, é a língua. No momento em que usamos uma mensagem verbalizada para explicar a língua, usando a própria linguagem, ocorre a metalinguagem. Observe, em seu cotidiano, como isso é feito várias e várias vezes: em conversas de caráter informal ou até mesmo durante suas aulas. FIGURA – EXEMPLO DE METALINGUAGEM FONTE: <https://blogdoenem.com.br/metalinguagem-literatura-enem/>. Acesso em: 22 abr. 2021. Exemplo de metalinguagem: um quadrinho em que um personagem fala sobre o balão, forma característica da linguagem dos quadrinhos. NOTA Qual a razão do direito construir uma linguagem própria? Como já discutido no tópico anterior, a própria natureza intrínseca ao ser humano é social, vive em sociedade para atender as suas necessidades, interesses e realizar suas potencialidades. Essa característica inata do ser humano em colocar “seu eu”, seu pensar, em comum com o próximo é o ato comunicativo próprio da convivência, de relação de grupo e da prática social. 30 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA Porém, o estudo da comunicação jurídica se justifica pela relação inerente entre o direito e a sociedade, na qual a atuação daquele tem como objetivo normatizar as relações sociais e os seus efeitos. E diante do universo jurídico, se pode afirmar que as ações humanas que verdadeiramente importam à ciência jurídica dizem respeito aos efeitos, estas podem gerar ao grupo social ou a algum de seus membros, já que a própria existência do direito tem por objetivo regular os atos que afetam os membros da sociedade, são os chamados valores jurídicos. Valores jurídicos tais como a ordem, a segurança, a liberdade, as justiças, dentre outros, são inerentes à condição humana e são compreendidos de maneira distinta pelos indivíduos e o direito estabelece uma espécie de “consenso”, a fim de estabelecer critérios que possibilitem a vida em comum, e é aí que surge a necessidade de uso de linguagem própria e complexa. Assim como outros profissionais, o advogado, por exemplo, ao ser solicitado para prestação de um trabalho específico, é necessário relatar o fato valorado juridicamente, bem como o que deve ser feito de acordo com critérios técnicos. FIGURA 9 – A ESPECIFICIDADE DA LINGUAGEM JURÍDICA FONTE: <http://www.praticadapesquisa.com.br/2010/10/em-11-de-agosto-de-2005-amb- associacao.html>. Acesso em: 22 abr. 2021. Pela figura, percebe-se a dificuldade de compreensão da linguagem jurídica por aqueles que não são profissionais da área. Observe que os termos utilizados são conceitos que regulam e protegem valores. No caso, utiliza-se a expressão in dubio pro reo, o que significa que na dúvida a “balança deve pender” para o acusado uma vez que a liberdade integra o conjunto de bens inerentes à condição humana e de grande relevância no mundo dodireito. Sem dúvida, o direito é, por excelência, se comparado a outros campos do conhecimento, a ciência da palavra, o que exige o aprimoramento do domínio da palavra no exercício da profissão, pois é, na linguagem, o espaço em que o direito se efetiva. Assim, pode-se afirmar que a capacidade de realizar uma TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 31 boa comunicação permite recriar os fatos com consistência e credibilidade e de estabelecer relações de causa e efeito entre estes e as leis formarão um parâmetro decisório que irá amparar o direito requerido. O direito é um espaço de comunicação relevante para as relações humanas, uma vez que a sociedade humana é uma coletividade constituída por entes comunicantes. É nesse sentido que Miguel Reale (1992, p. 34) considera o direito uma linguagem indissociável das relações humanas: O Direito é, por conseguinte, um fato ou fenômeno social; não existe senão na sociedade e não pode ser concebido fora dela. Uma das características da realidade jurídica é, como se vê, a sua socialidade, a sua qualidade de ser social. Logo, ... desde que passou a viver em sociedade, o homem vem sentindo cada vez mais a necessidade imperiosa de se comunicar, pois já foi dito que o homem é aquilo que consegue comunicar aos seus semelhantes. Por meio da palavra é que o profissional do Direito atua, devendo ter claro que se comunicar para atender às necessidades comuns e diárias de comunicação é diferente de falar com precisão no exercício da profissão jurídica, havendo a necessidade de domínio da linguagem para que tenha cautela na escolha das palavras. Isso não significa que linguagem jurídica se confunda com “jargão profissional”, para que o profissional acabe se encapsulando em um hermetismo vocabular somente acessível e compreendido por poucos iniciados. 2.1 JARGÃO JURÍDICO E PODER SIMBÓLICO Jargão é o vocabulário típico de uma especialidade profissional e é utilizado especificamente por pessoas que compõem determinado segmento ou grupo tecnicamente especializado. Por exemplo, existem jargões de médicos, engenheiros, técnicos de informática etc. Evidente que o jargão é importante para a compreensão dos procedimentos e documentos jurídicos por sua complexidade, com significados incompreensíveis para leigos. 32 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA FIGURA 10 – JARGÃO JURÍDICO FONTE: <http://paginasclandestinas.blogspot.com/2011/04/jargao-juridico.html>. Acesso em: 22 abr. 2021. Como veremos adiante, o uso exagerado e impróprio da linguagem jurídica, sob uma falsa roupagem de tecnicismo, é mais uma preocupação de efeitos “pirotécnicos” da palavra do que propriamente com o compromisso com o rigor profissional. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 33 QUADRO 6 – ALGUNS JARGÕES JURÍDICOS FONTE: <https://luizabrito67.blogspot.com/2011/10/juridiques-no-banco-dos-reus.html>. Acesso em: 22 abr. 2021. Entretanto, o domínio da linguagem jurídica é também um meio de promoção social, política ou cultural que exprime relação de poder. É obvio que por ser o Direito objeto de ciência, este desenvolve seu próprio discurso, com lógica e terminologia peculiares e aqueles que se dedicam à árdua tarefa de estudar cientificamente o direito poderá ter domínio sobre seu aparato conceitual. Não se pode conceber o direito sem sociedade, ou mesmo uma sociedade sem normatização que venha a se valer de regras (ou princípios) para controlar/limitar as condutas dos indivíduos que integram o grupo social. Sob certo ponto de vista, o direito é um instrumento de sustentação social criado para impor condutas coercitivamente, obrigatória e independente da vontade da parte. É evidente que nem toda sociedade deverá obrigatoriamente possuir Códigos, tal qual concebemos na cultura jurídica ocidental, para reger a convivência humana, mas sempre haverá um conjunto de normas que lhe possibilite estabilidade e que permita o desenvolvimento de atividades econômicas, políticas, familiares etc., a fim de garantir relativa segurança para os indivíduos e para as relações surgidas entre estes, para evitar que somente a força (individual), por si só, seja o único elemento para solucionar conflitos. Ao longo da história, a luta foi a condição para a construção e manutenção de direitos, uma vez que não são dados espontaneamente pela natureza nem tampouco graciosamente concedido pelos donos do poder. No entender de Ihering (2006), é um dever do interessado para consigo mesmo e também um dever com a sociedade a luta pelo direito. E afirma Ihering (2006, p. 1): “Todos os direitos da humanidade foram conquistados na luta: todas as regras importantes do direito devem ter sido, direito de um povo ou direito de um particular, faz- se presumir que se esteja decido a mantê-lo com firmeza”. Portanto, o direito não são palavras, são vivências e experiências humanas construídas e garantidas 34 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA pela força e luta. “O Direito não é pura teoria, mas uma força viva ..... A justiça sustenta numa mão a balança e que pesa o Direito e, na outra é a força brutal; a balança sem a espada é a impotência do Direito” (IHERING, 2006, p. 5). Nesse sentido, os indivíduos, ao edificarem o direito, que tem como mediação a linguagem para reger e limitar as relações sociais, aceitam como legítimo tanto o poder político, que cria as normas, quanto válidas e aceitáveis os conteúdos destas, pois, em certo sentido, se assim não fosse, existiria, no mínimo, insubordinação social e política questionando-se o poder regulatório constituído e suas instituições. É nesse ponto que ganha relevância a importância o pensamento de Bourdieu (2007) sobre a concepção do direito como poder simbólico e a noção de que o autor pressupõe que os dominados se submetem espontaneamente ao controle porque possuem alguma crença neste comando. […] como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras (BORDIEU, 2007, p.14-15). A pergunta que fazemos é: como o poder político consegue impor o direito em uma determinada sociedade? O direito tem uma face simbólica que se manifesta através de uma linguagem aparentemente lógica e coerente capaz de garantir interesses e necessidades humanas, como se tivesse, por si mesmo, o poder de disciplinar a vida social. Assim, o direito expresso na linguagem jurídica vai sendo visto como algo “natural” criando uma autonomia de um sistema que se autoexplica. E é sob tal aspecto que Bordieu (2007) considera que a reivindicação de uma autonomia absoluta do direito e o esforço dos juristas em elaborar um corpo de doutrinas, regras e conceitos, independente de constrangimentos e pressões sociais, elaborando em si seu próprio fundamento é onde reside seu poder simbólico. São construídos modelos que, na realidade, são puras ficções da ciência jurídica que vãoconstruindo uma pretensa neutralidade valorativa, afastando o fenômeno social que lhe é subjacente, concepção que influencia diretamente a formação jurídica que privilegia o ensino estritamente técnico do direito. E assim, TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 35 o sistema se autoalimenta afastando o futuro jurista dos fenômenos sociais, construindo uma linguagem e discurso homogêneo que, no momento de suas escolhas juridicamente possíveis para um conflito, há pouca possibilidade de desfavorecer ou contrariar o modelo dominante. Desde tal crítica, chama-se a atenção para o fato de que a linguagem jurídica, que expressa as normas jurídicas, dá a falsa impressão de que é perfeita, pronta e acabada independente de suas contradições e pressões sociais, e aí encontramos um aspecto importante para uma análise permanente crítica e cuidadosa da linguagem jurídica. Em síntese, se a linguagem jurídica procura criar e manter uma simbologia própria, que é fortalecida pelos jargões jurídicos que apenas são compreendidos pelos profissionais aptos e treinados, os conflitos sociais são aparentemente mantidos sob controle e dentro da expectativa do aceitável. Para melhor compreender o tema acerca do direito como expressão do poder simbólico, sugerimos a leitura do breve texto de autoria de Daniel França disponível em: https://projetouve.wordpress.com/2014/05/25/1771/, bem como o texto de Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo: A força do direito e a violência das formas jurídicas, disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rsocp/v19n40/04.pdf. DICAS Sem dúvida, o campo do direito é um espaço de concorrência de monopólio de “dizer o direito” através de uma linguagem própria no qual se confrontam sujeitos competentes e de capacidade reconhecida de compreender e definir o justo e legítimo do caso concreto. Isso implica na necessidade de reforçar um discurso com estilo próprio que confere ao mesmo tempo capacidade técnica, política e social para utilizá-lo na transformação da realidade social – um conflito entre partes – em realidade jurídico-judicial – debate entre profissionais que conhecem as “regras do jogo” e dominam a linguagem jurídica. 2.2 AS CARACTERÍSTICAS DA LINGUAGEM JURÍDICA Como você já compreendeu, a linguagem jurídica possui algumas características que a tornam singular em relação à língua nacional. Já vimos que possui particularidade em função da existência de um vocabulário técnico- científico próprio e é exatamente desde tais aspectos específicos que a linguagem jurídica se distingue. 36 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA 3 TÉCNICO-CIENTÍFICA A linguagem jurídica é, em grande parte, legada pela tradição, ou seja, foi sendo construída e reproduzida ao longo do tempo pelos pensadores do direito e acumulada pelo saber jurídico. Embora sendo modificado o sentido das expressões do direito, como mais adiante veremos, a grande marca da linguagem jurídica é sua perenidade inscrita na história. Mas será que é uma linguagem ultrapassada e atrasada? Não, porque os termos antigos, alguns deles até em latim, não perdem força porque a renovação da linguagem jurídica é permanente, sobretudo pelos neologismos, que é a atribuição de novos sentidos a palavras já existentes na língua. A renovação permanente da linguagem jurídica é dada sobretudo pela jurisprudência e doutrina jurídica. Mas, lembre-se de que a linguagem jurídica deve ser prática e a serviço dos profissionais do direito. É criada e realizada em função da atividade jurídica e judicial e, por essa tal razão, é definida como uma linguagem técnico-científica. A característica técnico-científica ocorre em função do uso semântico (acepção) de uma palavra (lexia) no campo teórico-prático do Direito, o que é um primeiro problema de vocabulário jurídico a ser enfrentado quando iniciamos o estudo do direito, pois a primeira dificuldade, que existe em qualquer ciência e precisa ser convenientemente enfrentada, é sem dúvida a da nomenclatura ou a da exatidão dos termos obrigatoriamente a serem utilizados tecnicamente para a perfeita comunicação. Há que se destacar que não há palavra sem significação comum ou mesmo lexical, o sentido do termo no texto segundo o próprio idioma, da língua natural, que é estabelecida, via de regra por sua etimologia. Porém, ao ser utilizada em sentido técnico é necessária a verificação de seu sentido contextual, o que permitirá a identificação precisa do termo. Segundo Petri (2017, p. 44), a linguagem jurídica carrega em si ambiguidade na medida em que “[...] é ao mesmo tempo culta (na sua origem), popular (por destinação) e técnica (por sua produção). Sua juridicidade a especializa quando sua finalidade é a de destinar a todos”. É linguagem de um grupo que “fala” o direito, seja o legislador (o que o edita), aquele que o diz (o juiz), os profissionais do direito em geral (advogados, defensores, membros do Ministério Público, estudantes de direito etc.) e para os destinatários do direito. Assim, é uma linguagem de caráter profissional manejada por diferentes atores sociais sendo, portanto, uma linguagem cultural. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 37 É uma linguagem que essencialmente nomeia institutos jurídicos (casamento, divórcio, posse etc., que são “agrupamentos” conceituais e legais que permitem sua “localização”, sua identificação no ordenamento jurídico), seu referente (a que o termo se refere juridicamente) e seu vocabulário específico. Destaca Petri (2017, p. 45) que a linguagem jurídica: [...] nomeia as realidades jurídicas, isto é, essencialmente as instituições e as operações jurídicas, entidades que o direito cria, consagra ou modela. Assim, ela nomeia todos os níveis dos poderes públicos, todas as formas de atividade econômica, as bases da vida familiar, os contratos, as convenções. O direito nomeia igualmente as realidades naturais e sociais que ele apreende e transforma em “fatos jurídicos”, atribuindo-lhes efeitos de direito. Assim, ele nomeia os delitos e as situações jurídicas. O direito, como toda ciência, desenvolve uma linguagem correspondente, com terminologias próprias que se distanciam de seu sentido comum e originário e assim, criam-se categorias próprias que também servem para neutralizar a linguagem natural, contribuindo não possibilitar aos não juristas às convenções e práticas jurídicas. Confundir linguagem técnica com uso de “palavras difíceis”, termos “exclusivamente” jurídicos e rebuscamento desnecessário corre o risco de cair em um cientificismo desnecessário e forma de exercício de poder que reforça o poder simbólico autolegitimador do direito. GLOSSÁRIO JURÍDICO Você encontrará disponível na internet diversos glossários e dicionários jurídicos. Será importante você ir se familiarizando com a linguagem que fará parte de seu cotidiano. Sugerimos consultar: https://www.trt2.jus.br/consultas/221-pagina-principal/atendimento- e-servicos-trt2/1422-glossario-de-termos-juridicos. DICAS Por fim, salientamos que, no caso do direito, linguagem técnica não se confunde com latinismos. Apenas para esclarecer melhor, o chamado “latinismo” é uma reminiscência com emprego do uso de palavras latinas de maneira exagerada. Evidente que há termos como habeas corpus que é de uso comum e com significado próprio. Mas e quando nos deparamos com expressões como: Cláusula rebus sic stantibus; data venia; venia conecessa; mandamus; in casu? 38 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA QUADRO 7 – AS DEZ EXPRESSÕES LATINAS MAIS UTILIZADAS 1. Conditio sine qua non Essa expressão significa a condição sem a qual algo não pode ser. Ela é aplicada para justificar que, se não for daquela forma, não haverá a devida validade. Uma das principais aplicações do termo é emcasamentos. Nesse caso, a união só acontece se houver a vontade mútua do casal, ou seja, conditio sine qua non. 2. Periculum in mora O termo é utilizado para mostrar que há o perigo na demora. Nesse caso, ele deixa explícito que a morosidade do processo judicial pode gerar algum dano aos envolvidos no processo. O advogado utiliza o termo para justificar a necessidade de uma decisão mais rápida, como uma liminar, visando proteger seu cliente de riscos. 3. Habeas corpus Uma das expressões jurídicas em latim mais conhecidas, habeas corpus significa “que tenha o corpo”. Essa referência à liberdade é direta, já que o termo é utilizado na solicitação desse direito a alguém, evitando qualquer ato abusivo. O habeas corpus é solicitado para evitar uma prisão ou a continuidade dela inadequadamente. 4. Erga omnes Seu significado é “para todos”, ou seja, é utilizada em decisões nas quais o efeito vale para todas as partes envolvidas. Suas implicações são válidas para todos os casos, por isso a expressão é utilizada como um método de eficácia. Assim, fica entendido que todos devem cumprir determinada decisão. 5. A priori A priori é um termo que se aplica quando há a indicação de que um conceito ou argumento é fundamentado de maneira inicial. Nesse caso, as provas são fundamentadas apenas na razão, sem que tenha havido determinado estudo. 6. A posteriori Já a expressão a posteriori é o oposto. Ela já é aplicada em argumentações mais avançadas, tendo o efeito como principal avaliação, para então chegar até a causa. Nessa etapa, a análise já conta com provas mais concretas para justificar todo o contexto do caso. 7. Data venia Essa é uma expressão cordial, utilizada no contexto de argumentações jurídicas. Data venia pode ser entendida como uma licença ou permissão para discordar de determinado ponto de vista. Sua aplicação é uma forma respeitosa de, diante de uma ideia, colocar outra colocação contrária com opiniões diferentes. 8. Modus operandi Essa é uma das expressões jurídicas em latim mais utilizadas também fora do Direito. Trata-se da indicação de uma forma de agir padronizada, ou um procedimento convencional aplicado. Seu uso no Direito é muito comum na avaliação de criminosos em série, que sempre repetem a forma de praticar os atos. 9. Amicus curiae É uma expressão simples que significa “amigo da corte”. Sua utilização ocorre em casos em que uma terceira pessoa é convocada para auxiliar o juiz para definir o veredito. O amicus curiae é uma figura muito comum em casos de grande apelo popular, com cobertura ampla das mídias tradicionais e mobilização considerável. 10. In dubio pro reu In dubio pro reu significa “em dúvida pelo réu”. Nesses casos, o termo é utilizado quando se pressupõe a inocência do acusado. O artigo 5° da Constituição determina que, se houver dúvidas quanto à culpa, o veredito do juiz deve ser favorável ao réu, ou seja, ele é inocentado. Embora, para alguns, o uso de expressões latinas demonstra erudição, mas como já dito, a função da comunicação no direito não é pirotécnica!!! O uso inadequado e indiscriminado do latim pouco contribui para o acesso à justiça e garantia do direito, até porque, em não raras vezes, sequer o usuário sabe o significado do termo empregado. FONTE: <https://blog.unyleya.edu.br/vox-juridica/dicas-de-estudo4/saiba-quais-sao-as-10- expressoes-juridicas-em-latim-mais-comuns/>. Acesso em: 22 abr. 2021. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 39 Observe no quadro que as expressões latinas trazem em si complexos conceitos jurídicos. 3.1 LÓGICA E ESTILO Como expressão de um pensamento, a linguagem não pode ser tão somente informativa, mas uma comunicação racional e logicamente ordenada. Como nos lembra Telles Júnior (1980, p. 32), a “[...] lógica é a ciência da argumentação (ou produto do raciocínio), diretiva da operação de raciocinar”. Para se compreender a comunicação jurídica é absolutamente indispensável a construção e manutenção de um raciocínio lógico durante o processo comunicativo, no sentido de “organizar” sistematicamente o discurso. Mais adiante, estudaremos a lógica e argumentação jurídica de maneira específica ao tratarmos o tema de interpretação na Unidade 3. Entretanto, apenas para compreendermos que não é possível deixar de frisar que a linguagem jurídica como exposição argumentativa não pode deixar de considerar a compreensão adequada das expressões utilizadas. Embora se possa expressar diferentes termos com distintas significações, os sentidos se estruturam e se inter-relacionam, de forma a fixar limites de sentido contribuindo para a não ambiguidade e contradição, com vistas a melhor persuasão. Ainda, há que se compreender que o discurso jurídico, em sua totalidade, tem por centro vetor principal o chamado princípio da interação entre emissor e receptor. Como já estudado, a comunicação tem como princípio básico a interação de ideias e pensamentos entre o emissor e o receptor através da fala e, para que ocorra o processo comunicativo e reações entre ambos, a construção do discurso há de ser lógica e coerente e, sobretudo culta. O nível culto da linguagem jurídica é relacionado com a necessidade persuasiva e lógica a fim do operador demonstrar o domínio e capacidade de expressar a profundidade conceitual que serve para manejar a linguagem com autoridade. A logicidade se evidencia na clareza e uso semântico adequado da linguagem evitando-se a ambiguidade, vagueza ou obscuridade da mensagem, razão pela qual os termos devem estar em seu “devido lugar no discurso”, como se diz: usar “ a palavra certa no lugar e sentido certo”. A correção da linguagem no direito confunde-se com o seu inerente formalismo, rigor gramatical e precisão técnica. É por essa razão que os juristas possuem um estilo próprio utilizando pronomes de tratamento formais, títulos e adjetivos de tal maneira que acaba por ser bastante evidente no cotidiano do trabalho dos juristas o estilo jurídico de se expressar. 40 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA O tradicionalismo no tratamento jurídico é bastante arraigado na formação e na cultura jurídica de tal maneira que são consolidadas pelo costume. Expressões como: “egrégio Tribunal de Justiça”; “nobre casuístico”; “eminente julgador”; “excelso Supremo” etc. são expressões que conferem característica específica ao texto e discurso jurídico. Porém, há sempre que se ter cuidado no uso das expressões jurídicas a fim de tanto não pecar pela erudição exagerada e sem propósito como a falta de clareza e lógica na comunicação, o que é um fator que compromete o objetivo persuasivo. 3.2 CONCISÃO Outro atributo importante da linguagem jurídica é a concisão, ou objetividade, que é a busca de expressão do pensamento de forma breve privilegiando o essencial do que se pretende expor. É aqui que o uso de locuções e de máximas (brocardos, aforismos, provérbios) latinos podem auxiliar, uma vez que são formas concisas que auxiliam na expressão de significados jurídicos. Locuções latinas como ad judicia (procuração válida apenas para o juízo); data venia (com a devida licença para discordar); e mutatis mutandis (mudado o que deve ser mudado), por si só sintetizam o objetivo da comunicação. Ou mesmo brocardos jurídicos como pacta sunt servanda (os acordos devem ser cumpridos); nullum crimen sine lege (não há crime algum sem lei como princípio do direito penal) possuem a função de expressar de maneira concisa um complexo conceito. Destaca-se que, apesar na necessidade de objetividade e concisão, não é adequado o uso do que se denomina “frases de arrastão”, que são frases que utilizam pouco e variados conectivos coordenativos, por exemplo: "pois é, é, então, pois”. Ainda não são recomendáveis as chamadas “frases deladainha”, que utilizam excesso de conectivos, tais como: “viveu feliz e leu e amou e chorou e sofreu e morreu”. Ou mesmo as “frases telegráficas”, como: “o acusado entrou na audiência e sentou. Abaixou a cabeça. Estava triste. Sabia da condenação”. 3.3 ESTÉTICA Uma das características relevantes na comunicação jurídica é a elegância. O direito e sua linguagem é produto de uma acumulação histórica milenar que se reveste de técnica. É neste sentido que afirma Reale (1992, p. 87): Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multimilenar, dignidade que bem poucas ciências podem invocar [...] antes exige os valores da beleza e da elegância" e devem "ter vaidade da linguagem jurídica, uma das primeiras a se revestir de forma científica, continuando a ter, desde as origens, o Direito Romano como fonte exemplar e ponto de referência. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 41 Você já deve ter se dado conta de que o direito é, por excelência, a arte e a ciência da palavra e que deve ser boa e bem elaborada, porque é através dela que o profissional do direito se expressa. Como o jurista busca, na prática, a realização do justo no caso concreto no sentido de garantia e proteção a direitos, tendo na pessoa humana e sua dignidade como fonte valorativa, não há como dissociar a técnica da ética. FIGURA 11 – CONCEITO DE ÉTICA FONTE: <https://www.pensador.com/frase/MTI0ODIxMA/>. Acesso em: 22 abr. 2021. A figura chama a atenção para o fato de que no manejo da linguagem jurídica, a ética se define como parâmetro para seleção de termos e elaboração do discurso. 4 OS NÍVEIS DA LINGUAGEM JURÍDICA Como já estudado, a linguagem em geral possui distintos níveis que se definem, como o modo de falar e escrever variam de acordo com as circunstâncias e habilidades do comunicante. A linguagem jurídica na verdade também possui uma vasta gama de variáveis, uma vez que não há uma linguagem jurídica propriamente dita, mas distintos níveis de acordo com a finalidade para a qual é utilizada. Vejamos alguns distintos níveis da linguagem jurídica. • Linguagem legislativa: é a versão da linguagem jurídica utilizada em códigos, leis esparsas etc. com a finalidade de criar o direito em hipótese. Ex.: Artigo 5° da Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade... 42 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA Artigo 213 do Código Penal brasileiro: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei n° 12.015, de 2009) Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei n° 12.015, de 2009) Observe as diferenças nos enunciados. A linguagem empregada é bastante distinta. No caso do Artigo 5° da CF há uma declaração de direito e para tanto a “montagem” da frase é apropriada para tal finalidade. Já no artigo 213 do CP há uma definição de tipo penal. Perceba a diferença na montagem das orações e uso verbal. No caso da tipificação inicia-se a frase com verbo no infinitivo pessoal a fim de conferir “força” e coercibilidade à oração. • Linguagem processual ou forense: é a linguagem técnica utilizada nos processos judiciais a fim de ser aplicado o direito. Ex.: sentença judicial. QUADRO 8 – SENTENÇA JUDICIAL FONTE: <https://www.editorajuspodivm.com.br/cdn/ arquivos/424ab0ab1da4a9df40370eba8914289b.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2021. Além da linguagem técnica objetiva, com o uso de termos específicos (“emendar a petição inicial”, “despacho”, “polo ativo”, “relação processual” e “indeferimento”) no modelo de sentença ao final há as palavras: “Publique-se. Registre-se. Intimem-se” que são utilizadas em peças processuais desta natureza e com sentido específico, qual seja: a publicação da decisão bem como dar ciência da sentença à parte a fim de gerar efeitos jurídicos. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 43 QUADRO 9 – CONTRATO DE COMODATO FONTE: <https://domtotal.com/direito/pagina/detalhe/23130/civel-contrato-de-comodato>. Acesso em: 22 abr. 2021. CONTRATO DE COMODATO I- DAS PARTES xxxxxxxx, brasileira, menor impúbere, neste ato representada por seu pai xxxxx, brasileiro, casado, comerciante, inscrito no CPF/MF sob o n° xxxxxxxx, residente nesta capital, doravante denominada COMODANTE, e xxxxxxxxxx, brasileira, viúva, aposentada, inscrita no CPF/MF sob o n° ------- ------------, residente nesta capital, doravante denominada COMODATÁRIAS. xxxxxxxxxxx e sua mulher xxxxxx, brasileiros, casados, ele comerciantes, ela do lar, inscritos no CPF/MF sob o n° xxxxxxx, doravante denominados ANUENTES. II- DO OBJETO O presente Contrato tem por objeto o Comodato do bem abaixo descrito, de propriedade da COMODANTE, tendo como usufrutuários os ANUENTES, nos termos da legislação em vigor: Bem: imóvel constituído pelo apartamento xxx do prédio da Rua xxxxx xxxx, e a correspondente fração ideal xxxxdo lote n° xxx, do quarteirão xxxxxxx, com área, limites e confrontações de acordo com a planta respectiva, tudo conforme registro no Cartório do 07° Ofício de Registros de Imóveis de Belo Horizonte/ MG, livro n° xxxx, matrícula xxxxx, datado xxxx. III- DO PRAZO O prazo do presente contrato é indefinido, devendo as COMODATÁRIAS desocuparem e restituírem o imóvel no prazo de 15 (quinze) dias após simples notificação da COMODANTE. IV- DAS CONDIÇÕES GERAIS O imóvel dado em comodato na presente data, encontra-se em perfeito estado de conservação e limpeza, devendo ser desocupado e restituído à COMODANTE nas mesmas condições. Belo Horizonte, data da ocupação. • Linguagem convencional ou contratual: é a linguagem jurídica utilizada nos contratos através dos quais se criam direitos e obrigações. Ex.: contrato de comodato (tipo de contrato aplicado a empréstimos gratuito). 44 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA Note que a linguagem utilizada no contrato acima utiliza termos próprios como “partes”, “objeto”, “prazo” e “condições gerais” bem como a disposição dos parágrafos são específicos, por exemplo, descrevendo o bem que é objeto do contrato e condições gerais. • Linguagem doutrinária: é a linguagem utilizada pelos pensadores (doutrinadores) do direito e tem por finalidade discutir os conceitos jurídicos utilizados pelos juristas. Ex.: QUADRO 10 – LINGUAGEM DOUTRINÁRIA FONTE: Kelsen (2001, p. 231-232) “O direito é uma organização da força. Pois o Direito vincula certas condições ao uso da força em relações entre os homens, autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e apenas sob certas circunstâncias. O Direito permite a conduta que, em todas as outras circunstâncias, tem de ser considerada proibida .... A técnica social que chamamos de “Direito” consiste em induzir o indivíduo, por meio específico, a se abster de intervenção à força nas esferas de interesse alheias: no caso de tal intervenção, a própria comunidade jurídica reage com uma intervenção similar nas esferas de interesse do indivíduo responsável pela intervenção anterior” Leia com atenção o conceito utilizado pelo autor. A linguagem é específica (conceitual) com termos próprios, tais como “se abster de intervenção”, “esfera de interesse alheias”, “comunidade jurídica”, dentre outros. • Linguagem cartorária ou notarial: é a linguagem que tem por finalidade registrar atos de direito. Ex.: Certidão de casamento. TÓPICO 2 — LINGUAGEM JURÍDICA 45 FIGURA 12 – CERTIDÃO DE CASAMENTO FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/854909941757978988/?nic_v2=1a4VISTjO>. Acesso em: 22 abr. 2021. 46 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA No documento cartorialacima (certidão de casamento) há termos específicos tais como “matrícula”, “regime de bens de casamento”, “cônjuge” etc. Em síntese, “linguagem jurídica” é uma expressão que comporta distintos níveis de acordo com a finalidade e destinatário. Utilizada desde intelectuais do direito, passando pela prática judicial e chegando no leigo, é uma forma de comunicação que se caracteriza por sua pluralidade. Neste sentido, afirma Petri (2017, p. 49): “A linguagem do direito, pois não é uma língua e não é uma. Mas esta linguagem existe sob a forma de dois elementos que a constituem in intellectu, em seu vocabulário, e in actu, em seu discurso, em diversos níveis e diversas relações que, sobre um fundo comum, fazem viver múltiplas manifestações”. Em relação à linguagem jurídica, nunca é demais lembrar que ela se caracteriza por ser simultaneamente: culta em sua origem, popular por sua destinação e técnica em sua produção. 47 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A linguagem jurídica é uma das manifestações da língua portuguesa aplicada à atividade profissional dos juristas. • O excesso de uso de jargões jurídicos, que é o vocabulário próprio dos profissionais da área é, de um lado, necessário, e de outro, uma das faces do poder simbólico do direito que constitui uma forma de controle “consentida” ou de poder simbólico. • A linguagem jurídica possui características próprias sendo simultaneamente: técnica e científica, lógica e com estilo próprio, concisa, estética e ética. Características que devem ser conhecidas e dominadas pelo profissional do direito. • A linguagem jurídica possui distintos níveis de acordo com a finalidade e destinatário. De leigos a intelectuais e pensadores do direito, a linguagem jurídica é plural, o que exige atenção nas distintas formas de utilizá-la. 48 1 A linguagem jurídica é definida como uma metalinguagem, ou seja, é uma linguagem específica que serve para descrever o conjunto de normas jurídicas que regulam a vida social sendo a necessidade primeira do jurista compreendê-la e manejá-la adequadamente. Assinale a alternativa CORRETA acerca da necessidade de domínio da linguagem jurídica pelo profissional do direito: a) ( ) A linguagem jurídica é uma linguagem técnica própria da atividade dos profissionais do direito. b) ( ) A linguagem jurídica não é técnica, mas sim, culta. c) ( ) A linguagem jurídica é um conjunto de termos sofisticados e sem sentido. d) ( ) Um leigo do direito que tenha bom domínio da gramática também domina a linguagem jurídica por ela ser genérica e universal. 2 O jargão é definido como vocabulário típico de uma especialidade profissional e é utilizado por um grupo de pessoas que compõem determinado segmento especializado. O jargão jurídico é constituído por um conjunto de expressões e palavras com sentido próprio. Acerca do jargão jurídico, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) O jargão jurídico não tem sentido técnico. b) ( ) O direito expresso na linguagem cria e mantém uma simbologia própria fortalecida pelos jargões jurídicos. c) ( ) O jargão jurídico é desnecessário na atividade profissional. d) ( ) Jargão jurídico e normas jurídicas são sinônimos. 3 A linguagem jurídica possui características próprias que a tornam singular em relação à língua portuguesa. Sua particularidade é a existência de um vocabulário técnico-científico próprio. Acerca da característica técnica- científica da linguagem jurídica, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) A linguagem jurídica não é técnica e sim um conjunto de termos sofisticados compreendidos somente por profissionais do direito. b) ( ) A linguagem jurídica é técnica, criada pela tradição e renovada pela jurisprudência e doutrina. c) ( ) Não existe uma ciência do direito e sim uma linguagem técnica- normativa. d) ( ) A linguagem jurídica não é parte da língua portuguesa por ser tecnicamente específica. AUTOATIVIDADE 49 4 Quanto à expressão latina, associe corretamente os termos a seguir: A- Erga omnes B- In dubio pro reu C- Modus operandi D- Habeas corpus ( ) Expressão utilizada para solicitação do direito à liberdade para evitar a prisão ou a continuidade inadequada dela. ( ) “Na dúvida para o réu” e é utilizada quando se pressupõe a inocência do acusado. ( ) É a expressão utilizada quando uma decisão é válida para todas partes envolvidas. ( ) Significa uma forma de agir padronizada ou um comportamento convencional. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) D – B – A – C. b) ( ) B – C – D – A. c) ( ) C – B – A – D. e) ( ) D – A – C – B. 5 Uma das características da linguagem jurídica é ser lógica. A lógica é uma forma específica de raciocinar que possibilita a organização sistemática e coerente de um discurso. Acerca da lógica como característica da linguagem jurídica é CORRETO afirmar que: a) ( ) A lógica é evidenciada na clareza e uso da linguagem de tal forma que permite evitar a ambiguidade e vagueza da mensagem. b) ( ) A lógica jurídica deve ser evitada a fim de garantir clareza na comunicação. c) ( ) O discurso jurídico é técnico e não lógico d) ( ) A lógica aplica-se às ciências exatas e não ao direito. 50 51 TÓPICO 3 — UNIDADE 1 VOCABULÁRIO JURÍDICO 1 INTRODUÇÃO Como você deve ter percebido, o direito se manifesta e se concretiza através da linguagem, que é aplicado ao caso concreto sob a forma de uma decisão judicial ou administrativa. Há que se frisar que a linguagem jurídica é produto de uma longa tradição por juristas, tribunais e doutrinadores do direito, o que faz com que seja um nível culto e elevado intelectualmente. Por essa razão, a linguagem jurídica é constituída por um complexo vocabulário que comporta cuidado para ser estabelecida sua adequada significação, sendo seu estudo essencial para a formação jurídica para que o profissional da área possa se expressar objetiva e adequadamente, daí a importância do domínio do vocabulário jurídico. Porém, o vocabulário jurídico carrega consigo vícios para os quais devemos estar atentos. Polissemia, Homonímia, Sinonímia, Paronímia, Vagueza e Ambiguidade são os desafios a serem enfrentados pelos juristas a fim de adequadamente interpretar e aplicar a norma jurídica. São “ruídos” na comunicação jurídica que depois de bem compreendidos e identificados devem ser superados. Vamos para o último tópico desta primeira unidade? E não deixe de fazer as autoatividades ao final do tópico. 2 POLISSEMIA Até o momento estudado já deve estar bastante claro que a linguagem jurídica utiliza termos com sentido específico, porém utilizando palavras que não são exclusivamente jurídicas, o que gera a polissemia. Polissemia é quando uma palavra comporta múltiplos significados tendo sentido jurídico como não jurídicos. 52 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA É o que acontece com a palavra “direito”. É um termo que se origina do latim directus (direito, reto), mas que é adotada com múltiplas acepções. Segundo Trubilhano e Henriques (2019, p. 37), somente a palavra “direito” comporta as seguintes significações: • Conjunto de normas jurídicas positivadas por instituições politicamente legítimas e regulam a vida social. É o também chamado direito positivo; • Faculdade do jurisdicionado de exigir em juízo interesses, necessidades e valores assegurados em lei; • Conjunto de conhecimento, disciplinas e cursos necessários à formação jurídica; • O oposto do errado; • O retilíneo; • O oposto ao esquerdo; • O que é justo de acordo com normas morais e éticas. As palavras e expressões jurídicas, por comportarem distintos significados,exigem rigor de critérios para o estabelecimento de critérios para a determinação correta de sentido, uma vez que utiliza termos da língua corrente. A polissemia no campo jurídico ocorre de duas maneiras: • Polissemia externa: ocorre quando uma palavra possui um significado na linguagem coloquial – sentido comum – e outro na linguagem jurídica. Ex.: ◦ “sentença” : ▪ Na linguagem coloquial significa uma frase, uma oração oral ou escrita. Ex.: Paulo escreveu a seguinte sentença no e-mail: enviar o documento. ▪ Na linguagem jurídica significa a decisão final de um em relação a um processo. Ex.: A sentença do Juiz Antonio de Carvalho indeferiu o pedido de prisão preventiva de João da Silva. ◦ “ação”: ▪ Na linguagem coloquial refere-se ao verbo agir. Ex.: Penso antes de cometer qualquer ação. ▪ Na linguagem jurídica significa o ato de requerer intervenção ou tutela judicial a fim de solucionar um litígio. Ex.: Paulo Souza entrou com ação judicial requerendo pensão alimentícia. ◦ “despacho”: ▪ Na linguagem coloquial significa oferenda à entidade divina realizada em ritual religioso. Ex.: Maria da Graça fez um despacho no mar no primeiro dia do ano para Iemanjá. ▪ Na linguagem jurídica é o ato de expedir ou deferir. É a decisão tomada por uma autoridade competente. Ex.: A ação tinha como pedido a revogação da liminar por cinco dias contados a partir do despacho do juiz. TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 53 • Polissemia interna: ocorre quando há mais de um significado jurídico. Ex.: ◦ “prescrição”: ▪ Pode significar determinação ou definição legal. Ex.: A lei prescreve que o recurso de apelação deve ser interposto no prazo de 15 dias. ▪ Também pode significar a perda de um direito por decurso de prazo. Ex.: O prazo de prescrição para requerer indenização por dano moral é de 5 anos. ◦ “alvará judicial”: ▪ É uma ordem judicial na qual aquele que requer necessita de uma autorização judicial para a prática de determinado ato. Ex.: Expede-se alvará judicial para que Mariana Fernandes realize o saque do FGTS. ▪ Pode também significar pedido para expedição de alvará judicial para a intervenção do juiz em situação específica. Ex.: Paulo Silveira solicita alvará judicial para revisão do inventário de seu pai. ◦ “autos”: ▪ Significa o conjunto de documentos físicos que compõem o processo. Ex.: O documento está nos autos do processo. ▪ Também pode significar documento público ou solene emanado de autoridade competente com a função de notificar alguém a cumprir uma ordem legal. Ex.: Luiz recebeu o Auto de Infração de trânsito para pagar a multa imposta. 3 HOMONÍMIA Ocorre homonímia quando as palavras possuem a mesma grafia ou a mesma pronúncia, porém com significados diferentes. Esclarecem Trubilhano e Henriques (2019, p. 38) que “[...] homonímia é a identificação fônica (homofonia) ou a identidade gráfica (homografia) dos fonemas que não tem o mesmo sentido, de modo geral”. Adotando a distinção feita pelo referido autor, temos então Homonímia como gênero que se desdobra em duas espécies: Homofonia (ou Homônimos) e Homografia (ou Homógrafos). Exemplos de Homônimos Homófonos: • Cessão: ato ou efeito de ceder algo ou direito. Sessão: reunião, por exemplo, sessão de julgamento. Seção: repartição, por exemplo, seção de direito público. • Remissão: perdão. Remição: resgate, liberação, pagamento. • Cassar: revogar, anular, proporcionar privação. Caçar: procurar, perseguir. 54 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA Exemplos de Homônimos Homógrafos: FIGURA 13 – EXEMPLOS DE HOMÔNIMOS HOMÓGRAFOS: FONTE: A autora • ato judicial praticado fora do fórum por ordem judicial; • cuidado, zelo; • investigação, pesquisa "diligência" • queda • perda de um direito"decadência" Há relevância dos homônimos para além do sentido jurídico que trazem consequências no mundo do direito. Você já ouviu falar de pessoas que mudaram de nome com autorização judicial? Como regra geral, pelo estabelecido no artigo 58 da Lei n° 6015/1973 (BRASIL, 1973), o prenome é definitivo, por ser esta uma norma de ordem pública. Contudo, há situações em que é alteração do prenome, tais como: • Quando o prenome expõe seu portador ao ridículo, ao vexame, que cause constrangimento, segundo o disposto no artigo 55 da Lei n° 6015/73. Ex.: Em 1972 por força de decisão judicial do Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 443/146) foi permitida a alteração do nome Kumio Tanaka para Jorge Tanaka uma vez que a pronúncia do nome (“Kumi o Tanaka”) ridicularizava seu portador que era vítima de escárnio, tendo sido resolvida a situação com mudança autorizada. • Ainda quando for caso de nomes iguais, que é um fenômeno comum em nosso cotidiano, há uma grande discussão judicial, isto porque há sérios problemas com inclusão indevida em cadastros restritivos de consumidores (SPC/SERASA), certidões positivas de distribuidores judiciais, nos cadastros criminais do Instituto de Identificação etc. 4 SINONÍMIA E PARONÍMIA Sinonímia se define quando há mais de um vocábulo com a mesma ou quase a mesma significação, por exemplo, os termos “casa”, “lar”, “residência”, “solar”. Para Trubilhano e Henriques (2019), a identificação de acepções que constituem sinonímia apresenta-se como total ou stricto sensu e parcial ou parassinonímia ou quase sinonímia. A sinonímia total ocorre entre termos cujo sentido cognitivo e afetivo são equivalentes. A rigor, apenas ocorre sinonímia total se as palavras são TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 55 sinônimas em qualquer contexto, sem mais sutil ou pequena que seja a mudança no sentido. Desde tal concepção, na prática, não haveria sinonímia absoluta, uma vez que não existem palavras com sentidos idênticos. No campo jurídico há predominância de termos com sentido denotativo, ou seja, em seu sentido literal ou real, como as palavras “crime” e “delito”. Cada qual possui o tom afetivo ou expressivo específico, utilizando-o de acordo com o contexto e necessidade que o discurso exige. Paronímia ocorre quando há afinidade de palavras de sentido diverso em relação a outras, quer pela forma gráfica quer pelo som. Tal ocorrência exige atenção e cuidado, pois são termos parecidos e, por essa razão, geram equívocos sobretudo na área jurídica. São exemplos de parônimos comuns na linguagem jurídica: • Prover: deferir (recurso) ou fornecer algo necessário/ Provir: originar-se ou proceder. • Infligir: impor ou aplicar uma pena/ Infringir: desobedecer. • Mandado: ordem ou determinação judicial/ Mandato: outorga de poderes de representação ou contrato cujo instrumento é a procuração. • Elidir: suprimir ou excluir/ Ilidir: refutar ou anular. • Eminente: insigne ou excelente/ Iminente: próximo a ocorrer. • Delação: ato de delatar ou indicar autoria/ Dilação: ao de dilatar ou prologar, por exemplo, um prazo. • Flagrante: o que acabou de acontecer/ Fragrante: aromático. • Tráfico: praticar comércio ilegal ou ato de traficar/ Tráfego: fluxo ou ato de trafegar. Salientam Trubilhano e Henriques (2019) que há “parentesco” entre paronímia e paranomásia, que é o “jogo” de palavras com sons semelhantes, porém de sentidos diferentes. Exemplo: não há que se confundir habeas corpus com habeas copo ou o clássico “capitão de fragata com cafetão de gravata”. 5 AMBIGUIDADE E VAGUEZA Como já vimos, na comunicação, “ruído” é considerado tudo aquilo que pode atrapalhar a mensagem, fazendo com que se torne pouco clara, com duplo sentido ou mesmo incompreensível, fazendo com que o receptor não compreenda como deveria o sentido desejado pelo comunicante. Um dos “ruídos” na comunicação é a ambiguidade. O termo “ambiguidade” se origina do latim ambiguitas, que significa equívoco ou incerteza. Também sua origem porser relacionada ao termo grego amphibolia, que quer dizer duplicidade de sentido. Portanto, ambiguidade, por sua origem etimológica, pode ser compreendida como “duplo sentido” de uma mensagem como um todo, de um termo ou de uma expressão. 56 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA FIGURA 14 – CONCEITO DE AMBIGUIDADE FONTE: <https://www.dicio.com.br/ambiguidade/>. Acesso em: 22 abr. 2021. QUADRO 11 – EXEMPLOS DE FRASES COM AMBIGUIDADE FONTE: <https://www.significados.com.br/exemplos-de-ambiguidade/>. Acesso em: 22 abr. 2021. • João foi atrás do taxi correndo. Na frase acima a palavra “correndo” é utilizada de tal forma que não é possível ter certeza sobre o sentido da frase. Afinal: João, correndo, foi atrás do taxi ou João foi atrás do taxi que passou correndo? • Antônio sentou no sofá e quebrou o braço. Na frase a palavra “braço” permite mais de um significado. Afinal: Antônio sentou e quebrou o braço do sofá ou Antônio ao sentar no sofá quebrou seu próprio braço? A ambiguidade está presente em todas as formas de comunicação. Observe a imagem a seguir. São inúmeras as possibilidades de interpretação, uma vez que o observador, de acordo com o enfoque, tenha distinta interpretação. Afinal, o que há na figura? Ambiguidade não está presente apenas na linguagem jurídica, mas em todas formas de linguagem, inclusive as não verbais. FIGURA 15 – AMBIGUIDADE LINGUAGEM NÃO VERBAL FONTE: <http://sobreasletras.blogspot.com/2011/05/ambiguidade.html>. Acesso em: 22 abr. 2021. TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 57 Na figura acima, o que você vê primeiro? Tente mostrar a figura para outras pessoas e verá que serão diferentes as primeiras impressões!!! Ambiguidade é considerada como um vício de linguagem, isto é, uma espécie de “desvio” ou inadequação de uso das normas estabelecidas pela língua portuguesa. Vícios de linguagem são alterações defeituosas de uma língua padrão, produzidas por ignorância, descuido ou descaso por parte do emissor. QUADRO 12 – TIPOS DE VÍCIO DE LINGUAGEM Tipo Conceito Exemplo Cacoepia É a má pronúncia de uma palavra Compania (em vez de companhia), gor (em vez de gol), cadalço (em vez de cadarço); Silabada É a troca de acentuação prosódica de uma palavra Récorde (em vez de recorde), rúbrica (em vezde rubrica), íbero (em vez de ibero); Cacografia É a má grafia ou má flexão de uma palavra Maizena (em vez de maisena), cidadões (em vez de cidadãos), interviu (em vez de interveio) Deslize É o mau emprego de uma palavra Mala leviana (por mala leve), peixe com espinho (por peixe com espinha), vultuosa quantia (por vultosa quantia). Estrangeirismo Abuso do emprego de palavras estrangeiras, grafando-as como na língua de origem. Por princípio, todo estrangeirismo que não possuir equivalente adequado em nossa língua deve ser aportuguesado. Abajur, boate, garagem, coquetel, checape, píteça, xampu, xortes, e não abat-jour, boite, garage, cocktail, check- up, pizza, shampoo, shorts De concordância Concordância é o mecanismo pelo qual algumas palavras alteram suas terminações para adequar-se à terminação de outras palavras Houveram eleições (por houve eleições), o pessoal chegaram (por o pessoal chegou); De regência Regência nominal é a relação de dependência que se estabelece entre o nome (substantivo, adjetivo ou advérbio) e o termo por ele regido. A regência verbal estuda a relação que se estabelece entre os verbos e os termos que os complementam (objetos diretos e objetos indiretos) ou caracterizam (adjuntos adverbiais) Assisti esse filme (por assisti a esse filme), ter ódio de alguém (por ter odio a alguém), não lhe conheço (por não o conheço) De colocação Um dos aspectos da harmonia da frase refere- se à colocação dos pronomes obliquos átonos. Tais pronomes situam-se em três posições: - Antes do verbo (próclise): Não te conheço. - No meio do verbo (mesóclise): Avisar-te-ei. - Depois do verbo (ênclise): Sente-se, por favor. Darei-lhe um abraço (por dar-lhe-ei um abraço), tenho queixado-me bastante (por tenho me queixado bastante) FONTE: <https://blog.maxieduca.com.br/vicios-de-linguagem/>. Acesso em: 22 abr. 2021. 58 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA A ambiguidade é um tipo de vício de linguagem que, embora podendo ser utilizado em alguns casos como na poesia ou literatura, não é admitido na linguagem técnica, como é o caso da linguagem jurídica, pela exigência de clareza e precisão no uso dos termos. Informalmente ou mesmo na linguagem oral coloquial, a ambiguidade é utilizada e pode denotar até certa simpatia, porém é necessário estar atento para não ser utilizada no campo jurídico. No campo do direito, em que surgem controvérsias e conflitos, desacordos e incertezas, pode frequentemente surgir, exatamente, como veremos mais adiante, dada a generalidade e abstração da norma jurídica cuja interpretação e aplicação dependem muito do contexto em que é utilizada. Podem ser inúmeras as situações em que ocorre ambiguidade, porém destacaremos algumas a fim de que você as evite. • Uso indevido de pronome possessivo: pode ocorrer quando há mais de um sujeito na sentença e o uso de qualquer pronome possessivo pode causar equívocos. Ex.: O Comandante Cardozo pediu ao soldado Fernandes que pegasse sua munição. De quem era a munição? Do Comandante Cardozo ou do soldado Fernandes? • Colocação inadequada de palavras: quando pela sintaxe da frase há prejuízo no entendimento. Ex.: O depoente mal-humorado resmungou durante a audiência. Ser mal-humorado é uma característica do depoente ou foi somente durante a audiência? • Uso indevido de formas nominais: ocorre quando a ambiguidade aparece pelo uso de verbos na forma nominal (gerúndio, particípio ou infinitivo). Ex.: A testemunha viu Pedro correndo. Quem estava correndo: a testemunha ou Pedro? A vagueza, de maneira distinta da ambiguidade, é quando um termo ou expressão se apresenta de maneira incerta ou imprecisa. FIGURA 16 – CONCEITO DE VAGUEZA FONTE: <https://www.dicio.com.br/vagueza/>. Acesso em: 22 abr. 2021. TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 59 Sem dúvida, um dos fatores relacionados à vagueza no direito é a própria dificuldade do legislador em legislar sobre fatos e eventos futuros. A questão que fazemos na área jurídica diz respeito à vagueza: o direito, por sua natureza, não possuiria uma linguagem aberta e vaga já que são inúmeras as possibilidades de sentido da norma jurídica? No campo jurídico há o caso do que se costuma chamar de vagueza conceitual. Você poderá conhecer o caso do conceito de “concurso de pessoas” especificado no artigo 288 do Código Penal brasileiro. Leia mais em: https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com. br/artigos/295703564/a-vagueza-conceitual-e-o-delito-de-associacao-criminosa. DICAS Em síntese, existem diversos fatores que prejudicam a comunicação, dentre os quais, a ambiguidade e a vagueza. A primeira é definida como uma incerteza designativa e ocorre quando coexistirem dois ou mais significados. A ambiguidade pode ser de vários tipos, como o caso de palavras iguais na forma, mas de origem, gênero e significados diferentes, homônimos. Ex.: “peça” (parte de um instrumento/mecanismo ou juridicamente parte de um processo judicial – peças processuais). Já a vagueza, por sua vez, não há precisão para sua aplicabilidade porque existem inúmeras possibilidades em que ocorre e depende do contexto. No caso do direito, especificamente, há o caso de vagueza normativa. Ex.: o artigo 5° da Constituição Federal estabelece no inciso LXXVIII que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. O que é “razoável duração do processo”? O que é aceitável? O que é sensato? Na prática, cabe ao Poder Judiciário estabelecer o que é razoável para si.É um parâmetro que depende da atuação dos advogados, que devem exigir a garantia de um direito constitucional líquido e certo e do próprio Judiciário, como poder público que tem o dever em observar os padrões mínimos de razoabilidade para não permitir que um direito possa perecer. 60 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA LEITURA COMPLEMENTAR “A ELITIZAÇÃO DA LINGUAGEM JURÍDICA COMO OBSTÁCULO AO ACESSO À JUSTIÇA” Renata Martins de Sousa A possibilidade de todos terem acesso, sem restrições, à tutela jurisdicional constitui uma das grandes preocupações da sociedade contemporânea. Cappelleti e Garth (1988, p.12) destacam que o acesso à Justiça pode ser encarado "como o requisito fundamental — o mais básico dos direitos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não proclamar os direitos de todos". A ideia de acesso à Justiça, que tomou relevo sobretudo no bojo do Estado Social, não implica, porém, apenas possibilitar o acesso à Justiça como instituição estatal, mas também viabilizar o acesso à ordem jurídica justa (GRINOVER, 1996, p. 115-116). Dada a relevância da matéria, o acesso à Justiça, ao menos em tese, é um direito humano consagrado pela grande maioria das Constituições. No Brasil, o citado direito encontra-se previsto no artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal, segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Contudo, a despeito de sua previsão no plano formal, não há como desconsiderar a existência de inúmeros obstáculos que tendem a refletir diretamente na capacidade de efetividade de tal direito. Nesse sentido, a título de mera ilustração, cabe mencionar que o próprio hermetismo da linguagem jurídica pode figurar como um instrumento de cerceamento do amplo acesso à Justiça. Quanto a isso, convém lembrar que a linguagem e o Direito, como práticas sociais, são elementos interligados, não se questionando o fato de que o discurso jurídico no país, geralmente estabelecido por meio de linguagem formal (expressões técnicas), torna-se inacessível à maioria das pessoas, o que leva alguns a denunciar que a matriz liberal do Direito se ocupa, assim, de ocultar a realização de propósitos autoritários. A própria análise das obras da literatura brasileira, que se ocupam das razões que operam a marginalização e a exclusão social no país, facilita no processo de compreensão do uso erudição da linguagem jurídica no Brasil. Nessa lógica, cumpre destacar, que ao tratar da formação do patronato político-jurídico no país, o sociólogo Raymundo Faoro (2001, p. 885), além de advogar que as especificidades brasileiras decorreriam de sua herança lusitana, também apresenta-nos uma concepção de que o estamento patrimonial continua a controlar o Estado TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 61 brasileiro segundo interesses particularistas, fazendo perpetuar um sistema de privilégios no âmbito do aparelho estatal, inclusive por meio do emprego do formalismo jurídico, traduzido, em grande medida, por leis, retóricas e elegantes, criadas dentro de uma estrutura tendenciosa a concentrar o poder político nas mãos de poucos. Sintetizando tais ideias, destaca o sociólogo: "O poder — a soberania nominalmente popular — tem donos, que não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre" (FAORO, 2001, p. 885). Nessa linha de reflexão, é possível apontar que, no Brasil, além dos obstáculos diretamente relacionados às desigualdades sociais que, há muito, protraem-se no tempo, o próprio tecnicismo da linguagem, aliado ao uso de vestes talares nos tribunais e o uso das formalidades excessivas dos ritos judiciários, também corrobora para o afastamento do cidadão comum das instâncias do Judiciário e, por conseguinte, do pleno acesso à Justiça. Deveras, a linguagem rebuscada da legislação e seu distanciamento da linguagem coloquial, além de impedir a necessária comunicação entre os jurisdicionados, por vezes também implica em dificuldade de compreensão por parte dos próprios profissionais da área jurídica. Senão vejamos. Em meio a um julgamento, o magistrado de Barra Velha, comarca de Santa Catarina, teria proferido a seguinte ordem: "Encaminhe o acusado ao ergástulo público" (Jornal Folha de São Paulo, 23/1/2005, com adaptações). A sofisticação da linguagem por parte do magistrado, Ricardo Roesler, impossibilitou que sua ordem fosse cumprida de imediato, dada a ausência de compreensão por parte dos servidores do Poder Judiciário acerca do sentido e significado da expressão "ergástulo" — palavra arcaica usada como sinônimo de cadeia. Quando Roesler descobriu que nem seus subordinados entendiam o que ele falava, decidiu substituir os termos pomposos e os em latim por palavras mais simples. Em meio a tal contexto, marcado pela vagueza e violência simbólica do estilo hermético que muitas vezes se transmuda em exercício de poder e intimidação contra os mais humildes, propõe-se a adequação da linguagem jurídica na interlocução das partes processuais, com vista a possibilitar mudanças progressivas no universo do Direito. Com efeito, o fomento ao emprego de técnicas processuais amparadas na simplicidade e informalidade, contribuem para o empoderamento de grupos oprimidos e a garantia de seus direitos, além de propiciar a interação das pessoas comuns com a cultura jurídica e estimulá-las a deliberar e apresentar seus argumentos no processo decisório, refutando concepções paternalistas e elitistas. Ao destacarem a necessidade de a Constituição ser levada a sério pela sociedade, ponderam Soares e Barros, citando Pablo Lucas Verdú (VERDÚ, 1998 apud SOARES; BARROS, 2014, p. 163), que o sentimento constitucional se manifesta como "expressão de afeição do cidadão pela justiça e pela equidade, 62 UNIDADE 1 — LINGUAGEM E LINGUAGEM JURÍDICA relacionando-se diretamente à norma fundamental, pois esta dispõe sobre valores como liberdade". Daí surge a necessidade de se encontrar mecanismos aptos a incorporar as pessoas que não têm acesso à justiça, repensando as instituições para o povo, para o qual a Constituição foi criada. Logo, estando assentado que o cidadão comum deve integrar a ordem jurídica, não podendo figurar como mero espectador, resta comprovada a relevância da simplicidade da linguagem jurídica, que pode figurar como mais uma ferramenta de emancipação de enorme contingente de pessoas que encontram obstáculos quanto ao acesso à Justiça. Ressalte-se, nesse sentido, o trabalho desempenhado pela Defensoria Pública, instituição ligada ao sistema de Justiça que, calcada na expansão da cidadania, além de prestar o serviço de assistência jurídica integral aos vulneráveis, encontra-se diretamente comprometida com a democratização e pluralização do acesso à Justiça, priorizando a clareza e transparência na comunicação com seus assistidos. À luz do princípio da dignidade humana, a Defensoria não se presta apenas ao patrocínio judicial da causa dos necessitados (condição que deve ser aferida do ponto de vista não apenas econômico, mas também social e organizacional), uma vez que também é responsável pela orientação extrajudicial de enorme parcela da população, fomentando a participação popular, possibilitando a prevenção de litígios e educando grupos vulneráveis na consolidação de seus direitos e garantias fundamentais. Assim, no intuito de franquear o acesso à Justiça a todos, bem como a necessária acessibilidade ao seu público-alvo, afastando-se do cientificismo exacerbado, a instituição prima pelo emprego da linguagem coloquial, reconhecendo que esta exerce um papel indispensável na constituição significativa do mundo e do próprio Direito.Cabe, nesse aspecto, citar iniciativas simples tomadas por órgãos de execução da Defensoria de todo o país, capazes de ilustrar a atuação da instituição no papel de educação em direitos e promoção da inclusão, por meio da linguagem. A Defensoria Pública do Estado da Bahia, por exemplo, lançou no fim do ano de 2019 cartilha que trata dos direitos das pessoas com deficiência, objetivando criar condições para que os cidadãos possam ocupar mais os espaços de reivindicação e de construção de políticas públicas. A publicação busca sintetizar em linguagem acessível o rol das garantias legais do público das pessoas com deficiência, como o direito à saúde, à mobilidade, educação, trabalho, previdência, lazer, acessibilidade, entre outros. Seguindo a mesma trilha, a Defensoria Pública do Estado do Pará lançou, no mesmo período, o Manual de Direitos do Cidadão na Abordagem Policial. A ideia partiu de uma demanda exposta por movimentos sociais, em decorrência de TÓPICO 3 — VOCABULÁRIO JURÍDICO 63 algumas abordagens policiais que possivelmente violaram os direitos humanos. Como foi solicitado pelas lideranças, o manual é acessível e possui uma linguagem simples, tendo por finalidade permitir que os cidadãos entendam os seus direitos diante de tal situação. Os casos acima retratados revelam a preocupação por parte da Defensoria em educar a população, por meio de linguagem acessível para o alcance de todos, além de reconhecer na alteridade um pressuposto filosófico relevante e capaz de fundar um discurso que reconhece os invisíveis como humanos, empreendendo esforços para assegurar aos seus assistidos patamares mínimos necessários de tutela da dignidade humana. Por derradeiro, medidas como essas tornam-se necessárias para gerar conhecimento e condições para superação de problemas sociais e estruturais da sociedade brasileira, identificando e combatendo situações de opressão e violação de direitos humanos, além de alçar os indivíduos à condição de verdadeiros cidadãos. Com base nas considerações tecidas, necessário identificar que o Judiciário e as instituições que integram o sistema de Justiça devem perder seu isolamento e articular-se com a sociedade civil, priorizando o emprego de uma linguagem acessível e menos elitizada, de forma a contribuir para fazer minimizar as injustiças ocorridas à luz de uma ordem constitucional e para a construção de uma Justiça de proximidade, assegurando ao cidadão comum condições de poder se expressar juridicamente, com base em mecanismos postos à disposição. FONTE: <https://www.conjur.com.br/2020-set-29/tribuna-defensoria-elitizacao-linguagem- juridica-obstaculo-acesso-justica>. Acesso em: 22 abr. 2021. 64 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A linguagem jurídica utiliza termos com sentido específico, porém são palavras que não são exclusivamente jurídicas, o que produz polissemia, que ocorre quando uma palavra comporta múltiplos significados jurídicos e não jurídicos. • A polissemia, na linguagem jurídica, ocorre de maneira interna e externa. A primeira é quando há mais de um significado jurídico e a segunda quando o termo possui um sentido jurídico e outro na linguagem coloquial. • Homonímia é quando as palavras possuem a mesma grafia ou a mesma pronúncia, porém com significados diferentes cujo conhecimento evita consequências não desejadas no mundo jurídico. • A sinonímia e paronímia são vícios de linguagem que no direito ocorrem comumente, mas devem ser reconhecidos e bem utilizados, quando for o caso, no mundo jurídico. • A ambiguidade e a vagueza, embora estando presente em todas formas de comunicação, no campo do direito onde surgem controvérsias e conflitos, desacordos e incertezas podem surgir que depende do contexto em que incide. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 65 1 A linguagem jurídica utiliza termos com sentido específico, porém utilizando palavras que não são exclusivamente jurídicas, o que gera a polissemia. Polissemia é quando uma palavra comporta múltiplos significados tendo sentido jurídico como não jurídicos. A polissemia no campo jurídico ocorre de duas maneiras, quais sejam: polissemia externa e polissemia interna. Acerca do conceito de polissemia interna, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) É aquela que ocorre quando a palavra possui o mesmo significado na linguagem jurídica e na coloquial. b) ( ) É quando um termo possui mais de um significado jurídico. c) ( ) Ocorre quando a lei estabelece o sentido do termo jurídico. d) ( ) Quando a palavra possui a mesma grafia e mesma pronúncia. 2 Homonímia é um vício de linguagem que ocorre quando as palavras possuem a mesma grafia ou a mesma pronúncia, porém com significados diferentes. Podem ocorrer de duas formas: homônimos e homógrafos. Quanto aos homônimos homógrafos, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) São definidos como as palavras que possuem a mesma grafia com sentidos distintos. b) ( ) São as palavras ou termos jurídicos com a mesma grafia e mesmo sentido. c) ( ) São os termos jurídicos escritos em latim. d) ( ) São as palavras jurídicas utilizadas no sentido coloquial. 3 Considere a seguinte afirmação: “Aberta a temporada de caça a um antigo inimigo da Justiça, que a corrói por dentro tanto quanto a morosidade nas sentenças e a estrutura arcaica dos tribunais. É o juridiquês, o uso de um português arrevesado, palavrório cheio de raciocínios labirínticos e expressões pedantes. O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio forense.” FONTE: <https://www.estrategianaadvocacia.com.br/artigos2.asp?id=156#.X6G2gflKjIU>. Acesso em: 22 abr. 2021. A afirmação refere-se ao chamado “juridiquês”, que é o uso excessivo e desnecessário de uma linguagem rebuscada. Escreva como esse vício linguístico comum no mundo jurídico impede o acesso à justiça. AUTOATIVIDADE 66 REFERÊNCIAS BAGNO, M. Preconceito Linguístico: o que é, como se faz. 49. ed. São Paulo: Loyola, 2007. BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Tradução Fernando Tomaz, 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. BRASIL. Lei n° 13.05 de 16 de março de 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 20 abr. 2021. BRASIL. Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 20 abr. 2021. BRASIL. Lei n° 6015 de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 20 abr. 2021. BRASIL. Decreto-lei n° 3.914, de 9 de dezembro de 1941. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/. Acesso em: 20 abr. 2021. IHERING, R. V. A luta pelo direito (der kampf um´s Recht). Tradução de João Vasconcelos. São Paulo: Forense, 2006. KELSEN, H. O que é Justiça? 3. ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2001. p. 231-232. PETRI, M. J. C. Manual de Linguagem Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. REALE, M. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. SANTOS, L. dos. Dimensões linguísticas e não linguísticas: o limite das palavras. 2018. Disponível em: https://www.webartigos.com/index.php/artigos/ dimensoes-linguisticas-e-nao-linguisticas-o-limite-das-palavras/155886. Acesso em: 20 abr. 2021. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1972. TELLES JÚNIOR, G. Tratadoda Consequência: curso de Lógica Formal. 5. ed. São Paulo: Bushatsky, 1980. TERRA, E. Linguagem, língua e fala. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. TRUBILHANO, F., HENRIQUES, A. Linguagem Jurídica e Argumentação: teoria e prática. 6. ed. São Paulo: Atlas editora, 2019. 67 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • diferenciar oratória de retórica; • identificar os fatores relevantes de oratória e retórica; • compreender a relevância da oratória jurídica para o exercício da atividade profissional na área jurídica; • definir a retórica enquanto arte e habilidade adquirida pelo orador de forma a se comunicar de maneira clara e eloquente a fim de persuadir; • compreender a origem e construção histórica da retórica desde a Antiguidade grega, seu legado e redefinição pela linguística moderna e contemporânea; • conceituar a argumentação como processo de estruturação de um raciocínio lógico e coerente que tem como propósito convencer alguém para modificar seu comportamento ou opinião; • identificar os diferentes elementos que constituem a argumentação; • diferenciar os tipos de argumentos mais utilizados de acordo com a finalidade; • conceituar e diferenciar as falácias argumentativas compreendidas como erros lógicos, conscientes ou não, que conduzem a pré-compreensões equivocadas produzindo preconceitos ilegítimos, estereótipos e más decisões; • compreender as diferentes figuras de linguagem enquanto estratégias utilizadas pelo orador; • definir a argumentação jurídica como estratégia específica de convencimento; • identificar o processo de construção do processo argumentativo no direito com vistas a produzir um resultado válido juridicamente; • relacionar lógica e argumentação de forma a compreender a elaboração de premissas válidas e conclusões jurídicas adequadas; • compreender o direito como um sistema lógico. PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS TÓPICO 2 – ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES TÓPICO 3 – DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 68 Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 69 UNIDADE 2 TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 1 INTRODUÇÃO Desde os primórdios das civilizações humanas encontramos registros de uso da oratória como instrumento persuasivo. A oratória é definida como um conjunto de habilidades que permitem falar com desenvoltura e eloquência, demonstrando conhecimento e domínio do conteúdo da mensagem. Neste primeiro tópico, estudaremos os elementos que caracterizam a boa oratória, tais como a dicção, entonação e gesticulação que permitem ao orador transmitir uma mensagem de maneira agradável e convincente, que são importantes instrumentos para o profissional da área jurídica. Ainda, você conhecerá alguns dos grandes oradores da história. Procure observar as técnicas utilizadas. Lembre-se de que a oratória é uma habilidade que pode ser adquirida e aprimorada. 2 ORATÓRIA Não é incomum os termos oratória e retórica serem equivocadamente utilizados como sinônimos, uma vez que ambos possuem conceitos semelhantes e estão relacionados com a habilidade de comunicação. Como veremos a seguir, a retórica é mais abrangente e é independente da existência de uma plateia, e tem o claro objetivo de persuadir o público. Alguém que possua boa retórica pode se comunicar não estando necessariamente diante de um público. Define-se a oratória como a arte de bem falar em público, de forma eloquente e é uma forma específica de comunicação. É uma habilidade comunicar-se com confiança e clareza. Portanto, ter boa oratória é fundamental para se expressar de maneira convincente. Entretanto, oratória não é somente falar bem em público. Existem fatores com determinam a maneira com que um discurso é recebido pelo público. O tom de voz, a expressão facial, a postura e a linguagem corporal implicam diretamente na boa comunicação. Portanto, o bom orador se comunica bem utilizando tanto a linguagem verbal como a não verbal. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 70 A oratória é considerada um conhecimento específico constituído por meios e regras através das quais se chama a atenção e influencia o público ouvinte. Se é um conhecimento pode ser aprendido através do domínio de técnicas específicas. Como já estudado, a comunicação é a transmissão de uma mensagem para um receptor. Receptor poderá ser tanto uma multidão como um pequeno grupo de indivíduos. A oratória independe do número de receptores, mas sim da capacidade de convencimento do orador. Quais são os principais fatores relacionados à oratória? Todo discurso tem seu início com um bom planejamento. É necessário escolher adequadamente o conteúdo que possa ser desenvolvido no tempo estipulado para a apresentação. O que será dito deve ser selecionado considerando o impacto que deverá causar nos ouvintes e que possa ser interessante e compreendido. Chegada a hora de falar em público, quais fatores são relevantes? • Dicção: é a forma como o orador articula e pronuncia as palavras. Porém, a boa dicção não significa que o indivíduo não se expresse de maneira adequada porque é comum a dificuldade na pronúncia de certas palavras. Muitas vezes são pequenos erros que podem estar relacionados aos hábitos de linguagem de uma determinada cultura. FIGURA 1 – E QUANDO A LÍNGUA “TRAVA”? COMO TER BOA DICÇÃO? FONTE: <https://www.estudokids.com.br/20-trava-linguas-folclore/>. Acesso em: 26 abr. 2021. São inúmeras as técnicas que podem ser utilizadas para “destravar a língua” e adquirir uma boa dicção. Os fonoaudiólogos ensinam que é necessária uma boa respiração e aquecimento dos músculos do rosto e da língua com alguns pequenos exercícios diários, como falar trava-línguas, uma espécie de brincadeira que devem ser ditos inicialmente devagar e depois ir acelerando. São frases populares tais como: "Sabendo o que sei e sabendo o que sabes e o que não sabes e o que não sabemos, ambos saberemos se somos sábios, sabidos ou simplesmente saberemos se somos sabedores." TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 71 Outro bom recurso é a leitura em voz alta de textos e poemas clássicos e a escrita. Vamos conhecer como essas técnicas foram utilizadas por Demóstenes, o orador gago. FIGURA 2 – DEMÓSTENES, O GRANDE ORADOR GAGO FONTE: <https://amenteemaravilhosa.com.br/demostenes-grande-orador-gago/>. Acesso em: 26 abr. 2021. No breve texto a seguir, você conhecerá a história de Demóstenes, um dos maiores oradores de todos os tempos e que teve que superar suas dificuldades físicas com sacrifícios inimagináveis para atuar de forma brilhante nos antigos tribunais gregos. É um exemplo que nos inspira. Na fantástica e emocionante história da oratória através dos tempos, o grego Demóstenes certamente foi o maior de seus personagens, porque, sem dúvida, quem mais sacrifícios pessoais fez para realizar seus sonhos e objetivos. Nasceu em 333 Antes de Cristo. Era filho de um rico industrial, falecido quando tinha apenas 07 anos de idade. Órfão, ficou sob a tutela de parentes que acabaram dilapidando parte de sua fortuna. Aos 14 anos, pela permanente e dedicada leitura, já possuía instrução cultural suficiente para compreender, inclusive, a linguagem prolixa de Calístrato, um dos mais veementes oradores da época. Como habilidosa técnica de aprendizagem dos segredos de falar em público, copiava pacientemente a história de Thucydides,orador famoso pela sonoridade das suas palavras. INTERESSA NTE UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 72 E, por não preencher, ainda, os requisitos necessários para se tornar advogado e falar nos Tribunais, Demóstenes se tornou escritor de discursos pronunciados por outros oradores. Interessante é que, nessa condição, podia pedir a palavra depois do cliente, para esclarecimentos. Sua sofrível dicção, porém, não o ajudava muito. Nervoso na tribuna, se perturbava, se confundia, e provocava risos nos ouvintes. Além disso, tinha peito fraco, articulação defeituosa, e o estranho vício de levantar constantemente uma das espáduas, sendo por isso várias vezes, vaiado e ridicularizado em público. Mas, não desistiu. Tinha uma meta a cumprir. Disposto a vencer, procurou fortificar os pulmões com exercícios físicos diários. A gagueira nervosa, dominou falando ao mar, à exaustão, com seixos na boca. E, para tirar o vício de levantar descontroladamente o ombro, ficava debaixo da ponta de uma espada dependurada, ferindo-se, a sangrar, cada vez que a tocava. O mais comovente é que, para não se distrair no esforço de vencer as dificuldades desse dramático treinamento, fechava-se num subterrâneo e mandava raspar seu cabelo e barba, para que, por qualquer motivo, não se sentisse tentado a ir para as ruas, já que pessoalmente inadequado à vida social da época. Ao mesmo tempo, o grande amigo Satyros, famoso comediante, ensinava-lhe a pronúncia exata das palavras, a ação e tom de falar em voz alta, e a arte da declamação. Seu esforço não foi em vão. Demóstenes não apenas venceu os defeitos físicos, como aprendeu a falar corretamente, tornando-se o mais completo orador da Grécia, e o maior exemplo de tenacidade em todos os tempos. Certo, pois, que o bom orador não nasce feito. Ao contrário, é natural consequência de paciente e permanente treinamento das regras de comunicação. FONTE: <https://www.abracrim.adv.br/artigos/um-historico-exemplo-de-persistencia-e- superacao-demostenes-o-maior-orador-da-grecia-antiga>. Acesso em: 26 abr. 2021. • Gesticulação: seguramente, você já ouviu a frase: “o corpo fala” e o que isso significa? Ao nos comunicarmos, temos posturas corporais para, na maioria das vezes, inconscientemente, darmos ênfase ao que falamos. O que fazemos com o corpo expressa nosso domínio emocional. Como usar as mãos? A cabeça deve ser mantida erguida? Andar ao falar é necessário? Não há uma fórmula pronta para todas as situações e pessoas, mas é necessário dar atenção à postura. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 73 FIGURA 3 – LINGUAGEM CORPORAL FONTE: <http://linguagemdocorpo.blogspot.com/2008/10/captulo-12-aplicaes-prticas.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. A gesticulação deve ser sempre moderada e natural, sem exageros e deve estar em sintonia com a fala. Há que se considerar o tamanho do público e seu nível intelectual. Para um número menor de pessoas e com maior intelectualidade não é recomendável muita gesticulação. O olhar é uma linguagem corporal relevante para a boa comunicação. Para que o público se sinta parte da exposição é necessário que de direcione o olhar para cada uma das pessoas. Enfim, o bom orador utiliza os gestos corporais como importante meio de comunicação. • Intensidade de voz: você já deve ter notado que as pessoas tímidas falam em tom de voz baixo e, em alguns casos, chega a ser inaudível. O bom orador sabe dosar o tom de voz de acordo com a mensagem. A entonação vocal é um instrumento muito poderoso para o convencimento. A altura, velocidade e impostação da voz são medidores de uma boa comunicação. Falar aos berros cria bloqueios e ruídos na comunicação da mesma forma que falar muito devagar gera desinteresse e desestímulo para o público. Ao longo da história, os grandes líderes ganharam destaque e arrastaram multidões pelo poder da oratória. Vamos conhecer a capacidade de convencimento de importantes personagens da história e as técnicas utilizadas por cada um deles. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 74 • Nelson Mandela e a pausa no discurso: Rolihiahia Dalibhunga Mandela (1918-2013), filho de importante chefe tribal, ao iniciar seus estudos recebeu o nome inglês de “Nelson” e teve acesso a importantes escolas para negros da elite, tendo ingressado no curso de Direito em 1939, mas o abandonou para se dedicar à luta contra o regime político de segregação racial na África do Sul. Em 1964 foi condenado à prisão perpetua até que, em 1984, por pressão internacional é proposto acordo para trocar a liberdade pelo abandono da militância política, mas ele se manteve firme a seus ideais. Em 1990 foi libertado e, em 1994, Mandela conquistou as eleições multirraciais, tornando- se presidente da África do Sul. Seus discursos eram repletos de pausas, dando a impressão de reflexão. Veja o discurso de posse de Mandela “chegou o momento de construir”. Observe as pausas ao falar em reconciliação, paz e harmonia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ircG8scNUWg&feature=emb_title. DICAS • Martin Luther King e a repetição: King (1929-1968) foi importante ativista na defesa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos da América. Filho de pastores da Igreja Batista seguiu o mesmo caminho após formar-se em Teologia. Defensor da igualdade racial provocou a ira de autoridades e grupos racistas como a Ku Klux Klan que, com violência, atacavam os militantes da luta antirracial. Um de seus discursos mais famosos - I have a dream (eu tenho um sonho) - foi em 1963, quando liderou uma marcha sobre a cidade de Whashington reunindo 250 mil pessoas. Foi assassinado no dia 04 de abril de 1968 na cidade de Memphis. Conheça dois discursos de Martin Luther King. O discurso “eu tenho um sonho”. Além da belíssima e humanitária mensagem na defesa da igualdade, observe a repetição com ênfase e repetição da frase “eu tenho um sonho”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aWlhPFHOl-Y. Outro discurso de King no mesmo estilo e comovente é seu último discurso conhecido como “eu estive no topo da montanha”, proferido dias antes de ser assassinado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RWlSc63xkfk. DICAS TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 75 • Charlie Spencer Chaplin e o poder da oratória na crítica contra o nazismo: Chaplin, (1889-1977) além de ator, escritor, comediante e diretor de cinema, destacou-se como um grande orador. No filme O grande ditador, de 1940, profere um dos belos discursos contra o nazismo, o fascismo e regimes autoritários em geral. É um discurso extremamente atual no qual são utilizadas as diversas formas de linguagem demonstrando inigualável oratória. Conheça o discurso de Charles Chaplin feito no filme O grande ditador. Observe o domínio das palavras, a mudança de tom de voz, o olhar e gestos corporais. Sem dúvida, além do conteúdo sensível e autêntica declaração em defesa da liberdade é autêntica lição de oratória. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K2K9519Upe. DICAS 3 A ORATÓRIA NO CAMPO JURÍDICO Após o estudo inicial da oratória, você já percebeu sua importância para o profissional do ramo do direito. É uma ferramenta essencial para a atividade jurídica. Sua importância é reconhecida no próprio Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (BRASIL, 1994) em seu artigo n° 7, que estabelece as situações em que o advogado deve se manifestar oralmente: IX- sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento, após o voto do relator, em instância judicial ou administrativa, pelo prazo de quinze minutos, salvo se prazo maior for concedido. X- usar da palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívoco ou dúvida surgida em relação a fatos, documentosou afirmações que influam no julgamento, bem como para replicar acusação ou censura que lhe forem feitas; XI- reclamar, verbalmente ou por escrito, perante qualquer juízo, tribunal ou autoridade, contra a inobservância de preceito de lei, regulamento ou regimento; XII- falar, sentado ou em pé, em juízo, tribunal ou órgão de deliberação coletiva da Administração Pública ou do Poder Legislativo (BRASIL, 1994, p. 3). No cotidiano, o profissional do direito obriga-se a usar a oratória para expor seus argumentos, influindo diretamente na decisão de um processo judicial. Neste sentido, expõe Bradi (apud CAVALCANTI, 1999, p. 12): “Dominando a “arte da oratória”, podemos informar comunicar ideias, defender, refutar, realizar discursos ou falar com propriedade. São essas oportunidades que fazem da oratória uma arte sempre atual, cujo conhecimento tanto é imprescindível para o triunfo social quanto para promover o próprio trabalho”. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 76 Evidentemente, se o profissional do direito não souber organizar suas ideias e expô-las de maneira ordenada, objetiva e clara estará colocando em risco a concretização da justiça no caso concreto, isso porque é uma atividade profissional que depende da capacidade de bem falar. A chamada oratória forense é aquela utilizada no cotidiano dos tribunais, seja na sustentação oral ou mesmo na sustentação de um recurso. Ainda nas audiências, o profissional do Direito necessita fazer intervenções a fim de esclarecer dúvidas ou equívocos que podem interferir diretamente no julgamento de uma causa ou mesmo replicar afirmações que, no seu entender, devem ser contestadas, usando-se a expressão “pela ordem”. A diferença das expressões “questão de ordem” e “pela ordem” no Tribunal do Júri Na maior parte de um júri, a defesa passa sentada na sua bancada como mera expectadora do julgamento. Legalmente, falará por no máximo duas horas e meia (art. 477 do CPP). Ocorre que há situações em que se deve invocar a palavra da bancada para não só garantir a plenitude de defesa, mas também a plenitude do exercício profissional, sendo elas as seguintes: 1. "Questão de ordem" O mecanismo da “questão de ordem” serve para suscitar questões de direito, principalmente quando o advogado se depara com alguma ilegalidade. A palavra deve ser requerida ao juiz, que, em razão do advogado arguir “questão de ordem”, deve lhe conceder a palavra para que a fundamente, ou seja, indique qual o dispositivo legal está sendo violado e em razão de quais motivos. No Tribunal do Júri, o fundamento dessa situação está previsto no art. 497, X, do CPP, que prevê, como atribuição do juiz presidente resolver as questões de direito suscitadas no curso do julgamento. O advogado deve sempre requerer que a “questão de ordem” por ele suscitada seja registrada em ata, com fundamento no art. 495, incisos XIV e XV, do CPP, tendo em vista que, se não estiver registrada, haverá grande probabilidade de ser considerada preclusa, por inobservância ao art. 571, VIII, do CPP. 2. "Pela ordem" É extremamente comum o termo “pela ordem” ser usado como se fosse “questão de ordem”, de modo que, embora, por costume, sejam utilizadas como se sinônimas fossem. Tecnicamente não o são. O mecanismo do uso da palavra “pela ordem” é uma prerrogativa do advogado prevista no art. 7°, inciso X, da Lei n. 8.906/94. Trata-se do uso da palavra mediante “intervenção sumária”, ou seja, para falar “pela ordem”, é desnecessário que o juiz conceda a palavra, deve-se simplesmente fazer a manifestação. Logo, se a palavra do advogado for cassada ou o juiz presidente negar uma questão de ordem que o advogado entenda estar ligada ao seu exercício profissional, pode utilizar a palavra “pela ordem”. FONTE: <https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/780414463/questao-de-ordem-e- pela-ordem-voce-sabe-quando-se-deve-usa-las-no-tribunal-do-juri>. Acesso em: 26 abr. 2021. NOTA TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 77 FIGURA 4 – COMPOSIÇÃO DO TRIBUNAL DO JÚRI FONTE: <https://patperruchi.jusbrasil.com.br/artigos/398816176/tribunal-do-juri>. Acesso em: 26 abr. 2021. É no plenário do Tribunal do Júri, conhecido também como Júri Popular, que promotor e advogado têm a oportunidade de demonstrarem a capacidade de oratória, uma vez que um dos princípios que rege esse instituto do direito processual penal é a oralidade. Através dos discursos tanto da defesa como a acusação, as teses são apresentadas aos jurados que compõem o Conselho de Sentença, os quais, após ouvirem a instrução no plenário, que é basicamente interrogatório do réu, leitura de peças processuais quando necessário, oitiva de testemunhas e a atuação da acusação e da defesa, decidem sobre a inocência ou culpa do acusado. No Tribunal do Júri, os profissionais do direito não apenas utilizam a linguagem jurídica, mas utilizam de recursos de oratória, entendido por leigos equivocadamente como mera teatralização, para persuadir o Conselho de Sentença. O uso adequado do tempo para a apresentação das teses expressas nos argumentos defendidos oralmente são verdadeiros confrontos em que são combinadas fortes emoções, conhecimento jurídico e domínio de oratória. Inúmeros são os juristas que se destacaram e se destacam na atuação do Tribunal do Júri pela capacidade de convencimento, mas de todos, Evandro Lins e Silva é inigualável. Atuando na defesa de casos polêmicos, dono de uma oratória ímpar, foi um defensor incansável da justiça e do direito, deixando claro que a defesa, por pior que seja o delito, não é mais importante que “dar voz” a um acusado inocente ou criminoso culpado. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 78 FIGURA 5 – EVANDRO LINS E SILVA: O JURISTA BRASILEIRO DO SÉCULO FONTE: <https://canalcienciascriminais.com.br/a-defesa-tem-a-palavra-algumas-consideracoes- sobre-a-ausencia-de-preparacao-de-advogados-para-atuarem-perante-o-tribunal-do-juri/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Conheça brevemente, no texto a seguir, a história inspiradora de Evandro Lins e Silva, nascido em 18 de janeiro de 1912, na cidade de Parnaíba, Estado do Piauí, e bacharelado em 1932, pela antiga Universidade do Rio de Janeiro, na Faculdade de Direito, especializando-se na matéria penal, militando durante muitos anos nos tribunais brasileiros. QUADRO 1 – HISTÓRIA DE EVANDRO LINS E SILVA A defesa tem a palavra, pela honra e liberdade brasileira Sua caminhada foi árdua, para naquela época, discordar da ditadura de Vargas, ser perseguido e ainda ser reconhecido como talentoso profissional. Defendendo presos e acusados políticos, o que demonstrava com veemência a sua afeição pela independência e a liberdade política. Como ministro não se curvou diante da sociedade norte-americana, que usavam como pretexto a tentativa de evitar a expansão do comunismo, tornando o Brasil alheio aos avanços e a liberdade política, Evandro se manteve firme em favor do regime democrático, pois era socialista e democrata, e sonhava com um mundo menos injusto, e esse não era o ideal norte-americano, e aí se concentrava esse choque de idealização. Sua impecável dignidade e firmeza renderam a Evandro inúmeras oportunidades, das quais ele aproveitou de maneira espontânea, buscando sempre a defesa da Honra e da Liberdade do Brasil, então dentro dessa cheia profissão cheia de árduas surpresas, Evandro ao prestar um depoimento pessoal que foi republicado em 1° de fevereiro de 2012 no Instituto dos Advogados Brasileiros na sessão comemorativa do centenário de nascimento de Evandro Lins e Silva, O Pensamento Vivo de Evandro Lins e Silva (2012, p. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 79 FONTE: <https://www.editorajc.com.br/o-direito-no-pensamento-juridico-de-evandro-lins-e-silva/>.Acesso em: 26 abr. 2021. 8), nos disse: “Nestes sessenta anos, como advogado, não fiz outra coisa senão repetir a sina de Sísifo, em todos os pretórios, defendendo a liberdade alheia. Trabalhei muito, empurrei a pedra da lenda para levá-la ao topo da montanha, e, quando lá chegava, descia outra vez para empurrá-la de novo. Tem sido um esforço incessante, durante toda a vida”. Evandro ao ser questionado acerca da defesa de casos polêmicos deixou claro que a defesa por pior que seja o delito não é menos importante que à satisfação da moralidade pública e que esta tem a função de estar ao lado do acusado inocente ou criminoso a voz dos seus direitos legais. E deixa claro que a Voz do Direito no meio da paixão pública é suscetível de se demasiar, até mesmo pela exaltação da sua própria nobreza, e tem aí a missão sagrada nesses casos de não consentir que a indignação degenere em ferocidade e a expiação jurídica em extermínio cruel. Sua concepção mostrou sempre que todo indivíduo independente do ocorrido tinha direito a defesa, e Evandro ao longo de sua caminhada se mostrou aberto para defender os mais diferentes tipos de casos, com sua injusta aposentadoria consolidou sua carreira polêmica ao defender o a causa de Raul Fernando do Amaral Street, o famoso e polêmico caso Doca Street, em que o acusado em 30 de novembro de 1976 na praia dos Ossos em Búzios, matou Ângela Maria Fernandes Diniz, o então acusado de homicídio qualificado por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima, e Evandro não mostrou intimidação ao clamor público e a pressão da imprensa, e em 1979 estava lá para o julgamento que repercutiu na Argentina, Estados Unidos e até em países africanos, pois o caso era considerado uma demonstração de machismo cruel, mas a decisão do júri beneficiou a defesa, Doca Street foi condenado a dois anos de detenção, por homicídio culposo e beneficiado pelo sursis que é um instituto do Direito Penal que garante que o condenado não se sujeite à execução de pena privativa de liberdade de pequena duração, ou seja, permite que, mesmo condenada, uma pessoa não fique na cadeia, e depois Evandro publicou o livro que consagra a história dessa magnífica defesa: A Defesa tem a Palavra – O caso Doca Street e algumas lembranças. Evandro é considerado um Doutor em Humanidade, apesar da defesa de casos tão polêmicos, pois utilizava a sua formação intelectual e seu desempenho humanístico para analisar as questões jurídicas, não se deixando abater pelo calor do momento, ou clamor da causa, ou seja, para não ser injusto não se deixava em nenhum momento ser levado pela emoção, e ao longo de sua carreira atuou com louvor, e foi reconhecido mundialmente. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 80 Para completar e enriquecer seu estudo sobre oratória forense assista à sustentação oral feita por Luis Roberto Barosso em 05/05/2011, à época advogado, na defesa pela união homoafetiva. Observe a impecável oratória de Barroso e os argumentos utilizados. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DDpn9H3h3lQ. DICAS 4 RETÓRICA A palavra retórica tem sua origem no latim rhetorica, termo que remete ao grego rhetoriké (arte da retórica), que significa a arte de falar bem, de se comunicar de forma clara e transmitir ideias com convicção. A retórica, junto à oratória, permite ao orador a boa comunicação de forma a persuadir. É um importante instrumento da argumentação que pode ser aprendida e praticada. FIGURA 6 – A RETÓRICA É UM CAMPO DE ESTUDO QUE VEM DESDE A ANTIGUIDADE FONTE: <https://escolaeducacao.com.br/retorica/>. Acesso em: 26 abr. 2021. A sua origem lendária remonta a Sicília no século V a.C. A retórica antiga nasceu em 465 a.C., na Sicília Grega, sendo sua origem jurídica quando Córax, discípulo do filósofo Empédocles, e Tísias, publicaram a obra Arte Retórica, com o objetivo de instrumentalizar os cidadãos envolvidos em disputas judiciais à habilidade de convencer. Na antiga Grécia não existia a figura do advogado e os litigantes apresentavam suas razões, redigidas por logógrafos (espécies de escrivães públicos que conheciam as leis e utilizavam os ensinamentos de Córax, que se apresentavam como argumentos imbatíveis, capazes de convencer qualquer pessoa. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 81 Nos tribunais gregos, os processos eram essencialmente orais e para tanto, o discurso retórico era essencial. A retórica era uma habilidade ensinada pelos sofistas que dava a habilidade de confrontar argumentos contrários e não a sustentação de uma verdade. Córax, Górgias e Protágoras eram sofistas conhecidos para os quais a retórica era tida como a arte do discurso persuasivo, a eles interessando ensinar aos seus seguidores a arte de transformar um discurso forte em um discurso fraco, assim como um discurso fraco em um discurso forte. Os sofistas eram uma espécie de professores e pensadores viajantes da Grécia Antiga que realizavam discursos públicos para atrair estudantes, de quem cobravam para lhes ensinar a arte da retórica. QUEM ERAM OS SOFISTAS? “Os sofistas correspondem aos filósofos que pertenceram à “Escola Sofística” (IV e V a.C.). Composta por um grupo de sábios e eruditos itinerantes, eles dominavam técnicas de retórica e discurso, e estavam interessados em divulgar seus conhecimentos em troca do pagamento de taxa pelos estudantes ou aprendizes. Os sofistas rompem com a tradição pré-socrática, ao criticar os costumes e tradições da sociedade ateniense da época. Note que a palavra “sofista”, de origem grega, “sophistes”, corresponde a um termo derivado de “sophia”, ou seja, sabedoria. Dessa maneira, os jovens bem-nascidos buscavam os sofistas interessados em adquirir conhecimentos e especialmente o “aretê”, conceito grego que denota nobreza, excelência e virtude e, no caso dos sofistas a união dos conhecimentos gerais indispensáveis (mais precisamente nas áreas da oratória, retórica, ciência, música e filosofia), uma vez que na Grécia Antiga, a função política, muito destacada, dependia do bom uso da palavra”. FONTE: <https://www.todamateria.com.br/sofistas/>. Acesso em: 26 abr. 2021. INTERESSA NTE É nesse cenário que surge Protágoras (481 a.C.- 411 a.C.), quando então é feita a perfeita relação entre a sofística e a retórica, passando a ser a retórica conhecida como a arte de convencer a qualquer custo, independentemente de ser o argumento verdadeiro ou justo. Para Protágoras, todo argumento pode ser contraposto a outro e qualquer tema pode ser sustentado ou refutado. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 82 FIGURA 7 – IMPORTANTES SOFISTAS E A DIFERENÇA ENTRE SOFISTAS E FILÓSOFOS FONTE: <https://cursoenemgratuito.com.br/sofistas/>. Acesso em: 26 abr. 2021. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 83 A cultura grega era essencialmente oral e isso tornava a retórica essencial para o cidadão que precisava falar bem para convencer e, assim, exercer sua cidadania plenamente. A própria literatura grega tinha uma origem oral e a poesia dramática era feita para ser declamada ou cantada. Da política à literatura é impossível imaginarmos a antiga cultura grega sem a beleza cênica. DICAS Conheça as obras literárias Antígona e Édipo Rei, de Sófocles, dramaturgo grego que teria vivido no século V a.C. Leia as referidas obras em: http://portaleinstein.com.br/uploads/7910sofoclestrilogiatebana postadoem27.fev.pdf. Entretanto, os filósofos desde Sócrates vão se opor aos sofistas por entender que a retórica não era parte da filosofia na busca da verdade. Segundo ele, “a arte oratória que não oferece a verdade ao que não a conhece e não tem feito senão caçar opiniões, será uma arte ridícula a meu ver e até desprovida de arte” (PLATÃO, 2004, p. 68). Da mesma maneira, pensadorescomo Aristóteles passaram então a criticar sistematicamente os sofistas e a partir daí o termo adquire um sentido pejorativo, entendido pelo vocabulário filosófico o mesmo que um sofisma que é um falso argumento ou intencionalmente falacioso. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 84 FIG U R A 8 – A O P O SIÇ Ã O E N T R E O S SO FISTA S E O S FILÓ SO FO S FO N T E : < h ttp s://p re zi.c o m /xq e g p 5 w b 8 azs/so fistas/?fram e = 2 e e 0 3 d 6 b c 4 73 8 6 2 0 0 a18 1c 3 6 d 4 9 2 6 d 8 2 c 3 c b 4 8 5 b > . A c e sso e m : 2 6 ab r. 2 0 2 1. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 85 No campo da retórica, Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) foi além de seu mestre Platão. Indo além da crítica buscou sistematizar o estudo sobre a retórica. Segundo o filósofo, a retórica é o estudo lógico da argumentação, tendo sido definida como “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir” afirmando, ainda, que persuadimos pelo discurso “quando mostramos a verdade ou o que parece verdade, a partir do que é persuasivo em cada caso particular” (ARISTÓTELES, 2017, p. 86). Nos primeiros séculos cristãos na Idade Média, a retórica permanece valorizada, mas aplicada nas declamações cerimoniais e estudos escolares com a recuperação de exercícios retóricos gregos antigos chamados de Progymnasmata (exercícios preliminares) dando-se ênfase aos discursos morais. Esse período é conhecido como a “segunda sofística”, uma vez que a retórica era utilizada para confirmar os valores religiosos e morais da sociedade da época. Porém, a retórica continuava a ser criticada por ser vazia de significado, mas era um bom instrumento para a conversão e justificativa do cristianismo. É no século XIX que a retórica vai perdendo sua influência e vai reduzindo seu objetivo pragmático, ou seja, a utilidade do discurso na prática e vai ganhando novos contornos. O QUE É A PRAGMÁTICA? “Trata-se do ramo da linguística que analisa o uso concreto da linguagem pelos falantes da língua em seus variados contextos. A Pragmática extrapola a significação dada às palavras pela semântica e pela sintaxe, observando o contexto extralinguístico em que estão inscritas; ou seja, ocupa-se da observação dos atos de fala e suas implicações culturais e sociais. Segundo a Pragmática, o sentido de tudo está na utilidade, no efeito prático que os atos de fala podem gerar. Para ela, o que realmente importa é a comunicação e o funcionamento da linguagem entre os usuários, concentrando-se nos processos de inferência pelos quais compreendemos o que está implícito”. FONTE: <https://www.portugues.com.br/redacao/pragmatica.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. NOTA É no século XX que a retórica é retomada por Chaïm Perelman, na obra escrita em 1958, juntamente com Lucie Olbrechts-Tyteca, “Traité de l’argumentation – la nouvelle rhetorique” (a teoria da argumentação). Na obra, Perelman deixa claro que seu estudo não se tratava da mesma concepção da retórica tradicional, retomando apenas o conceito de “auditório”, elemento essencial, uma vez que a argumentação visa à adesão dos que deseja influenciar. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 86 Para Perelman, argumentar é: [...] fornecer argumentos, ou seja, razões a favor ou contra uma determinada tese. Uma teoria da argumentação, na sua concepção moderna, vem assim retomar e ao mesmo tempo renovar a retórica dos Gregos e dos Romanos, concebida como a arte de bem falar, ou seja, a arte de falar de modo a persuadir e a convencer, e retoma a dialética e a tópica, artes do diálogo e da controvérsia (PERELMAN, 2014, p. 234). Para Perelman (2014), a argumentação é sempre situada em um determinado contexto; dirige-se à um auditório determinado; o orador por seu discurso visa persuadir o auditório; os auditores devem estar dispostos a ouvi- lo – a ser persuadido –; querer persuadir implica em renunciar a “dar ordens” ao auditório, mas sim procurar a adesão intelectual. A adesão nada tem a ver com verdade ou falsidade das teses que o orador defende, mas sim com o poder argumentativo de poder enfrentar uma tese contrária à sua. FIGURA 9 – A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO EM PERELMAN FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/3296894/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Na Teoria de Perelman, a argumentação é um processo dialético que pressupõe duas figuras centrais: orador e auditório. A aceitação do auditório se dá pelo argumento que deve ser razoável, justo ou socialmente útil e não por ser uma tese verdadeira e sua aceitação é sempre provisória. TÓPICO 1 — ORATÓRIA: CONCEITO E CARACTERÍSTICAS 87 QUADRO 2 – SÍNTESE: A NOVA RETÓRICA DE PERELMAN a) Semelhante a uma semente em estado de latência, a Retórica aguardou por muitos séculos o ambiente propício para seu ressurgimento. Foram necessários desenvolvimentos históricos recentes, como a democracia representativa e a emergência dos meios tecnológicos de comunicação de massa, para que a importância de seu instrumental teórico voltasse a interessar o meio acadêmico. b) Somente em meados do século XX, devido à importância dada à Filosofia da Linguagem, os estudiosos voltaram a considerar a Retórica como objeto digno de estudo. Em 1958, Chaïm Perelman, professor da Universidade Livre de Bruxelas, publica um livro que vai representar o renascimento contemporâneo da Retórica: Traitè de l’argumentation. La nouvelle Rhétorique (PERELMAN, 1999). Seu livro abre dizendo-se em ruptura com a concepção de razão e raciocínio saídos do pensamento cartesiano. Era uma premonição do que viria a ocorrer nas décadas seguintes, com relação à crítica pós-moderna da razão. c) O campo de eleição da Retórica é o diferendo. Ao contrário do espírito cartesiano, que visa ao critério universal, fora do qual tudo é erro. Perelman reclama a tradição antiga, que remonta ao Aristóteles, da Retórica, como também da Dialética, como artes de razoar, a partir de opiniões geralmente aceitas, detidas por um conjunto de indivíduos que a Retórica constitui em auditório. d) O Auditório – enquanto que para a lógica formal as provas utilizadas são impessoais, devendo ser aceitas universalmente, para o discurso retórico é vital a relação entre o orador e o auditório a que se dirige. Segundo Perelman, o auditório é “todo o conjunto daqueles que o orador deseja influenciar mediante seu discurso”. A influência pela argumentação não é mais do que fazer uso público da razão. A noção de auditório passa pela de reconhecimento de outro, o que implica uma renúncia à violência. As técnicas retóricas visam à persuasão que, por sua vez, é sempre precária, porque está ligada à doxa (crença). Por isso, a ação discursiva visa obter um resultado no âmbito de uma troca relacional. E o estado de crença, como Charles Peirce também registrou, se faz necessário para que possamos nos relacionar uns com os outros e com o mundo em nossa volta. e) Neste princípio de século XXI, a Retórica parece ter retornado para ficar entre nós, definitivamente, embora as razões para isso não estejam propriamente nela mesma. Como a democracia, os direitos humanos, a liberdade individual e de associação juntaram-se aos meios tecnológicos de comunicação para formar uma sociedade em que a vontade e a deliberação da maioria tornaram-se um credo universal, o espaço de atuação no palco da história volta a ser ocupado pela Retórica. Embora não seja mais aquela Retórica clássica organizada por Aristóteles e outros pensadores, tais como Cícero e Quintiliano, a Retórica contemporânea dialoga com as diversas filosofias da linguagem, com a semiótica e as teorias da comunicação, retomando seu lugar de direito entre os saberes da academia.Assim, também, a Retórica empresta seus instrumentos e mecanismos para a publicidade, para o jornalismo e seus sucedâneos, com vistas a melhorar o diálogo entre as pessoas, entre emissores e receptores, cada um desses representando seus papeis sociais em busca de interesses próprios e coletivos. FONTE: <https://revistacontemporartes.com.br/2019/09/20/elementos-da-arte-retorica/>. Acesso em: 26 abr. 2021. UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 88 Perelman teve grande relevância para o pensamento jurídico. Para Oliveira (2020), Perelman, na obra Sobre a Justiça, publicada em 1945, analisa o problema da justiça, com o objetivo de conceituá-la, e conclui que a justiça é um dos conceitos mais difíceis de serem conceituados e com um sentido emotivo muito forte. É esse sentido emotivo que dificultaria para o autor o conceito de justiça. Portanto, para Perelman seria necessário extirpar todo o subjetivismo e irracionalismo vinculado à noção de justiça. O filósofo belga parte de seis concepções diferentes de justiça para, então, tentar encontrar algo em comum entre elas, com a intenção de construir uma fórmula geral. Essas seis concepções são: 1) a cada qual a mesma coisa; 2) a cada qual segundo seus méritos; 3) a cada qual segundo suas obras; 4) a cada qual segundo suas necessidades; 5) a cada qual segundo sua posição; 6) a cada qual segundo o que a lei lhe atribui. Para Perelman, segundo Oliveira (2020, p. 64), a ideia de justiça caminha junto com a de igualdade e que, na verdade, em todas as referidas concepções está implícito o pensamento de se tratar de uma forma idêntica seres idênticos, e acaba formulando a noção de justiça da seguinte maneira: a justiça é um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma. Um dos grandes dilemas para os pensadores do direito é exatamente o conceito de justiça porque uma noção formal de justiça não permite que, em um caso concreto, seja possível verificar se foi feita justiça ou não, uma vez que sempre devem ser estabelecidos critérios que devem ser demonstrados. A fórmula de justiça de Perelman se aplicada à história da humanidade demonstra a fragilidade, pois seres humanos diferentes não poderiam receber o mesmo tratamento. E essa exatamente foi e é a causa de muitas injustiças como é o caso das mulheres, negros, indígenas e demais grupos, que por sua diferença foram sistematicamente perseguidos e ultrajados. 89 Neste tópico, você aprendeu que: • A oratória é uma habilidade distinta da retórica, definida como arte ou habilidade de falar em público de forma eloquente e convincente, enquanto a retórica tem como objetivo a comunicação de forma clara e objetiva. • Há fatores relevantes e essenciais a serem utilizados e dominados por um bom orador, quais sejam: a) dicção – que é a forma de articulação e pronúncia das palavras; b) gesticulação – a ênfase da postura corporal durante a comunicação; e c) intensidade de voz – a “dose” dada à entonação vocal a fim de conferir maior atenção à mensagem emitida pelo orador. • A oratória jurídica é um instrumento essencial para o exercício da atividade profissional na área jurídica cuja habilidade influi diretamente na aplicação do direito no caso concreto. • Ao longo da história existiram importantes oradores cujos discursos foram memoráveis, dentre os quais destacou-se o jurista Evandro Lins e Silva, considerado o maior dos oradores do direito penal brasileiro por sua oratória ímpar e defensor incansável da justiça. • A retórica, enquanto arte e habilidade adquirida pelo orador, é uma forma de comunicação clara e eloquente que tem como finalidade persuadir, aprendendo também a origem e construção histórica da retórica desde a antiguidade grega, seu legado e redefinição pela linguística moderna e contemporânea. RESUMO DO TÓPICO 1 90 1 Embora exista uma relação entre a oratória e a retórica são distintas as habilidades utilizadas com finalidade persuasiva. A oratória é definida como falar bem em público, enquanto a retórica é o uso adequado das palavras de forma a produzir o convencimento. Acerca da diferença entre oratória e retórica, considere as seguintes afirmações: I- A oratória é um tipo específico de comunicação feita diante de um público. II- O uso da retórica não exige obrigatoriamente a existência de um público, uma vez que pode ser utilizada em textos escritos. III- Tanto a retórica como a oratória exigem obrigatoriamente a presença de um orador diante de um público. IV- Oratória e retórica são instrumentos de comunicação. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As afirmações I, II e III estão corretas. b) ( ) As afirmações I, II e IV estão corretas. c) ( ) As afirmações II, III e IV estão corretas. d) ( ) As afirmações II e III estão corretas. 2 A oratória forense é utilizada no cotidiano do exercício da atividade do profissional do direito. O advogado é um profissional cuja atividade é regulada pelo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n° 8.906/94), o qual estabelece a manifestação oral para determinados procedimentos. Acerca das situações em que o advogado deve se manifestar oralmente, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) É permitido ao advogado usar a palavra, pela ordem, em qualquer juízo ou tribunal, mediante intervenção sumária, para esclarecer equívocos ou dúvidas em relação a fatos, documentos ou afirmações que possam interferir no julgamento. b) ( ) Não é permitido o uso da palavra para reclamar verbalmente ou por escrito perante qualquer tribunal, juízo ou autoridade contra inobservância de preceito de lei, por ser esta uma atividade privativa do juiz. c) ( ) Obrigatoriamente, quando o advogado faz uso da palavra, deve manter-se em pé. d) ( ) Nos Tribunais superiores, o advogado não poderá fazer uso da palavra. 3 Embora sendo instrumentos de comunicação complementares, oratória e retórica distinguem-se, sendo que a oratória exige obrigatoriamente a presença de um público, enquanto que a retórica pode ser utilizada em textos escritos. Avalie as asserções a seguir sobre os textos retóricos: AUTOATIVIDADE 91 I- Há uma profunda diferença entre um texto retórico e um informativo, uma vez que nos retóricos usam-se argumentos, comparações ou qualquer possibilidade capaz de persuadir o leitor. PORQUE II- Nos textos argumentativos, o objetivo é o convencimento do leitor. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As asserções I e II são falsas. b) ( ) As asserções I e II são verdadeiras, sendo a II a justificativa da I. c) ( ) A asserção I é verdadeira e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é falsa e a II é uma proposição verdadeira. 4 O Tribunal do Júri ou Júri Popular é um instituto do direito processual penal que tem como competência julgar os crimes de homicídio, induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e aborto – provocado pela gestante, com seu consentimento ou provado por terceiro. É no Tribunal do Júri que se torna evidente a capacidade de oratória de um profissional do direito. Quais procedimentos exigem o uso da retórica e da oratória no Tribunal do Júri? 5 Embora muitas são as atividades profissionais que exigem o domínio da retórica e oratória, particularmente, na área jurídica, tal conhecimento é essencial. Apesar de os termos retórica e oratória serem relacionados e complementares, possuem conceitos distintos. Diferencie retórica de oratória. 92 93 UNIDADE 2 TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 1 INTRODUÇÃO Neste tópico, centramos nossos estudos na Argumentação, que é importante recurso retórico de linguagem elaborado desde um conjunto de proposiçõesorganizadas, fundamentadas e lógicas que tem por finalidade persuadir o interlocutor, leitor ou ouvinte. Trata-se de importante instrumento para a atuação de profissionais de qualquer área, com destaque na jurídica, pois possibilita o domínio de técnicas tanto para propor (argumentar) como para rebater ou refutar proposições argumentativas (contra-argumentação). Serão destacados os principais tipos de argumentos que comumente são utilizados de acordo com o conteúdo da mensagem e sua finalidade, uma vez que nem todos os argumentos possuem a mesma força de persuasão e, por essa razão, para ser cuidadosamente elaborado a fim de ser claro e bem construído. Ao final, você compreenderá as diferentes técnicas argumentativas para lhe auxiliar na proposição e desenvolvimento de afirmações, conceitos e ideias claras, ordenadas, coerentes e com forte poder persuasivo. 2 ARGUMENTAÇÃO Argumento é um termo que deriva do latim argumentum, que significa um raciocínio que se utiliza para demonstrar ou comprovar uma proposição ou ainda para convencer. Portanto, argumentar é expressar-se de forma oral ou escrita utilizando um raciocínio de forma a justificar de maneira razoável algo, tendo como finalidade a persuasão ou a demonstrar de um conteúdo, de uma ideia ou conceito, com sentido de verdade. Portanto, para convencer ou persuadir os argumentos utilizados devem ser coerentes, consistentes e sem contradições. Apenas dessa maneira conseguirá atingir seus objetivos, pois caso contrário, poderá ser contestado ou rejeitado pelo receptor ou auditório. Em síntese, podemos definir a argumentação como um recurso que tem como propósito convencer alguém, para que este tenha a opinião ou o comportamento modificado. 94 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA FIGURA 10 – CONCEITO DE ARGUMENTAÇÃO FONTE: <https://www.dicio.com.br/argumentacao/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Argumentar, como você já percebeu, tem claros objetivos: convencer ou persuadir. Mas qual seria a diferença dessas duas ações já que ambas levam alguém a “entrar em acordo” sobre algo comum? Convencer é o primeiro passo que tem por objetivo esclarecer, fazer compreender, conscientizar. Já persuadir é ir mais além e leva a um resultado por ter como objetivo um “levar a fazer”. Segundo Henriques (2013, p. 37), há clara diferença entre convencer e persuadir. Observe o quadro a seguir: QUADRO 3 – DIFERENÇA ENTRE CONVERCER E PERSUADIR FONTE: Henriques (2013, p. 37) Convencer Persuadir • foge à noção de tempo • é temporal • refere-se ao auditório universal • reporta-se ao auditório particular • busca o racional • busca o não racional • usa o raciocínio lógico • usa o raciocínio plausível • leva à certeza • leva a possibilidades • busca o entendimento • busca a vontade Persuasão depende essencialmente da argumentação utilizada pelo orador e necessita da existência de três elementos: o orador – emissor ou falante, que é aquele que produz o discurso; o auditório – espectador, destinatário, receptor ou ouvinte, que é a pessoa ou o grupo de pessoas às quais se dirige o discurso e sobre as quais o seu poder persuasivo deve incidir; e, o assunto – aquilo de que trata o discurso. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 95 A argumentação, portanto, deve ser elaborada de acordo com o auditório e deve possuir elementos ou componentes básicos que, segundo Henriques (2013), são os seguintes: a) Coerência: a argumentação deve ser coerente, isto é, deve obedecer a uma sequência lógica de forma a permitir a compreensão da conclusão pretendida. Pode-se dizer que a coerência ocorre quando há a formação de uma “cadeia lógica” no argumento utilizado a fim de ter sentido para o auditório, leitor ou ouvinte. • Tipos de coerência: 1- Coerência Descritiva: é quando se promove a pertinência da descrição com a cena, ambiente e tempo no qual estão situados os personagens e acontecimentos descritos. 2- Coerência Textual: é o elemento que permite o entendimento do argumento transmitido no texto e tem como princípios: a não contradição – as ideias utilizadas não podem se contradizer a fim de não interromper a lógica do texto – e relevância – que é a percepção do interlocutor em relação às ideias expostas de maneira sequencial de forma a conferir significado ao conjunto do argumento. • Fatores de coerência: 1- Conhecimento: o conjunto de saberes que integram o patrimônio intelectual são arquivados na memória, o que permite elaborar um argumento coerente explorando o acumulado. Ex.: “Culpa, Dolo e Crime. Tudo pronto para a celebração religiosa”. A frase está incoerente porque “culpa, dolo crime” são conceitos jurídicos e não religiosos. A frase coerente seria: Culpa, Dolo e Crime. São conceitos jurídicos penais presentes no processo penal. 2- Inferência: é a operação intelectual através da qual é possível se chegar a uma conclusão, uma dedução por meio de um raciocínio. Ou seja, aquilo que se deduz a partir de uma outra coisa. QUADRO 4 – O QUE É INFERÊNCIA FONTE: <http://www.filorbis.pt/filosofia/Inferencia.htm>. Acesso em: 26 abr. 2021. Inferência - Operação mental pela qual extraímos uma proposição nova (conclusão) de uma ou mais proposições já conhecidas (premissas). - As inferências ou são verdadeiras ou falsas. - A conclusão só será válida se estiver contida e/ou implícita na premissa Raciocínio por analogia, indução e dedução - As que a conclusão antecede uma única premissa. - Obtém-se por um processo de conversão e de oposição das proposições. Inferências Imediatas - As que a conclusão antecedem pelo menos duas premissas. Inferências Mediatas 96 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA • Fatores de Contextualização: são fatores que inserem o interlocutor na mensagem fazendo com que haja mais clareza. Por exemplo, utilizar acontecimentos largamente explorados pela mídia. Daí a importância da valorização de uma comunicação à altura intelectual do ouvinte. DIFERENÇA ENTRE COESÃO E COERÊNCIA “Coesão e coerência são coisas diferentes, de modo que um texto coeso pode ser incoerente. Ambas têm em comum o fato de estarem relacionadas com as regras essenciais para uma boa produção textual. A coesão textual tem como foco a articulação interna, ou seja, as questões gramaticais. Já a coerência textual trata da articulação externa e mais profunda da mensagem”. FONTE: <https://www.todamateria.com.br/coesao-e-coerencia/>. Acesso em: 26 abr. 2021. NOTA b) Carisma: a argumentação pode ser compreendida como uma virtude necessária para produzir alto grau de convencimento. Para os antigos gregos, o termo kharisma era considerado um dom de origem divina. O uso adequado das emoções aliada à postura, aliada à ética, permite o desenvolvimento da habilidade necessária para influenciar a vontade dos ouvintes. Diferença entre Carisma e Manipulação: como muitos pensadores ao longo da história já discutiram, a relação humana tem presente uma relação de poder, entretanto, manipular é uma relação de poder nefasta e egoísta que não tem um objetivo maior a não ser a satisfação da satisfação de dominar. Embora a manipulação seja um instrumento eficaz para promover o convencimento é um jogo de poder no qual aquele que manipula não está preocupado com os resultados. Ao contrário da manipulação, a persuasão carismática mostra com clareza as razões de ser seu argumento adequado, sem dissimulações e sim com segurança e transparência. FIGURA 11 – CARISMA É UM ATRIBUTO QUE FACILITA ESTABELECER VÍNCULOS ENTRE OS INDIVÍDUOS E ENGAJAR PESSOAS FONTE: <https://portalsocial.v2v.net/pt-BR/aggregators/45cede1b-b29c-46a9-a1e5-de742675370a>. Acesso em: 26 abr. 2021. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 97 c) Dialética: no processo persuasivo não há como separar a dialéticada retórica. A dialética é um dos meios utilizados para se obter a adesão do auditório, isso porque é uma espécie de movimento argumentativo que possibilita a interação com o auditório. A palavra dialética advém do grego dialetiké que é a justaposição dos termos dia (interação/troca) e letiké (razão/conceito). Portanto, a dialética, no sentido argumentativo é o embate e ideias diferentes do qual pode surgir uma nova ideia. FIGURA 12 – PROCESSO DIALÉTICO FONTE: <https://cursoenemgratuito.com.br/metodo-na-filosofia/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Em síntese, argumentar tem como objetivo o convencimento ou persuasão e para tanto é necessário o desenvolvimento de um conjunto de premissas seguidas de uma conclusão, tornando, assim, o argumento válido. 3 TIPOS DE ARGUMENTOS A estratégia argumentativa é estabelecida com a finalidade de estabelecer o “acordo” entre orador e auditório, que são partícipes de uma interação. Lembre- se de que o objetivo da argumentação é o de criar inicialmente uma recepção para então introduzir aceitação para introduzir uma opinião ou ideia. Esse processo se dá em duas etapas: na primeira, busca-se construir uma “base real e comum” entre os participantes da interação e, na segunda, a criação de vínculos para o estabelecimento do acordo. Na primeira fase, para estabelecer uma base comum podem ser utilizados como argumentos: • Argumento de Autoridade (ab auctoritate): é um tipo de argumento que mais serve para estabelecer uma hierarquia, uma subordinação, e não propriamente uma confiança. É dar “voz a outro” que dificilmente será questionado, não quanto ao argumento, mas quanto prestígio. • Ideia inicial; • Pergunta. • Nova ideia;• Resposta. • Junção das ideias. • Conclusão. Antítese Tese Síntese 98 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA A natureza do prestígio subdivide-se em: 1- Competência: os argumentos utilizados pressupõem competência técnica, científica, moral ou profissional que legitimam a opinião. 2- Experiência: pressupõem argumentos utilizados a partir de experiências vivenciadas por quem está argumentando. 3- Testemunhos: são as experiências vivenciadas por aquele que não é o orador que tão somente testemunha o argumento. • Pressupostos Comuns: são opiniões ou ideias comumente aceitas que são consideradas espécie de ‘lugar comum” em uma determinada comunidade. São utilizadas não apenas opiniões, mas também valores. QUADRO 5 – EXEMPLIFICATIVO DA PRIMEIRA FASE DO GATILHO ARGUMENTATIVO FONTE: <http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1112711_2013_cap_5.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2021. Na segunda fase do gatilho argumentativo é o momento de ser estabelecido o vínculo para complementar a opinião ou ideia proposta. Neste momento podem ser utilizados dois tipos argumentativos: dedutivo e analógico. 1- Dedutivo: pretende construir uma cadeia contínua e lógica entre elementos fortemente relacionados. 2- Analógico: implica em estabelecer uma relação entre o argumentado e outra opinião ou ideia aceita pelo auditório. Pressupõe o estabelecimento de comparação com elementos comuns. A comparação é um recurso bastante utilizado para estabelecer os vínculos entre o argumentado e o que é aceitável, podendo ser utilizados: exemplos – modelo prático – ou metáfora –uma relação de semelhança. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 99 FI G U R A 1 3 – T IP O S D E A R G U M E N T O FO N T E : < h tt p s: // fil o so fia n ae sc o la .c o m /l o g ic a/ tip o s- d e -a rg u m e n to s/ > . A c e ss o e m : 2 6 a b r. 2 0 2 1. 100 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Para melhor compreender e fixar os distintos tipos de argumentos, observe o breve texto-síntese a seguir. QUADRO 6 – DISTINTOS TIPOS DE ARGUMENTOS FONTE: <https://querobolsa.com.br/enem/redacao/tipos-de-argumentos>. Acesso em: 26 abr. 2021. Argumento de autoridades O argumento de autoridade é aquele que se baseia na citação de uma fonte confiável, como um especialista no assunto que está sendo debatido. Em um debate sobre educação, por exemplo, Paulo Freire, como educador e pedagogo reconhecido internacionalmente, poderia ser citado como meio de fundamentar uma ideia apresentada na fala. A citação da fonte pode ser feita tanto de forma direta – quando há a transcrição da citação, utilizando, em geral, as aspas – quanto de forma indireta, quando se reescreve aquilo que foi dito pela autoridade escolhida. Argumento por evidência (ou por comprovação) Esse tipo de argumento se baseia em uma evidência que possa levar o leitor a admitir e aceitar uma tese. Essa evidência pode ser, por exemplo, formada por dados estatísticos ou por pesquisas de diversos tipos, desde que a fonte esteja explícita. Ainda é possível utilizar esse tipo de argumento a partir de fatos notórios, ou seja, que são de domínio público. Argumento por comparação (ou por analogia) A argumentação por comparação ou analogia é aquela em que se estabelece relação de semelhança ou diferença entre a tese defendida e algum tipo de dado a fim de comprovar o ponto de vista defendido. Nesse caso, é possível construir analogias com obras de ficção, por exemplo, tais como romances e séries de televisão. Argumento por causa e consequência Esse tipo de recurso argumentativo busca comprovar a tese defendida a partir da exploração das relações de causa e consequência associadas ao tema debatido. Ao explicar os porquês e as consequências da temática em questão, pode-se confirmaras ideias expressas pela tese. Argumento por ilustração (ou exemplificação) Quando se tem um tema, ou mesmo uma tese, de caráter muito teórico, uma das maneiras mais interessantes de fundamentar o ponto de vista adotado é por meio da ilustração ou exemplificação. Esse recurso argumentativo se constrói a partir da elaboração de uma breve narrativa, que pode ser real ou fictícia, com o intuito de tornar mais concreto aquilo que está sendo defendido pelo texto. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 101 4 FALÁCIAS ARGUMENTATIVAS O termo “falácia” tem sua origem no verbo latino fallare (enganar), sendo, portanto, relacionado com engano, falha, erro ou equívoco. Para Freitas (2012, p. 138), “Falácias são erros lógicos, conscientes ou inconscientes, enganadores e/ou autoenganadores, que servem para ludibriar e formar pré-compreensões equivocadas, conducentes a preconceitos ilegítimos, estereótipos e más decisões”. Falácia argumentativa ocorre quando o raciocínio desenvolvido aparenta ser válido e verdadeiro, mas em realidade é falso e incorreto em razão dos vícios e incoerências de que possui, e, por essa razão. Isso faz com que o interlocutor possa ter a ilusão de estar diante de um raciocínio argumentativo válido, verdadeiro e coerente, quando na realidade trata-se de mera impressão ou aparência. Nesse sentido, falácia passa a ser sinônimo de sofisma, que é um argumento que parte de premissas verdadeiras ou assim consideradas, mas que chega a uma conclusão inaceitável ou absurda. Ou seja, nos sofismas, embora as premissas sendo verdadeiras a conclusão é falsa. Exemplo de sofisma: “Conviver com criminoso é presunção de criminalidade. Pedro convive com um criminoso. Logo; presume-se que Pedro também seja criminoso”. Perceba o erro, vício, contido no raciocínio acima. A premissa é aparentemente verdadeira, mas a conclusão é equivocada, um resultado distorcido que pode levar o ouvinte a uma adesão equivocada ao argumento utilizado. São várias as falácias que são encontradas ou utilizadas. Vejamos algumas delas: • Falácias da ignorância do assunto (ignoratio elenchi): é a falácia também chamada de razões irrelevantes. Trata-se em discutirou inserir no argumento o que não faz parte da discussão ou temática em pauta de forma a apelar para a ignorância do interlocutor que não pode ou não tem conhecimento para refutar a asserção reconhecidamente falsa. No direito considera-se argumento falacioso por ignorância, por exemplo, se um advogado de defesa expõe no Tribunal do Júri sobre as mazelas ou malefícios das prisões, para comover os jurados e impedir uma condenação do réu, deixando de lado a materialidade do crime e a culpabilidade do agente, e não as condições em que eventualmente poderá cumpri a pena cominada. 102 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA FIGURA 14 – APELO À IGNORÂNCIA FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/10183391/>. Acesso em: 26 abr. 2021. • Falácia da Falsa Analogia: trata-se de um tipo de falácia argumentativa que é o equívoco de semelhança ao se tomar uma coisa por outra. É realizada através da comparação de duas premissas que supostamente possuem características comuns, produzindo um resultado equivocado. Ou seja, a conclusão não se sustenta porque as premissas utilizadas não são análogas, não possuem propriedade ou características semelhantes, não servindo, portanto, como base de uma conclusão válida e verdadeira. Exemplo: “Estamos diante de uma falsa analogia ao afirmar que “o Estado deve ser gerido como uma empresa, pois tanto o Estado como a empresa necessitam de gestores”. Trata-se de uma falácia, visto que, embora ambos precisem de gestores, existem diferenças relevantes entre estes, tais como a cobrança de impostos e a obrigatoriedade de oferecer serviços educacionais e de saúde por parte do Estado, que não são exigências impostas às empresas privadas. Ou ainda: “Os empregados são como pregos. Temos de martelar a cabeça para desempenharem a sua função. O mesmo deve acontecer com os empregados”. FONTE: <https://griczynskir.jusbrasil.com.br/artigos/697923047/exemplos-das-falacias-mais- comuns>. Acesso em: 26 abr. 2021. No segundo exemplo, observe que se trata de uma falácia, uma vez que “empregados” e “pregos” possuem diferenças em suas características e funções. • Falácia da Petição de Princípio (petitio principii): é também chamada de falácia por falta de razões. Também denominada argumentum in circulo, é aquela falácia com a qual se dá como provado o que deve ser provado (id quod probandum est). A falácia é utilizada com a pretensão de argumentar utilizando um argumento “sem argumento” aditando ‘razões’ cujo significado é simplesmente equivalente ao da pretensão original. Seria apresentar como demonstrado o que exatamente lhe cabe demonstrar. Exemplo: o réu suicidou-se porque se envenenou. Observe que não há apresentação de argumentos, mas limita-se repetir o que deve ser justificado. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 103 • Falácia genética: é aquela que consiste em extrair conclusões equivocadas ou indevidas sobre algo a partir da qualidade ou propriedade de sua fonte de origem. QUADRO 7 – FALÁCIA GENÉTICA FONTE: <https://filosofianaescola.com/falacias/falacia-genetica/>. Acesso em: 26 abr. 2021. A falácia genética ocorre quando uma ideia é rejeitada com base em sua origem ou história. Imagine você contando a um amigo que pensou em uma nova explicação para a origem do universo enquanto dormia. E ele respondendo: Se uma ideia teve origem num sonho, certamente ela está errada! Seu amigo acaba de cometer a falácia genética ao rejeitar sua ideia apenas com base no que a originou. Outro exemplo dessa falácia seria o seguinte. Você descobre que o Fusca da Volkswagen foi desenvolvido com o apoio de Hitler e com base nisso conclui que esse não era um bom carro. Novamente, está chegando a uma conclusão falaciosa por levar em consideração apenas a origem do carro. Por que é uma falácia? O que torna uma teoria verdadeira são as razões que existem a seu favor. As causas que levaram ao seu surgimento não contribuem em nada para mostrar se é verdadeira ou falsa. • Falácia ad populum: consiste em apelar a sentimentos populares para substituir ou suprir a falta de consistência na argumentação. Essa falácia desperta uma espécie de “argumento” ou “mentalidade” de massa levando o indivíduo a concordar com a multidão, sob o risco de ser excluído e perder o sentimento de pertinência. FIGURA 15 – FALÁCIA AD POPULUM FONTE: <https://www.slideshare.net/j_sdias/persuadir-e-convencer-ethos-pathos-e-logos-corrigido>. Acesso em: 26 abr. 2021. 104 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA • Falácia ad miseridordiam ou apelo à piedade: tal modelo de falácia consiste em apelar a sentimentos de compaixão e/ou piedade para conquistar uma conclusão errada e insustentável. Observe a figura a seguir. O argumento do aluno ao afirmar que estudou 16 horas por dia pretende convencer que merece ser aprovado. FIGURA 16 – APELO À PIEDADE FONTE: <https://www.slideshare.net/jadsonmoura1/falcias-argumentativas>. Acesso em: 26 abr. 2021. • Como pode dizer que eu reprovo? Eu estava mais perto da positiva e, além disso, estudei 16 horas por dia. QUADRO 8 – TEXTO-SÍNTESE: FUJA DAS FALÁCIAS ARGUMENTATIVAS Todo texto argumentativo busca convencer. Para alcançar esse objetivo, os argumentos tornam-se imprescindíveis. Há várias estratégias argumentativas, as citações, exemplos, argumento, contra-argumento, entre outras. Todos os argumentos são válidos? Posso usar qualquer exemplo para embasar meu texto? Ao argumentar, buscam-se razões que embasem uma conclusão, por isso é preciso tomar cuidado com as falácias. Falácia é um substantivo, derivado de um adjetivo latino fallace, que significa enganador, ilusório. Todas as vezes em que um raciocínio errado ou mentiroso é colocado como verdadeiro ocorre a falácia. A imagem utilizada no texto é falaciosa. Por quê? Todos sabem que os coelhos não botam ovo, mas a imagem coloca esse argumento como verdadeiro. Entretanto, a lógica o invalida. Todo argumento falacioso pode encontrar razões psicológicas, íntimas, emocionais, mas nunca lógicas. Por isso, é preciso estar atento à construção textual, porque o texto argumentativo deve usar argumentos plausíveis, pautados na lógica. Então, cuidado com aqueles que parecem sustentar uma conclusão, mas na realidade não sustentam. A seguir, veja alguns exemplos de argumentos falaciosos: “Todo político é corrupto”. “A violência no Brasil é resultado dos programas de TV”. “Joana morreu depois de fazer radioterapia. Então quem tem câncer não deve fazer esse procedimento”. Os argumentos acima são falaciosos, visto que não são pautados na lógica, portanto, não podem sustentar uma conclusão. No primeiro exemplo, a afirmação não leva TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 105 FONTE: <https://www.portugues.com.br/redacao/fuja-falacia-no-texto-argumentativo.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. em consideração que possam existir políticos honestos. Já no segundo, afirma-se que a única culpada pela violência é a mídia e isso não é uma verdade absoluta, uma vez que a violência tem outras causas. No último exemplo, o fato de os eventos terem acontecido em sequência, não significa que um seja a causa do outro. Como visto acima, a falácia pode fragilizar sua argumentação, por isso não a use. Lembre-se de que os argumentos precisam ser contundentes. 5 FIGURAS DE LINGUAGEM As figuras de linguagem são importantes recursos linguísticos utilizados de maneira original e criativa para tornar a comunicação mais expressiva. As figuras de linguagem são formas de utilização não literal das palavras que, distanciando-se dos padrões gramaticais convencionais, dão à argumentação mais ênfase. Por sua importância merecem destaque particular. São inúmeras as figuras de linguagem.Algumas têm a finalidade de dar estilo e ornamentação ao discurso enquanto outras facilitam a persuasão ou mesmo servem para sensibilizar e emocionar o auditório. Antes de iniciarmos a tipificação das figuras de linguagem é importante conhecermos os conceitos de denotação e conotação para melhor compreendermos o uso das figuras de linguagem. Observe a figura a seguir. FIGURA 17 – CONOTAÇÃO FONTE: <https://conhecimentocientifico.r7.com/conotacao-gramatica/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Conotação é quando a palavra é utilizada em uma oração em sentido figurativo e a intenção da mensagem apenas é compreendida ao analisar ou conhecer o contexto em que é utilizada, tal qual a expressão “cabeças vão rolar” é utilizada na Figura 17. Portanto, conotação ocorre quando a palavra é utilizada em sentido figurado, indo além de seu sentido literal. 106 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA QUADRO 9 – FIGURAS DE PALAVRAS FONTE: <https://blog.maxieduca.com.br/figuras-linguagem-escrita/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Figuras Definição Exemplos Metáfora: Comparação (mental) sem uso de conectivos comparativos, com verbo de ligação explícito na frase. "Sua boca era um pássaro escarlate." (Castro Alves) Catacrese: Transferir a uma palavra o sentido próprio de outra, utilizando-se formas já incorporadas aos usos da língua Batata da perna, pé da mesa, cabeça de alho. Comparação ou Símile: Comparação entre dois elementos comuns, semelhantes. Normalmente se emprega uma conjunção comparativa: como, tal qual, assim como, que nem. "Como um anjo caído questão de esquecer..." (Legião Urbana) Sinestesia: Fusão de no mínimo dois dos cinco sentidos físicos. "De amargo e então salgado ficou doce," - Paladar (Legião Urbana) Antonomásia: Substituímos um nome proprio pela qualidade ou característica que o distingue. O Pai da Aviação (= Santos Dumont) Metonímia: Troca-se uma palavra por outra com a qual ela se relaciona. Gosto de ler Jorge Amado. (observe que o nome do autor está sendo usado no lugar de suas obras). Sinédoque: Troca que ocorre por relação de compreensão e que consiste no uso do todo pela parte, do plural pelo singular, do gênero pela espécie, ou vice-versa. O mundo é violento. (= os homens) Perífrase: Substituição de um nome por uma expressão que facilita a sua identificação. O país do futebol acredita no seu povo. (país do futebol = Brasil) Denotação é quando a palavra é utilizada de maneira próxima a seu sentido real, literal ou dicionarizado. Em geral, o sentido denotativo é utilizado quando o objetivo é a transmissão de uma mensagem cuja finalidade é persuadir, transmitir informações ou orientar sobre determinados assuntos como, por exemplo, memorandos, manual de instruções, reportagens. O sentido denotativo é utilizado para definir conceitos. Portanto, as figuras de linguagem compreendidas como estratégias do orador para alcançar determinado “efeito” nos ouvintes através do uso não literal das palavras aproximam-se do uso conotativo das palavras. São recursos linguísticos que tornam as mensagens mais expressivas e significativas. As figuras de linguagem podem ser classificadas em distintos tipos. Vejamos algumas dessas classificações. • Figuras de Palavras ou Semânticas: são as figuras de linguagem em que há o emprego das palavras em sentido figurado ou conotativo, indo além ou extrapolando o significado original das palavras dando a elas um sentido novo ou incomum. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 107 QUADRO 10 – FIGURAS DE PENSAMENTO Figuras Definição Exemplos Antítese É a aproximação de palavras de sentidos contrários, antagônicos. Onde queres prazer, sou o que dói E onde queres tortura, mansidão Onde queres um lar, Revolucão E onde queres bandido, sou heroi." (Caetano Veloso) Paradoxo ou Oximoro: É mais que a aproximacao antitética; é a propria ideia que se contradiz. "O mito é o nada que é tudo." (Fernando Pessoa) Apóstrofe: É a evocação, o chamamento. Identifica-se facilmente na função sintática do VOCATIVO. O lindo mar verdejante, tuas ondas entoam cantos, és tu o dono reinante das brancas mares espumantes ... (Nel de Moraes) Perífrase: Designação dos objetos, acidentes geográficos, indivíduos e outros que não queremos simplesmente nomear. Cidade Luz (= Paris) Gradação: É uma sequência de palavras ou ideias que servem de intensificação numa sequência temporal. "Dissecou-a a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota baca noienta vil." (Raimundo Corrêa) Ironia: Consiste em dizer o oposto do que se pensa, com intenção sarcástica ou depreciativa. A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar de criança" (Monteiro Lobato) Hipérbole: É a figura do exagero, a fim de proporcionar uma imagem chocante ou emocionante. "Rios te correrão dos olhos, se chorares!" (Olavo Bilac) Eufemismo: Figura que atenua ideias desagradáveis ou penosas. "E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir Deus lhe pague." (Chico Buarque) Paz derradeira = morte Disfemismo Expressão grosseira em lugar de outra, suave, branda. Você não passa de um porco... um pobretão. Personicação ou Prosopopeia: Consiste em dar vida a seres inanimados. "O vento beija meus cabelos As ondas lambem minhas pernas O sol abraça o meu corpo." (Lulu Santos - Nelson Motta) Reificação: Consiste em 'coisificar' os seres humanos. "Tia, botei os candidatos na lista " Litotes: Consiste em negar por afirmação ou vice-versa "Ela até que não é feia." (logo, é bonita!) • Figuras de Pensamento: seu uso possui como objetivo dar mais ênfase às ideias e pensamentos que se deseja expressar buscando-se provocar emoções e sentimentos através da exploração e ampliação do uso das palavras. FONTE: <https://blog.maxieduca.com.br/figuras-linguagem-escrita/>. Acesso em: 26 abr. 2021. 108 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA • Figuras de Efeito Sonoro ou de Harmonia: são as figuras sonoras que criam efeitos de sentido pela representação de sons na língua escrita. Servem para dar ritmo expressivo à frase. QUADRO 11 – FIGURAS SONORAS FONTE: <http://joanaguga.blogspot.com/2015/06/figuras-sonoras-ou-de-harmonia.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. • Figuras de Construção ou de Sintaxe: são as que se caracterizam por algum tipo de modificação, inversão, repetição ou omissão dos termos em uma frase. Por outras palavras, é um tipo de estratégia utilizada para modificar a estrutura sintática da oração de um texto a fim de tornar mais expressivo seu conteúdo. TÓPICO 2 — ARGUMENTAÇÃO: CONCEITOS E ELEMENTOS CARACTERIZADORES 109 QUADRO 12 – FIGURAS DE CONSTRUÇÃO FONTE: <https://pt.slideshare.net/AulasParticularesInfo/figuras-de-linguagem- inverso-16421998>. Acesso em: 26 abr. 2021. 110 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A argumentação é definida como processo de estruturação de um raciocínio lógico e coerente que tem como propósito convencer alguém para modificar seu comportamento ou opinião e, assim, é de fundamental relevância para a atuação de profissionais da área jurídica. • A argumentação é constituída de distintos elementos, quais sejam: a) Coerência – a construção de uma sequência lógica de forma a possibilitar a compreensão da conclusão e depende de fatores tais como conhecimento, inferência e contextualização; b) Carisma – virtude ou capacidade pessoal de produzir alto grau de convencimento; e; c) Dialética – espécie de “movimento” argumentativo em que se produz o embate de ideias distintas (tese e antítese) do qual é possível a produção de uma nova (síntese). • É possível a utilização de diferentes tipos de argumentos de acordo com a finalidade e o auditório, sendo os mais comuns o de autoridade, de pressupostos comuns, analogia ou de comparação, dentre outros. • Conceituar e diferenciar as falácias argumentativascompreendidas como erros lógicos, conscientes ou não, que conduzem a pré-compreensões equivocadas produzindo preconceitos ilegítimos, estereótipos e más decisões. • Como se caracterizam e quais são as diferentes figuras de linguagem enquanto estratégias utilizadas pelo orador cujo objetivo é alcançar determinado efeito nos ouvintes através do uso não oral das palavras. 111 1 A argumentação é definida como atividade utilizada para justificar ou refutar opiniões de forma a justificar de maneira razoável algo e envolve um conjunto de declarações com a finalidade de persuadir ou demonstrar um conteúdo, ideia ou conceito de maneira consistente e sem contradições. Acerca da argumentação, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) Argumentação são opiniões aceitas sem necessidade de justificação, bastando a coerência. b) ( ) Argumentar e persuadir são fenômenos distintos e sem relação entre si. c) ( ) Argumentar é uma habilidade que pode ser adquirida. d) ( ) Argumentação não é utilizada em textos escritos. 2 A argumentação é elaborada de acordo com o auditório e deve possuir elementos ou componentes básicos dentre os quais a coerência, que é definida como uma sequência lógica que permite a compreensão de uma conclusão. A construção de argumentação coerente depende do uso de determinados fatores, dentre os quais, o conhecimento. Acerca do conhecimento como elemento argumentativo, considere as seguintes asserções: I- Conhecimento é o conjunto de saberes que integra o patrimônio intelectual acumulado pelo orador que possibilita a elaboração de argumentos coerentes. PORQUE II- O conhecimento é uma forma de inferência argumentativa. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As asserções I e II são falsas. b) ( ) As asserções I e II são verdadeiras, sendo a II a justificativa da I. c) ( ) A asserção I é verdadeira e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é falsa e a II é uma proposição verdadeira. 3 A argumentação é uma estratégia cuja finalidade é estabelecer um “acordo” entre o orador e o auditório que são partícipes de uma interação que se dá em distintas etapas. Em uma primeira etapa ou fase podem ser utilizados distintos tipos de argumentos, dentre os quais, o de autoridade. Acerca do argumento de autoridade, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) O argumento de autoridade é um tipo de argumento que serve para estabelecer uma relação hierárquica ou de subordinação. b) ( ) Argumento de autoridade independe da competência do orador, uma vez que depende do grau de hierarquia entre os partícipes da interação comunicativa. AUTOATIVIDADE 112 c) ( ) Argumento de autoridade não deve ser utilizado juridicamente. d) ( ) Argumento de autoridade independe dos valores compartilhados por um grupo de pessoas ou de um grupo social. 4 Em Minas Gerais, na cidade de Carmo da Cachoeira, o Juiz Ronaldo Tovani, substituto da Comarca de Varginha, concedeu a liberdade provisória a um acusado preso em flagrante por ter furtado duas galinhas, lavrando a sentença em versos. Considere o trecho da referida sentença transcrito a seguir: “No dia cinco de outubro Do ano ainda fluente Em Carmo da Cachoeira Terra de boa gente Ocorreu um fato inédito Que me deixou descontente. O jovem Alceu da Costa Conhecido por "Rolinha" Aproveitando a madrugada Resolveu sair da linha Subtraindo de outrem Duas saborosas galinhas...”. FONTE: <https://jus.com.br/artigos/32022/juiz-poeta-sentencia-em-versos-a-liberdade-de- -um-ladrao-de-galinha>. Acesso em: 26 abr. 2021. Pergunta-se: Por que a expressão “sair da linha” é uma figura de linguagem? Que tipo de figura de linguagem é? 5 A argumentação é definida como atividade utilizada para justificar ou refutar opiniões de forma a justificar de maneira razoável algo e envolve um conjunto de declarações com a finalidade de persuadir ou demonstrar um conteúdo, ideia ou conceito de maneira consistente e sem contradições. Quais são os distintos elementos que constituem a argumentação? Caracterize cada um deles. 113 UNIDADE 2 TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 1 INTRODUÇÃO A lógica jurídica é definida como um conjunto de técnicas racionais que possibilitam a elaboração de um raciocínio argumentativo persuasivo cujo objetivo é a tomada de uma decisão na esfera jurídica. Neste tópico, você compreenderá que o exercício do direito é mais do que conhecer as leis, mas exige também a habilidade de enfrentar contradições e solucionar um conflito da vida social através da operacionalização do sistema normativo lógico e coerente. Veremos que a validade de um argumento jurídico decorre da lógica das inferências elaboradas, ou seja, poderemos compreender que na atividade do jurista se impõe a necessidade de realização de um conjunto de deduções conceituais e relacionadas aos fatos ou informações relevantes a fim de produzir o direito do caso concreto. Em síntese, compreenderemos a possibilidade de estruturar argumentos jurídicos de maneira lógica de forma a conferir operacionalidade e sentido ao sistema normativo. 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Como já estudado, a argumentação é definida como recurso linguístico que tem como estratégia razões de defesa de uma conclusão – argumentos – a fim de convencer alguém. Assim, ao utilizarmos recursos lógicos de argumentação estamos fazendo uso de mecanismos para convencer alguém a “pensar como pensamos” (ELTZ; TEIXEIRA; DUARTE, 2018, p. 110). Esse mesmo conceito aplica-se quando falamos em argumentação jurídica, que é definida como um recurso próprio e técnico de convencimento cujo objetivo é a tomada de uma decisão na esfera jurídica. “Toda decisão jurídica deverá ser embasada com o emprego racional de análise da legislação pertinente – porém, a argumentação poderá vir a se tornar fator decisivo para a análise e a aplicação da lei” (ELTZ; TEIXEIRA; DUARTE, 2018, p. 110). Assim, a atividade jurídica, em qualquer um de seus campos, exige o domínio de técnicas argumentativas, não se admitindo que o profissional do direito desconheça, além da linguagem jurídica, a técnica argumentativa. 114 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Nesse sentido, Atienza (2014, p, 17) chama a atenção: Ninguém duvida de que a prática do direito consista, fundamentalmente, em argumentar, e todos costumamos convir em que a qualidade que melhor define o que se entende por um “bom jurista” talvez seja a sua capacidade de construir argumentos e manejá-los com habilidade. O exercício do direito não é tão somente o conhecimento de leis, mas é o exercício de uma atividade argumentativa buscando cumprir as funções da concretização do direito na prática. Sem dúvida, a argumentação jurídica é um processo em que conceitos e conhecimentos técnicos e factuais se interagem a fim de instrumentalizar o operador do direito no enfrentamento de contradições e inúmeras possibilidades de solução diante de um fato da vida social. Lembremos de que, no campo jurídico há, em geral, a oposição de interesses, bens jurídicos e direitos, o que se chama de lide, exigindo do profissional da área sustentação das razões de direito através da argumentação. FIGURA 18 – RETÓRICA E DIREITO FONTE: <http://filosofialogoss.blogspot.com/2019/02/retorica-como-arte-da-persuasao.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. O QUE É “LIDE”? “Trata-se do conflito de interesses manifestado em juízo. Tal termo é muitas vezes utilizado como sinônimo de ação, porém na verdade aquela (lide) é um meio pelo qual se exercita o direito a esta (ação). Significa demanda, litígio, pleito judicial. Pode ser pendente, quando já houve citação, porém ainda não se proferiu a sentença; e temerária, quando há abuso de direito, em que uma parte litiga apenas para prejudicar outrem”. FONTE: <https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/873/Lide>.Acesso em: 26 abr. 2021. DICAS TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 115 No direito não há exercício de nenhuma atividade sem justificação e argumentação. Costuma-se afirmar que não se formula nenhum pedido a um juiz sem que se explique o porquê sob pena de indeferimento do pedido, podendo, em caso de petição inicial, por exemplo, ser considerada inepta. Ou seja, um pedido judicial deve ser muito bem formulado, sendo o fato e os fundamentos jurídicos muito bem demonstrados, sob pena de ser indeferido. Veja a decisão a seguir. INDEFERIMENTO DA INICIAL. NARRATIVA CONFUSA. AUSÊNCIA DE CONCLUSÃO LÓGICA. INÉPCIA DA INICIAL. SENTENÇA MANTIDA. Na hipótese em julgamento deve ser mantida a inépcia da inicial decretada pelo MM Juízo a quo, pois a exordial não permite ao magistrado uma apreciação lógica do pedido, pois a narrativa dos fatos é confusa, desconexa e impede uma análise lógica do pedido. Indeferimento da inicial que se mantém. (TRT-13 – Recurso Ordinário: RO 0152600-30.2014.5.13.00010152600-30.2014.5.13.0001. Data de publicação: 02/06/2015). QUANDO UM PEDIDO JUDICIAL É CONSIDERADO INEPTO? Inepto é algo que não tem habilidade ou aptidão para produzir efeito jurídico. A petição inicial ou a denúncia, por exemplo, são consideradas ineptas quando não preenchem os requisitos legais e, portanto, são rejeitadas pelo juiz. As peças inaugurais ineptas devem ser "refeitas". Fundamentação: Artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal Artigos 330, inciso I e parágrafo único; 337, inciso III; 918, inciso II; todos do Código de Processo Civil. FONTE: <https://www.direitonet.com.br/dicionario/exibir/961/Inepcia-Novo-CPC-Lei-no-13 105-15>. Acesso em: 26 abr. 2021. DICAS Da mesma maneira, nenhum juiz profere uma decisão sem justificativa. Não é admitido no direito que a fundamentação de uma decisão se limite à mera transcrição ou se remeter à outra peça processual, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça que transcrevemos a seguir: A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, embora admita que o julgador se utilize da transcrição de outros alicerces jurídicos apresentados nos autos para embasar as suas decisões – no caso, do parecer do Ministério Público –, ressalta a necessidade também de fundamentação própria, devendo o julgador expor, ainda que sucintamente, as razões de suas conclusões, o que não foi realizado pelo Tribunal de origem. 2. Recurso ordinário em habeas corpus provido para anular o acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª. Região nos autos do Habeas Corpus n.° 0008330- 61.2018.4.02.0000, determinando que outro seja prolatado, com a necessária fundamentação” (RHC 104.665/RJ, j. 13/12/2018). 116 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Você facilmente percebe que a prática do direito é essencialmente argumentativa, sendo considerado um bom profissional aquele que possui a habilidade de construir e utilizar bons argumentos, uma vez que não se trata somente de extrair meras conclusões de um texto legal. Através da argumentação, o jurista elabora, além do conhecimento, critérios de validade das decisões judiciais. Elaborar a correta relação entre os fatos da vida social e o direito é um trabalho, além de lógico, como adiante veremos, também argumentativo. Não é por outra razão que se costuma dizer que a verdade jurídica é uma construção argumentativa elaborada a partir da análise dos fatos à luz do conjunto de normas jurídicas. É necessário que se reconheça que verdade é uma criação humana e tem como base um processo de conhecimento e formas sociais. Michel Foucault (2005), um dos maiores filósofos do século XX, toma como exemplo as verdades jurídicas para demonstrar que são resultado de complexa construção social, demonstrando como as práticas sociais constroem conceitos, técnicas e formas de conhecimento. Em seu trabalho, Foucault (2005) analisa os discursos e entende que são como jogos estratégicos de ação e reação relacionados com seu campo de origem, como o direito e a literatura, assim, a verdade produzida não é objetiva, absoluta e inquestionável. Em sua obra A Verdade e as Formas Jurídicas, publicada na década de 1970 a partir de uma série de conferências, Foucault questiona radicalmente o conceito de verdade e a relaciona com a construção do poder. Em síntese, no direito, o conceito de verdade é relacionado ao de probabilidade e validade jurídica, como ensina a consagrada jurista Ada P. Grinover (1999, p. 74): “Verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis, no processo ou fora dele. Mas é imprescindível que o juiz diligencie a fim de alcançar o maior grau de probabilidade possível”. Como nos explica Foucault (2005), é o mesmo que dizer que algo é verdade por não poder ser refutado e qualificado ou mesmo que algo não existe porque é algo que não acreditamos ou não conhecemos. VERDADE E JUSTIÇA PARA FOUCAULT Sem dúvida, o pensador francês Michel Foucault em relação ao conceito de justiça explorado na obra A Verdade e Formas Jurídicas, centrada na análise dos discursos jurídicos merece ser conhecido. Segue um breve resumo de interessante texto que indicamos para leitura complementar. DICAS TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 117 “Resumo: Nas suas obras se evidencia o empenho no resgate histórico, arqueológico e a análise crítica da problemática. Em específico, a obra base desta pesquisa é Verdade e as Formas Jurídicas (1973/2005), na qual o autor trata dos três conceitos centrais, apresentados no título deste texto. O percurso do texto inicia, na primeira parte, localizando o conceito de conhecimento na história, tratando de diversas formas de definição. O entendimento da que as formas de definição de conhecimento anteriores são a justificativa para produção de Foucault. Sua obra pode ser entendida como um exercício de reconstrução das formas de conhecimento inventadas pela humanidade. Mas especificamente, a obra de Foucault está centrada na análise das práticas discursivas, compreendendo as mesmas como uma plataforma para visualizar o conhecimento numa sequência histórica que partiu da razão, do sujeito racional e passou pela linguagem. A segunda parte do texto trata da relação entre e da dependência que o conceito de conhecimento tem do conceito de verdade, bem como a vinculação histórica entre verdade e formas jurídicas. A pesquisa realizada apresenta uma compreensão do conceito de justiça, vinculado aos conceitos de forma jurídica, verdade e conhecimento, disponibilizando referenciais para compreender os parâmetros das relações humanas e a vida em sociedade. Assinala-se, por fim, que o método empregado nessa pesquisa é a análise do discurso”. FONTE: <https://www.imed.edu.br/Uploads/israelkujawa_maurogaglietti_(%C3%A1rea4).pdf>. Acesso em: 26 abr. 2021. Perceba a importância da argumentação na construção de uma verdade jurídica ou de um conceito válido. Argumentação, no sentido jurídico, é utilizada especificamente como uma forma de desenvolver um raciocínio de forma a estabelecer uma sucessão de questionamentos e por essa razão, na Antiguidade, o discurso argumentativo era chamado de questiones. Segundo Ferraz Jr. (2016), todo problema jurídico tem o caráter de um conflito que necessita de uma decisão e tem início com um questionamento prévio que condiciona as respostas argumentativas subsequentes. A retórica antiga chamava essa primeira etapa de translatio, pois ela permite às partes litigantes uma transferência do objeto da discussão para outro que mantém com o primeiro uma relação condicionante de que um não possa ser discutido sem que antes se discuta o outro (lembre-se, por exemplo, da possibilidade de se discutir a validade de um documento – em uma ação declaratória– que serve de base a uma ação executiva) (FERRAZ JR., 2016, p. 28). Após a translatio, ou seja, da identificação do interesse ou conflito humano como bem jurídico – amparado pelo direito – passa-se ao procedimento conjuntural, que é a demonstração das condições fáticas, articulando-se o fato ao autor. É aí que nasce o ato de argumentar como um conjunto de sucessivos questionamentos a fim de respondê-los. 118 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Portanto, explica Ferraz Jr. (2016, p. 30), que: O ato de argumentar procede, então, pelo questionamento: há o fato? Quem é o autor? Esta última interrogação, por sua vez, sugere uma conjectura do ânimo do autor (vontade livre, coagida, intencional, etc.), de suas condições de possibilidade, de seu relacionamento com o fato. O questionamento estrutura as posições de ataque e defesa. O ataque mais forte afirma o fato e relaciona-o ao autor. A defesa mais forte nega ambos. A defesa mais fraca admite o fato, mas nega a autoria, objetando o ânimo, ou as condições de possibilidade, ou o relacionamento causal. A sequência de questionamentos vai estruturando o raciocínio argumentativo, relacionando o fato ao sujeito envolvido na lide, levando a um terceiro momento que é a proposição, a definitivo, quando se discute a relação entre o fato e seu sentido previsto na norma jurídica, sendo a resposta mais adequada às questões propostas a mais forte sob o aspecto argumentativo. QUADRO 13 – QUESTIONAMENTOS GERAIS DO RACIOCÍNIO ARGUMENTATIVO FONTE: A autora O quê? Fato jurídico principal ou questão jurídica em discussão. Quem? Definição das partes envolvidas e devidamente qualificadas: nome, nacionalidade, estado civil, profissão, residência e demais informações de identificação (RG, CPF etc.). Quando? Sequência cronológica dos fatos. Como? Dinâmica da ocorrência dos fatos. Por quê? Razões que deram origem ou justificam o fato jurídico. Então .... Adequação do fato à norma jurídica. Facilmente, concluímos que a argumentação, no campo jurídico, é uma maneira organizada e sistematizada de expor claramente e de forma compreensível as razões que conduzem à determinada conclusão. No entender de Eltz, Teixeira e Duarte (2018, p. 110), os argumentos jurídicos podem ser simples ou padronizados e complexos. • Argumentos Simples: é a padronização de um argumento de forma a estabelecer frases que servem de premissas e frases que servem como conclusão. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 119 QUADRO 14 – EXEMPLO DE ARGUMENTO SIMPLES FONTE: Eltz, Teixeira e Duarte (2018, p. 110) Observe que o argumento padronizado é mais simples que o original e as últimas frases são repetidas e são utilizadas para enfatizar as premissas. Os argumentos simples, em geral, são compostos ou uma ou mais premissas de uma única conclusão. No campo jurídico, os argumentos simples são aqueles que são construídos recorrendo à lei e à jurisprudência que não apresentam divergências de entendimento, exigindo menos esforço argumentativo. Em geral, utiliza-se uma introdução para a colocação do problema, seguida de um argumento de autoridade, a lei e a jurisprudência seguidas de conclusão, incluindo, se necessário, outros tipos de argumento. • Argumentos Complexos: possuem mais encadeamentos lógicos que os simples. 120 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA QUADRO 15 – EXEMPLO DE ARGUMENTO COMPLEXO FONTE: Eltz, Teixeira e Duarte (2018, p. 112) No caso acima, a premissa B é um argumento bastante simples que decorre da premissa A, sendo que a premissa B serve de argumento para outra premissa, a C, e esta última conduz à premissa D como conclusão. Note que são argumentos organizados e encadeados que conduzem a uma conclusão final. Esse tipo de argumento é bastante utilizado no campo jurídico nas sentenças judiciais, petições de advogados, denúncia de promotores etc. Sobre o tema, Atienza (2014, p. 116) afirma: “Nos casos simples, pode-se considerar que o respaldo consistiria simplesmente na enunciação da proposição normativa correspondente. Mas, nos casos difíceis, isso não basta; é preciso também apresentar uma combinação de enunciados descritivos, normativos e avaliativos”. Finalizando, o direito não é tão somente o que está literalmente explícito em uma norma jurídica, ou seja, o direito é mais que a lei. O exercício profissional do direito é basicamente argumentativo com o claro objetivo de produzir uma resposta adequada ao caso concreto desde o conhecimento técnico, ético e responsável. 3 LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO Vamos compreender alguns conceitos básicos e essenciais de lógica a fim de podermos compreender sua relação com a argumentação jurídica. Lógica é um termo relacionado tanto a um conjunto de regras racionais que conduzem a um conhecimento como à área da filosofia que estuda a validade formal de proposições matemáticas ou linguísticas. Especificamente, no campo da linguística, a lógica não tem como objetivo discutir a veracidade dos enunciados, mas sua validade formal, ou seja, conferir sentido estrutural do argumento ou frase enunciada. Por outras palavras, pode-se afirmar que há lógica no enunciado que há um padrão formal correto. Pode-se dizer que a lógica é o que caracteriza a racionalidade humana e não foi criada, mas nominada e estudada sistematicamente desde o pensador grego Aristóteles, entre os anos 384 a.C. e 322 a.C. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 121 FIGURA 19 – A LÓGICA DETERMINA A ORGANIZAÇÃO E VALIDADE DO PENSAMENTO E DOS ENUNCIADOS LINGUÍSTICOS FONTE: <https://mundoeducacao.uol.com.br/filosofia/logica.htm>. Acesso em: 26 abr. 2021. A chamada lógica aristotélica é a clássica e tem como fundamento princípios racionais e o silogismo. Aristóteles definiu o ser humano como “animal que fala”, ou seja, percebeu que diferente dos demais animais, o homem possui linguagem e que os enunciados linguísticos possuem sentido e validade, nascendo desde aí, a lógica como estudo sistemático dos enunciados linguísticos. O QUE É A LÓGICA ARISTOTÉLICA? Aristóteles define que o fundamento da lógica é a proposição. Essa usa a linguagem para expressar os juízos que são formulados pelo pensamento. Proposição atribui um predicado (denominado P) a um sujeito (denominado S). Os juízos encadeados por esse segmento são expressados de maneira lógica por conexões de proposições, o que é denominado silogismo. O silogismo é o ponto central da lógica aristotélica. Representa a teoria que permite a demonstração das provas a que estão ligados o pensamento científico e filosófico. A lógica investiga o que faz um silogismo ser verdadeiro, os tipos de proposições de silogismo e os elementos que constituem uma proposição. É marcado por três características principais: é mediato, é demonstrativo (dedutivo ou indutivo), é necessário. Três proposições o constituem: premissa maior, a premissa menor e a conclusão. O mais famoso exemplo de silogismo é: Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal. NOTA 122 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Analisemos: 1. Todos os homens são mortais - premissa universal afirmativa, pois inclui todos os seres humanos. 2. Sócrates é homem - premissa particular afirmativa porque refere-se apenas a um determinado homem, Sócrates. 3. Sócrates é mortal - conclusão - premissa particular afirmativa. Proposição: é o enunciado por meio do discurso declarativo de tudo o que foi pensado, organizado, relacionado e reunido pelo juízo. Representa, reúne ou separa pela demonstração verbal o que foi separado pelo juízo mentalmente. A reunião de termos é feita pela afirmação: S é P (verdade). A separação ocorre pela negação: S não é P (falsidade). Sob o prisma do sujeito (S), existem dois tipos de proposições:proposição existencial e proposição predicativa. As proposições são declaradas conforme a qualidade e a quantidade e obedecem à divisão por afirmativas e negativas. Sob o prisma da quantidade, as proposições se dividem em universais, particulares e singulares. Já sob o prisma da modalidade, se dividem em necessárias, não-necessárias ou impossíveis e possíveis. Caso tenha interesse, leia também: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o- que-e-logica-aristotelica/. FONTE: <https://www.todamateria.com.br/logica-aristotelica>. Acesso em: 26 abr. 2021. Os estudos de Aristóteles sobre a lógica o levaram a concluir que um enunciado ou argumento válido deve obedecer a três princípios básicos: • Princípio da Identidade: é a enunciação da identidade, do que é, os seres e as coisas. Por exemplo, quando afirmamos: “isto é um texto” estamos anunciando ou indicando a identidade da coisa. • Princípio da não Contradição: segundo tal princípio, um ser ou uma coisa não pode ao mesmo tempo ter e não ter uma identidade. Ou seja, algo não pode ser e não ao mesmo tempo. Exemplo: se afirmamos “isto é um texto” não posso afirmar que “isto não é um texto” em relação à mesma coisa. • Princípio do Terceiro Excluído: segundo tal princípio, se o ser ou a coisa é ou não é algo não existe uma possibilidade. Exemplo: se afirmo “isto é um texto” ou “isto não é um texto” não há outra possibilidade. Se isto “é um cavalo” deixa de ser “um texto” e se encaixa como segunda possibilidade. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 123 FIGURA 20 – OS PRINCÍPIOS DA LÓGICA ARISTOTÉLICA FONTE: <https://pt.slideshare.net/hodukitove/lgica-formal-58342380>. Acesso em: 26 abr. 2021. Já na contemporaneidade, outros filósofos estudaram a relação entre a lógica e linguagem, dentre os quais se destaca Bertrand Russell (1872-1970), um dos mais influentes filósofos do século XX que se dedicou ao estudo da relação da matemática e das analogias com a ciência, conhecido por defesa de causas sociais e pacifista, seguramente pelos impactos que sofreu pelas guerras mundiais e tecnologia. Defendeu o não recrutamento militar durante a segunda guerra, o que lhe custou, além da prisão, a demissão da Universidade de Cambridge. Juntamente com Albert Eistein fundou um movimento pela paz mundial e liderou movimentos antiarmamentistas. FIGURA 21 – BERTRAND RUSSELL FONTE: <https://novaescola.org.br/conteudo/1415/bertrand-russell-um-logico-na-educacao>. Acesso em: 21 abr. 2021. “O problema é que os imbecis são categóricos e os inteligentes são cheio de dúvidas” (B. Russell) 124 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Mas qual a relação da lógica com a argumentação? Como vimos, a argumentação é um instrumento persuasivo elaborado a partir de um conjunto de proposições concatenadas de maneira específica, sendo que uma proposição sustenta outra, havendo inferência entre elas. FIGURA 22 – CONCEITO DE INFERÊNCIA FONTE: <https://www.dicio.com.br/inferencia/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Inferência é uma operação mental através da qual se extrai uma conclusão – nova proposição – de outras proposições já conhecidas. Realizar uma inferência é deduzir conceitos, ideias ou informações que estão implícitas em um texto, sendo este o ato que confere lógica e coerência ao texto. Quando a inferência obedece, com rigor, aos princípios da identidade, terceiro excluído e não contradição, bem como às demais regras lógicas, o argumento é logico e, então, poderemos ter a certeza de que, se as premissas são verdadeiras e se efetivamente são atendidos tais princípios e regras, a conclusão é verdadeira também (COELHO, 2012, p.19). A validade de um argumento decorre da lógica das inferências enquanto que a veracidade ou falsidade são atributos das proposições. Observe a figura a seguir e perceba que o erro do pinguim está nas proposições e não na forma de raciocínio. Portanto, se utilizarmos premissas ou proposições falsas chegaremos a uma conclusão errada, porém logicamente válida. Portanto, se partimos de uma premissa errada chegaremos a uma conclusão falsa mesmo que o raciocínio seja correto. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 125 FIGURA 23 – A “LÓGICA DO PINGUIM” FONTE: <https://www.indagacao.com.br/2019/07/fatec-2019-silogismo-e-uma-estrutura- logica-que-designa-uma-forma-de-raciocinio-dedutivo.html>. Acesso em: 26 abr. 2021. Para Coelho (2012, p. 18), há duas condições para que um raciocínio lógico conduza à verdade: A primeira é: a veracidade das premissas. Partindo-se de premissas falsas, pode-se chegar a conclusões falsas, mesmo que o raciocínio seja vigorosamente lógico. A segunda condição para se chegar à verdade é a correção do próprio raciocínio, no sentido de obediência estrita às regras da lógica. Os lógicos se ocupam apenas da segunda condição, já́ que da veracidade das premissas cuidam os cientistas (biólogos, físicos, sociólogos, psicólogos etc.). A importância de conhecermos a lógica, principalmente no campo jurídico, é o cuidado com o procedimento argumentativo e não nos deixarmos fascinar pelo mero encadeamento lógico das ideias e não analisarmos sua veracidade. 4 O DIREITO COMO SISTEMA LÓGICO Como vimos, a lógica é um instrumento que permite organizar o raciocínio e elaborar argumentos de maneira adequada de forma a produzir um resultado. É, portanto, uma maneira de organizar o pensamento relacionando ideias desde determinadas premissas obedecendo às regras próprias como o princípio da identidade, não contradição, terceiro excluído, silogismo etc. Assim, um sistema de enunciados ou conceitos é lógico na medida em que estiver articulado de forma específica obedecendo a tais regras. 126 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA A fim de verificarmos a lógica e coerência do direito é necessário compreender inicialmente a diferença entre norma jurídica e proposição jurídica, uma vez que ambas compõem o sistema operado pelo profissional da área. As normas jurídicas são prescrições – devem ser – definidas por uma autoridade política competente, o Estado através dos Poderes constituídos, que formula um juízo de valor definindo uma consequência. Por exemplo, o Código Penal define em seu artigo 121 que matar alguém tem como punição, como consequência, reclusão de 6 a 20 anos. Significa dizer que “se alguém matar alguém deverá ser imposta a pena de 6 a 20 anos”. Ou seja, há uma relação lógica entre matar alguém e a imposição de uma pena, uma vez que tem uma premissa válida. A validade ou não das normas jurídicas depende, por exemplo, da competência da autoridade que a produz. Porém, essas normas são estudadas e analisadas pelos estudiosos do direito, pelos doutrinadores os quais elaboram, através da ciência jurídica, um fundamento. Por exemplo, para o referido artigo 121 do Código Penal há todo um fundamento e justificativa que discute a vida como um bem protegido juridicamente, a necessidade de haver a relação entre o ato praticado e o evento morte – o nexo de causalidade, causas de exclusão de culpabilidade etc. Essas fundamentações elaboradas pelos doutrinadores que se referem ao conteúdo da norma são as chamadas proposições jurídicas. Não se trata de uma mera reprodução da norma jurídica, é sua descrição científica, considerando sua finalidade e valores. Assim, ao ser criada uma norma jurídica por um legislador, ela ganha harmonia com o conjunto de fundamentos e valores do direito para ser aplicada e inserida no conjunto do ordenamento jurídico, adquirindo uma espécie de “novo status” como prescrição jurídica, e dessa maneira adquire lógica e coerência dentro do sistema normativo. Considera-se que para manter a unidade e coerência do direito é necessário que, de alguma maneira, sobretudo argumentativa, conferirsentido às normas jurídicas, solucionando-se os problemas de lacuna e antinomia. Mais adiante você verá que o fundamento valorativo da norma jurídica e do sistema normativo é dado pela ordem constitucional que estabelece as diretrizes, finalidades, valores e princípios que devem nortear o agir político do Estado e da sociedade. Considerar o direito um sistema lógico e coerente pressupõe a inexistência de lacunas e antinomias. Lacuna é a ausência de norma para disciplinar o caso concreto, que pode ser de diferentes tipos, como você poderá observar melhor na Figura 24. Uma das soluções é a analogia que consiste em uma forma de raciocínio lógico através da comparação, servindo como integração da lei. É um método de interpretação jurídica utilizado quando, diante da ausência de previsão específica em lei, aplica-se uma disposição legal que regula casos idênticos, semelhantes, ao da controvérsia. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 127 FIGURA 24 – AS LACUNAS DO DIREITO FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/382665299563439655/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Como exemplo de lacuna normativa podemos citar o artigo 499 do Código Civil, quando trata do contrato de compra e venda e afirma: “É lícita a compra e venda entre cônjuges, com relação a bens excluídos da comunhão”. Observe que a lei fala em cônjuges e não em companheiros. Mas como fica em casos de união estável? Neste caso, pode-se utilizar a analogia. Se é lícita a compra e venda entre cônjuges na constância do casamento, também é lícita a compra e venda entre companheiros na constância da união estável, desde que relativa a bens excluídos da comunhão, uma vez que união estável e casamento possuem semelhança quanto ao bem jurídico protegido que é a família. 128 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA FIGURA 25 – USO DE ANALOGIA NO DIREITO FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/382665299563439655/>. Acesso em: 26 abr. 2021. O fundamento da analogia é o princípio da igualdade, segundo o qual a lei deve tratar de forma igual os iguais e na exata medida de sua desigualdade e, assim, casos semelhantes devem ser regulados por normas semelhantes. DIFERENÇA ENTRE ANALOGIA, INTERPRETAÇÃO ANALÓGICA E INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA “1. Analogia: Faz-se uso da analogia na ausência de norma a regular o caso concreto, colmatando-se a lacuna normativa com a aplicação de outro texto legal que regule outra hipótese semelhante ou idêntica. Aplica-se a solução de um caso previsto e regulado pelo direito a outro caso não regulado. O operador do direito deve argumentar que, se houvesse regulação prevista para o caso lacunoso, teria a mesma aplicação e solução do dispositivo legal o qual usa como referência. Além de estar presente expressamente em outros textos legais, a analogia tem previsão na Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro – LINDB, conforme se verifica de seu art. 4°: Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Colhe-se da redação literal que o uso da analogia depende de omissão da lei e, por isso, se diz que não é método de interpretação, mas de integração da lei. NOTA TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 129 2. Interpretação analógica: Diferentemente da analogia, na interpretação analógica há uma lei a ser aplicada e interpretada e, então, não há lacuna ou omissão legislativa ou normativa. Todavia, há a necessidade da aplicação desse método interpretativo quando em parte do próprio texto da lei há uma fórmula ou conceito genérico que precisa ser interpretado e ter sua norma revelada a partir do mesmo texto legal. Nesse caso, não se utilizam outras leis para tal interpretação, extraindo-se conceitos análogos do próprio texto o qual se procura interpretar. Os exemplos mais famosos são os do Direito Penal, como o seguinte: Art. 121. Matar alguém:... Homicídio qualificado...§ 2° Se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; ...A própria lei indicou que a paga ou a promessa de recompensa seriam motivos torpes, razão pela qual a descoberta de "outro motivo torpe" a qualificar o crime deverá ser extraída da análise dos próprios conceitos do precitados. Essas hipóteses ocorrem especialmente quando o legislador, por impossibilidade de antecipar e prever todos os fatos da vida, estipula uma fórmula genérica que permite ao interprete revelar outras situações comparativas às quais deveriam se aplicar a lei. 3. Interpretação extensiva: Por fim, na interpretação extensiva também não há lacuna, nem generalidade nos conceitos. Há lei regulando o caso concreto e interpreta-se conceitos ou palavras do texto de forma a ampliar seu alcance ou significado. Dessa forma, desvenda-se o sentido e extensão dos conceitos determinados e previstos no texto legal para que situações que, à primeira vista, não possuíam regulação por aquela norma, possam ser por ela também regidas. É por isso que se defende, nesse tipo de interpretação, que seu uso naquele caso concreto é possível porque "o legislador teria dito menos do que queria". Um exemplo interessante consta na decisão do STJ no Resp 621.399/RS em que se ampliou o alcance da impenhorabilidade de bem de família para proteger imóvel que, embora fosse de propriedade de pessoa jurídica, abrigava a única moradia dos sócios de uma empresa familiar. Veja-se o teor da norma interpretada extensivamente: Art. 1° O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. (Lei n. 8.009/1990)”. FONTE: <http://twixar.me/6D8m>. Acesso em: 26 abr. 2021. 130 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Já a antinomia é o caso de conflito de normas que pode ocorrer em três situações: a) quando uma norma obriga certo ato e outra o proíbe (normas contrárias); b) quando uma norma obriga certo ato e outra permite a abstenção desse ato (normas contraditórias); c) quando uma norma proíbe certo ato e outra o permite (normas contraditórias). Como solução existem três critérios: o cronológico, o hierárquico e o da especialidade. O critério cronológico ocorre quando a norma posterior prevalece sobre a anterior - lex posterior derogat priori. Ou seja, no direito brasileiro entende-se que a norma jurídica mais nova revoga a mais antiga, pela necessidade de constante aperfeiçoamento do direito positivo e tem como fundamentado o artigo 2°, § 1°, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que regula que norma posterior revoga a anterior: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (COELHO, 2012, p. 67). FIGURA 26 – ANALOGIA SEGUNDO A LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/509117932856628831/>. Acesso em: 26 abr. 2021. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 131 O critério hierárquico é a solução por excelência das antinomias, isso porque a norma superior prevalece sobre a inferior, por exemplo, a Constituição Federal de 1988 tem caráter supralegal, na qual as demais leis (ordinárias, complementares etc.) devem estar em consonância, em harmonia com os princípios por ela estabelecidos, sob pena de declaração de inconstitucionalidade, perdendo, assim, sua efetividade.0 Portanto, “Se um dispositivo constitucional é antinômico em relação a uma lei ordinária, aquele deve ser respeitado em prejuízo desta” (COELHO, 2012, p. 18). E, finalmente, o critério da especialidade é o que determina que a normaespecial prevalece sobre a geral. Por exemplo, as regras sobre o contrato de compra e venda do Código Civil não se aplicam às relações de consumo caso o Código de Defesa do Consumidor possuir disposição diversa, porque esta é mais específica, por dizer respeito apenas aos contratos envolvendo consumidores enquanto que o Código Civil é aplicável aos contratos em geral. Outro exemplo é a Lei Maria da Penha, que é aplicável nos casos de grave ameaça doméstica, enquanto que o artigo 158 do Código Penal é geral e diz respeito a situações gerais. Mas como no cotidiano dos profissionais do direito a lógica e argumentação são utilizadas? Advogados, juízes, promotores, procuradores da justiça etc. diariamente obrigam-se a produzir peças processuais, pareceres ou decisões de maneira organizada e com bons argumentos. Se refletirmos bem a lógica é o que auxilia na estruturação de toda argumentação, com ênfase no silogismo. Conforme afirma Coelho (2012, p. 78), “Para alguns lógicos do direito, o profissional do direito, em seu trabalho, não se limita a encadear operações mentais dedutivas, mas, ao contrário, conjuga diversas outras faculdades mentais, como a intuição e a indução”. Consiste em um trabalho silogístico, sendo: a) a premissa maior, o conteúdo da norma jurídica – a lei; b) a premissa menor, o caso concreto, a realidade do fato; e, c) a conclusão, a aplicação ou adequação da norma ao caso concreto. Vejamos um exemplo bastante simples: Matar alguém é crime previsto no artigo 121 do Código Penal com punição de 6 a 20 anos – premissa maior; Pedro matou João – fato ou premissa menor; Logo, Pedro deve ser punido - conclusão. Esse tipo de raciocínio é denominado subsunção, que é a transformação da norma jurídica, na maioria das vezes, geral e abstrata em direito no caso concreto. 132 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA SUBSUNÇÃO – UM ESTUDO DE CASO DE SILOGISMO JURÍDICO “Suponhamos que ocorra uma colisão entre dois automóveis. Os respectivos motoristas dizem que a culpa foi do outro. Desejam obter o pagamento de um valor que permita o conserto dos carros. Como não querem aceitar as razões alheias, param de se comunicar, frustrados. Um dos motoristas, dias depois, busca um terceiro comunicador que possa ouvi- lo e ao outro, para decidir quem tem razão. Esse terceiro é o juiz de direito, procurado por meio de um processo judicial. A partir de então, a comunicação torna-se exigível e deixa de ser meramente subjetiva. Os motoristas não podem mais comunicar quando, como e o quê quiserem. Agora, devem comunicar aquilo o que é solicitado no processo, no momento em que for solicitado. O processo judicial, assim, é uma forma de se restabelecer a comunicação interrompida que causa o conflito. Ele se inicia por meio da interposição de uma petição inicial (regulada no art. 282 do CPC). Nessa petição, o autor deve apresentar, entre outras coisas: 1. Os fatos, demonstrando que existe um conflito e descrevendo todas as circunstâncias que o envolvem. Sobretudo, deve apresentar um responsável pelo conflito e destacar que se trata de uma situação que viola o direito; 2. Os fundamentos jurídicos, a fim de especificar a violação do direito, destacando quais as normas legais que serão utilizadas para resolver o caso (se houver lacuna, quais os procedimentos para preenchê-la que devem ser adotados). Uma vez destacadas as normas legais, elas devem ser interpretadas, demonstrando-se que possuem significados válidos e vigentes (sem serem incompatíveis com outras normas superiores), que se referem ao fato que engloba o conflito (alcançam o fato, sociológica e historicamente) e que podem resolver o conflito com eficácia (cumprindo seus fins sociais) e com legitimidade (permitindo a concretização do bem comum); 3. O pedido, que consiste na aplicação das normas legais interpretadas aos fatos narrados. A petição inicial, assim, descreve o conflito, sugere normas legais que podem resolvê-lo e pede a aplicação das mesmas. Ela reinstaura a comunicação, exigindo do réu uma resposta, que se torna obrigatória. O meio mais comum de responder é a contestação (art. 300 do CPC). De modo geral, o réu contesta os três itens acima, negando a versão apresentada dos fatos, questionando as normas jurídicas e suas interpretações e pedindo uma aplicação diversa das leis. Lembremos: a causa do conflito é a falta de comunicação. Ao ser institucionalizado no Poder Judiciário, a comunicação torna-se obrigatória e o conflito será resolvido pelo juiz. Mas, para que o conflito possa ser resolvido, há a necessidade de que ele seja determinado: qual sua abrangência? Serão considerados pontos conflituosos aquelas questões que surgirem durante a comunicação: as controvérsias entre o autor e o réu, ou seja, as divergências comunicacionais. Voltando ao exemplo da colisão de automóveis, se o autor afirmar que o acidente ocorreu no dia 10, às 10h e o réu concordar com isso, não teremos um ponto controvertido, pois ambos se entenderam no processo comunicacional. O juiz nada precisará fazer quanto ao momento do acidente. Porém se o réu afirmar que cruzou o sinal verde e o autor disser que o sinal estava vermelho para o autor, teremos uma controvérsia. O conflito limitar-se-á a esta questão. NOTA TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 133 O juiz resolverá os pontos controvertidos por meio da sentença (art. 485 do CPC). Ele tomará decisões para resolver os conflitos fáticos e jurídicos. Em termos fáticos, os envolvidos no conflito deverão apresentar provas que permitam convencer o juiz da veracidade do que alegam. Em termos jurídicos, os conflitantes deverão convencer o juiz a utilizar determinadas normas legais, interpretá-las da forma que reputam melhor e aplicá- las por meio da apresentação de argumentos doutrinários e jurisprudenciais. De modo simplificado, a decisão é um ato no qual uma possibilidade é escolhida e outras são descartadas. O juiz escolherá uma versão para os fatos narrados (pode ser a versão de uma das partes, uma mescla de ambas ou uma versão própria do juiz, obtida por meio das provas apresentadas), escolherá as leis que utilizará, delimitará seus significados por meio de uma interpretação e, enfim, transformará o texto legal em um texto sentencial. A resolução final do conflito dar-se-á, assim, pela aplicação do direito. Podemos enxergá-la como um procedimento silogístico”. FONTE: <https://direito.legal/interpretacao-e-alicacao/53-aplicacao-do-direito/>. Acesso em: 26 abr. 2021. FIGURA 27 – SILOGISMO JURÍDICO FONTE: <http://twixar.me/KF8m>. Acesso em: 26 abr. 2021. Observe na figura anterior, a proposta de estruturação de um argumento jurídico, verbal ou escrito, de maneira lógica. Há que sempre se considerar que o objetivo de um argumento jurídico é o convencimento que deve ser demonstrado de maneira lógica e coerente a fim de conduzir a uma necessária conclusão. 134 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA LEITURA COMPLEMENTAR “LINGUAGEM: QUAL SUA IMPORTÂNCIA NO MUNDO JURÍDICO?” Kelly Graziely da Cruz A sociedade depende fundamentalmente da linguagem. O que é a linguagem, porém? Em qualquer dicionário de língua portuguesa significa, “o uso da palavra articulada ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas”, isto é, a linguagem é a forma de comunicação entre os seres humanos e para isso utiliza-se da ferramenta palavra e seus respectivos significados. O Direito, por sua vez, é um conjunto de normas, ou seja, um dever ser expressado por meio de textos escritos e transmissão oral que nada mais são do que uma linguagem. A linguagem é um conjunto de signos naturais e artificiais. Os signos artificiais são elaborados pelo homem e possuem uma base (dicionário) e um contexto (da base retira-se um significado que seja mais coerente com o contexto em análise). A linguagem tem três aspectos relevantes: a sintática (signo+ signo); a semântica (signo + referente – a imagem convencionada culturalmente); e a pragmática (signo + contexto e usuário). Logo, o mundo jurídico tem como principal instrumento de labor a linguagem. Atualmente o mundo jurídico busca soluções para os casos concretos ou conflitos da sociedade na hermenêutica, com seus métodos interpretativos, principalmente averiguando a linguagem das normas. Deve-se salientar, entretanto, que ainda hoje se dá pouca importância à parte teórica do Direito, preferindo-se mais o Direito substancial que o material, ação totalmente errônea, pois a prática para ser boa necessita muito da formação teórica do profissional, ou seja, de sua argumentação. Assim, é extremamente importante analisar a interpretação e consequentemente a linguagem do Direito. Em vista disso percebe-se que o Direito instrumental não pode ser visto como uma lógica matemática, em que dois mais dois são quatro, e sim interligado ao Direito material, estudando os dois conjuntamente. Com isso vem à tona o problema da linguagem e até onde o Direito tem uma linguagem extremamente técnica? Será que o mundo jurídico se “aliena” da linguagem vulgar? Para saber se o Direito tem linguagem técnica ou natural é preciso conhecer as duas divisões. A linguagem natural se caracteriza por ser o instrumento de comunicação por excelência entre os seres humanos, não se preocupando com rigor científico ou técnico, enfim, é a linguagem espontânea. Por outro lado, a linguagem técnica tem um caráter mais cientifico, com signos determinados, embora encontre sua base na linguagem natural. TÓPICO 3 — DIREITO, ARGUMENTAÇÃO E LÓGICA JURÍDICA 135 É fundamental destacar, que a linguagem ordinária não é suprimida pela jurídica, sendo que a vulgar possui pressupostos e elementos constitutivos do Direito. A linguagem do Direito atua também em termos caricaturais e até da literatura infantil o leitor retira de alguns dos seus fundamentos. O Direito, muitas vezes, se afasta da realidade reduzindo as pessoas à condição institucional. Várias vezes, se não em todas, o discurso da argumentação jurídica alega posições que não aquela que nos convém naquele momento, sendo este um discurso puramente institucional. Em vista disso, para ser um jurisconsulto renomado não se pode esquecer a linguagem comum, visto que o cliente é afeito apenas à linguagem diária e o advogado terá de lhe responder na mesma linguagem, caso contrário não será entendido. A autora Joana Aguiar e Silva, citando o ilustre jurista White, aborda o seguinte: “E uma vez que a história tanto começa como acaba na linguagem e experiência vulgares, o essencial do Direito é o processo de tradução através do qual tem que trabalhar da linguagem vulgar para a jurídica e outra vez para a vulgar”. A legislação não é imutável, uma vez que a sociedade se modifica a cada minuto. O legislador se refere à mulher honesta, mas o que é honestidade hoje? É o mesmo que significava quando a regra foi elaborada, em 1940? É dizer que a linguagem possui vários segmentos no âmbito da sociedade, como a dos médicos, dos juristas e da população em geral, que é universal e todos a entendem. O Direito tem sua própria linguagem e é através das palavras ou signos que se exterioriza a lei, que por sua vez deve ser interpretada e aplicada ao caso concreto. Então, a arte das palavras faz com que o jurista descubra a solução mais adequada. Salienta-se que o jurista com vocabulário pobre não terá sucesso profissional. De outro lado, o Direito não pode esquecer da linguagem comum, visto que tudo começa com a linguagem vulgar e com esta também termina. Na verdade, o que ocorre é uma tradução, assim como traduzir uma língua estrangeira desconhecida. A linguagem, além disso, não é extremamente clara e objetiva, havendo imprecisão em seus signos, entrando em cena as figuras da vagueza e da ambiguidade. A vagueza tem uma dimensão denotativa (o que é?), por exemplo, a palavra “careca” tem vários significados e deve-se averiguar no caso concreto a qual deles a palavra está sendo aplicada. A ambiguidade, dimensão conotativa (qual dos sentidos?), por exemplo, “manga”, pode ser de uma blusa ou uma fruta. O Direito também contém em suas normas as figuras da vagueza e a ambiguidade, tendo inúmeros casos de imprecisão ou de dúvidas de interpretação acerca da significação de algum termo contido na lei. O Direito, deste modo, é interligado à linguagem, quem sabe até mais que o próprio curso de Letras, por isso a importância de aprofundar os estudos com um vocabulário enriquecido e ao mesmo tempo conseguir a tradução desta linguagem técnica para a comum, para ser entendida por todos indistintamente. 136 UNIDADE 2 — LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA O mundo jurídico com o uso da retórica procura solucionar os conflitos da sociedade e é por meio da linguagem que as leis se exteriorizam, sejam elas escritas ou verbais. Daí a preocupação dos mestres em ensinar um palavreado mais rebuscado aos acadêmicos para que tenham uma formação mais aberta e não sejam simples formalistas, quer dizer, aplicar a lei tal qual é, estritamente formal, devendo aplicá-la, mas sob o aspecto social e atual, em que o fato se concretizou, utilizando as palavras para obter o resultado almejado. De tal modo, no âmbito jurídico a comunicação é o fator que viabiliza a existência do Direito. Assim, a linguagem do Direito é técnica, porém é a vulgar que o torna entendido pelos leigos. Por isso tal importância da linguagem na vida do jurista, e até se deve conhecer mais a fundo as palavras e seus significados para construir uma interpretação criativa com embasamento forte e convincente. É necessário ainda inferir que a linguagem, sendo uma forma de comunicação entre as pessoas, busca construir signos com significados para uma relação clara e objetiva. A linguagem técnica, por ter um caráter de cientificidade deixa muitas pessoas confusas e por isso a importância de operadores jurídicos para sanar essas dúvidas, esclarecendo os termos técnicos que a ciência do Direito possui. Conclui-se nessa pequena e rápida análise que o Direito não deve reduzir-se a uma só linguagem, apesar de não poder se afastar da tecnicidade de suas normas. Ou seja, a linguagem do Direito não é exclusivamente natural ou exclusivamente técnica, mas composta de ambas as espécies, podendo- se denominar a linguagem jurídica como mista. Afinal, em decorrência da necessidade de se cumprir as normas, a linguagem empregada nas normas jurídicas, ou melhor, na tradução destas, deve se basear na linguagem natural para que o Direito cumpra o seu papel de controle social e resolução de conflitos. Linguagem e Direito são, portanto, como “a panela e a tampa”, e o Direito nada seria sem a linguagem. Logo, o Direito não é e não pode ser uma linguagem estritamente técnica nem especificamente vulgar, bem como o acadêmico ou operador jurídico não deve se ater apenas ao Direito instrumental, “esquecendo- se” do Direito material, devendo haver um equilíbrio entre ambos para obter um bom desempenho jurídico e social, traduzindo os termos jurídicos e esclarecendo as pessoas em geral” FONTE: <https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/760>. Acesso em: 26 abr. 2021. 137 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu que: • A argumentação jurídica é definida como estratégia específica de convencimento e tem como objetivo uma tomada de uma decisão na esfera jurídica a fim de tornar o direito realidade. • O processo de construção argumentativo no direito deve ser feito de forma lógica e demonstrável com vistas a produzir um resultado válido juridicamente. • O domínio da lógica e argumentação jurídica permite elaborar e discutir a validadedas premissas e conclusões jurídicas auxiliando, assim, o profissional da área jurídica atuar de forma competente e com alta probabilidade de êxito. • O direito é um sistema lógico cujo domínio auxilia na organização do raciocínio e argumento jurídico, relacionando ideias a partir de premissas que obedecem a regras e princípios articulados de forma a solucionar os casos de lacunas e antinomias. Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. CHAMADA 138 1 No exercício da atividade profissional considera-se o bom jurista aquele que possui não apenas a capacidade de construir argumentos adequados, mas também a habilidade de os manejar com competência e segurança. Desde tal concepção, considere as seguintes afirmações: I- O exercício do direito não é tão somente o conhecimento de leis, mas é o exercício de uma atividade argumentativa. II- No campo jurídico há, em geral, a oposição de interesses, bens jurídicos e direitos, o que se chama de lide, exigindo do profissional da área sustentação das razões de direito através da argumentação. III- A formulação de um pedido a um magistrado não exige justificação e sim argumentação. IV- Um pedido judicial deve ser bem formulado, sendo o fato e os fundamentos jurídicos muito bem demonstrados, sob pena de ser indeferido. Assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) As afirmações I, II e III estão corretas. b) ( ) As afirmações I, II e IV estão corretas. c) ( ) As afirmações II, III e IV estão corretas. d) ( ) As afirmações II e III estão corretas. 2 No direito, o conceito de verdade é relacionado à probabilidade e validade jurídica, uma vez que ao afirmarmos que algo é verdadeiro significa que não pode ser contestado ou refutado, sobretudo porque verdade é um conceito absoluto e dificilmente atingido no campo jurídico. Acerca do conceito de verdade no campo jurídico, considere as seguintes asserções: I- No campo jurídico é dever do órgão julgador atuar de forma cuidadosa a fim de alcançar a maior probabilidade possível de certeza. PORQUE II- No direito, a verdade e justiça não dependem da lei e sim da capacidade argumentativa do profissional da área jurídica. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As asserções I e II são falsas. b) ( ) As asserções I e II são verdadeiras, sendo a II a justificativa da I. c) ( ) A asserção I é verdadeira e a II é uma proposição falsa. d) ( ) A asserção I é falsa e a II é uma proposição verdadeira. AUTOATIVIDADE 139 3 Considere o seguinte texto: “A linguagem do Direito há de conformar-se aos rigores da técnica jurídica. Mas sem desprezo à clareza, à transparência, à elegância e ao ritmo melodioso da poesia. As palavras, para o professor, para o advogado, para os operadores do Direito, em geral são feitas para persuadir, demover, incentivar. Não basta sintaxe. É preciso paixão (Luís Roberto Barroso). A citação destaca a importância da linguagem verbal para o profissional do direito no desempenho de suas funções. Observa-se que Luís Roberto Barroso enfatizou o uso de uma linguagem clara, objetiva, precisa, em que a razão direcione o discurso a ser produzido, a fim de que se alcance o principal objetivo no discurso jurídico: o convencimento. Entretanto com destaque, exaltou um componente indispensável a ser associado à razão: a emoção. Ora, o orador deve envolver, emocionar, apaixonar o seu auditório, a fim de persuadi-lo. ” FONTE: VALVERDE, Alda da Graça Marques e outros. Linguagem e argumentação jurídica. 6. ed. São Paulo: Editora Forense, 2020. p. 401-402). Acerca da relevância da linguagem e argumentação jurídica, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) Argumentação jurídica é um recurso de convencimento utilizado na área jurídica que deve ser construída de forma a utilizar uma linguagem clara e objetiva embasada racionalmente na lei e técnica jurídica. b) ( ) Para o convencimento, o jurista deve privilegiar a retórica e a emoção em detrimento da técnica jurídica. c) ( ) A atividade do profissional do direito exige capacidade de convencer com emoção e não o manejo da técnica jurídica. d) ( ) Na aplicação da lei não há que ser considerados argumentos e sim fatos. 4 O direito é definido como um sistema normativo lógico cujo domínio auxilia na organização do raciocínio e argumento jurídico, relacionando ideias a partir de premissas que obedecem a regras e princípios articulados de forma a solucionar os casos de lacunas e antinomias. Diferencie lacuna de antinomia. 5 Considera-se antinomia quando há conflito de norma jurídica diante do caso concreto e pode ocorrer em três situações: a) quando uma norma obriga certo ato e outra o proíbe (normas contrárias); b) quando uma norma obriga certo ato e outra permite a abstenção desse ato (normas contraditórias); c) quando uma norma proíbe certo ato e outra o permite (normas contraditórias). Como são solucionados os casos de antinomia? Fundamente sua resposta. 140 REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Retórica. Traduzido por Edson Bini. Editora: Edipro, 2017. ATIENZA, M. As razões do direito: teoria da argumentação jurídica. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. BRASIL. Lei n° 8.906 de 04 de julho de 1994. Disponível em: http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm. Acesso em: 26 abr. 2021. CAVALCANTI, D. Atuação vocal do advogado-oratória. Rio de Janeiro, 1999. COELHO, F. U. Roteiro de lógica jurídica. 7. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. ELTZ, M. K. F.; TEIXEIRA, J. K. M.; DUARTE, M. de. F. Hermenêutica e Argumentação Jurídica. Porto Alegre: Sagah Educação S.A., 2018. FERRAZ JR., T. S. Argumentação jurídica. 2. ed. São Paulo: Editora Manole, 2016. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005. FREITAS, J. Sustentabilidade. Direito ao futuro. Belo Horizonte: Editora Forum, 2012. GRINOVER, A. P. A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 7, n. 27, ~jul./set. 1999. HENRIQUES, A. Argumentação e Discurso Jurídico. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013. Disponível em: http://www.cefac.br/library/teses/ d3a52bd39fc943ead47ffe6563b8bebd.pdf. Acesso em: 26 abr. 2021. OLIVEIRA, P. C. Concepções de justiça em Chaim Perelman e John Rawls: introdução ao debate multidisciplinar entre o relativismo e o universalismo. Ed: CRV, 2020. PERELMAN, C. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2014. PLATÃO, P. Société d’Edition ‘Les Belles Lettres’. In: CARNEIRO, M. F. et al. Teoria e prática da argumentação jurídica. Curitiba: Juruá, 2004. 141 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • compreender o direito moderno como produto da racionalidade científica moderna que nega o senso comum e concebe que o conhecimento deve ser demonstrável e verificável por um método objetivo; • identificar o Positivismo Científico como concepção de ciência social que reduz os fenômenos da realidade a fatos comprováveis e que abandona questões metafísicas ou demasiadamente complexas; • diferenciar o Positivismo Jurídico do Positivismo científico de forma a individualizar o Positivismo Jurídico como concepção de direito estritamente legal produzidas pelo Estado; • relacionar o processo de codificação do direito moderno com as correntes interpretativas que se limitam ao procedimento de subsunção; • particularizar a teoria de Hans Kelsen com relação aos procedimentos interpretativos do direito considerado como sistema normativo hierárquico e autossuficiente;• analisar a crise do direito desde o marco positivista identificando a novo constitucionalismo como novo paradigma de direito e de interpretação; • diferenciar o conceito de regras e princípios jurídicos de forma a compreender os distintos procedimentos compreensivos destas categorias normativas; • compreender a ressignificação interpretativa do direito a partir da Teoria da Argumentação de Robert Alexy adquirindo a habilidade de interpretar a norma jurídica desde o procedimento da ponderação; • conceituar Hermenêutica Jurídica como campo específico de saber preocupado com os pressupostos que norteiam a interpretação e aplicação da norma jurídica; • diferenciar as distintas concepções hermenêuticas desde o marco do positivismo jurídico; • analisar a particularidade do direito brasileiro contemporâneo em relação aos desafios a serem superados no campo interpretativo e argumentativo. 142 Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA TÓPICO 2 – A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO TÓPICO 3 – HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 143 UNIDADE 3 TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 1 INTRODUÇÃO Atualmente, quando falamos em direito estamos situados na tradição do pensamento moderno, que se define como técnico e instrumental e tem como maior expressão, no campo das ciências sociais, o positivismo comtiano. Trata- se de uma concepção que se funda na devoção à ciência legítima um tipo de conhecimento neutro, ou seja, livre de valores de qualquer natureza. No campo do direito, especificamente, o que melhor expressa o pensamento moderno é o positivismo jurídico. Direito Positivo designa o conjunto de normas jurídicas “postas” pelo poder político. Portanto, o Direito Positivo é, nesse sentido, o conjunto de normas legais formais necessárias ao controle social estabelecido e modernamente postas pelo Estado. A maior expressão do positivismo jurídico foi a chamada Escola da Exegese, que criou conceitos e procedimentos interpretativos que serviram de sustentação e justificação da lógica positivista. Partindo de tais concepções, neste Tópico 1 será discutida a interpretação do direito como reprodução do texto legal, o que torna o trabalho do jurista mera exegese e limitada a subsunção do texto legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo, que tem na Teoria Pura de Hans Kelsen sua grande expressão. 2 A RACIONALIDADE CIENTÍFICA MODERNA Quando falamos em Direito estamos nos referindo a uma certa concepção construída na modernidade quando, desde a convergência de fatores e elementos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais ocorridas no mundo ocidental a partir dos séculos XVIII e XIX, se define um novo modo de vida e de pensar que colocou fim de maneira definitiva a Idade Média e abandonada a crença na posição secundária do Direito em relação ao poder divino. Sem dúvida, foi um enorme e prodigioso esforço para a superação da tradição medieval até então dominante, o que acabou por conduzir a uma nova concepção de mundo, inaugurando-se um novo momento da sociedade humana. Neste novo cenário, a recuperação do conhecimento e a revolução da cultura começam a ser considerados ponto de partida para a construção de uma nova maneira de pensar o ser humano em suas múltiplas dimensões. As inovações técnicas se alastram e permitem a visualização de um novo horizonte existencial, UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 144 por exemplo, a bússola magnética, a pólvora, o relógio mecânico e a imprensa. Inovações que provocam a expansão do mundo conhecido, uma nova relação com o tempo e a expansão da secularização do conhecimento Este é o ambiente de um novo ser humano que constrói novas formas de pensar sobre si mesmo e as relações de poder adquirindo mais confiança em sua própria capacidade de discernimento e autodeterminação do que nas autoridades. Enfim, um ser orgulhoso de sua própria razão e ciente de que seria capaz de compreender e controlar o mundo circundante desde suas próprias categorias da razão sem depender de nenhuma divindade onipotente. FIGURA 1 – CONCEITO DE MODERNIDADE FONTE: <https://pt.slideshare.net/carolinapuerto505/filosofiamoderna1anook- 120913154712phpapp02-1>. Acesso em: 27 abr. 2021. Então, de forma definitiva eram rompidos os vínculos com o passado medieval e inaugurada uma era em moldes absolutamente novos anunciando o alvorecer de um progresso humano infinito. Nesses novos tempos, o passado não tinha mais sentido em ser revivido, mas ser compreendido como forma de perspectiva para o futuro. A autoridade da tradição é abolida. O conceito de moderno inclui a independência e a inovação. Talvez, por essa razão, o conceito de modernidade é de abertura; de contínua ideia de inovação; de predominância da ciência. TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 145 Vejamos as razões que tornam a ciência moderna uma forma inédita de produzir conhecimento. Entre os séculos XVIII e XIX, na Europa, quando a ciência já havia assumido uma instância superior, indo além do bem e do mal (SOUSA SANTOS, 2001, p. 51), finalmente, os “tempos modernos” vão predominando e a ciência torna-se um novo meio de conhecimento que exige uma forma específica de racionalidade. Trata-se de um modelo de racionalidade essencialmente orientada pelos postulados e métodos das ciências naturais que pouco a pouco se estende aos diversos campos do conhecimento, que, no entender de Sousa Santos, acabou por constituir-se num modelo totalitário, universal de conhecimento, já que “nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas” (SOUSA SANTOS, 2001, p. 61). O QUE É A CIÊNCIA? “O conceito de ciência é algo que vem sendo debatido desde os primeiros estudos sobre o próprio termo. Por conta disso, torna-se difícil estabelecer algo estático, já que os estudos e desenvolvimento científico são uma constante. Dessa forma, podemos estabelecer alguns tópicos para exemplificar o conceito deste termo. O conhecimento científico se caracteriza como uma crença que pode ser questionada. Ou seja, para se chegar à algo conclusivo os estudos passam por uma série de testes e averiguações com o intuito de comprovar e afirmar algo ou alguma questão. Neste caso, se difere da religião, por exemplo, pois independente das crenças, qualquer pessoa pode chegar aos mesmos resultados ou, até mesmo, colocá-los em análise novamente. Assim, é passível de questionamentos, pesquisas e investigações. Outro ponto a ser analisado, é que a ciência não é um argumento de autoridade. Ou seja, os estudos evoluem de acordo com novas descobertas, novos instrumentos de pesquisa, etc. Com isso, não significa que o conhecimento desenvolvido por estudiosos (Sócrates, Platão, Aristóteles, Tales de Mileto, etc.) seja lei ou algo do tipo. Isso porque, estão sujeitos à averiguação e análises. Assim, para que o conhecimento seja considerado científico, ele deve ser racionalmente garantido. A ciência também não se enquadra no conceito de senso comum. Ou seja, o senso comum se refere à saberes adquiridos durante determinado tempo e que são passados por gerações. Portanto, aprendemos sobre determinada situação pelas experiências de vida. Pelo senso comum, temos respostas prontas sobre questões do dia a dia, por exemplo” FONTE: <https://conhecimentocientifico.r7.com/o-que-e-ciencia/>.Acesso em: 26 abr. 2021. INTERESSA NTE UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 146 FIGURA 2 – MÉTODO CIENTÍFICO MODERNO E O RELIGIOSO FONTE: <https://br.pinterest.com/pin/559079741224068150/>. Acesso em: 26 abr. 2021. Observe a figura acima. Perceba que a produção do conhecimento considerado científico obedece a um criterioso e rigoroso método e é distinto, por exemplo, da religião que explica os fenômenos através da fé e revelação. Essa característica essencial da ciência moderna é diferente das concepções de conhecimento em momentos históricos anteriores. Com o conceito moderno de conhecimento é edificado um modelo de racionalidade que rompe com o senso comum, negando qualquer conhecimento fundado tão somente na prática. Partindo da concepção de que o mundo pode ser compreendido como uma espécie de “máquina” consolida-se a concepção de que o conhecimento é resultado da adoção de critérios metodológicos adequados e precisos, tendo como pressuposto a certeza da existência da ordem, previsibilidade e estabilidade que pode ser conhecida. Assim, a compreensão da realidade passa a pressupor o uso adequado de uma operação técnica. Tal modelo de racionalidade que foi sendo construída desde o Renascimento no mundo europeu, e a partir do século XIX, adquire o status de modelo global de racionalidade científica alastrando-se para os diversos campos do conhecimento, colonizando culturas e sociedades, sobretudo ocidentais. Esse modelo é representado melhor pelo positivismo, em suas distintas vertentes, que para Sousa Santos assenta-se nas seguintes ideias fundamentais: [...] distinção entre sujeito e objecto e entre natureza e sociedade ou cultura; redução da complexidade do mundo a leis simples susceptíveis de formulação matemática; uma concepção da realidade dominada pelo mecanicismo determinista e da verdade como representação transparente da realidade; uma separação absoluta TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 147 entre o conhecimento científico – considerado o único válido e rigoroso – e outras formas de conhecimento como o senso comum ou estudos humanísticos; privilegiamento da causalidade funcional, hostil à investigação das “causas últimas”, consideradas metafísicas, e centrada na manipulação e transformação da realidade estudada pela ciência (SOUSA SANTOS, 2006, p. 25). O termo “positivismo” foi empregado pela primeira vez pelo filósofo francês Claude Saint-Simon (1760-1825) para designar o método exato das ciências e a possibilidade de sua extensão à filosofia. Mais tarde, Auguste Comte (1798- 1857) utilizou a expressão para designar a sua filosofia, que teve grande expressão no mundo ocidental durante a segunda metade do século 19 (estendendo-se no Brasil à primeira metade do século 20). FIGURA 3 – AUGUSTE COMTE E O POSIVITIVISMO FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/11117776/>. Acesso em: 27 abr. 2021. A característica essencial ao positivismo, tal qual o concebeu Comte, é a devoção à ciência, vista como único guia da vida individual e social, única moral e única religião possível. UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 148 Da obra fundamental de Comte, Curso de Filosofia Positiva, escrita entre 1830 e 1942, a partir das aulas dadas pelo pensador se extrai elementos fundamentais de seu pensamento: Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renúncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, as suas leis efetivas, a saber, as suas relações invariáveis de sucessão e de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos reais, se resume de agora em diante à ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e a alguns fatos gerais, cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir (COMTE, 1978, p. 36-37). É a partir do positivismo filosófico de Comte que passa a predominar a concepção segundo a qual as ciências devem se ater aos fatos e aos fenômenos conhecidos, abandonando questões metafísicas ou demasiadamente complexas, utilizando-se da observação desses fenômenos e da reflexão lógica sobre eles. O positivismo comtiano é absorvido por diversos ramos, tais como a história, sociologia e também o direito (ELTZ; TEIXEIRA; DUARTE, 2018, p. 33-34). Em síntese, o positivismo é a concepção que melhor caracteriza a ciência moderna. Se caracteriza pela crença que somente é válido e confiável o conhecimento acerca dos fatos observados e estudados através do método próprio das ciências experimentais (observação, quantificação e experimentação), pressupõe que o espírito e os métodos científicos experimentais devem se estender a todos os domínios da vida intelectual, política e moral. Porém, como veremos a seguir, positivismo jurídico é uma expressão específica utilizada para designar uma doutrina de direito que é elaborada desde a predominância do legalismo como legitimação de qualquer ação social, tanto no individual quanto no plano político, a partir da previsão legal – conjunto normativo escrito de caráter geral e abstrato – e que obedece a um modelo técnico-racional e produzida unicamente pelo Estado, trazendo como um de seus corolários o princípio do primado da lei. O predomínio do paradigma da legalidade como fundamento de direito é uma invenção do século XIX que vem na esteira das revoluções burguesas que vincula a teoria da soberania popular e da representação parlamentar como reação à concepção absolutista de Estado. TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 149 3 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO EXPRESSÃO DO DIREITO MODERNO Para melhor compreendermos como se construiu o Direito Moderno, seus postulados interpretativos e argumentativos, é necessário lembrar rapidamente o “cenário” político e histórico no qual ele foi construído, e para isso retornemos ao mundo europeu dos séculos XVI a XVIII, dentro do qual reinventou-se o conceito de política e de poder que servirá de explicação para o modo como o Direito foi elaborado. Um dos elementos centrais e ponto de partida é o conceito de contratualismo, uma espécie de “fórmula” política e jurídica que vai aliar convenientemente convivência social e submissão a um poder comum. Os pensadores contratualistas, tais como Thomas Hobbes (1588-1679), B. Spinoza (1632-1677), S. Pufendorf (1632-1694), John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), I. Kant (1724-1804) defendiam a ideia de que o “estado de natureza” é um tipo de condição humana irracional que deveria definitivamente ser superado quando uma forma de poder fosse capaz de controlar os conflitos. Esse estado de natureza, marcado por um individualismo caótico, deveria ser substituído por um mundo de indivíduos dotados de direitos iguais formando um corpo político comum, uma força esmagadoramente maior do que qualquer um isolado, e governado por um único poder legítimo: o Estado. O contratualismo moderno, proposto nas teorias de Hobbes, Locke e Rousseau, funda-se na crença de que para haver uma nova ordem social e política esta deve estar subordinada a uma justiça comum racional e objetivamente elaborada, de forma que sua compreensão se aproxime do método científico e, assim, as obrigações políticas e jurídicas, unificadas, vão sendo elaboradas como legítimas, racionais, verdadeiras e objetivas. É nessa concepção de contrato social e racionalidade moderna que se funda o corpo político: a recíprocaobrigação política horizontal, cidadão para cidadão, e vertical, do cidadão para com o Estado. Nessa indissociável relação é que se compreende o objetivo do Direito Moderno. Em outras palavras, o direito não pode servir de instrumento de violação da vontade geral e deve ser tão universal e abstrato como a vontade que o justifica. Em síntese, o Direito Moderno é definido potencialmente como vontade do soberano, manifestação de consentimento e autoprescrição. Embora com divergências, os pensadores políticos e jurídicos modernos são movidos pelo desejo de justificar uma nova ordem social que vinha emergindo a partir de critérios racionais e universalmente válidos, na qual o direito ocupa um papel central. UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 150 QUADRO 1 – OS CONTRATUALISTAS E SUAS TEORIAS FONTE: <https://fabiomesquita.wordpress.com/2018/03/02/contratualistas/>. Acesso em: 27 abr. 2021. TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 151 É a partir da concepção do contratualismo que se consolida um dos grandes princípios do Direito Moderno: o princípio da legalidade. Tal princípio funda-se na ideia de que um conjunto de normas objetivas, tecnicamente adequadas e legitimamente construídas é capaz de promover a segurança jurídica e a previsibilidade nas relações humanas. Segurança jurídica, para o jusfilósofo Miguel Reale (1994, p. 102), é a existência de “algo subjetivo, um sentimento, a atitude psicológica dos sujeitos perante o complexo de regras estabelecidas como expressão genérica e objetiva da segurança mesma”. Para esse autor, o problema da “segurança” não é somente uma questão de “sentimento” ou “sensação”, mas também a certeza de existência de um conjunto de instrumentos eficazes e complexos de garantias a fim de proteger os indivíduos envolvidos nas “tramas” da convivência humana. Afinal, “segurança” sem “certeza” seria uma falácia! Lembrando o conceito de Estado Moderno enquanto produto de uma vontade geral, ideia de contrato social, este ente político torna-se fonte legítima para a produção do Direito através de algumas crenças, tais como o paradigma da legalidade e a onipotência do legislador. O legalismo moderno pode ser compreendido como um conjunto de normas objetivas gerais e abstratas produzidas exclusivamente pelo Estado, cuja finalidade é controlar a ação social, tanto individual como política, estabelecendo deveres e direitos de forma coercitiva. FIGURA 4 – MÁXIMA EXPRESSÃO DA LEGALIDADE FONTE: <http://www.acarlosoliveira.com/2017/04/12/dura-lex-sedlex-a-lei-e-dura- mas-e-a-lei/>. Acesso em: 27 abr. 2021. O paradigma da legalidade era, no século XIX, de certa maneira é, um dos pilares centrais da segurança jurídica, uma vez que garante a coesão do grupo social e organiza a consciência individual em função de padrões universais, válidos para todos, de justiça e previsibilidade, legitimando a ordem política e jurídica posta, criando uma espécie de “consenso” no agir coletivo e individual. UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 152 O historiador português do Direito, Antonio Manuel Hespanha, esclarece que o plano jurídico vinha ao encontro da pretensão de colocar fim tanto à incerteza e ao casuísmo do modelo jurídico tradicional, quanto à proliferação de sistemas especulativos sobre direito natural que haviam surgido ao longo do século XVIII, “ou seja, dirigia-se tanto contra a vinculação do direito à religião e à moral, como contra a sua identificação com especulações de tipo filosófico como as que eram correntes nas escolas jus-racionalistas. Contra uma coisa e contra a outra proclamava-se a necessidade de um saber dirigido para coisas positivas” (HESPANHA, 1997, p. 15). A partir do século XIX, passa a predominar a concepção de que o direito é um sistema de normas que expressam os direitos inatos do indivíduo e necessários, definidos pela natureza humana expressos na letra da lei. Assim, vai se construindo a concepção de Direito como Direito Positivo, ou seja, de que direito legítimo e válido é aquele posto pelo poder político estatal, e este é o postulado central do positivismo jurídico, que é a doutrina segundo a qual o único direito é o direito positivo. FIGURA 5 – POSITIVISMO JURÍDICO FONTE: <http://legemdiscipulus.blogspot.com/2014/08/o-positivismo-juridico.html>. Acesso em: 27 abr. 2021. “Direito Positivo” é a expressão que designa o conjunto de normas jurídicas “postas” pelo poder político. Portanto, o Direito Positivo é, nesse sentido, o que é necessário para o controle social estabelecido modernamente pelo Estado, cuja maior expressão do positivismo jurídico foi a chamada Escola da Exegese. A Escola ou Corrente Exegética é produto do contexto da França revolucionária do século XIX, quando o movimento da codificação veio a mudar radicalmente o conceito de Direito, fazendo verdadeira “tábua rasa” da ordem jurídica anterior. Ao criar uma nova mentalidade que identifica Direito com os códigos, os juristas desenvolvem um instrumental técnico de interpretação e aplicação do Direito, seguindo uma orientação exegética. TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 153 FIGURA 6 – CÓDIGO CIVIL FRANCÊS PROMULGADO NO SÉCULO XIX FONTE: <https://www.todoestudo.com.br/historia/codigo-napoleonico>. Acesso em: 29 abr. 2021. A MODERNA CODIFICAÇÃO NAPOLEÔNICA O Código Napoleônico surge após Napoleão Bonaparte tornar-se Imperador da França, entrando em vigou no dia 21 de março de 1804. Nesse período, a economia nacional atendia às necessidades da elite burguesa tanto financeira, como de grupos ligados ao comércio e à produção de bens de consumo. Além desse apoio ao projeto econômico burguês, o governo de Bonaparte ofereceu garantias jurídicas que os proprietários vinham querendo há bastante tempo, instituindo assim o Código Napoleônico, um novo código civil. Napoleão criou uma comissão para elaborar esse novo código civil. De acordo com o novo Código Napoleônico, todos os franceses estavam sujeitos às mesmas leis. Antes do Código outorgado por Napoleão, a França não tinha um único conjunto de leis, estas eram baseadas em costumes locais, havendo frequentes isenções e privilégios dados por reis ou senhores feudais. Os princípios de igualdade e liberdade foram consagrados no código elaborado por Napoleão. Instituiu o casamento civil e o divórcio e abolia os privilégios do clero e da nobreza. As greves foram consideradas ilegais. O Código Napoleônico também determinava: Liberdade individual; Liberdade de iniciativa privada; Consolidava o liberalismo político e econômico; Favorecia os interesses da burguesia; Liberdade de pensamento; Liberdade religiosa; Direito à propriedade privada; Consolida a discriminação a mulher: a mulher deve estar submetida ao homem (pai, irmão ou marido). Para garantir a adoção desse sistema, foi necessária a imposição de forte censura à imprensa e a organização de uma força policial eficiente para cumprir as determinações do imperador nas cidades. Tais medidas, mais semelhantes às políticas feudais do que as ideias trazidas com a Revolução permitiram à França tornar-se o primeiro país a ter um efetivo sistema de leis escrito. Grande parte do Código, em especial os artigos que tratam do direito privado e do direito das obrigações permanecem em vigor na França até hoje neste que é certamente a contribuição mais duradoura de Napoleão para a história. FONTE: <https://www.todoestudo.com.br/historia/codigo-napoleonico>. Acesso em: 29 abr. 2021. INTERESSA NTE UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 154 Com a codificação é inaugurada uma forma específica de interpretação do direito conhecida como técnica exegética. No dizer de Bobbio, a técnica exegética consiste em: “[...]assumir pelo tratamento científico o mesmo sistema de distribuição da matéria seguido pelo legislador e, sem mais, em reduzir tal tratamento a um comentário, artigo por artigo, do próprio Código” (BOBBIO, 1993, p. 83). A Escola da Exegese teve como pretensão reduzir o direito à lei sistematizada nos códigos, desde então compreendidos como única manifestação legítima do direito. Tal concepção acaba por transformar o saber jurídico em conhecimento dos códigos, trazendo como consequência um autêntico culto à lei e o princípio da autoridade. Nessa perspectiva, a interpretação e aplicação da lei tem por base a intenção do legislador expressa na lei. Em assim, a função do jurista é “revelar” ou “desentranhar” do texto legal a vontade do legislador. A ficção jurídica da crença de um legislador onipotente e detentor de “uma vontade” expressa no texto legal é herança do dogmatismo positivista, que compreende o texto da lei como expressão da mens legislatoris (vontade do legislador) e pressupõe que os códigos são instrumentos políticos com poder de garantir a certeza das relações sociais e políticas. Assim, o direito considerado como fato objetivado e delimitado nos códigos deve ser interpretado e aplicado através de regras de dedução de forma a estabelecer o sentido imanente da norma tal qual foi previsto pelo legislador. A máxima do pensamento exegético dura lex sed lex (a lei é dura, mas é a lei) deixa evidente que a interpretação e aplicação da lei devem ser submetidas à razão expressa na lei, a razão de um Estado Legislador. Para dar conta da perspectiva formalista e lógica da ciência jurídica, definitivamente o intérprete não pode operar senão o que lhe é dado, que são as proposições normativas e sistematicamente organizadas nos códigos. Essa preocupação cientificista herdada pelos juristas do século XVIII se explica pelo conceito sistemático de Direito, que se resume em um conjunto de elementos estruturados pelas regras da dedução. Nesse sentido, interpretar significa, sob tal ótica, estabelecer o sentido imanente da norma na totalidade do sistema tal qual foi previsto pelo legislador. 4 A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO MODERNO NO MARCO DO POSITIVISMO LEGALISTA Desde a perspectiva moderna, interpretar o direito se reduz à reprodução do texto legal, tornando o trabalho do jurista uma mera exegese limitada à subsunção do texto legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo. TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 155 Subsunção é a aplicação da norma ao caso concreto; o perfeito enquadramento do fato individual à norma abstrata e geral prevista. IMPORTANT E Desde o século XX, poucos foram os autores que ousaram desafiar o paradigma interpretativo da subsunção, especialmente após o advento da obra Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pensador que se esmerou em demonstrar como a “pureza” metodológica do Direito é a principal característica de sua cientificidade. O direito, nessa perspectiva, é transformado em uma ciência dogmática estática, reservando ao jurista o papel de reprodutor de códigos e leis, eliminando qualquer discussão acerca dos valores, interesses e necessidades sociais que estão subjacentes à norma jurídica e como isso, além de empobrecer o papel do direito, o transforma de instrumento de reprodução de uma ordem política posta. A subsunção é uma forma de raciocínio jurídico própria da prática positivista. Trata-se de uma concepção que entende que a aplicação do direito ao caso concreto é resultado de um pensamento silogístico no qual o juiz fixa: a) O fato como premissa maior. b) O sistema normativo como premissa menor. c) O direito do caso concreto como conclusão necessária e inquestionável. Esse modelo pressupõe: a) O direito como um sistema autossuficiente – não necessita de nenhum elemento valorativo externo como por exemplo moral – e coerente. b) O raciocínio lógico é a metodologia adequada para fixar o justo do caso concreto. c) Há possibilidade de distinção entre fato (premissa maior) e direito (premissa menor). d) A decisão, justo do caso concreto, é resultado do necessário e inquestionável “enquadramento” (subsunção), extraindo daí os efeitos legais e jurídicos para o caso concreto. O fundamento dessa prática é a ideia de que o direito posto (direito positivo) tem a capacidade de resolver todos os casos concretos e a atividade jurídica é um ato neutro (independente de valores morais e éticos) e imparcial. UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA 156 Kelsen contribui decisivamente para a autonomia científica do Direito, sobretudo com a publicação da obra Teoria Pura do Direito, em 1934 – com segunda edição em 1960, sendo esta a mais destacada produção do autor ao lado de Teoria Geral do Direito e do Estado e Teoria Geral das Normas – obra póstuma. A Teoria Pura do Direito é a obra pioneira que distingue duas esferas distintas: o fenômeno jurídico – manifestação social e valorativa do Direito – e a ciência do Direito – entendimento técnico procedimental científico dessa manifestação. E é nessa distinção que vamos encontrar a base da teoria kelseniana, qual seja: direito e moral. Desde tal perspectiva, o órgão julgador – Estado – não está legitimado a julgar de acordo com convicções políticas/morais, mas sim de acordo com o sentido do fato dado pelas normas estatais. É nessa dimensão que deve ser compreendida a famosa dicotomia “ser” - mundo dos fatos/da vida social -; e “dever ser” – direito positivado/o fato como deve ser -; ou seja, a preocupação de Kelsen é diferenciar o direito como é (vigente) da valoração moral do conteúdo ou sentido normativo. O “dever ser” é sempre produto de uma vontade política legítima e o “ser” é produto da vontade politicamente sem legitimidade. Ou seja, alguém pode exigir que outro faça ou deixe de fazer algo por entender moralmente justo (prescrever uma ação ou omissão), mas não pode obrigar ao sujeito fazer ou deixar de fazer o que quer. Por quê? Exatamente porque não possui legitimidade política para tal exigência. E a ciência do Direito permite a abstração do direito do mundo dos fatos sociais. Vejamos como Kelsen define sua Teoria: A teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito [...] De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto (KELSEN, 2006, p. 1). TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 157 Lendo atentamente as primeiras palavras da obra não é difícil concluir que o objetivo de Kelsen é “depurar” o Direito, entendido exclusivamente como Direito Positivo, de outras formas de conhecimento, compreendendo-o como ciência em simesma. É evidente em Kelsen que a atividade do jurista, a partir de um sistema normativo previamente definido – Direito Positivo – deve chegar à norma do caso concreto, não cabendo nesta análise os valores que antecedem a elaboração da norma. Exatamente por esta concepção é que Direito e Estado seriam “duas faces” de uma mesma “moeda”. Um conceito importante na teoria kelseniana é o conceito de validade da norma. Validade deve ser compreendida como a qualidade e condição da norma que quando ela é emanada de um órgão político competente e se elaborada de acordo com o procedimento, modo, hierarquia, estrutura e lógica prevista pelo ordenamento jurídico. Validade não significa que a norma é certa ou errada/ justa ou injusta; mas elaborada de acordo com os pressupostos estabelecidos de maneira formal pelo sistema normativo. A validade normativa deve ser compreendida a partir do fundamento de validade de todo sistema normativo: a norma hipotética fundamental (Grundnorm). A recíproca e hierárquica relação de validade entre as normas que compõem o sistema é definida a partir do fundamento último de validade de todo ordenamento jurídico, formando uma espécie de “pirâmide” cujo vértice é a norma fundamental. [...] segundo uma teoria jurídica positivista, a validade do Direito positivo se apoiar numa norma fundamental que não é uma norma posta nas uma norma pressuposta e que, portanto, não é uma norma pertencente ao Direito positivo cuja validade objetiva é por ela fundamentada, e também no fato de, segundo uma teoria jusnaturalista, a validade do Direito positivo se apoiar numa norma que não é uma norma pertencente ao Direito positivo relativamente ao qual ela funciona como critério ou medida de valor, podemos ver um certo limite imposto ao princípio do positivismo jurídico (KELSEN, 2006, p. 238). Portanto, há um pressuposto de validade de todo sistema, uma norma não jurídica, mas política, que estabelece uma espécie de estrutura hierárquica de normas onde, em tal escalonamento, no ápice – ponto mais alto da hierarquia – há uma última norma que não é a norma constitucional de um Estado, mas um pressuposto inexistente fisicamente, mas existente logicamente. Todo sistema hierárquico requer um “ponto final” de referência para não regressar ad infinitum, além de que, se não há um pressuposto de validade pode ser aceito qualquer um. O que se pode afirmar é que o limite de validade 158 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA aceito pelo pacto social são os valores que constituíram a ordem constitucional, e é a partir daí que deve raciocinar o jurista, funcionando como um princípio/ fundamento de legitimidade de todo sistema. Desde esse conceito de validade não é difícil compreender que Kelsen nos leva a compreender que Direito é um sistema de normas hierarquicamente definidas desde a ordem política e jurídica estabelecida segundo um pressuposto de validade – norma hipotética fundamental – e que permite o controle de constitucionalidade das normas. FIGURA 7 – A HIERARQUIA E VALIDADE DAS NORMAS EM KELSEN FONTE: <http://blogoosfero.cc/politica-cidadania-e-dignidade/blog/piramide-de-kelsen>. Acesso em: 30 abr. 2021. Não é difícil concluir que o método kelseniano de interpretação deve ser compreendido como a busca de uma tentativa de autonomia da ciência do Direito, não como o estudo ou a teoria de uma ordem jurídica particular, mas TÓPICO 1 — O DIREITO MODERNO E A QUESTÃO INTERPRETATIVA 159 compreender as estruturas sobre as quais de constrói o Direito Positivo e a universalização dessas estruturas. Exclui-se qualquer preocupação sociológica ou juízo acerca do justo, uma vez que o que importa para a Teoria Pura é compreender os pressupostos de validade, vigência e eficácia da norma jurídica. Isso significa que o objeto do Direito nessa concepção pode e deve ser estudado como algo diverso/separado dos fenômenos sociais e estudar a ciência jurídica é independente da realidade social. Essa é uma das grandes problemáticas do positivismo jurídico, devendo o jurista limitar-se ao Direito posto, estabelecido pelas relações de poder, não observando as questões valorativas, éticas ou sociais que o conduziriam a realidade social. O Direito normativo/dogmático e somente este é seu objeto de estudo. Diante disso, o jurista não precisa ficar indiferente no que diz respeito a valores éticos, morais e sociais; ele pode criticar o Direito positivo e esforçar-se para modificá-lo, alcançando assim sua reforma e a estruturação de algumas normas quando julgar necessário (LIXA; SPAREMBERGER, 2016, p. 36). Como já afirmado, o postulado central do positivismo é a crença epistemológica que o sentido do justo está expresso na letra da lei. Como parte integrante da mesma crença, os ideais de plenitude, coerência, universalidade e atemporalidade do sistema normativo permitem, enquanto instância racional, a elaboração de ficções hermenêuticas, como a “vontade do legislador” e “vontade da lei", de múltiplas funções práticas e ideológicas. Inicialmente, esses postulados justificam a atividade compreensiva do direito como ato formal, excluindo qualquer possibilidade de criação por parte do intérprete e inferência de elementos substanciais, em nome da igualmente ficção “segurança jurídica”. Em tal perspectiva, as aparentes ambiguidades, insuficiências, lacunas ou mesmo contradições do sistema poderiam ser solucionadas com critérios hermenêuticos adequados e análise mais detalhada do significado do texto legal. Esta “flexibilidade dogmática” seria necessária para resolver as dificuldades práticas, solucionada com a reportação do intérprete à mente do legislador, compreendendo o caso concreto tal qual teria sido previsto ou poderia resolver o elaborador da lei. Enfim, o postulado da vontade do legislador permitiria ao intérprete superar os silêncios, imprecisões e contradições do texto legal, mantendo as exigências procedimentais do formalismo em sua aplicação. Assim, a operacionalidade técnica do sistema normativo acaba por identificar metodologia da ciência jurídica com procedimento interpretativo, confundindo-se essa metodologia, e por vezes absorvendo, com o ato hermenêutico. Trata-se, sobretudo, de uma racionalidade cognitiva-instrumental específica do direito moderno que pretende solucionar o problema básico da atividade jurídica como a correta e segura determinação do sentido prático da ordem normativa. 160 Neste tópico, você aprendeu que: • O direito moderno é resultado da racionalidade científica moderna que nega o senso comum e concebe que o conhecimento deve ser demonstrável e verificável por um método objetivo. • O Positivismo Científico é a concepção de ciência social que reduz os fenômenos da realidade a fatos comprováveis e que abandona questões metafísicas ou demasiadamente complexas. • O Positivismo Jurídico se diferencia do Positivismo científico, sendo o Positivismo Jurídico a concepção de direito estritamente legal produzidas pelo Estado. • A codificação do direito moderno iniciada no século XIX legaram correntes interpretativas que se limitam ao procedimento de subsunção. • A Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen com relação aos procedimentos interpretativos considera direito como direito positivo, ou seja, como sistema normativo hierárquico, autossuficiente e autointerpretativo. RESUMO DO TÓPICO 1 161 1 A questão interpretativa do direito moderno é reduzida à reprodução do texto legal, tornando o trabalho do jurista uma mera exegese limitada à subsunção do texto legal ao fato da vida social desde um raciocínio lógico dedutivo. Acerca do procedimento interpretativo de subsunção, assinalea afirmação CORRETA: a) ( ) A subsunção é um procedimento que considera como fonte de interpretação os fatos e valores da vida social. b) ( ) A subsunção entende que a aplicação do direito ao caso concreto é resultado de um pensamento silogístico que considera o fato como premissa maior e o direito positivo ou sistema normativo como premissa menor. c) ( ) A subsunção considera que o direito não é autossuficiente, necessitando de referências morais e éticas para sua interpretação e aplicação. d) ( ) A decisão do caso concreto no marco do positivismo jurídico não utiliza a subsunção e sim a ponderação. 2 Hans Kelsen foi um pensador que contribuiu decisivamente para a autonomia científica do Direito, sobretudo com a publicação da obra Teoria Pura do Direito, em 1934. Tal teoria distingue duas esferas distintas: o fenômeno jurídico – manifestação social e valorativa do Direito – e a ciência do Direito – entendimento técnico procedimental científico desta manifestação. Considerando o conceito de interpretação do direito em Kelsen, assinale a afirmação CORRETA: a) ( ) Para Kelsen, a atividade do jurista, a partir de um sistema normativo previamente definido – Direito Positivo – deve chegar à norma do caso concreto, não cabendo nesta análise os valores que antecedem a elaboração da norma. b) ( ) Na interpretação necessariamente devem ser incluídos valores éticos e sociais, a fim de conferir validade ao procedimento interpretativo. c) ( ) A validade da interpretação não depende do órgão político que emana e sim do poder argumentativo do órgão julgador. d) ( ) O método de Kelsen de interpretação não pretende autonomia, uma vez que inclui o juízo acerca do justo ético. 3 Para o pensamento científico moderno, a produção do conhecimento considerado científico obedece a um criterioso e rigoroso método e é distinto, por exemplo, da religião que explica os fenômenos através da fé e revelação. Desde tal consideração, assinale a afirmação CORRETA: AUTOATIVIDADE 162 a) ( ) Para a ciência moderna há uma reaproximação com o senso comum. b) ( ) O conhecimento deve ser resultado da adoção de critérios metodológicos adequados e precisos de forma a produzir um saber objetivo e demonstrável. c) ( ) O positivismo de Comte condena a ciência moderna por compreender que a fé é o fundamento da razão. d) ( ) Com a ciência moderna há aproximação entre saber e moral. 4 Do positivismo de Augusto Comte se originou o cientificismo moderno que se caracteriza pela crença absoluta na razão humana e nos métodos de investigação objetivos e verificáveis. Para Comte, a devoção à ciência deve ser o único guia da vida individual e social, única moral e única religião possível. Pergunta-se: desde Comte, o que pode ser considerado um conhecimento confiável cientificamente? 5 Considere a seguinte afirmação de Lenio L. Streck: “[...] o positivismo é uma postura científica que se solidifica de maneira decisiva no século XIX. O “positivo” a que se refere o termo positivismo é entendido aqui como sendo os fatos [...]. Evidentemente, fatos, aqui, correspondem a determinada interpretação da realidade que engloba apenas aquilo que se pode contar, medir ou pesar ou, no limite, algo que se possa definir por meio de um experimento. No âmbito do direito, essa mensurabilidade positivista será encontrada num primeiro momento no produto do parlamento, ou seja, nas leis, mais especificamente, um tipo de lei: os Códigos”. FONTE: STRECK, L. L. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêuticas e teorias discursivas. São Paulo: Ed. Saraiva, 2012. p. 31). Conforme tal afirmação, como se pode definir positivismo jurídico? 163 UNIDADE 3 TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 1 INTRODUÇÃO No campo do direito, o século XX é marcado simultaneamente pela ascensão e queda do positivismo jurídico, sobretudo pela grande catástrofe humana que foi a Segunda Guerra Mundial e seus desdobramentos. As guerras mundiais significaram o rompimento com o positivismo jurídico e seus postulados, levando ao descrédito as teorias que haviam servido de sustentação, encontrando aproximação entre democracia e constitucionalismo, a solução para um novo modelo de Estado constitucional de Direito, movimento que passou a ser conhecido como neoconstitucionalismo. O neoconstitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo trouxe significativas alterações no direito, particularmente na interpretação normativa, principalmente quando os princípios, amparados e declarados pelas constituições, antes considerados como meros adornos, ganham força normativa. Neste Tópico 2, desde a compreensão do novo constitucionalismo e a nova exigência interpretativa será analisada a Teoria dos Direitos Fundamentais de Robert Alexy como nova proposta no campo argumentativo, destacando-se a ponderação como procedimento capaz de assegurar Direitos Fundamentais e os valores amparados pelas constituições contemporâneas. 2 A CRISE DO POSITIVISMO JURÍDICO Se o século XIX foi marcado por um enorme esforço de construção de ciência desde o modelo proposto por Comte, com a pretensão de estabelecer um conhecimento fundado na neutralidade e objetividade científica, no século XX assiste-se a uma autêntica crise, uma transformação, sobretudo no período pós- guerra. Crise, no campo da ciência, é quando uma teoria ou uma forma dominante de compreender a realidade não é mais eficiente, obrigando à utilização de novos métodos de observar o mundo ao nosso redor, obrigando à busca de novas teorias. Enquanto não são elaborados novos métodos e novas formas de conhecimento há um período de transição, de crise. Para autores como Habermas (1992, p. 109-110), o projeto da modernidade foi construído graças a um enorme esforço intelectual de pensadores iluministas que pretenderam desenvolver uma ciência objetiva, uma moralidade e uma 164 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA concepção de direito que fossem universalmente válidas pela intrínseca lógica de suas proposições gerada pelo acúmulo de conhecimento produzido por sujeitos livres e criativos aliados pelo objetivo comum de buscar emancipação e enriquecimento. O resultado, como já vimos no tópico anterior, foi um grande otimismo em relação à ciência, o que foi dolorosamente rompido pelos eventos que marcaram o século XX, particularmente a grande catástrofe humana que foi a Segunda Guerra Mundial, marcada pelos episódios de Auschwitz e Hiroshima, sendo colocado em cheque a concepção positivista de direito. Auschwitz foi um campo de concentração localizado no sul da Polônia encontrado por soldados soviéticos no dia 27 de janeiro de 1945, quando foram resgatados sobreviventes torturados e extremamente fracos e calcula-se que foram exterminadas mais de 1,1 milhão de pessoas pelo regime nazista. A maioria eram judeus que chegavam aos campos de concentração em trens sem janelas, banheiros ou comida. Ao chegar eram divididos entre os que poderiam trabalhar e os que deveriam ser mortos imediatamente, quando então eram encaminhados às câmaras de gás Zyklon-B. O holocausto, que é o nome dado ao genocídio cometido pelos nazistas, ao todo vitimou 6 milhões de pessoas entre judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, homossexuais, opositores políticos etc., embora sendo o maior número de vítimas, judeus. Hiroshima é uma cidade japonesa que durante a segunda guerra serviu de quartel general para as tropas sino-japonesas. Em 06 de agosto de 1945, a cidade foi arrasada por uma bomba atômica lançada pelos Estados Unidos da América matando 250 mil pessoas e ferindo milhares. O objetivo era a rendição total do Japão e a demonstração do poder bélico-americano.No momento da exploração morreram instantaneamente 86% das pessoas que estavam próximas e os corpos foram desintegrados, não restando sequer corpos para serem contados. NOTA FIGURA 8 – EXTERMÍNIO EM CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO FONTE: <https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/sobibor/>. Acesso em: 30 abr. 2021. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 165 O aprofundamento da crise do positivismo jurídico tem como marco a origem dos regimes totalitários nos países europeus logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O totalitarismo, em suas distintas versões como o stalinismo soviético, o fascismo italiano de Benito Mussolini, o nazismo alemão de Hitler, o salazarismo português e o franquismo espanhol, levou boa parte da humanidade a deixar de acreditar que através da lei haveria justiça. Os regimes totalitários e suas atrocidades, alimentados por crenças ideológicas internacionalizadas socialmente, produziram barbáries e inegável violação aos direitos fundamentais, encontraram no estrito legalismo o álibi perfeito. Talvez por essa razão o positivismo jurídico tornou-se alvo de acusações teóricas e políticas no pós-guerra. A partir dos anos 1950, a Europa, e com ela boa parte da humanidade, deixou de acreditar na neutralidade e autonomia do direito constatando-se que a exclusão de valores éticos e morais do campo interpretativo seriam responsáveis pela complacência dos juristas com o extermínio de seres humanos. Caía em descrédito as grandes promessas que sustentaram o discurso da modernidade. Em síntese, em fins da primeira metade do século XX, marcado pelo pessimismo e descrença, tornou-se urgente a tarefa de lançar um novo olhar sobre um mundo alienado, aniquilado e sem esperança emancipatória. O modelo positivista, ferrenhamente defendido desde fins do século XIX, é levado a julgamento juntamente com os oficiais nazistas no Tribunal de Nuremberg, iniciado em 20 de novembro de 1945, quando então os acusados invocaram em sua defesa o cumprimento da lei e obediência emanada de representantes de um Estado legítimo. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO; BARCELLOS, 2003, p. 107). Sem dúvida, as guerras mundiais também significaram rompimento com o positivismo jurídico e seus postulados, levando ao descrédito as teorias que haviam servido de sustentação. Mesmo Hans Kelsen, judeu perseguido pelo regime nacional-socialista, foi acusado de ser elaborador de uma teoria que sustentou o nazismo. Como vimos anteriormente, para Kelsen, a interpretação e aplicação do direito decorre de um raciocínio lógico-dedutivo a partir da hierarquia normativa, o que subordina as normas inferiores às superiores, independente da validade ética ou moral. Advertia Kelsen: Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como fora da ordem jurídica desses Estados (KELSEN, 2006, p. 44). 166 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA Por outras palavras, o positivismo jurídico em sua versão kelseniana evidencia a inexistência de valores transcendentes de justiça absoluta e universal, demonstrando que o direito é vulnerável aos regimes políticos que podem ser despóticos, totalitários, antidemocráticos e violadores de direitos fundamentais. A tentativa de superação do legalismo positivista distanciado de valores surge com o movimento do constitucionalismo democrático europeu da segunda metade do século XX, batizado como neoconstitucionalismo, que redefine não apenas a ordem política e jurídica, mas o procedimento interpretativo, quando então a argumentação jurídica é renovada, como veremos a seguir. 3 EMERGÊNCIA DO NOVO CONSTITUCIONALISMO COMO PARADIGMA DE DIREITO E DE INTERPRETAÇÃO A crise do positivismo e as catástrofes humanitárias deixaram evidentes a necessidade de mudança do direito no sentido de assegurar garantias fundamentais e estabelecer limites jurídicos para a ação do Estado. No dizer de Padilha (2011, p. 5): As atrocidades cometidas por Adolf Hitler só foram possíveis graças a este entendimento; e.g., através de Decreto expedido em 07.04.1933, os Judeus foram afastados do funcionalismo público, do exército e das universidades; através da Lei publicada em 14.07.1933, foram retirados os direitos de cidadão dos Judeus imigrantes no Leste Europeu; a chamada ‘Lei da Cidadania’ tirou dos judeus alemães a cidadania alemã; a ‘Lei da Proteção da Honra e Sangue Alemão’ proibia os casamentos dos Judeus com não Judeus, proibia o emprego de judeus na Alemanha e proibia os Judeus de exibirem a bandeira alemã, entre outras medidas. Por fim, através de Decreto assinado pelo então presidente Paul Von Hindenburg, foram suspensas sete seções da Constituição de 1919 da República de Weimar, que garantiam liberdades individuais e civis ao povo. Portanto, por mais sanguinário que tenha sido o regime nazista, Hitler não cometeu ilegalidades ou mesmo inconstitucionalidades. Muitas atrocidades eram amparadas pela lei. A própria constituição alemã vigente na época, a chamada constituição de Weimar, em seu artigo 48 conferia poderes ao presidente, poderes para adotar as medidas necessárias para manutenção e restauração da ordem pública, utilizando, se necessário, o uso das forças armadas e a suspensão temporária, total ou parcial dos direitos fundamentais. Esse fato demonstra que não basta a existência da lei ou de uma constituição para garantir direitos. Em “nome da lei”, o Estado, através de seus agentes, pode violar a liberdade, a vida, a igualdade e tantos outros direitos fundamentais. A tentativa de superação desse cenário dá-se com o surgimento de um movimento que se alastra no meio jurídico que passa a aproximar direito, ética e justiça, bem como a recuperação dos valores morais aplicados ao direito até então “esquecidos” pelo positivismo jurídico. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 167 Pouco a pouco vai se definindo uma nova cultura jurídica sustentada por um novo constitucionalismo, consagrado por algumas Constituições do período pós-guerra, que aproximou democracia e constitucionalismo, dando contornos a um novo modelo de Estado constitucional de Direito, passando-se a utilizar o termo neoconstitucionalismo para designar a reformulação do direito desde um constitucionalismo que reafirma os direitos fundamentais, a democracia e seja capaz de romper com o tradicional positivismo jurídico. O termo “neoconstitucionalismo” é relacionado ao conceito de constitucionalismo construído na Espanha e na Itália e tem sido amplamente utilizado sobretudo após os estudos do jurista mexicano Miguel Carbonell. Segundo Carbonell (2004), o constitucionalismo contemporâneo, particularmente representado inicialmente pelas constituições da Itália (1947), Alemanha (1949) e posteriormente pelas constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978) possui, apesar das diversidades, traços específicos, dentre os quais a supremacia atribuída à Constituição no sentido de atribuir alta hierarquia no ordenamento jurídico. Trata-se de uma redefiniçãoda própria cultura jurídica que passou a considerar as constituições como normas superiores de natureza programática, ou seja, os princípios por elas declarados passam a vincular também a interpretação do próprio direito. FIGURA 9 – CONCEITO DE NEOCONSTITUCIONALISMO FONTE: <https://pt.slideshare.net/jeffersonmatheus94/neoconstitucionalismo-41904121>. Acesso em: 30 abr. 2021. 168 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA O neoconstitucionalismo, chamado também de novo constitucionalismo ou constitucionalismo contemporâneo, trouxe significativas alterações no direito, particularmente na interpretação normativa. Ao se considerar o caráter normativo da Constituição, ou seja, considerar os direitos declarados norma em si com poder coercitivo, e a necessidade de proteger valores anunciados através de soluções jurídicas inaugura uma nova prática de interpretação e aplicação de normas jurídicas, indo além da mera subsunção. PARA LEMBRAR: Subsução é a ação ou efeito de subsumir, isto é, incluir (alguma coisa) em algo maior, mais amplo. Juridicamente, ocorre a subsunção quando o caso concreto se “encaixa”, se “enquadra” a uma legal em abstrato. É o raciocínio interpretativo próprio do positivismo legalista! NOTA Os princípios amparados e declarados pelas constituições, antes considerados como meros adornos, ganham força normativa, sendo possível afirmar que a compreensão dos sistemas normativos contemporâneos se condiciona, necessariamente, aos princípios constitucionais. O QUE SÃO PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS? “Os princípios constitucionais são aqueles que guardam os valores fundamentais da ordem jurídica. Nos princípios constitucionais condensa-se bens e valores considerados fundamentos de validade de todo sistema jurídico. Sabe-se que os princípios, ao lado das regras, são normas jurídicas. Os princípios, porém, exercem dentro do sistema normativo um papel diferente dos das regras. As regras, por descreverem fatos hipotéticos, possuem a nítida função de regular, direta ou indiretamente, as relações jurídicas que se enquadrem nas molduras típicas por elas descritas. Os princípios consagrados constitucionalmente, servem, a um só tempo, como objeto de interpretação constitucional e como diretriz para a atividade interpretativa, como guias a nortear a opção de interpretação. Serve o princípio como limite como limite de atuação do jurista. No mesmo passo em que funciona como vetor de interpretação, o princípio tem como função limitar a vontade subjetiva do aplicador do direito”. FONTE: <https://marcelduraes.jusbrasil.com.br/artigos/189323010/principios-constitucionais>. NOTA TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 169 FIGURA 10 – DIFERENÇAS ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS FONTE: <https://emporiododireito.com.br/leitura/teoria-dos-principios-de-humberto-avila-por- marcelo-pichioli-da-silveira>. Acesso em: 30 abr. 2021. A alternativa para a superação da crise do positivismo jurídico que reduz o direito à noção tradicional de norma limitada à regra é quando, no entender do neoconstitucionalismo, o direito passa a considerar os princípios como normas jurídicas, até então consideradas como meras normas políticas dirigidas ao legislador. 170 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIG U R A 10 – A N O R M A T IV ID A D E D O S P R IN C ÍP IO S FO N T E : < h ttp s://w w w .xm in d .n e t/m /3 w m N /> . A c e sso e m : 3 0 ab r. 2 0 2 1. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 171 De maneira bastante simplificada, Luiz Roberto Barroso propõe três critérios para diferenciar regras de princípios: 1. Quanto ao conteúdo: regras são relatos objetivos descritivos de condutas a serem seguidas; princípios expressam valores ou fins a serem alcançados; 2. Quanto à estrutura normativa: regras se estruturam, normalmente, no modelo tradicional das normas de conduta: previsão de um fato – atribuição de um efeito jurídico; princípios indicam estados ideais e comportam a realização por meio de variadas condutas; 3. Quanto ao modo de aplicação: regras operam por via do enquadramento do fato no relato normativo, com enunciação da consequência daí resultante, isto é, aplicam-se mediante subsunção; princípios podem entrar em rota de colisão com outros princípios ou encontrar resistência por parte da realidade fática, hipóteses em que serão aplicados mediante ponderação (BARROSO, 2009, p. 317). Segundo Canotilho (2002), os princípios são normas com um alto grau de abstração, enquanto as regras possuem uma abstração relativamente reduzida. Em relação à aplicação aos casos concretos, os princípios, por serem vagos e indeterminados, necessitam de mediações concretizadoras (do legislador, do juiz), enquanto as regras são susceptíveis de aplicação direta. Ainda, os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido a sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex.: princípios constitucionais) ou com importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex.: princípio do Estado de Direito). A normatividade dos princípios, ou seja, a igualdade de status jurídico entre regras e princípios aponta para uma superação do positivismo jurídico, descortinando um novo conceito não apenas de direito, mas de interpretação na medida em que passa a exigir do intérprete do direito novas formas de expressar o conteúdo valorativo das normas jurídicas, ganhando também relevância a argumentação jurídica, como veremos a seguir. 4 A ARGUMENTAÇÃO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS O constitucionalismo contemporâneo com a normatividade dos princípios trouxe profundas transformações com relação à interpretação e aplicação das normas jurídicas, sobretudo por colocar em destaque os direitos fundamentais amparados constitucionalmente, o que veio a representar um novo desafio aos juristas. Debruçando-se sobre a inovação trazida pelos direitos fundamentais, o pensador Robert Alexy desenvolveu uma destacada teoria conhecida como Teoria dos Direitos Fundamentais, que possui importante desdobramento no campo argumentativo. 172 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 11 – ROBERT ALEXY FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/filosofia-permanecer%C3%A1-sempre-indispens%C3%A1vel- diz-professor-robert-alexy/a-15098328>. Acesso em: 30 abr. 2021. O jurista Robert Alexy é professor titular da cadeira de Direito Público e Filosofia do Direito na Universidade de Kiel. Considerado um dos mais importantes filósofos do direito da Alemanha, sua pesquisa se concentra na interface entre Direito Constitucional e Filosofia do Direito, especialmente nos temas que envolvem a jurisdição constitucional, os Direitos Fundamentais, a Teoria da Justiça e a relação entre as esferas do Direito e da Moral. Seu livro mais conhecido é a Teoria da argumentação jurídica, trabalho de referência obrigatória nas Faculdades de Direito e traduzido para pelo menos oito idiomas diferentes, inclusive o português. Nesse livro ele defende, em linhas gerais, que uma argumentação jurídica não deve ficar apenas no campo exclusivo da racionalidade lógica da decisão jurídica, mas deve valorar os fatos e as normas (argumentação lógico-valorativa), procurando assim uma justificação racional e ao mesmo tempo prática do discurso jurídico. FONTE: <https://www.dw.com/pt-br/filosofia-permanecer%C3%A1-sempre- indispens%C3%A1vel-diz-professor-robert-alexy/a-15098328>. Acesso em: 30 abr. 2021. NOTA A proposta desenvolvida por Robert Alexy parte da teoria dos direitos fundamentais, que aprimora a análise e compreensão dos direitos fundamentais contidos na Constituição alemã e as decisões do Tribunal ConstitucionalFederal Alemão. Entende Alexy que os direitos fundamentais, em certa medida, se assemelham a princípios, e que, em algum momento na prática, vão colidir, o que obriga a uma solução equilibrada e sensata em favor de um ou outro. É, portanto, no momento da decisão que se coloca o problema interpretativo. Quando se trata da relação entre regras e direitos fundamentais, em geral, há uma regra que garante esse direito. Entretanto, nem sempre há normas positivadas ou explícitas de direitos fundamentais, isso porque pode ocorrer que há normas de direitos fundamentais que não são previstas como direito objetivo. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 173 Para a Teoria dos Direitos Fundamentais (ALEXY, 2017), norma é considerado como conceito fundamental e taxativo, ou seja, não é dirigido a uma finalidade ou caso concreto específico, uma vez que, por sua natureza de alto grau de abstração, possibilita aplicação de acordo com cada caso concreto. Daí surge a necessidade de distinção entre regras e princípios e adota, que para Alexy (2017) é uma distinção qualitativa, uma vez que este considera que os princípios são mandamentos de otimização, ou seja, devem ser realizados ao máximo, sendo normas que determinam sua concretização na maior medida possível, considerando a possibilidade dos fatos e dentro do Direito. Entende Alexy (2017) que as regras são ordens definitivas e só podem ser cumpridas ou não. Portanto, há obrigatoriamente uma metodologia diferente de solucionar os conflitos entre as regras e colisões entre princípios. O conflito entre regras deve ser resolvido por meio de subsunção, sendo que o a colisão entre princípios dever ser solucionada por intermédio do sopesamento, ou ponderação, como veremos a seguir. QUADRO 2 – DIFERENÇA ENTRE A COLISÃO DE REGRAS E PRINCÍPIOS FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/3553615/>. Acesso em: 30 abr. 2021. Pelo quadro acima é bastante evidente a diferença entre regra e princípio quando da colisão entre regras e entre princípios, uma vez que há diferença de grau de generalidade e na diferença qualitativa. Enquanto os princípios são ordens de otimização, como já dissemos anteriormente, devem ser aplicados até o seu esgotamento dentro das possibilidades fáticas e jurídicas permitidas. Por 174 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA terem generalidade mais ampla, os princípios podem ser utilizados como ponto de partida a ser observado no cumprimento das regras. Isso vale dizer que as regras possuem como característica principal as determinações e são aplicadas sem ponderações ou flexibilizações. A chamada lei do sopesamento ou ponderação é utilizada quando existem princípios em colisão, não sendo utilizada em casos de regras conflitantes, uma vez que em caso de colisão de regras uma anula a outra o que não é o caso de princípios. Ao ser aplicada a lei do sopesamento em uma situação com dois princípios colidentes, não há uma solução prévia e definida para o caso em apreço. Isso significa que quando houver conflito de dois princípios, um deve ceder para a aplicação do outro, sem que se opere a invalidação do princípio que cedeu. Portanto, há que se avaliar de forma individual o “peso” ou relevância de cada princípio e não a sua validade, se considerando todas as variáveis que incidem no caso concreto para, então, ser atribuído “um peso” a cada necessidade, valor ou interesse em questão de forma a identificar qual princípio deve prevalecer. Essa avaliação com base no peso de cada princípio é a base da lei do sopesamento. Como toda teoria, a ponderação não permanece sem críticas e dificuldades. A primeira crítica que se faz à lei do sopesamento é que permite grande subjetivismo na interpretação, podendo incorrer em arbitrariedade e voluntarismo nas decisões. Assim, corre o risco de imprevisibilidade, o que seria uma ameaça aos direitos fundamentais. A segunda crítica está relacionada à perda da autonomia dada ao legislador, pela natureza de mandamento otimizador dos direitos fundamentais. 5 A PONDERAÇÃO COMO TÉCNICA INTERPRETATIVA A ponderação de princípios é um árduo exercício interpretativo e argumentativo. Seguindo o pensamento de Alexy (2017), ao compreender o direito como razão prática discursiva, propõe o preceito de proporcionalidade como método de aplicação e solução de conflito de princípios. Tendo como base a razoabilidade e devido processo legal, subdivide a proporcionalidade em três sub-regras: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tais sub-regras na prática devem ser aplicadas de forma sucessiva e subsidiária, ou seja, deve ser desenvolvida uma forma de raciocínio sequencial avaliando a adequação e idoneidade do meio adequado para dar concretude ao fim necessário. Portanto, apenas pode ser adotada uma medida ou decisão em nome de um princípio somente se puder realizar sua finalidade. A adequação é evidente quando leva em conta, além de sua inépcia para garantir a realização de uma finalidade amparada por um princípio, ainda afeta negativamente outro princípio, sendo, portanto, o juízo de adequação a relação entre os meios utilizados para os fins desejados. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 175 De acordo com o próprio Alexy (2017, p. 46): Vamos supor que o legislador elabore a norma N com a intenção de melhorar a segurança do Estado. N viola a liberdade de expressão. A segurança do Estado pode ser concebida como materialmente, um princípio, dirigido a proteção de um bem coletivo. Este princípio podemos chamar de P1. A liberdade de expressão pode ser concebida como direito individual fundamental que tem como base um princípio. A esse princípio chamemos de P2. Vamos supor que a norma N não é adequada para promover P1, ou seja, a liberdade de expressão. Nesse caso há uma inadequação, existe a possibilidade fática de cumprir ambos princípios conjuntamente em uma maior medida declarando inválida N. aceitar a validade de N não garante nenhum direito para P1, apenas perdas para P2. A necessidade, por sua vez, ocorre quando comparados os princípios normativos, a aplicação de um poderia causar restrição ou prejuízo a outros. Sendo assim, deve-se optar pelo meio menos gravoso, ou seja, o princípio que cause menos prejuízo aos demais. Por outras palavras, diante de múltiplas possibilidades e decisões diferentes, a necessidade será atendida através da adoção de um meio que menos afete os demais princípios que incidem no caso em questão. Novamente, tomemos o exemplo proposto por Alexy (2017, p. 46): “Vamos supor que há uma alternativa N* para N, e é suficiente adequada para promover P1, e fere menos P2 que N. Nesse caso, P2 proíbe a aplicação de N, uma vez que não é necessária porque P1 pode ser cumprido com um custo menor”. Em ambos os casos, as sub-regras são suficientes e há possibilidade fática de incidência de um princípio. Porém, quando há situações em que um ato necessário e adequado atinge diretamente princípios relevantes, fala-se em proporcionalidade. Neste caso, entra em questão a razoabilidade de restrição aos princípios preteridos quando se compara aos benefícios obtidos com a prevalência de um princípio. Vejamos um caso concreto em que se utiliza a ponderação como critério interpretativo: CONSTITUCIONAL E CIVIL. LIBERDADE DE IMPRENSA VERSOS DIREITO À IMAGEM. PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS - PREVALÊNCIA DO DIREITO À IMAGEM, NO CASO CONCRETO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - VALOR ADEQUADO AOS CRITÉRIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 1. Insurge-se o recorrente contra a sentença que reconheceu os danos moraissofridos pelo requerido e, por consequência, deferiu a indenização imaterial no valor de R$ 5.000,00. Irretocável o julgado. 2. Os princípios da livre manifestação de pensamento e liberdade de informação (art. 5°, incisos IV e IX, e art. 220 da Constituição Federal) devem levar em consideração os direitos fundamentais à honra e à imagem do indivíduo (art. 5°, 176 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA inciso X da Constituição Federal) quanto se referem à publicação de notícia relativa a sua vida íntima. 3. Em sede de reclamação o STF proferiu entendimento no sentido de que: Eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização. Ao determinar a retirada de matéria jornalística de sítio eletrônico de meio de comunicação, a decisão reclamada violou essa orientação. Rcl 22328/ RJ- julgado em 06/03/2013 1ª Turma Dje 09/05/2018 4. Na ponderação de princípios constitucionais conflitantes deve o juiz, para julgar a causa, eleger aquele que deva prevalecer sobre os demais, tomando em conta o caso concreto e o direito violado. 5. No afã de conseguir um número maior de leitores, não se pode publicar manchetes sensacionalistas e ou propor matérias usando termos que denigram o direito de imagem da pessoa envolvida na notícia veiculada. 6. No caso, da leitura da matéria publicada em 08/11/2017 (ID 3654681 págs.1/3) observa-se, ao contrário do que afirma o recorrente, que o enfoque da notícia não se limitou à natureza informativa acerca de depoimento de terceiro vinculado a processo criminal de amplo conhecimento e divulgação de esquemas de propinas envolvendo figuras públicas em âmbito nacional, mas sim é possível verificar que o recorrente atribuiu juízo de valor negativo a comportamento privado atribuído ao recorrido, ao dar à matéria o título: “Na orgia petista, senador comemorou propina em prostíbulo”, bem como ao afirmar no texto da matéria que: “A tradicional cortesia, o ministro preferiu transformar numa noite de festa em uma casa de massagem, um prostibulo na acepção da palavra. A festa foi memorável, as meninas muito animadas e o ministro feliz da vida”. 7. O juízo sentenciante corretamente reconheceu que a matéria divulgada foi abusiva e violou a honra subjetiva do autor/recorrido e que a recorrente extrapolou seu direito de livre informação, restando induvidoso o nexo causal existente entre a conduta e o resultado danoso, a ensejar a incidência de dano moral. 8. Noutro passo, o fato de se tratar, o autor recorrido, de pessoa no exercício de cargo público (Senador da República) não exime ou minora a responsabilidade da publicação, haja vista a maior extensão e alcance da matéria jornalística inadequada e não informativa. 9. A indenização fixada em R$ 5.000,00, para o caso em exame, atende aos critérios da proporcionalidade e da razoabilidade, por isso que deve ser mantido. 10. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. 11. Decisão proferida na forma do art. 46 da Lei n° 9.099/95, servindo a ementa como acórdão. 12. Custas e honorários pela recorrente, estes fixados em 15% (quinze) por cento sobre o valor da condenação. (TJ-DF 07470688920178070016 DF 0747068-89.2017.8.07.0016, Relator: ASIEL HENRIQUE DE SOUSA, Data de Julgamento: 14/08/2018, 3ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 21/08/2018 . P.: Sem Página Cadastrada.) No caso acima, tem-se o conflito entre dois direitos fundamentais expressos em princípios: os princípios da livre manifestação de pensamento e liberdade de informação (art. 5°, incisos IV e IX, e art. 220 da Constituição Federal) devem levar em consideração os direitos fundamentais à honra e à imagem do indivíduo (art. 5°, inciso X da Constituição Federal) quando se referem à publicação de notícia relativa a sua vida íntima a liberdade de expressão. A decisão foi feita desde a ponderação entre, como se lê no acórdão, o afã de conseguir um número maior de leitores através de manchetes sensacionalistas e ou propor matérias e denigram TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 177 o direito de imagem da pessoa envolvida na notícia veiculada. Verificou-se no caso concreto que a notícia não se limitou a informar um acontecimento, mas foi abusiva e violou a honra de um indivíduo, o que não pode ser tolerado pelo direito. Por fim, o valor fixado para indenização foi, segundo o Tribunal, razoável e proporcional ao mal causado, devendo ser mantido. Outra situação comum é o uso da ponderação para o pagamento de aluguel pelo Poder Público. No caso trazido a seguir há a colisão de princípios entre o direito à moradia e recebimento do benefício do aluguel social e o interesse financeiro do Estado que foi considerado de menor peso em relação ao primeiro. Vejamos: APELAÇÃO CÍVEL - PAGAMENTO DE ALUGUEL SOCIAL - RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA - ESTADO DO RIO DE JANEIRO E MUNICÍPIO - SEPARAÇÃO DE PODERES - RESERVA DO POSSÍVEL - PONDERAÇÃO. Pleito autoral versa direito fundamental à moradia e o princípio da dignidade da pessoa humana, prevendo a Constituição Federal competência comum dos entes da federação em promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico. Autora preencheu os requisitos ao recebimento do benefício aluguel social. Colisão de princípios constitucionais. Solução dimensional sugerida por Dworkin. Direito à moradia segura integra o direito fundamental à vida e à dignidade da pessoa humana, prevalecendo sobre o interesse financeiro e secundário do Estado. Ainda que não fosse assim, aplica- se a hipótese o enunciado de súmula 241 deste Tribunal. Exclusão da condenação do Estado do Rio de Janeiro ao pagamento da taxa judiciária ante o instituto da confusão. Negado provimento ao recurso do Município e parcial provimento ao recurso do Estado. (TJ-RJ - APL: 00627207520128190002 RIO DE JANEIRO NITEROI 9 VARA CIVEL, Relator: EDSON AGUIAR DE VASCONCELOS, Data de Julgamento: 21/03/2018, DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 23/03/2018). Vamos relembrar os Direitos e Garantias Fundamentais? 178 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 12 – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS DE ACORDO COM A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA FONTE: <https://www.passeidireto.com/arquivo/50592706/direitos-e-garantias-fundamentais- mapa-mental>. Acesso em: 30 abr. 2021. TÓPICO 2 — A REDEFINIÇÃO INTERPRETATIVA E ARGUMENTATIVA DO DIREITO CONTEMPORÂNEO 179 Em síntese, quando da aplicação de princípios ao caso concreto, o jurista deve responder através da argumentação questões tais como: quais os princípios incidem no caso concreto? Quais as necessidades, valores e interesses por eles protegidos? Quais são mais relevantes? Por quê? Estabelecendo uma relação entre as perdas e os ganhos, qual princípio deve prevalecer? O princípio sacrificado é justificável? Observe que há que ser demonstrado de forma argumentativa, a princípio, deve ser dado mais peso. Evidente que a ponderação deve ser realizada considerando os impactos da decisão na realidade e sua viabilidade fática, considerando sua adequação à estrutura do ordenamento jurídico conferindo validade e legitimidade à decisão. Observe que a subsunção, como critério interpretativo, não exige tanta demonstração do “caminho” escolhido pelo julgador, uma vez que em casos de regras não há que se falar em ponderação diante do caso concreto. 180 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu que: • A crise do direito desde o marco positivista ganhou maior intensidade a partir da segundametade do século XX, quando as mudanças políticas e jurídicas acabam por construir uma nova concepção de constitucionalismo como novo paradigma de direito e de interpretação. • Com o novo constitucionalismo, os Direitos Fundamentais ganham maior status jurídico. Com essa nova ordem política e jurídica há diferenciação no conceito de regras e princípios jurídicos de forma a compreender os distintos procedimentos compreensivos destas categorias normativas. • O novo constitucionalismo redefine o procedimento interpretativo quando então o compreender normativo é ressignificado, sobretudo a partir da Teoria da Argumentação de Robert Alexy que possibilita a aquisição de nova habilidade interpretativa desde o procedimento da ponderação. 181 1 O termo “neoconstitucionalismo” é relacionado ao conceito de constitucionalismo construído na Espanha e na Itália e tem sido amplamente utilizado sobretudo após os estudos do jurista mexicano Miguel Carbonell, que entende que as novas constituições, apesar das diferenças, adquirem supremacia na hierarquia no ordenamento jurídico. Acerca do conceito de neoconstitucionalismo é CORRETO afirmar: a) ( ) Considera o caráter normativo das constituições e o poder coercitivo dos direitos declarados. b) ( ) Não reconhece a natureza normativa dos princípios. c) ( ) Por não haver diferença entre regras e princípios, as constituições são consideradas cartas políticas declarativas de direitos. d) ( ) Os princípios não são normas jurídicas, mas fundamento de validade formal das normas. 2 O neoconstitucionalismo desde fins do século XX representou uma possibilidade de superação do positivismo jurídico que reduz o direito à noção tradicional de norma limitada à regra, enquanto para o neoconstitucionalismo, o direito passa a considerar os princípios como normas jurídicas, até então consideradas como meras normas políticas dirigidas ao legislador. Em relação à diferença entre regras e princípios é CORRETO afirmar: a) ( ) Não há diferença entre regras e princípios, pois são normas jurídicas com igual natureza e poder coercitivo. b) ( ) Regras são previsões e relatos objetivos descritivos de condutas a serem seguidas e princípios expressam valores ou fins a serem alcançados. c) ( ) As regras são normas em colisão aplicadas através da subsunção. d) ( ) Os princípios são previsões legais de condutas. 3 Considere a seguinte afirmação: Para a Teoria dos Direitos Fundamentais proposta por Robert Alexy, norma jurídica é um conceito fundamental e taxativo, ou seja, não é dirigido a uma finalidade ou caso concreto específico, uma vez que, por sua natureza de alto grau de abstração, possibilita aplicação de acordo com cada caso concreto. Desde tal Teoria, recepcionada pelo direito brasileiro contemporâneo, há distinção entre regras e princípios. Pergunta- se: desde a diferenciação entre regras e princípios, qual o procedimento interpretativo em caso de colisão de princípios? AUTOATIVIDADE 182 4 A ponderação de princípios é um árduo exercício interpretativo e argumentativo. Para o pensador do direito, Robert Alexy, ao compreender o direito como razão prática discursiva, propõe o preceito de proporcionalidade como método de aplicação e solução de conflito de princípios. Tendo como base a razoabilidade e devido processo legal, subdivide a proporcionalidade em três sub-regras: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Como se diferenciam a adequação da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito? 183 UNIDADE 3 TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 1 INTRODUÇÃO A Hermenêutica é definida como uma forma específica de conhecimento acerca da interpretação dos textos que tem como objetivo determinar seu significado. A preocupação hermenêutica é discutir ou questionar quais são os pressupostos e elementos que interferem no processo compreensivo com a finalidade de ser estabelecido um “diálogo” entre o autor de um texto e seu intérprete. Especificamente no campo jurídico, a hermenêutica é construída com o advento do direito moderno quando, diante de um agir político-social no sentido de estabelecer as condições para viabilizar o Estado e o modelo de sociedade moderna, é que se coloca a necessidade de uma específica racionalização, não apenas da criação do Direito, mas de sua interpretação e aplicação através de critérios hermenêuticos. Neste Tópico 3 será analisada e discutida especificamente a Hermenêutica Jurídica como conhecimento prévio e necessário para o desenvolvimento do procedimento argumentativo, dando ênfase à hermenêutica jurídica brasileira e os desafios colocados com o advento do constitucionalismo contemporâneo que exige cuidadoso critério metodológico. 2 HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO: CONCEITOS INICIAIS O uso do termo “Hermenêutica” para querer significar interpretação ou compreensão do sentido de uma mensagem expressa na linguagem não é recente na cultura ocidental. Trata-se da tradução latina da palavra grega hermèneutike (IIЄpí EpµηνЄίας utilizado por Aristóteles) que é relacionado à compreensão da mensagem expressa de um texto. Isso significa que o problema da interpretação do discurso – expresso nas diversas formas – é o objeto mais tradicionalmente associado à hermenêutica. 184 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 13 – HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS FONTE: <http://santiagobarreto97.blogspot.com/2017/05/hermeneutica.html>. Acesso em: 30 abr. 2021. O QUE É HERMENÊUTICA? É o conhecimento e a interpretação, especialmente de textos, para determinar o significado exato das palavras por meio das quais um pensamento foi expresso. É interpretar, declarar, anunciar, esclarecer e finalmente traduzir. Significa que algo se torna compreensível ou levado à compreensão. O termo hermenêutica deriva do grego "hermenéuiein" que significa expressar ou enunciar um pensamento, decifrar e interpretar uma mensagem ou um texto filosoficamente. Trata-se de uma tendência que surgiu no século XX e cujos maiores expoentes são Hans Georg Gadamer, Martin Heidegger, Luigi Pareyson, Gianni Vattimo e Paul Ricoeur. FONTE: <http://santiagobarreto97.blogspot.com/2017/05/hermeneutica.html>. Acesso em: 30 abr. 2021. NOTA Mas qual é o problema da interpretação que é objeto de preocupação da hermenêutica? A questão interpretativa envolve a discussão acerca da possibilidade de ser estabelecido um consenso compreensivo dentre um universo de sujeitos. Buscando responder a essa questão surge o conceito mais tradicional de hermenêutica desenvolvido entre os séculos XVII e XVIII por pensadores europeus, sobretudo após a Reforma Luterana, como a seguir veremos, cuja preocupação foi a de buscar a compreensão do sentido do texto a partir do próprio texto. Nesta perspectiva, a atividade hermenêutica era a de “revelar o sentido certo ou verdadeiro” de um texto tal qual teria pretendido o autor. TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 185 Porém, como já vimos na Unidade 1 de nosso estudo, há arbitrariedade dos signos quando ocorre a separação das significações de suas bases concretas, os significantes. É necessário que se leve em conta algumas condições, tais como o contexto cultural, a temporalidade e a particularidade do autor, como elementos de construção da mensagem, o que permite afirmar que não há sentido pleno e fixo de uma mensagem sem levar seu contexto, as mudanças de sentido ao longo do tempo e autoria. Além de outros elementos relevantes, o contexto é elemento que constrói o sentido, exatamenteporque é no contexto que encontramos a expressão da cultura de um grupo social. A compreensão de sentido não se trata de somente domínio da linguagem ou o reconhecimento das palavras. A construção de sentido e interpretação de um texto trata-se de uma autêntica “trama” que envolve vários elementos, como você pode observar na figura a seguir. FIGURA 14 – O ENTRELAÇAMENTO DE “FIOS” NO PROCESSO DA COMPREENSÃO DE UM TEXTO FONTE: <https://www.iniciativaeducacao.org/pt/ed-on/ed-on-artigos/para-compreender-o- -que-le-nao-basta-ao-aluno-conhecer-as-letras>. Acesso em: 30 abr. 2021. A compreensão, portanto, é um processo que envolve o conhecimento prévio da linguagem em si, a decodificação das palavras e o vínculo ou elo cultural e/ou intelectual com o autor do texto. No processo compreensivo há existência de elementos prévios que o intérprete carrega em si e agem diretamente na compreensão. É aí que está um dos campos da hermenêutica. Seu objeto de estudo: a definição de pressupostos que reconhecem os elementos prévios que agem no processo compreensivo e norteiam o processo argumentativo, a partir da definição de um método. 186 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 15 – CONCEITO DE COMPREENSÃO FONTE: <https://www.dicio.com.br/compreensao/>. Acesso em: 30 abr. 2021. Ainda, outro elemento relevante a ser analisado é a relação estabelecida entre o compreender e a realidade em que o intérprete se insere. Trata-se de uma relação entre o texto e o mundo da vida, o contexto, que é histórico, cultural, político, econômico etc. O processo compreensivo decorre das circunstâncias em que o intérprete se insere e sua carga, ou bagagem, intelectual, cultural, ideológica etc., ou seja, o sujeito é produto de suas circunstâncias desde as quais estabelece o horizonte compreensivo, ou horizonte hermenêutico. O que é ter horizonte? Vamos recorrer à definição do importante pensador Hans-George Gadamer: Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo que é visível a partir de um determinado ponto [...], ter horizonte significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver mais além disso [...]. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição (GADAMER, 1999, p. 452). Por outras palavras, “ter horizonte”, no sentido hermenêutico, é estabelecer, de maneira consciente e proposital, um “ponto” a partir do qual se dá a compreensão da realidade. É o que o senso comum muitas vezes chama de “ponto de vista”. Um “ponto de vista” ou “lugar de fala”, como preferem alguns, é eleger os pressupostos valorativos e culturais desde os quais a mensagem é elaborada, emitida e compreendida. TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 187 A preocupação hermenêutica é discutir ou questionar quais são os pressupostos e elementos que interferem no processo compreensivo com a finalidade de ser estabelecido um “diálogo” entre o autor de um texto e seu intérprete. A interpretação é um diálogo mediado pela linguagem entre dois horizontes que se fundem. Portanto, compreender não é mera reprodução de sentidos ou concepções alheias. É o intérprete, desde suas circunstâncias do presente, que recria um sentido dado por um autor. FIGURA 16 – FUSÃO DE HORIZONTES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO COMPREENSIVA FONTE: <http://marcosmucheroni.pro.br/blog/?p=15444#.YG9F8vlKjIU>. Acesso em: 30 abr. 2021. Portanto, falar de interpretação no campo hermenêutico é pensar, no sentido mais contemporâneo, não como um ato subjetivo e individual, mas um diálogo entre o passado e o presente mediado pela linguagem. Independentemente de cada particularidade histórica de cada intérprete, a compreensão é sempre diferente daquilo que originalmente foi pretendido. Se a diferença compreensiva pode criar “muros” entre os indivíduos correndo- se riscos de isolamento de cada qual em “suas verdades” interpretativas, a hermenêutica possibilita, através do diálogo, construir pontes com as “pedras” – obstáculos – tiradas dos próprios “muros” e “verdades” que isola. Observe a figura a seguir. É uma representação do complexo processo interpretativo que envolve o ato de compreender, analisar e interpretar. Por evidente que esses distintos fenômenos se somam para produzir um único resultado que é a apreensão e reprodução do sentido de um texto ou mensagem. 188 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 17 – PROCESSO INTERPRETATIVO FONTE: <https://pt.slideshare.net/clauheloisa/interpretao-e-compreenso-de-texto>. Acesso em: 30 abr. 2021. Perceba que os recursos da linguagem são inúmeros e podem produzir inúmeras formas de um enunciado, porém isso não significa que também sejam infinitas as interpretações. Até porque, se assim fosse, não haveria possibilidade de segurança jurídica e a interpretação do direito seria tão infinita e variável como o número de intérpretes. É exatamente aí que a hermenêutica se torna uma ferramenta muito eficaz para serem definidos os pressupostos adequados de interpretação. A atividade hermenêutica é utilizada nos diferentes campos onde se coloca a questão interpretativa, quais sejam: o teológico, o literário e o jurídico. Vejamos brevemente como se construiu o pensamento hermenêutico moderno para individualizar a hermenêutica jurídica. Em síntese, a hermenêutica é definida como um campo de estudo, para alguns uma teoria, acerca dos pressupostos que norteiam um procedimento interpretativo adequado. TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 189 “Hermenêutica”, no sentido aqui tratado, é um conceito moderno reinventado no século XVII, quando a palavra “hermenêutica” passou a designar um tipo específico de conhecimento de pretensão doutrinária-técnica-normativa cujo objetivo era estabelecer critérios competentes para dirimir controvérsias na interpretação de textos. Sem querer mergulhar no “imenso oceano” da construção ocidental das diferentes concepções acerca da hermenêutica, o importante a destacar é que o problema da compreensão do sentido adquire um caráter novo, porque, como afirma Gadamer (1999), foi neste momento histórico que são reunidas condições inéditas e renovadoras para a questão interpretativa. Tais condições começaram a ser definidas entre os séculos XV e XVII, como já vimos anteriormente, quando um conjunto de transformações sociais aliadas à emergente Revolução Científica modificam as concepções de mundo e do conhecimento até então dominantes. No campo hermenêutico, o evento que veio a representar o passo inicial para a definição da hermenêutica moderna foi a Reforma Luterana, e essa mudança, como veremos, foi significativa para o campo jurídico. Sob a inspiração do humanismo, Martinho Lutero abriu o caminho para o fim da concepção homogênea cristã do mundo e também de interpretação de textos. Segundo a proposta luterana, a Sagrada Escritura deveria ser interpretada em si mesma, sem a necessidade de se recorrer a uma autoridade interpretativa, uma vez que segundo Lutero e seus seguidores, o texto bíblico possui uma literalidade de sentido unívoco. Partindo do desafio de interpretar o texto a partir do próprio texto, os protestantes que se dedicaram à questão hermenêutica resgataram um importante conceito que é o de Círculo Hermenêutico. Trata-se de um conceito que parte do pressuposto de que há em todo texto um sentido que é o que permite a coerência de cada parte do texto e sua relação com o todo, sentido este que é captado e reproduzido pelo intérprete. FIGURA 18 – CÍRCULOHERMENÊUTICO FONTE: <https://ensaiosenotas.com/2014/11/20/o-circulo-hermeneutico-para-leituras-criticas/>. Acesso em: 30 abr. 2021. 190 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA Círculo hermenêutico pode ser definido como um raciocínio de ordem lógica em que é estabelecida a relação de um todo significativo com seus elementos e vice-versa e deste com o intérprete. É também uma forma de ser construída a argumentação circular, até porque ao ser elaborado um argumento, com a finalidade de convencer, é necessária a demonstração dos fatos ou fundamentos que se deseja provar. Ao compreender e interpretar um texto, seja literário, religioso ou jurídico, além da relação entre o autor e o intérprete desde sua experiência existencial, a confrontação de um horizonte com outro é uma operação que pressupõe a pré- compreensão, isso porque apenas se compreende o que se compara com algo que já se conhece. Toda compreensão é uma reorganização e redefinição do prévio, sendo, portanto, ao mesmo tempo um processo de reconstrução e integração. A compreensão é, portanto, um processo que se dá através das relações significativas entre o autor, o texto e o intérprete, devendo ser levado em conta o contexto presente. Por essa razão, interpretar é uma dinâmica reinvenção desde os juízos prévios, ou pré-compreensões. Para Palmer (2018, p. 180) o passado não é um amontoado de fatos sem sentido, mas um fluxo de significações dentro do qual nos movemos e construímos nossas referências que não são absolutas e desde o qual se dá a interpretação. 3 HERMENÊUTICA JURÍDICA Com o advento da moderna concepção de direito como instrumento técnico, racional, intrinsicamente lógico e disciplinador da vida social que encontra na lei a máxima expressão de um saber e vontade política legítima, o direito é convertido em uma ciência sistemática racional. Como já vimos, é sob tal paradigma que se constrói o positivismo jurídico, desde o qual, direito e estrita legalidade tornam-se conceitos inseparáveis, formando como “duas faces” de uma mesma moeda. Por via de consequência, hermenêutica jurídica passa a querer significar a correta interpretação das normas desde um método adequado. Assim, a metodologia hermenêutica positivista absorveu e acabou por confundir-se com a reprodução do sistema normativo. Na esteira desse modelo jurídico e hermenêutico floresce e predomina a convicção de que o sistema normativo positivado possui em si os critérios necessários para legitimamente resolver os conflitos jurídicos, não necessitando seu operador recorrer a nenhuma outra fonte para além daquelas estabelecidas pelo legislador. Nessa perspectiva, tendencialmente a ordem jurídica possuiria capacidade de autointegração, devendo, portanto, seus operadores estarem submetidos exclusivamente à lei, sendo então, a administração da justiça a administração do Direito legal (SAAVEDRA, 1978). TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 191 A estatização da lei acaba por produzir a perda de autoridade dos juristas frente às novas formas de exercício de poder legislativo, e, segundo Garcia (1994, p. 142), faz com que o direito deixe de ser um direito dos juristas em sentido estrito da palavra. A positivação do direito, um longo e complexo processo, onde convergem fatores sociais, políticos, ideológicos, orquestrados pelos interesses da burguesia em ascensão, transformam a racionalização em estatização do direito culminando com o fenômeno moderno da codificação que acaba por produzir progressivamente um sistema normativo complexo que exige, para sua interpretação e aplicação a intermediação de juristas profissionais e especializados. E é aí que se define a hermenêutica jurídica como saber técnico limitado à formalidade legal. A necessidade de um saber dogmático acerca da norma jurídica, que passará a ser nominado hermenêutica jurídica, um campo específico, especializado de conhecimento, pode ser compreendida como parte integrante de um processo cultural, ideológico e político que impôs não apenas a necessidade de racionalizar e explicar a criação do Direito, mas também sua interpretação e aplicação. Portanto, apenas diante de um agir político-social no sentido de estabelecer as condições para viabilizar o Estado e o modelo de sociedade moderna é que se coloca a necessidade de uma específica racionalização, não apenas da criação do Direito, mas de sua interpretação e aplicação. A crença segundo a qual a vontade jurídica do Estado é expressa na lei – portadora de princípios estáveis, seguros e permanentes da “vontade geral” – permite que a lei ganhe uma centralidade nova (HESPANHA, 2005). Em síntese, nessa perspectiva, o ato interpretativo se confunde com método de fixar um sentido estritamente técnico e legal. Por outras palavras, no campo do direito, o problema hermenêutico consiste em definir, a partir do texto jurídico, o sentido normativo formal e legal a ser conferido a um fato da vida social. Para as correntes tradicionais do direito, a interpretação não é apenas restrita ao órgão julgador, uma vez que a função do juiz é decidir/aplicar da sentença. Porém, há outros órgãos com competência para interpretar. Desde essa consideração, a interpretação jurídica se classifica de acordo com o seu intérprete que pode ser: autêntica, judicial e doutrinária, podendo-se falar ainda em interpretação administrativa que é aquela feita pelos órgãos da administração pública. A Interpretação Autêntica é aquela que é feita pelo Legislador, que é feita na própria lei ou em lei complementar. É, portanto, um ato do Poder Legislativo e por isso tem força de lei. Já a Interpretação Judicial ou Jurisdicional é aquela que é feita pelo órgão julgador, que aplica a norma ao caso concreto. Esse tipo de interpretação só tem força de lei para o caso em apreço. A Interpretação Doutrinária é a interpretação feita por profissionais do direito que utilizam os preceitos normativos de acordo com as doutrinas, as teorias do direito. Por fim, a Interpretação Administrativa é aquela que é feita pelos próprios órgãos administrativos do governo mediante pareceres, portarias, circulares, despachos etc. 192 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 19 – A INTERPRETAÇÃO DE ACORDO COM O INTÉRPRETE FONTE: <https://www.slideshare.net/EstresLopes/reviso-estratgia-para-oab-xxi-filosofia-do- direito-ricardo-torques-filosofia-dodireitoricardotorques>. Acesso em: 30 abr. 2021. Em relação aos métodos ou procedimentos, vejamos os principais métodos da hermenêutica tradicional de matriz positivista: 1- MÉTODO EXEGÉTICO, LITERAL OU GRAMATICAL: esse método surgiu no século XIX, na França, com a codificação e a chamada Escola da Exegese. Para essa concepção, a interpretação do direito restringe-se à interpretação das leis, priorizando o método gramatical buscando o significado e alcance de cada uma das palavras do texto legal. A interpretação gramatical preocupa-se com a expressão escrita da norma, devendo ser o intérprete fiel ao seu conteúdo. 2- MÉTODO LÓGICO-SISTEMÁTICO: esse método busca situar a norma dentro do conjunto do sistema jurídico compreendendo seu sentido levando em conta que ela é parte de um todo normativo. Diferente do método exegético, não considera as palavras do texto normativo isoladamente, mas no contexto e as proposições expressas por elas. Tal método leva em consideração o sistema jurídico como um todo, introduzindo na interpretação elementos gerais do sistema, por exemplo, analisando e confrontando o texto normativo principal em apreço e outro texto da mesma lei, ou com os textos de outros sistemas jurídicos positivos, levando em contaque as normas são mutuamente relacionadas. 3- MÉTODO TELEOLÓGICO: o termo Telos significa finalidade, portanto, o método teleológico busca compreender o propósito e finalidade da norma. É evidente que o direito tem como finalidade maior promover o bem comum e amparar necessidades, interesses e potencialidades humanas, sendo a norma uma das expressões do direito e busca atender a tal fim, de acordo com o método teleológico. TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 193 4- MÉTODO HISTÓRICO-EVOLUTIVO: a origem desse método está no pensamento jurídico alemão do século XIX na Escola Histórica de Savigny. Surge como espécie de reação ao método exegético, considerando que em inúmeras situações práticas as normas não contemplam os casos concretos. Para esse método, o sentido da norma é encontrado buscando-se as condições e/ou contexto de surgimento da norma com o objetivo de encontrar a “vontade” por trás de sua criação. O método histórico-evolutivo cria um legislador fictício – um mero artifício retórico – e atribui-se a ele uma vontade. Ainda compara as normas antigas com as que as sucederam, bem como as transformações jurisprudenciais a fim de compreender o contexto e as condições em que foram criadas. FIGURA 20 – SÍNTESE: OS MÉTODOS TRADICIONAIS DE INTERPRETAÇÃO FONTE: <https://slideplayer.com.br/slide/10055011/>. Acesso em: 30 abr. 2021. Pode-se concluir que os procedimentos hermenêuticos de matriz positivista trataram de colocar a tarefa interpretativa como uma questão puramente metodológica formal, se afastando de valores ou mesmo reflexão sobre sua finalidade prática. Assim, a hermenêutica jurídica assume a tarefa de legitimar a ordem normativa cumprindo a função de conferir coerência e plenitude ao sistema jurídico, ao mesmo tempo, dando a flexibilidade necessária à aplicação da norma, reafirmando os postulados da generalidade e universalidade do Direito, privilegiando a subsunção do fato à norma, conforme nos ilustra a figura a seguir. 194 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA FIGURA 21 – ATIVIDADE INTERPRETATIVA DO DIREITO NA PERSPECTIVA FORMAL FONTE: <https://www.esquematizarconcursos.com.br/artigo/metodos-de-interpretacao-da- constituicao>. Acesso em: 30 abr. 2021. 4 DESAFIOS PARA A HERMENÊUTICA JURÍDICA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO A ordem política e jurídica colocada em marcha no Brasil com a Constituição de 1988 e o inédito momento histórico de então somados representaram a consolidação dos direitos fundamentais que representaram a concretização de uma ordem política e jurídica que buscava superar um histórico e quadro social de exclusão e violação sistemática de direitos. Naquele momento, lembra Sarmento (2010), a maioria dos juristas entram em sintonia com as tendências constitucionalistas que apontavam como grande desafio garantir a efetividade das constituições democráticas, como já estudado. Até então, historicamente, os comandos jurídicos e políticos constitucionais, de fato, estavam nas mãos dos detentores dos poderes político, econômico e social e, finalmente, o país começou a “levar a sério”, como se costuma dizer, a Constituição e, apesar das dificuldades enfrentadas, os avanços em relação ao passado são inquestionáveis (SARMENTO, 2010, p. 3-4). Logo após a homologação da Constituição de 1988, juristas como Luis Roberto Barroso e Clèmerson Merlin Clève passaram a militar a concepção de que a Constituição, enquanto norma jurídica, deveria ser aplicada comumente pelos juízes, defendendo um “constitucionalismo de efetividade”, independentemente de qualquer mediação legislativa. [...] o que viria a tirar do papel as proclamações generosas de direitos contidas na Carta de 88, promovendo justiça, igualdade e liberdade. Se até então, o discurso da esquerda era de desconstrução da dogmática jurídica, a doutrina da efetividade vai defender a possibilidade de um uso emancipatório da dogmática, tendo como eixo a concretização da Constituição (SARMENTO, 2010, p. 248). TÓPICO 3 — HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA: DESAFIOS DO DIREITO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO 195 Destacando-se a obra Direito Constitucional e a Efetividade das Normas, de Luis Roberto Barroso publicada no início da década de 1990 e A Teoria Constitucional e o Direito Alternativo: para uma dogmática constitucional emancipatória. In: Uma vida dedicada ao Direito: uma homenagem a Carlos Henrique de Carvalho publicada em 1995. NOTA Desde aí se aprofundaram e se radicalizaram os estudos da hermenêutica jurídica. Influenciados pelo pensamento de Ronald Dworkin, Robert Alexy, John Rawls, Hans Georg Gadamer, Jurgen Habermas, entre outros, juristas como Lenio L. Streck e Eros Roberto Grau refundam o pensamento jurídico brasileiro denunciando e renunciando ao velho positivismo e seus procedimentos hermenêuticos. Nessa nova etapa é acentuada a natureza valorativa do Direito e dos princípios constitucionais. Nesse contexto, lembra Daniel Sarmento, há uma “verdadeira febre de trabalhos sobre teoria dos princípios, ponderação de interesses, teorias da argumentação, proporcionalidade, razoabilidade, etc.” (SARMENTO, 2010, p. 249) e se incorpora no pensamento jurídico crítico brasileiro o neoconstitucionalismo. Tratava-se de um momento de conquistas e necessidade de que fossem garantidas. Entretanto, já na primeira década do século XXI, muitos se davam conta das dificuldades de interpretação com o neoconstitucionalismo. Como afirma Streck (2011), não é porque o neoconstitucionalismo tem um discurso valorativo que é superado o positivismo formal legalista. As novas teorias utilizando a ponderação de princípios, como estudado, acabaram por cair na incerteza e indeterminação do Direito. Seguramente, a Teoria da argumentação de Alexy foi mal incorporada no pensamento brasileiro e, ao se decretar o fim do método e o triunfo da ponderação passou a reinar absoluta incerteza e relativismo nas decisões judiciais. Possivelmente, são os efeitos perversos de uma lógica colonizada que insiste em ser mantida na cultura jurídica brasileira. As novidades interpretativas e argumentativas trazidas ao Brasil em fins do século XX, sobretudo com a entrada em cena do neoconstitucionalismo, acabou por produzir descontrolado solipsismo que corre o risco de confundir discricionariedade com arbitrariedade. 196 UNIDADE 3 — DIREITO MODERNO, ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E HERMENÊUTICA SOLIPSTISMO INTERPRETATIVO: é uma espécie de sacralização da atividade judicial. Uma crença de que o julgador, por sua própria natureza e características imanentes, é capaz de dizer o que é bom, justo, certo e verdadeiro para toda sociedade, em especial, para aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões, chegando ao desprezo de elementos processuais para formar sua convicção. A postura solipsista é comum no ambiente forense, e é visível quando alguns magistrados, ao julgar, utilizam frases como “minha íntima convicção”, “minha compreensão”, “decido conforme minha consciência, convicção e sentir” etc. NOTA FIGURA 22 – O SOLIPTISTA FONTE: <https://maestrovirtuale.com/solipsismo-historia-caracteristicas-e-representantes/>. Acesso em: 30 abr. 2021. A interpretação solipsista tem como fonte de certeza seu “eu” e a atividade hermenêutica é independente da realidade e qualquer outra referência. Desde aí, todo procedimento argumentativo é fundamentado na crença do “eu” e “minhas” deduções intelectuais. Para melhor conhecer o tema do solipsismo produzido pela dificuldade de recepção da Teoria da Argumentação pelo direito brasileiro sugerimos a leitura do texto: o problema da decisão jurídica em tempos pós-positivistas, de Lenio Luiz Streck, disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/1766/1406.