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Ye'kwana - Povos Indígenas no Brasil Exímios navegadores e agricultores, os Ye’kwana são um povo de língua karíb originário da região de cabeceiras dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Metacuni, Ventuari e Auaris, situada em áreas transfronteiriças. Por serem grandes conhecedores da região, tornaram-se há séculos figuras importantes nas relações de troca que haviam entre diversos povos indígenas. A maior parte da população ye’kwana encontra-se na Venezuela e, no Brasil, mais de 750 pessoas vivem na Terra Indígena Yanomami, em três comunidades principais: Fuduuwaadunnha, Waichannha e Kudatannha. São muito habilidosos e perfeccionistas naquilo que fazem e essas qualidades se expressam em suas artes, como nos balaios compostos por belos motivos gráficos, nas tangas femininas feitas com miçanga ou nos carimbos de madeira usados para pintura corporal. É na arte de cantar e cuidar das pessoas, dos alimentos e dos objetos de uso diário que sábios e sábias ye’kwana dedicam a maior parte de suas vidas. Encontram nos conhecimentos e práticas ensinadas pelos ancestrais mais antigos bons caminhos para se viver. Nomes Saída para pescar. Região de Auaris, TI Yanomami, Roraima. Ana Gita de Oliveira, 1974. Os Ye’kwana ficaram conhecidos na literatura histórica e etnológica pelos https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/3/3_9569a706e277a45/54433scr_a974e7703a78d4c.jpg?v=2020-03-30+15%3A53%3A01 https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/3/3_9569a706e277a45/54433scr_a974e7703a78d4c.jpg?v=2020-03-30+15%3A53%3A01 etnônimos Maiongong (termo pemon) e Makiritare (palavra arawak). O etnônimo Ye’kwana e suas variantes De’kwana ou Dhe’kwana foram registrados pela primeira vez pelo viajante alemão Koch-Grünberg e é uma autodenominação nativa. No entanto, autodenominam-se soto cuja tradução é pessoa ou gente. Soto é um termo comum e possui diferentes significados a depender dos contextos em que é empregado. Com frequência, os Ye’kwana usam essa palavra para se referir a si próprios enquanto um coletivo distinto dos demais e então quando dizem, por exemplo, soto a’deddu (língua dos humanos) estão se referindo somente ao seu idioma. Também empregam soto como designação genérica de “pessoa humana” e assim o termo pode incluir outros grupos indígenas e não indígenas. A palavra soto também pode ser empregada a certos seres invisíveis. Além disso, o termo se acompanhado dos sufixos -jönö e -je dá origem a sotojönö (não pessoa, não humano) e sotooje (com aspecto de humano). Internamente, diferenciam-se de acordo com as regiões onde vivem: aqueles oriundos da região de cabeceiras Yujudunnha (território tradicional) são yujuduwana ou yujudunnhano e os que vivem rio abaixo, em locais desconhecidos ou distantes, são denominados anennhankomo. Há outro tipo de classificação que leva em conta a localização geográfica ou bacia hidrográfica do local de origem: quem é do rio Medeewadi (Caura) é denominado Medewaadinnhano; quem é do rio Yawadejudi (Auaris) é Yawaadejunnhano; do rio Entawaade (Ventuari) é Entawaadennhano etc. Língua A língua Ye'kwana pertencente à família linguística karíb. É a segunda maior família linguística da América do Sul no que diz respeito ao número de línguas existentes. De acordo com a classificação proposta por Gildea (2012), o Ye'kwana pertence ao ramo guianense junto com as línguas Kari’nja, Wayana e Taranoan (Tarano). A gramática elaborada pela linguista Natalia Cáceres, Grammaire Fonctionnelle Typologique du Ye'kwana (2011) é a principal referência sobre a língua Ye’kwana. A maior parte das línguas karíb encontra-se no norte do Brasil, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa e também há grupos falantes no oeste da Colômbia e no Brasil Central. De acordo com Gildea (2012), existem cerca de 25 línguas karíb e o número total de falantes gira em torno de 60 mil a 100 mil pessoas. Menina ye’kwana, comunidade Waichannha (Waikás), TI Yanomami, Roraima. Rogério Assis/ISA, 2018. No Brasil, os Ye’kwana são majoritariamente monolíngues, especialmente, os mais velhos, as mulheres e as crianças. Em geral, os homens adultos e jovens entendem e falam bem Português, porém muitos ainda têm dificuldade de se comunicar na língua portuguesa. Alguns Ye’kwana conhecem a língua Sanöma, falada pelo grupo yanomami vizinho. Há pessoas que entendem e falam o Espanhol, dada a proximidade geográfica com a Venezuela e o fato de que a maior parte da população ye’kwana vive nesse país. Localização e população https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/1/0/0_8e9c891f13a3896/20100scr_f1f73b6f49b45a5.jpg?v=2018-10-09+07%3A42%3A56 https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/1/0/0_8e9c891f13a3896/20100scr_f1f73b6f49b45a5.jpg?v=2018-10-09+07%3A42%3A56 Vista aérea da comunidade Waichannha, região Waikás, rio Uraricoera. TI Yanomami, Roraima. Rogério Assis / ISA, 2018. A área de ocupação tradicional do povo Ye’kwana é a região onde estão as cabeceiras dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Metacuni, Ventuari e Auaris. Essa região é denominada de Yujudunnha (“área de cabeceira”). Há séculos, os Ye’kwana estão vivendo em uma região mais extensa, incluindo áreas ao longo dos rios Caura, Paragua, Orinoco e Uraricoera. Suas comunidades estão distribuídas entre os estados Amazonas e Bolívar, no sul da Venezuela, e no Brasil, estão localizadas na Terra Indígena Yanomami, no noroeste de Roraima. A maior parte da população ye’kwana encontra-se na Venezuela. Em 2011, havia 7.997 pessoas (Instituto Nacional de Estadística), vivendo em mais de 60 aldeias. Já no Brasil, os Ye’kwana são cerca de 760 pessoas (Siasi/Sesai, 2019) vivendo em três aldeias principais: Fuduuwaadunnha e Kudaatannha, na região de Auaris, e Waichannha ou Waikás, às margens do rio Uraricoera. https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/0/2/2_e4d45fe2f5f95e7/20022scr_9fab07dda9efbbc.jpg?v=2018-10-09+07%3A36%3A09 https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/0/2/2_e4d45fe2f5f95e7/20022scr_9fab07dda9efbbc.jpg?v=2018-10-09+07%3A36%3A09 Viagem no Rio Uraricoera, TI Yanomami, Roraima. Guilherme Gnipper Trevisan, 2014. No lado brasileiro, as aldeias situam-se em locais remotos e de difícil acesso em área grande extensão de floresta densa com relevo montanhoso. A região de Auaris abriga a maior parte da população ye’kwana no Brasil, cerca de 615 pessoas (Siasi/Sesai, 2019), e também é habitada pelos Sanöma (grupo yanomami) que se estabeleceram na região a partir do contato com missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) nos anos 1960. Estes dois povos fazem parte de redes de relações interétnicas e intercomunitárias que ultrapassam os limites das fronteiras nacionais. Yujudunnha, território tradicional Os Ye’kwana vivem desde tempos imemoriais em Yujudunnha região de cabeceira dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Ventuari, Metacuni, Caura e Auaris. São originários da cabeceira do rio Cuntinamo, na fronteira Brasil e Venezuela. Yujudunnha é o centro dos conhecimentos e do modo de vida ye’kwana. É o coração do território ye’kwana, pois foi lá onde Wanaadi (demiurgo celeste) pisou pela primeira vez e onde começou a fazer o mundo e tudo que hoje existe. Os lugares e as paisagens dessa região são centrais para os Ye’kwana, pois, além de ser seu território, são também marcos ou testemunhos de suas histórias verdadeiras (wätunnä). De acordo com essas histórias antigas, o primeiro ye’kwana chamava-se Yuduwaana e ao chegar do céu na região do Cuntinamo, mais precisamente, na Serra Ye’kwana. Essa primeira área de ocupação é denominada Kamasonnha e foi a partir daí que os Ye’kwana começaram a se expandir, povoando outras regiões. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/5_8cf045c911c0d27/73955scr_4474a88d4f4778c.jpg?v=2021-02-17+12%3A21%3A51 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/5_8cf045c911c0d27/73955scr_4474a88d4f4778c.jpg?v=2021-02-17+12%3A21%3A51 Kuyuujaani, por Danilo da Silva Rocha, 2020. Um dos personagens importantes das histórias wätunnä é Kuyuujaani, responsável pela demarcação doterritório tradicional. Toda a área demarcada por Kuyuujaani é Ye’kwana nonoodö, “território ye’kwana”. Wanaadi, o demiurgo, deu a Kuyuujaani a tarefa de delimitar os lugares onde os Ye’kwana iriam viver e criar suas comunidades. No extenso território demarcado por Kuyuujaani, existem diferenciações internas como: antigas comunidades; lugares onde os ancestrais passaram; comunidades atuais; serras importantes; caminhos terrestres; áreas de roça; áreas de caçada coletiva; locais de pesca; rios; cachoeiras; os poços de água; https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/1/3_e9ae5d94aa5c50b/73913scr_3e660417a526b50.jpg?v=2021-02-23+11%3A42%3A46 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/1/3_e9ae5d94aa5c50b/73913scr_3e660417a526b50.jpg?v=2021-02-23+11%3A42%3A46 lagos; as pedras etc. Quando sobrevoamos as comunidades, avistamos algumas casas. Pode parecer que não há nada além disso, mas existem diversas trilhas na floresta que formam verdadeiras veias embaixo das árvores. Os territórios e seus donos Para os Ye'kwana, o território não é de modo algum um espaço vazio a ser ocupado pelos humanos. Existem espíritos bons e ruins que ali vivem. As árvores, as frutas, os animais, as montanhas, as pedras, as cachoeiras, lagos e correntes de água têm seus donos (edhaamo). Quando vão derrubar uma área para fazer uma nova roça, os Ye’kwana pedem permissão ao dono das árvores e quando caçam os animais, também pedem autorização a seu dono. Antes de criar novas aldeias, os Ye’kwana buscam o aval do föwai (pajé) ou acchudi edhaamo (sábios, donos de canto). Eles consultam os donos invisíveis dos lugares e somente após a autorização dos sábios os Ye’kwana começam a preparar o local da nova morada e vão escolher suas áreas de roça. Em toda comunidade ye'kwana, há donos não humanos que habitam as serras, os poços de água, lugares proibidos e outros que vivem na floresta e são chamados de yoodadai e maawade - não têm morada fixa e vivem andando pelas matas. As almas dos moradores de uma determinada comunidade estão familiarizadas com os donos invisíveis daquele território e por isso os respeitam muito. Do contrário, a comunidade ou uma pessoa poderá sofrer ataques de espíritos ruins, situação que pode levar ao adoecimento e à morte. Criança acompanha sua mãe no caminho da roça até a comunidade. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/4_e19326941fe48ea/73904scr_f0e1cb7994898d1.jpg?v=2021-02-17+12%3A10%3A10 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/4_e19326941fe48ea/73904scr_f0e1cb7994898d1.jpg?v=2021-02-17+12%3A10%3A10 Fuduuwaadunnha, TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2018. Quando os Ye'kwana se afastam de seu lugar de origem, precisam tomar muito cuidado, pois espíritos ruins que vivem ali podem causar doenças, isto é, roubar as almas ou duplos (äkaato) das pessoas. Os Ye'kwana sabem que esses seres invisíveis podem prejudicar a sua vida e por isso utilizam plantas e cantos para sua proteção. Quando uma pessoa viaja pela primeira vez precisa se proteger bastante: não pode dar risadas quando um animal aparecer e a cada boca de rio ou grande cachoeira, precisa pingar nos olhos o líquido de wananha (gengibre). Outros elementos e atividades também delimitam o domínio de uma comunidade: os lugares de caça e pesca; as áreas de roças; os rios; as trilhas; os locais de acampamentos e de onde se tira palhas, madeiras, cipós etc. Esses limites precisam ser respeitados pelas outras comunidades. Não se pode fazer roças em outra comunidade sem sua autorização e os rios também são limites importantes. Por exemplo, se os moradores de uma comunidade da região Auaris quiserem caçar em outro rio, precisam conversar com uma comunidade localizada ali e pedir permissão para a caçada. Histórico dos contatos As relações entre os Ye’kwana e os não indígenas são antigas e remontam ao século XVIII se considerarmos os contatos estabelecidos entre grupos ye’kwana habitantes na região do alto Orinoco (Venezuela) e os colonizadores europeus. As experiências de contato dos Ye’kwana com os não indígenas e com outros povos indígenas foram diversas e cada grupo têm uma história própria. Os Ye’kwana, por serem gente canoeira, se inseriram há séculos em redes de trocas que incluíam diversos grupos indígenas e nesses percursos também se relacionaram com os não indígenas, chamados em sua língua de yadaanawichomo. São conhecedores excepcionais da geografia e hidrografia de seu território tradicional; sabem os nomes de todos os rios, igarapés e cachoeiras existentes ali. São excelentes construtores de canoa (kudiiyada) e foi por meio desse objeto que conseguiram conhecer lugares além do seu território tradicional. Arvelo- Jimenez (1974), relata que um ye’kwana conhecido como Aramari, um navegante incansável e comerciante muito ativo, fazia viagens ao Brasil que duravam de um a três anos. As rotas de suas viagens eram grandes, passava pelo Canal de Cassiquiare, Rio Negro, Manaus, Rio Branco, Rio Uraricoera, Rio Auaris e depois voltava para a Venezuela pelos rios Padamo, Orinoco e, finalmente, o Cunucunuma. Desde muito tempo, os Ye’kwana iam a diversas regiões em busca objetos de interesse que eram trocados por ralos, canoas, zarabatanas, entre outros. Trocavam bastante com os povos que habitavam Fadimennha, a região do lavrado roraimense, e, muitas vezes, viajam até onde hoje é Georgetown (Guiana) para obter objetos como a espingarda e tecido vermelho para fazer a vestimenta masculina tradicional (wayuuku). As visitas a outras comunidades ye’kwana eram muito comuns e ainda hoje fazem parte de seu cotidiano. Costumam fazer viagens pelos caminhos terrestres e pelos diversos rios que se localizam nos dois lados da fronteira Brasil e Venezuela. Criança segura um ralo de mandioca, artigo produzido pelos Ye’kwana que sempre foi cobiçado nas redes de troca com outros povos. Foto: Volkmar Ziegler, 1982. Como outras populações indígenas, os Ye’kwana experimentaram diversas relações com os não indígenas, como alianças, conflitos, perseguições, que alteraram em parte os territórios ocupados por eles antes da chegada dos colonizadores europeus. No caso dos grupos ye’kwana que vivem no Brasil, esse contato mais próximo se deu no fim do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, quando um grupo de seringalistas, comandado por Tomás Funes, invadiu o centro do território ye’kwana em busca de escravos para trabalhar na extração do caucho. Essa perseguição foi extremamente violenta, destruiu inúmeras aldeias e provocou centenas de mortes entre os Ye’kwana. Barandiarán estima que cerca de 1000 pessoas foram mortas e mais de 20 aldeias foram destruídas (1979). Tamanha brutalidade dos seringalistas levou a uma dispersão generalizada para outras regiões a leste. Uma parte desse povo se refugiou na região do rio Auaris, área de ocupação tradicional que, naquele tempo, era usada, principalmente, para as caçadas coletivas. Essa região tornou-se, então, uma alternativa às famílias ye’kwana que fugiam das perseguições dos seringalistas, dando origem à população ye’kwana que desde então vive de forma permanente no Brasil. A história das aldeias ye’kwana no Brasil está intimamente ligada a esses deslocamentos forçados. Apesar desses acontecimentos trágicos, os vínculos entre as comunidades ye’kwana no Brasil e Venezuela se mantiveram forte. Há redes de relações intercomunitárias e interpessoais que atravessam a fronteira. https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/4/2_436d1c7d0f107ce/54442scr_71c85e2aeb85d8b.jpg?v=2020-03-30+16%3A00%3A19 https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/4/2_436d1c7d0f107ce/54442scr_71c85e2aeb85d8b.jpg?v=2020-03-30+16%3A00%3A19 Comunidade Fayya Ku’jännha, Região de Auaris, TI Yanomami, Roraima. Alcida Ramos, 1974. No Brasil, registros dos primeiros encontros com os não indígenas são imagens e descrições sobre os Ye’kwana de Auaris da década de 1930 encontradas em Índios do Brasil (Rondon, 1963). Há registros fotográficos e fílmicos de encontros do expedicionário francês AlainGheerbrant e sua equipe com grupos ye’kwana que viviam no alto Auaris, especificamente, na comunidade Detuukwännha. A expedição comandada por Gheerbrant ocorreu no final da década de 1940, partindo do Orinoco em direção à região de cabeceiras do Ventuari e seguiu para Auaris. Entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960, um grupo ye’kwana que viajava em direção à Boa Vista encontrou no rio Uraricoera uma expedição https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/3_f110b49655f39f3/75343scr_be62d35cbeb61dd.jpg?v=2021-03-16+17%3A10%3A49 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/3_f110b49655f39f3/75343scr_be62d35cbeb61dd.jpg?v=2021-03-16+17%3A10%3A49 composta por missionários e militares em busca dos Sanöma, grupo yanomami. Desejavam construir uma pista de pouso para se instalar ali. Na ocasião, depois de terem conversado, esses viajantes ye’kwana foram contratados para abrir a pista (Moreira, 2004). No início dos anos 1960, uma pista no alto Auaris foi construída pelos próprios indígenas da região, com ajuda dos militares da Força Aérea Brasileira (FAB) e dos missionários da Missão Evangélica da Amazônia (MEVA), que deram as ferramentas para abrir a pista. Logo, a MEVA instalou-se na região e estabeleceu os primeiros contatos com os Sanöma. Depois, uma base da Força Aérea Brasileira (FAB) foi implantada próxima à pista de pouso, onde hoje está o 5o Pelotão Especial de Fronteira. A pista de pouso foi um elemento que modificou a região de Auaris. Aquelas comunidades que já se encontravam em locais próximos à pista permanecem até lá hoje e aquelas mais distantes se aproximaram mais da pista. Aeródromo da Auaris, Região de Auaris, TI Yanomami, Roraima. Rogério Assis / ISA, 2018. Apesar de viverem em áreas remotas, os deslocamentos dos Ye’kwana para Boa Vista se intensificaram nas últimas décadas. A instalação em suas aldeias de postos de saúde favoreceu essa dinâmica, pois com a presença constante de técnicos da saúde (indígenas e não indígenas), a rotina de voos permitiu aos Ye’kwana uma mobilidade que era impensável décadas atrás. Há menos de meio século, homens adultos empreendiam viagens de canoa até Boa Vista ou iam até as fazendas de gado situadas nas cercanias para obter bens https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/3/1/9_11e3eeaf0979f8d/20319scr_b8e0dec6a1df19e.jpg?v=2018-10-09+08%3A01%3A00 https://galeria.socioambiental.org/filestore/2/0/3/1/9_11e3eeaf0979f8d/20319scr_b8e0dec6a1df19e.jpg?v=2018-10-09+08%3A01%3A00 como sabão, sal, munição, espingardas, terçados e miçangas via troca ou trabalho assalariado. A viagem durava cerca de 30 dias devido às inúmeras corredeiras e cachoeiras no trajeto que liga os rios Auaris, Uraricoera e Branco e, muitas vezes, era necessário o transporte das canoas em trilhas construídas na mata. O retorno à Auaris levava em média 90 dias, pois ao invés de descer as cachoeiras, era preciso subir. Rio Uraricoera, TI Yanomami, Roraima. Guilherme Gnipper Trevisan, 2014. A partir da segunda metade do século 20, essa rota fluvial deixou de ser frequente. Com a instalação da pista, a assistência regular de saúde e a implantação de escolas nas comunidades, as dinâmicas de deslocamento se alteraram. Por um lado, as viagens de avião a Boa Vista passaram a ser mais frequentes e, se antes eram somente os homens adultos que realizavam este longo percurso, agora jovens, mulheres e crianças também transitam nesses outros mundos e aproximam-se mais dos modos de vida dos não indígenas. Por outro lado, teve início um processo de sedentarização da população indígena de Auaris que passou a construir suas aldeias nas proximidades da pista, dos postos de saúde, das escolas e dos espaços ocupados por missionários e militares. A sedentarizacão associada ao aumento populacional levou à falta de recursos naturais tão essenciais, como a caça e pesca, e à pressão sobre os recursos ainda disponíveis na região. Um levantamento sobre a presença dos Ye’kwana na cidade de Boa vista feito pelos próprios indígenas aponta que, em 2011, mais da metade dos jovens de 15 a 27 anos da maior aldeia estava vivendo na cidade. Na maioria dos casos a https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/4_29749389e14e1e4/75344scr_62de0acddb740cf.jpg?v=2021-03-16+17%3A38%3A53 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/4_29749389e14e1e4/75344scr_62de0acddb740cf.jpg?v=2021-03-16+17%3A38%3A53 mudança estava ligada à continuação do ensino formal (Ensino Médio ou cursos oferecidos pelo Insikiran-UFRR). Apesar do forte envolvimento dos Ye’kwana com o desenvolvimento do ensino escolar em suas aldeias, não foi implantado o Ensino Médio em nenhuma das escolas - é um dos grandes gargalos da educação escolar, pois boa parte dos jovens, assim que concluem o Ensino Fundamental vão viver na cidade para ingressar no ensino médio. Muitos continuam os estudos e ingressam em cursos de licenciatura intercultural ou de pós- graduação. Com os jovens cada vez mais distantes do cotidiano na aldeia, muitos conhecimentos valiosos para o povo Ye’kwana deixam de circular entre as diferentes gerações, como os saberes relacionados aos cantos (acchudi), às histórias verdadeiras (wätunnä), às artes, às habilidades ligadas à caça, à pesca, à construção de casas, canoas etc. Os pais, apesar de incentivarem a presença de seus filhos nas escolas da cidade ou da comunidade, preocupam-se com a falta de interesse dos jovens pelos conhecimentos ye’kwana e o seu interesse crescente pelos modos de vida e pelas coisas dos não indígenas. A vida na cidade cria situações novas que dão acesso a conhecimentos diversos. As novas modalidades de relação com os não indígenas têm suscitado reflexões dentro e fora da aldeia, as quais são postas em diálogo com as imagens produzidas pelos antigos, que antes desciam em grandes canoas pelos afluentes do Rio Branco até chegar à cidade. A chegada da escrita: presença missionária e a escola Pouco tempo depois dos primeiros contatos entre os Ye’kwana e os espanhóis, se deu a primeira tentativa de evangelização. Em 1765, foi fundado o aldeamento San Francisco de la Esmeralda na região do Orinoco por um missionário capuchinho, Jose Antonio de Jerez de los Cabelleros, que pretendia converter à força centenas de indígenas, entre eles, os Ye’kwana, além de forçá-los a construir uma igreja no local. Em 1769, missão foi abandonada e depois disso, encontros com missionários passaram a ser esporádicos até meados do século 20. A presença dos papéis escritos (fajeeda) na vida cotidiana passou a ser sentida de forma efetiva com a instalação de missões religiosas em territórios ye’kwana na Venezuela a partir da metade do século 20. Missionários da New Tribes Mission (Missão Novas Tribos) fundaram as primeiras aldeias nos territórios ye’kwana, piaroa e yanomami entre 1947 e 1956. Entre os Ye’kwana, tentaram penetrar pela região do Ventuari, mas não foram bem recebidos. Avançaram pela região do rio Cunucunuma e em 1956 fundaram a comunidade Akanannha, perto da confluência dos rios Orinoco e Cunucunuma. A ideia era que esta aldeia se tornasse uma espécie de base para a formação de pastores ye’kwana que servissem como vetores de conversão na região. Mais tarde aldeias como Tama Tama, Tokishanamannha e Mudeshijannha, no rio Padamo, se converteriam, o que neste contexto significava a proibição de práticas rituais ye’kwana, do consumo de tabaco e de bebida fermentada. No bojo da atuação da Missão Novas Tribos, estava a instalação de escolas que, como em outros lugares, serviram de ferramenta ao proselitismo religioso (alfabetização em Espanhol e produção de materiais bilíngues, entre eles a Bíblia ou Wanaadi A'deddu (Palavras de Wanaadi). Devido a uma estratégia extremamente agressiva e impositiva, a Novas Tribos não conseguiu avançar em outras áreas de ocupação ye’kwana, restringindo sua atuação à região do rio Cununcunuma. Na década de 1970, a presença destes missionários já provocava muitas críticas entre lideranças ye’kwana e outros povos que tiveram seus territórios invadidospor estes grupos. Como contou Manuel Velásquez, o renomado dono de canto Warné Yawadi tentou impedir a entrada destes missionários em sua região, mas não foi bem-sucedido, e abandonou a aldeia em que vivia e fundou uma nova em área de difícil acesso, nas cabeceiras do alto Cuntinamo. Warné gravou um filme chamado Hoy hablo a Caracas (direção de Carlos Azpúrua, 1978) em que denuncia a presença destes missionários em território ye’kwana. Surge, neste contexto de intensa pressão missionária em territórios indígenas na Venezuela, um movimento nacional de apoio aos povos indígenas sem precedentes que foi organizado por pesquisadores, indigenistas, artistas e políticos cujas reivindicações eram não só a expulsão destas missões religiosas como também a construção de uma legislação específica a estes povos (Guss, 1989). Somente, em 2005, a Missão Novas Tribos foi expulsa do território venezuelano pelo então presidente Hugo Chávez. Além de evangélicos, grupos católicos também se instalaram entre os Ye’kwana, ainda que o foco de suas ações não fosse a conversão religiosa. Em 1959, foi criada uma aldeia no alto Erebato pela Fraternidade de Foucauld chamada Santa Maria de Erebato (Jöwötönnha), e alguns anos depois foi fundada Cacuri (Kakudinnha), uma comunidade que teve apoio de uma missão salesiana. Daniel Barandiarán foi o primeiro missionário da Fraternidade Foucauld e viveu muitos anos entre os Ye’kwana do alto Erebato. É autor de muitos artigos e livros sobre esse povo, os quais contém importantes dados etnográficos. Também escreveu sob o pseudônimo Damian de Escoriaza (Guss, 1989). Tiveram inúmeros embates que ocorreram a partir da chegada de missionários evangélicos e católicos entre os Ye’kwana na Venezuela, como os conflitos entre os “crentes” e os “tradicionalistas” (Arvelo-Jiménez, 1979). De todo modo, é importante mencionar como as notícias sobre a presença destes grupos religiosos chegaram às aldeias ye’kwana no Brasil e suas reflexões sobre a chegada dos papéis (fajeeda) e da escola, espaço onde se deu o aprendizado da escrita alfabética. Moreira (2004) e Andrade (2012, 2014) notam que o tom dos comentários sobre a atuação dos missionários nas aldeias na Venezuela, principalmente dos evangélicos da Missão Novas Tribos, era bastante crítico, principalmente por conta das proibições às quais eram submetidos (não podiam fumar tabaco, tomar caxiri, fazer festa, rituais de cura etc.). Assim, disse o antigo tuxaua de Fuduuwaadunnha, Neri Magalhães: “Quando Donaldo perguntava: Vocês aceitariam ser crentes? Nós respondemos: Nós não queremos ser crentes. Nossos parentes ficaram crentes rápido e enfraqueceram” (Moreira, 2004). De forma geral, em Auaris, a conversão à religião dos não indígenas era condenada, no entanto, havia um interesse crescente pela escrita alfabética. No início dos anos 1960, um Ye’kwana de Auaris foi viver durante alguns anos em Medadannha (La Esmeralda) e quando voltou deu início a uma experiência de alfabetização a partir de cartilhas que trouxe de lá, que não deu certo (Andrade, 2012). https://www.youtube.com/watch?v=EKNgPRvc4Io https://www.youtube.com/watch?v=EKNgPRvc4Io Crianças com uniformes escolares na comunidade Kujaashinnha, Região de Auaris, TI Yanomami, Roraima. Acervo APYB, década de 1990. A Missão Evangélica da Amazônia (MEVA) instalou-se na região do alto Auaris nesta mesma década, logo depois da abertura da pista de pouso, mas apesar de prestar atendimento à saúde a todos os indígenas, estes missionários voltaram as suas ações aos Sanöma, grupo yanomami vizinho. No início dos anos 1980, um casal de missionários da MEVA foi morar com os Ye’kwana do alto Auaris, mas um episódio interessante os fez desistir da investida. Em 1981, lideranças ye’kwana de várias comunidades, a convite de Warné Yawadi, se juntaram a uma grande conferência organizada por Ye’kwana evangélicos em Mudeshijannha, no rio Padamo, para debater ideias trazidas pela Missão Novas Tribos. O então tuxaua de Auaris esteve presente junto com mais quatro homens desta comunidade. Segundo relatos registrados por Moreira (2004), os embates ali giraram em torno de questionamentos sobre o “surgimento dos crentes” e o “caminho da salvação” que estes religiosos pregavam e chegaram ao entendimento de que os crentes eram descendentes de Kaaju (inimigo do demiurgo) e que ali estavam para destruir a vida dos Ye’kwana. Na volta desta viagem, as lideranças de Auaris fizeram uma festa enorme, regada a muito caxiri e tabaco, e não demorou muito para que o casal de missionários da MEVA pedisse o seu desligamento. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/5_0584e23711ad1ce/75345scr_a47b35ec7f8b6d5.jpg?v=2021-03-16+17%3A42%3A51 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/5_0584e23711ad1ce/75345scr_a47b35ec7f8b6d5.jpg?v=2021-03-16+17%3A42%3A51 Professor e alunos da Escola Apolinário Gimenes, comunidade Fuduuwaadunnha, TI Yanomami. Tiago Moreira dos Santos, 2016. Em 1983, uma outra missionária da MEVA foi enviada à Auaris. Segundo depoimentos, as lideranças ye’kwana disseram que permitiriam a sua permanência desde que não fizesse proselitismo religioso - o que eles queriam era aprender a escrita alfabética e o Português. Ela foi aceita como professora e então tuxaua Neri Magalhães permitiu que ela contasse as “histórias dela” na escola – e eles seguiram contando as suas histórias (wätunnä). A partir de então, Jandyra foi viver com os Ye’kwana de Auaris e foi responsável pela alfabetização dos primeiros adultos e jovens. Esta primeira turma terminou a formação de ensino fundamental em Boa Vista e deu origem aos primeiros professores ye’kwana da escola Apolinário Gimenes, na comunidade Fuduuwaaunnha - a primeira construída no Brasil e reconhecida pela Secretaria da Educação do estado de Roraima em 1991. Esses professores foram os primeiros alunos dos cursos modulares de magistério indígena e do curso de Licenciatura Intercultural oferecidos na Universidade Federal de Roraima (Insikiran-UFRR). Hoje são estas pessoas que levam adiante as escolas nas demais comunidades ye’kwana. Wätunnä, histórias das origens As referências aos mais antigos ancestrais fazem parte da vida cotidiana dos Ye’kwana de forma notável. Estão presentes em diversos contextos, especialmente, nas festas e rituais e nas conversas diárias nas quais surgem explicações sobre ye’kwana weichojo, o modo de vida ye’kwana. As explicações https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/6_7f22d19200170c6/75346scr_66f63ca2f0f4e23.jpg?v=2021-03-16+18%3A07%3A48 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/3/4/6_7f22d19200170c6/75346scr_66f63ca2f0f4e23.jpg?v=2021-03-16+18%3A07%3A48 sobre o bem viver são encontradas nas histórias sobre o tempo antigo (fenaadä könä’jaato) e sobre os feitos de Wanaadi, demiurgo. Os Ye’kwana se referem a essas narrativas usando o termo wätunnä (histórias) e são consideradas histórias verdadeiras, pois aconteceram de fato. Wätunnä edhaajä é o dono de histórias, a pessoa que conhece um extenso repertório dessas histórias. São relatos contados oralmente que remontam ao início dos tempos e narram acontecimentos e processos ligados ao surgimento da terra, dos humanos, de todos os povos, dos animais, alimentos, dos costumes, dos rios, árvores. Balaio com o grafismo Wanaadi motai (costas do demiurgo). In: Guss, 1990, p. 205. Wätunnä conta como o demiurgo Wanaadi criou o mundo e como seu irmão e inimigo, Kaajushawa, Kaaju ou Odo’sha, procurou a todo custo estragá-lo, trazendo sofrimento, doença e morte às pessoas. A relação entre Wanaadi e Kaajushawa ocupa um lugar privilegiado na cosmologia ye’kwana. Os processos que deram origem ao mundo de hoje estão ligados a essa disputa entre o Wanaadi e Kaajushawa, um criava e o outro destruía. Kajuushawa foi a primeira criação de Wanaadi e ensinou-lhe tudo. Depois que atingiu o mesmo nível de conhecimento de seu criador, voltou-se contra ele. Foi a partir dessa disputa que o céu se separou da terra; que a perenidade da vida foi atravessada pela morte e suasformas liminares como as doenças; que a luminosidade absoluta deu espaço à alternância entre dia e noite etc. As paisagens e seus habitantes foram marcados pelas ações de Wanaadi e seu irmão e seus efeitos podem ser vistos e sentidos ainda hoje. Balaio com o grafismo “rosto de Odo'sha”. In: Guss, 1990, p. 175 Os Ye’kwana costumam utilizar o nome Kaaju para se referir ao irmão de Wanaadi, pois este não gosta que seu verdadeiro nome (Kajuushawa) seja enunciado. Então, por precaução, deve-dizer apenas Kaaju ou Odo’sha. As histórias verdadeiras contam que desde tempos primordiais a terra foi contaminada por Kaaju, tornando-a amoijhe (contaminado, envenenado). Embora o demiurgo tenha buscado criar na terra formas de vida semelhantes àquelas existentes nos planos celestes (kajunnha), o resultado não foi esse. Wanaadi enviou pessoas celestes para curar a terra envenenada e finalmente conseguiu fabricar uma terra boa para as pessoas viverem. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/9_9e30a302710629a/73979sml_27dd882889212cb.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A01 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/9_9e30a302710629a/73979sml_27dd882889212cb.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A01 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/8_6ac9418a83e331b/73978sml_99aea51fb7f0c66.jpg?v=2021-02-17+12%3A28%3A54 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/8_6ac9418a83e331b/73978sml_99aea51fb7f0c66.jpg?v=2021-02-17+12%3A28%3A54 A vida na terra é continuamente ameaçada pelos odo’shankomo, inimigos enviados por Kaaju (ou Odo’sha), que fazem mal aos humanos de várias formas. A presença deletéria de Kaaju passou a ser sentida com mais intensidade pelos ancestrais dos Ye’kwana quando o demiurgo voltou à sua morada celeste. Wanaadi, cansado das investidas de seu irmão e triste com as tentativas fracassadas para eliminá-lo da terra, deixou à humanidade algumas armas de proteção contra seu irmão. Todo ye’kwana busca adquirir conhecimentos para se proteger dos odo’shankomo – os principais saberes são as histórias wätunnä e os cantos acchudi e ädeemi. O maior conhecedor era o föwai ou kadeeju (pajé), que hoje não existe mais. Os pajés ye’kwana possuíam um poder similar a Wanaadi e seus auxiliares que foram os primeiros pajés da terra. Atualmente, os grandes conhecedores ye’kwana são os donos de canto (acchudi edhaamo) e os donos das histórias (wätunnä edhaamo). É durante as festas e rituais que as pessoas interessadas nos saberes antigos costumam aprender, pois são geralmente nessas ocasiões que wätunnä é contada e são realizados os repertórios de cantos. A centralidade dos cantos na vida ye’kwana está relacionada aos problemas provocados pelos odo’shankomo constantemente. Diante de ameaças cotidianas, a vida de uma pessoa é marcada por inúmeros rituais que são sempre acompanhados de cantos específicos. Estes cantos são rezas ou benzimentos voltados à construção de corpos, objetos, substâncias e espaços eminentemente humanos ou próprios para a vida humana. Para viver sem riscos, também é preciso cuidar cotidianamente de si, dos parentes e da comunidade por meio de ações que visam proteção como resguardos, dietas alimentares, restrições comportamentais, uso de tabaco e de elementos/substâncias protetoras como as resinas perfumadas, os amuletos, os colares, as tintas, banhos e infusões com ervas etc. Já dizia Guss (1989) que as ações profiláticas são para os Ye’kwana antídotos ou atos de revide à ameaça que sofrem na vida cotidiana. É preciso cantar para que algo ou alguém deixe de estar amoijhe (contaminado, envenenado) e esse é um dos principais meios para se viver bem. Por meio das palavras cantadas e do sopro, o canto e o cantador eliminam substâncias perigosas e introduzem nos corpos e nos espaços (roças e casas), vitalidade (tadonnhe), elemento intangível, celeste, que restaura a vida dos humanos e também de outros seres, como as plantas. A transformação da primeira terra por Wanaadi Texto baseado nas falas dos sábios Pery Magalhães, Vicente Castro, Luís Manuel Contrera, Eliezer Maldonado Silva e Romeu José Gonçalo. Seduume [Wanaadi] foi quem primeiro transformou o céu e a terra. Ninguém sabe como ele surgiu, ninguém sabe como ele se transformou. A luz do sol Nhaajidiyyana ilumina Seduume no céu de Töweiyewaana. Ele vive bem ali, lugar de vitalidade, onde ninguém morre. Seduume apesar de viver no céu está sempre com o pensamento voltado para cá. Ele trouxe do céu a terra de Awaadaja para os humanos viverem, mas Kaajushawa, seu irmão e seu principal inimigo, atrapalhou o seu trabalho. Seduume teve que colocar fogo na terra de Awaadaja estragada pelo irmão. A queimada durou vinte dias e a fumaça que subia ao céu caiu nas mãos de Maiyyediikiya, o dono da chuva. Essa fumaça se converteu em chuva. Durante vinte dias choveu sem parar. A terra ficou inundada e água alcançou o céu. Mesmo depois de vinte dias, a água não havia secado. Seduume pediu para o beija-flor Waasoodoimhä secar o dilúvio com o widiiki (“cristal”, “pedra brilhante”) de Makuunaimhä. Esse cristal se transformou nas zarabatanas de Makuunaimhä e Shidiijuiyana, e foi com esse instrumento que o beija-flor Waasoodoimhä puxou toda a água, secando a terra. Sobrou só a areia de Kayatta. Pessoas foram enviadas do céu para varrer a terra e com esse movimento diferenciaram e nomearam os territórios de todos os povos. O território ye’kwana foi chamado de Planície de Yoodaimhä, e a terra situada do outro lado do mar foi denominada de Terra de Taweekadi. A terra estava vazia. Não havia pessoas humanas, nem animais. Não tinha ar, nem água. Maduuda (tatu-canastra) e Fa’jadi (tatu-bola) foram os primeiros a experimentar a vida aqui e a tocar a terra pela primeira vez. Depois, Seduume enviou do céu as árvores que hoje existem em Yujuudunnha, nossa região de origem, e também aquelas existentes em outros lugares. Essas árvores foram plantadas por Maduuda e Fa’jadi e cresceram com vitalidade. Seduume logo pensou que a terra já estava boa para os humanos viverem. Fez uma pessoa chamada Yuudawaana. Como não havia ar na terra, ele respirava o ar enviado do céu por Seduume. Foi Yuudawaana quem pisou na primeira terra, ele pisou em Kamaasonnha. Em seguida, Seduume trouxe água e pedra. Essa última foi trazida para cá para deixar a terra firme, forte e segura. * Originalmente publicado no livro Território Ye’kwana: a vida em Auaris (2017) Cantos para se viver bem Mais do que formas de expressão artística, os cantos são tecnologias ensinadas aos Ye’kwana por seus ancestrais e possibilitam a existência propriamente humana, afastando os perigos provocados pelos odo’shankomo. Os cantos são compreendidos como armas de defesa (konemjönö ewanakatojoje, “proteção contra aquilo que faz mal”). Os cantos realizados hoje nas festas e nos rituais pelos donos de canto são réplicas dos cantos celestes feitos na terra pelo demiurgo, Wanaadi, e seus auxiliares. Não há invenção de novos cantos, ao contrário, os Ye’kwana são assertivos em dizer que continuam fazendo os mesmos cantos aprendidos pelos antigos ancestrais e guardados na memória dos sábios e sábias ye’kwana. Os donos e donas de canto (acchudi edhaamo) cuidam da transmissão e da circulação dos cantos e são figuras muito importantes na vida comunitária e mestres rituais muito respeitados. Para ser reconhecida como tal, a pessoa deve conhecer um vasto repertório de cantos, práticas e conhecimentos rituais, incluindo as histórias (wätunnä) e o léxico especial da fala ritual. Execução de um canto durante a realização do ritual da menina moça. Comunidade Fuduuwaadunnha, TI Yanomami. Majoí Gongora, 2013. Os cantos acchudi e ädeemi são considerados os mais importantes vetores de circulação das histórias wätunnä. Então, uma pessoa que é dona de canto também é considerada dona de história, pois para realizar um canto ritual é preciso profundo conhecimento dos eventos que aconteceram no tempo das origens. A descrição a seguir nos ajuda a compreender a imbricação entre as histórias e os cantos: “Acchudi vemdesde wätunnä, é wätunnä que se transforma em acchudi. Acchudi [cantos] vem de acontecimentos dos primórdios, de quando surgimos, e é isso que é cantado e rezado. Ninguém inventa wätunnä, acchudi e ädeemi. Primeiro, Odo’sha estragou a terra, a floresta, a água e o alimento. Então, o mundo como está hoje foi curado após o estrago de Odo’sha. As coisas que estavam no mundo estavam estragadas, mas as pessoas daquele tempo fizeram reza para curar o planeta terra. Waidhe curou o planeta terra estragado. A capivara, a ariranha e a lontra curaram a água. Por isso, hoje em dia, rezamos falando delas, dizendo que fazemos a mesma coisa que a ariranha, a capivara e a lontra fizeram, para que, assim, o Wiyu tenha https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/3_532f92b75677301/73953scr_ccbfaaabee9fb24.jpg?v=2021-02-17+12%3A21%3A21 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/3_532f92b75677301/73953scr_ccbfaaabee9fb24.jpg?v=2021-02-17+12%3A21%3A21 medo e não mexa com as pessoas” (Osmar Carlos da Silva, 2017). O modo de vida ye’kwana espelha as ações e palavras ensinadas a seus ancestrais pelas primeiras pessoas que existiram no mundo. Os rituais são, assim como os cantos, repetições de ações realizadas pelos antigos no início dos tempos com a finalidade benzer, curar e proteger as pessoas. Para os Ye’kwana, cantar é a ação ritual por excelência e há duas categorias de canto distintas: ädeemi e acchudi. Cantos ädeemi Os cantos ädeemi são realizados em festivais comunitários também denominados ädeemi (e podem ser chamados de wänwänä - ‘festa’, ‘baile’), momento em que se canta, se dança e se bebe caxiri (yadaaki) ao longo de vários dias. As festas ädeemi são caracterizadas por repertórios específicos de cantos cujos versos enunciados pelo dono de canto, o mestre cerimonial, são repetidos pelos participantes que, ao mesmo tempo, realizam sequências coreográficas ao redor do pilar central da casa comunal. Nesses festivais, há momentos em que a execução dos cantos para e dá lugar às músicas instrumentais tocadas por flautas de bambu (wana) e tambores (samjuda) que são acompanhadas por danças. Os cantos ädeemi são bastantes extensos e são constituídos por vários conjuntos, com motivos melódicos (chäämadö) diferentes entre si, o que torna o seu aprendizado bastante complexo. Entre as mais importantes cerimônias ädeemi, estão as festas da roça nova (tooki ou äddwaajä edeemi’jhödö), da casa nova (ättä ou mma edeemi’jhödö) e da caçada (tänöökö, maji ou wasai edeemi’jhödö). A festa da roça nova deve ser feita quando as roças estão sem vida (tadonnhe’da) ou quando a mandioca-brava está apodrecendo muito cedo. A mandioca-brava tem um duplo (äkaato); ela é viva como uma pessoa, por isso os Ye’kwana cuidam das roças como se fossem seus filhos. Se não cuidar direito, as plantam ficam tristes e com raiva, como uma criança, e seus duplos retornam ao céu e as plantas aqui na terra ficam enfraquecidas. Por isso, a mulher precisa ir todos os dias na roça para alegrar sua plantação. Os cantos feitos durante a festa äddwaajä edeemi’jhödö procuram trazer para terra o duplo (äkaato) da mandioca-brava principal que está no céu e que é a matriz de todos os cultivares. No ritual, a ligação entre as roças celestes e terrestres é refeita e as plantas voltam a crescer com vitalidade nas roças. O ritual da construção e inauguração da casa (mma edeemi’jhödö) é feito toda vez que uma nova casa vai ser erguida na comunidade. Esse é o mais longo de todos, pois começa com a construção da estrutura, quando é colocado e erguido o pilar central da casa, e continua meses depois com a inauguração da casa. Os cantos ädeemi dessa festa são inúmeros e estão organizados em vários conjuntos que correspondem às várias etapas da construção da casa. ''Ättä'', casa redonda, Fuduuwaadunnha, TI Yanomami. Tiago Moreira dos Santos, 2016. Uma importante etapa desse longo ritual chama-se odo’shankomo enno’jadö (“para afastar os espíritos ruins”) e é feita após o término da construção de casa, no mesmo dia ou depois. A festa de inauguração somente acontece depois dessa ação ritual, pois para uma família viver bem e com saúde naquele lugar é preciso afugentar os espíritos ruins. As cerimônias ädeemi possuem um valor inestimável para os Ye’kwana, pois são feitas à imagem e semelhança das primeiras festas realizadas por seus ancestrais mais antigos. Cantos acchudi Os cantos acchudi são realizados cotidianamente e estão relacionados às práticas de cuidado, resguardo e proteção que fazem parte de todas as etapas de vida de uma pessoa. Tanto podem ser feitos no interior da casa comunal com a presença de toda a comunidade, quanto podem ser realizados no domínio restrito da vida familiar. Os cantos acchudi, apesar de serem considerados mais fáceis de aprender e mais curtos, são muito numerosos. Esses cantos permitem aos Ye’kwana viverem bem, isto é, terem saúde e alegria. Há cantos acchudi para: a chegada de um recém-nascido; a primeira saída do bebê da casa onde nasceu; a criança pisar no chão com segurança; proteger da menina moça na primeira menstruação e durante seu isolamento; benzer a carne de caça, peixes e aves antes de serem consumidos pela primeira vez ou https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/2_447df3cf52848eb/73892scr_1c377fc0dcb8b63.jpg?v=2021-02-17+12%3A07%3A23 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/2_447df3cf52848eb/73892scr_1c377fc0dcb8b63.jpg?v=2021-02-17+12%3A07%3A23 após um tempo de resguardo; afugentar espíritos ruins e inimigos da comunidade; benzer uma canoa nova, um tipiti ou outro objeto que será usado pela primeira vez... Além de inúmeros outros cantos acchudi, existem aqueles que curam (adonkwadö), isto é, restabelecem a vitalidade de uma pessoa. Como disse o jovem pesquisador ye’kwana, Robélio Claudio Rodrigues (2019): “Acchudi é muito importante para nós, povo Ye'kwana, serve para purificar algo e proteger a alma. O canto acchudi deve ser usado pelo ser humano desde o nascimento, durante o crescimento e até o resto da vida. Toda vez precisamos fazer acchudi antes de consumir qualquer carne ou usar algo. Mesmo o nosso alimento, nós cantamos para torná-lo comestível, porque todos são amoijhe (contaminados), fazem mal para nós. Com acchudi cuidamos da criança, para ela ter saúde, ter boa inteligência". Quando se canta acchudi, um verso é enunciado logo após o outro – não há repetição como nos cantos ädeemi. Outro elemento que diferencia as duas categorias de cantos é o sopro (aji’mmadö) que caracteriza todas as performances de acchudi. Durante a realização de um canto ou após o seu término, o dono de canto sopra o objeto ou a pessoa que está recebendo aquela ação ritual – é o sopro que transporta a potência do canto para o objeto ou a pessoa, transformando-a. Pessoa humana A pessoa humana (soto) é composta várias almas ou duplos -äkaato ou äkaatokoomo, no plural – elementos autônomos e diferentes que podem se desligar do corpo quando a pessoa desmaia, adoece, sonha ou morre. O adoecimento de uma pessoa está diretamente associado à perda ou roubo de seus duplos por algum odo’shankomo (seres invisíveis perigosos). Na literatura etnológica, a noção äkaato foi traduzida de diferentes formas: “princípio vital”, “duplo”, “alma”, “espírito”, “sombra”, “reflexo”, “eu imaterial” etc. Os Ye’kwana de Auaris costumam traduzir este conceito por “espírito” ou “alma”. A pessoa possui duplos no interior de seu corpo: um dentro dos olhos e outro no coração. Costumam se referir ao duplo do olho usando os seguintes termos: ayenudu ekaato (“duplo do teu olho”) e äsejjedö (“tua sabedoria ou inteligência”). Já o duplo que fica no coração costuma ser chamado de yo’tadö (“seu meio ou cerne”) ou odo’tadö (“teu meio ou cerne”). Jovens adornados para a festa. Fuduuwaadunnha, TI Yanomami. José Cury/ Museu do Índio-FUNAI / Povo Ye’kwana, 2018. A presença do duplo do olho no corpo é o índice de vitalidade, pensamento próprio e inteligência. É no olho que está a verdadeira sabedoria. O termo äsejjedö (tuasabedoria) é uma das formas de denominar o duplo do olho – noção semelhante a de outros povos como os Waiwai, Kaxinawa, Marubo, entre outros. Os olhos abertos são expressão da presença do duplo do olho no interior da pessoa e são, portanto, um importante sinal vital. O duplo do olho costuma se desanexar do corpo durante o sonho e tais afastamentos (temporários, no melhor dos casos) podem provocar o enfraquecimento da pessoa. Com a morte da pessoa, os duplos que se alojam nos olhos e no coração retornam a seu local de origem: ao céu do demiurgo Wanaadi. Além desses duplos de origem celeste, os Ye’kwana mencionam outros aspectos da pessoa que também são nomeados de äkaato. Estes estão ligados ao corpo, mas estão “fora” dele, pois são suas projeções. Remetem àquilo que em português denominamos de “sombra”, “reflexo” ou “imagem”. Há o duplo do sol (shii äkaato); duplo da noite (koijhai äkaato); duplo na água (na’kwa’ka äkaato); duplo no espelho (fekuudeaka äkaato) etc. Fotografias e imagens em vídeo de uma pessoa também são seus duplos. Os vídeos, especificamente, são chamados de äkaato ajäiyajä (duplo agarrado). Esses duplos, após o falecimento da pessoa, retornam a seus locais de origem que são diversos. O duplo do sol retorna ao sol e a sombra que surge no chão à noite é devorada pela lua (Nuunä), ser canibal. A imagem refletida nos cursos d'água ficará com Wiyu, designação dos donos invisíveis das paisagens e dos https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/5/0/0_7b58f9c799202e2/75500scr_a78ac8945290ce2.jpg?v=2021-03-17+19%3A40%3A47 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/5/0/0_7b58f9c799202e2/75500scr_a78ac8945290ce2.jpg?v=2021-03-17+19%3A40%3A47 seres aquáticos, uma das principais ameaças aos Ye’kwana. O duplo refletido nos espelhos viverá com Kaaju, maior inimigo dos humanos. Os duplos capturados pelos aparatos tecnológicos, como câmeras de vídeo, ficarão aprisionados nesses suportes. Um outro aspecto da pessoa que surge com sua morte é denominado äkaatomjä ou äkaatomjödö (literalmente ‘ex-duplo’, ‘pretérito-duplo’ ou ‘o que foi o duplo’). Este ex-duplo é um espectro terrestre da pessoa que ganha corpo depois de seu falecimento. Ele refaz os caminhos percorridos em vida pela pessoa até finalmente retornar ao local de seu nascimento onde permanecerá para sempre ao lado do cupinzeiro onde foi está enterrada a sua placenta. Lauer (2005) descreve-o como um ser invisível que segue a pessoa enquanto viva e que, depois de sua morte, torna-se um espectro que pode assumir a aparência de um anão repugnante raramente visto. O ex-duplo gosta de alimentar vínculos afetivos entre o morto e seus parentes e amigos por meio de sonhos e de lembranças e isso é ruim para os familiares vivos, pois esse desejo de proximidade entre os mortos e os vivos pode se transformar em tristeza, adoecimento e morte. Casas Os Ye'kwana procuram viver sempre próximos a rios e igarapés. É por meio desses caminhos que navegam em seu território. Para escolher o local da habitação, é preciso conversar com os donos invisíveis daquele lugar: são os espíritos das serras, lagos, remansos ou de antigos pajés que viveram ali. Casa redonda (''ättä''). Fuduuwaadunnha, TI Yanomami. José Cury/ Museu do Índio-FUNAI / Povo Ye’kwana, 2018. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/2_5fc7ee310ae13f8/73942scr_6554f0e4727b561.jpg?v=2021-02-17+12%3A18%3A47 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/2_5fc7ee310ae13f8/73942scr_6554f0e4727b561.jpg?v=2021-02-17+12%3A18%3A47 Casa no estilo ''famaakadi''. Comunidade Kudatannha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/8_5857ea61787b804/73948scr_a93d59107784d25.jpg?v=2021-02-17+12%3A20%3A11 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/8_5857ea61787b804/73948scr_a93d59107784d25.jpg?v=2021-02-17+12%3A20%3A11 Casa no estilo ''koneedo ju’jä''. Comunidade Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2019. O ato de conversar com esses espíritos é tarefa dos pajés (föwai) ou donos de canto (acchudi edhaamo). Eles fazem um diagnóstico da área pretendida e negociam com esses donos. Uma vez concluída essa etapa, inicia-se a construção de uma casa provisória, um abrigo, até se estabelecerem definitivamente. Antes de se mudar, as pessoas esperam suas roças ficarem prontas. Como disse Arvelo-Jimenez (1974), uma construção circular no meio da floresta evidencia a existência de uma comunidade ye'kwana. Antigamente, as famílias ye'kwana se abrigavam em uma casa coletiva e a mais utilizada era ättä, a casa redonda. Junto ao pilar central da casa há um espaço chamado anna (centro), onde dormiam os homens solteiros e eram feitas as refeições masculinas, as festas e rituais. Ao redor da anna, estavam os espaços reservados às famílias (ä’sa), cada uma com seu próprio fogo. Na parte externa da casa, está o terreiro chamado födoodo. Além da ättä, existem outros dois tipos de casas construídas pelos Ye’kwana: koneedo ju’jä (“cabeça do peixe koneedo”) e famaakadi - que tem um formato retangular. Uma das primeiras casas feitas por Wanaadi ganhou o nome de Kushamakadi e tinha esse último formato. Muito tempo depois, os irmãos Yudeeke e Shichäämöna construíram uma casa redonda (ättä) cujo nome é Waata’jödö, onde hoje está a serra de mesmo nome na região do Uraricoera, próxima à comunidade Waichannha. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/8_47be4ec0c0fb5c3/73898scr_f0dfde78bfc6bad.jpg?v=2021-02-17+12%3A08%3A42 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/8_47be4ec0c0fb5c3/73898scr_f0dfde78bfc6bad.jpg?v=2021-02-17+12%3A08%3A42 Serra ''Waata'jödö'', antiga casa redonda dos irmãos Yudeeke e Shichäämöna. Rio Uraricoera. TI Yanomami, Roraima. Guilherme Gnipper Trevisan, 2017. É comum encontrar nas comunidades ye'kwana na Venezuela uma casa redonda (ättä). No Brasil, esse tipo de construção não é mais comum. Na década de 1960, na época da construção da pista de pouso em Auaris, os Ye’kwana viviam em uma casa redonda. Quando se mudaram para Fayya Ku’jännha, em 1974, construíram uma casa do tipo famaakadi, coberta com a palha de bacabeira. Era uma casa comunal, porém, algumas famílias decidiram construir casas separadas. No final de década de 1980, quando mudaram para outro lado do rio Auaris, cada pai de família decidiu construir sua casa própria com repartições internas para que suas filhas casadas pudessem viver ali com seus maridos e filhos. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/7_cfdddccdb410fa2/73977scr_7aad7aa9c3ef54b.jpg?v=2021-02-17+12%3A28%3A45 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/7/7_cfdddccdb410fa2/73977scr_7aad7aa9c3ef54b.jpg?v=2021-02-17+12%3A28%3A45 Beijus secam sobre o teto da residência coberto com telhas de alumínio. Comunidade Fuduuwaadunnha, TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. No início dos anos 2000, com maior poder aquisitivo devido aos trabalhos assalariados, algumas famílias compraram telhas de alumínio, pois perceberam a durabilidade do novo material e a escassez de palhas na região. Atualmente, as casas ye'kwana são, em sua maioria, cobertas com a telha de alumínio. Ao lado da casa coberta com essa telha, há geralmente uma casa menor coberta com palha, onde os alimentos como o beiju são preparados. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/2/6_4cd7b8902818068/73926scr_90ae73e14480381.jpg?v=2021-02-17+12%3A15%3A16 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/2/6_4cd7b8902818068/73926scr_90ae73e14480381.jpg?v=2021-02-17+12%3A15%3A16 Casa redonda (''ättä''). Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora/Museu do Índio-FUNAI / Povo Ye’kwana, 2018. Depois de mais de uma década sem uma casa redonda, o tuxaua de Fuduuwaadunnha decidiu construir uma ättä que foi concluída em 2016. Atualmente, a casa redonda nas comunidades ye'kwana não é utilizada como moradia permanente, mas é o espaço para reuniões, festas e onde todas as noites os homens se reúnem para trocar informações sobre o dia a dia e repassar notíciasque chegam pela radiofonia. Vida comunitária Os Ye'kwana, como a maioria dos povos indígenas, transmitem seus conhecimentos oralmente. As crianças aprendem com seus pais ou parentes mais próximos, participando das atividades cotidianas: os meninos aprendem com o pai e as meninas com a sua mãe. A coletividade é o mais importante valor para esse povo. Quando constroem uma nova casa ou vão derrubar a mata para fazer roças novas, todo mundo ajuda, tanto os homens, quanto as mulheres. As mulheres trazem o chibé ou o caxiri (yadaaki) e, assim, os homens não precisam ir comer em suas casas e passam o dia inteiro trabalhando. A união entre os membros é essencial para realizarem suas atividades. Toda aldeia ye’kwana é cuidada por um tuxaua ou chefe que, na língua ye’kwana, é chamado de ädhaajä. É geralmente o fundador da comunidade. As decisões relativas à vida comunitária são tomadas por ele em diálogo com o https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/6_a4432db503f4a43/73896scr_18b9872e761d90f.jpg?v=2021-02-17+12%3A08%3A13 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/6_a4432db503f4a43/73896scr_18b9872e761d90f.jpg?v=2021-02-17+12%3A08%3A13 conselho de lideranças formado por homens (inchonkomo) e mulheres respeitáveis (no’sankomo). Mulher oferta chibé a duas importantes lideranças ye’kwana, Sostenes da Silva e Albertino Gimenes. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Alcida Ramos, 1974. Antigamente, todo tuxaua era dono de canto. Ou seja, um atributo importante do ädhaajä é dominar os conhecimentos antigos, tais como o vasto repertório de cantos acchudi e ädeemi e conhecer as histórias wätunnä. Um bom chefe também é aquele que sabe manter a sua turma reunida e, para isso, existem cantos (wejumma) que são feitos com essa finalidade. O chefe deve zelar pelo bem-estar da comunidade e orientar seus moradores. Participa das reuniões e encontros com os outros chefes ou representantes não indígenas. Antigamente, as mulheres da família do ädhaajä costumavam levar comida para as pessoas que estavam na annaka (centro da casa redonda), onde eram feitas as refeições coletivas. Hoje em dia, isso acontece somente em dias de trabalho coletivo ou festas. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/1_ea14901d4f94658/73891scr_35ecf4e6116b4ba.jpg?v=2021-02-17+12%3A07%3A00 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/8/9/1_ea14901d4f94658/73891scr_35ecf4e6116b4ba.jpg?v=2021-02-17+12%3A07%3A00 Mulheres distribuem chibé armazenados em panelas de alumínio e servidos em cuias. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Alcida Ramos, 1974. Tradicionalmente, quando morre o tuxaua, a aldeia é abandonada, pois sua morte implica na mudança de lugar, na fundação de uma nova morada e na escolha de um novo tuxaua. Essa escolha era feita por pessoas sábias, geralmente mais velhas, e levavam em conta os conhecimentos de wätunnä e de cantos do futuro tuxaua, assim como a sua habilidade em aconselhar os jovens e outros membros da comunidade. Há algum tempo comunidades ye’kwana começaram escolher o tuxaua por meio de votações. A comunidade inteira passa a escolher quem será o novo ädhaajä. Hoje em dia, é parte importante da política ye’kwana participar de reuniões com os não indígenas e por isso a pessoa que ocupa a função de chefe também deve saber falar o português para dialogar com os não indígenas e expressar suas reivindicações sobre os problemas que acontecem nas comunidades. Antes dos brancos e da escola fazerem parte da vida ye’kwana, não havia esse tipo de preocupação. Nas atividades cotidianas de uma família, há a divisão entre homens e mulheres. Os primeiros têm atribuições de trazer a carne de caça para casa, pescar, abrir roça, limpar os caminhos da roça, construir a casa de sua família, fazer tönköi yedö (estrutura de madeira onde se coloca o tipiti), tecer o tipiti, balaio para servir beiju, peneira; construir canoa e zelar pelo bem estar da sua família e da comunidade, ou seja, participar das reuniões e decisões políticas comunitárias. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/1/5_46f0f7f780f5efc/73915scr_ed71a42d6502a92.jpg?v=2021-02-17+12%3A13%3A08 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/1/5_46f0f7f780f5efc/73915scr_ed71a42d6502a92.jpg?v=2021-02-17+12%3A13%3A08 Caçador, ao chegar na aldeia com a caça, duela com as mulheres que correm para arrancar o embrulho (''maji'') de sua mão. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Ana Gita de Oliveira, 1974. As mulheres cuidam das coisas mais importantes para os Ye’kwana: a alimentação e as pessoas. Elas cuidam da casa, dos filhos, dos cultivos nas roças; preparam a alimentação diária; buscam água fresca, lenha para assar beiju; ralam mandioca; fazem cestas wöwa, os ralos de mandioca (tadaddwe) e cozinham. Até hoje são mantidas essas divisões de tarefas entre os gêneros. A produção e o cuidado com os alimentos Os Ye'kwana são agricultores milenares e cultivam muitas variedades de mandioca-brava, banana, batata, abacaxi, milho, inhame, cará, batata-doce e abóbora, cana-de-açúcar e tabaco. Além disso, cultivam pimentas e produzem seus derivados como a jiquitaia, kasaakidi (molho de tucupi com pimenta), waduuwe (pimenta fresca pilada e misturada com massa de mandioca). Esses são os alimentos feitos com o que vem das roças ye’kwana. Em cada família, a mãe e suas filhas são responsáveis por cuidar da roça. A dieta alimentar tem sua base nos derivados da mandioca-brava, como beiju, farinha de mandioca, chibé e o caxiri (yadaaki, bebida fermentada feita à base de mandioca). https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/8/0_904c224ac75232f/73980scr_d1a73ba050ba0c9.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A22 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/8/0_904c224ac75232f/73980scr_d1a73ba050ba0c9.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A22 Preparo diário do beiju. Tajädedatonnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. A seguir, uma descrição das principais etapas envolvidas na organização do trabalho nas roças e os rituais associados a essa importante atividade. Em primeiro lugar, as lideranças da comunidade se reúnem e fazem um levantamento para saber quantas roças cada família pretende fazer naquele ano e depois de saber a quantidade total de roças marcam o dia do início dos trabalhos de derrubada. As pessoas se preparam para esse dia: separam suas ferramentas de trabalho e as mulheres idosas preparam awaana (plantas de proteção) e outras fazem yadaaki (bebida tradicional). Antes da derrubada, fazem um ritual para pedir autorização dos donos das árvores e para expulsar os espíritos ruins da área que foi demarcada pelos homens. Estes também são responsáveis por plantar no meio da roça pretendida as plantas que irão proteger os novos cultivos. A primeira etapa da derrubada é fazer a limpeza embaixo das árvores grandes em todas as roças. Durante a limpeza, as mulheres participam levando alimentos aos homens, como chibé e caxiri. Durante o trabalho, os donos da roça (casal) são responsáveis pela coordenação dos trabalhos. A limpeza leva, em média, de sete a dez dias, dependendo quantidade de roças. Depois, fazem uma pausa para as pessoas caçarem por uma semana e nesse tempo alguns homens preparam os cabos de machado. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/7_a0f540b9adff4d8/73947scr_a9495927f2ef6f6.jpg?v=2021-02-17+12%3A19%3A56 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/7_a0f540b9adff4d8/73947scr_a9495927f2ef6f6.jpg?v=2021-02-17+12%3A19%3A56 No dia da retomada do trabalho, na madrugada, os homens são convidados para comer na casa redonda (annaka) e a mulher que está coordenando os trabalhos femininos coloca um pó feito com a planta awaana na cabeça dos homens para protegê-los de acidentes. Então, eles partem para derrubar as árvores grandes com seus machados. Os donos da roça convidam toda a comunidade para um almoço ali na roça. Enquanto isso, os homens continuam trabalhando na derrubada das árvores e as mulheres servindo chibé e caxiri. Quando são roças não muito grandes, os homens derrubam, em média, duas roçaspor dia. Quando chega a vez da última roça, os trabalhadores deixam uma pequena parte com árvores para serem derrubadas no dia seguinte, momento que terá início äddwaajä edeemi’jhödö (festa da roça nova). No último dia, logo de manhã, derrubam as últimas árvores e então preparam trompetes feitos com a casca da árvore momi, um tipo de vegetação secundária encontrada em roças velhas. Os homens com seus instrumentos musicais chegam de volta à comunidade e iniciam o festival äddwaajä edeemi’jhödö que tem duração de três dias e três noites. Geralmente, nessa cerimônia - mas não só - é realizado um canto ritual para chamar de volta as almas/espíritos da mandioca-brava (ädeeja) e de outras plantas, como banana, inhame, batata, batata doce etc., para fortalecê-las, resgatando sua vitalidade. Os alimentos plantados na roça (ädeeja) têm alma (äkaato) assim como as pessoas humanas. Maniva crescendo na roça. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/8_d1f8bdbb0d91c0c/73958scr_97c0bf019cbbb6b.jpg?v=2021-02-17+12%3A22%3A35 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/8_d1f8bdbb0d91c0c/73958scr_97c0bf019cbbb6b.jpg?v=2021-02-17+12%3A22%3A35 Roraima. Majoí Gongora, 2017. Os trabalhos para derrubar as roças costumam acontecer nos meses de setembro, outubro ou novembro. A queimada das roças ocorre nos meses de fevereiro ou março e somente depois disso que é feito o ritual que afugenta seres maléficos que prejudicam o crescimento das plantas. Esses cantos rituais são feitos em todas as roças e, após a sua realização, começam os trabalhos para reunir as mudas e plantar nas roças novas. Depois de semear, é chegado o momento de cuidar para o mato não tome conta do roçado. Depois de um ou dois anos, a primeira colheita é planejada pelos donos da roça. Durante a colheita, os homens caçam e as mulheres ficam na roça. No dia seguinte, os homens comem na casa comunal e as mulheres oferecem um chibé doce chamado kushi. Caçada e pescaria A caçada é uma importante atividade masculina. As atividades de caça são sempre acompanhadas por regras de conduta visando à proteção do caçador, da sua família e da comunidade. Os homens que se encontram em resguardo, seja pelo falecimento de um parente, seja pelo nascimento de um filho, não podem caçar. A relação com os donos invisíveis dos animais está sempre em questão e não se deve despertar a sua fúria, pois são perigosos. Assim como se deve pedir permissão aos donos do lugar onde se deseja construir uma nova comunidade, é preciso negociar com os espíritos mestres dos animais de caça. Não se pode agir de forma desrespeitosa durante a caçada e há inúmeros cuidados a serem tomados, entre eles, a prática de fincar uma vara com uma parte do corpo do animal no local onde foi abatido. Fazem dessa forma para que o dono da caça pense que o animal foi morto pela vara e não procure se vingar dos caçadores ye’kwana. Pai e filho em direção a um bando de queixadas próximo à comunidade. Fuduuwaadunnha, TI Yanomami, Roraima. José Cury, 2017. Antes da incorporação das espingardas, os Ye’kwana fabricavam belos arcos e flechas para caçar. Outro artefato característico desse povo eram as zarabatanas que nas trocas com outros povos indígenas da região das Guianas eram bastante apreciadas ao lado dos ralos e das canoas. A caçada com as longas zarabatanas ye’kwana dependiam do uso do curare (veneno de caça) que era aplicado nas setas – o alvo eram as aves. Hoje esse tipo de caçada não é mais comum. Entre as caças mais consumidas estão os veados, as pacas, queixadas, antas e alguns pássaros como mutum, tucano, arara, inhambu e jacamim. Há duas “caças” que são eminentemente femininas e que existem somente na região de Auaris: moto, um tipo específico de minhoca, e o kudu, minhocoçu. Wätunnä conta que moto foi trazido do céu e “plantado” no território tradicional ye’kwana e é considerado um dos poucos alimentos amoijhe’da (“não contaminado”) e é por isso um alimento perfeito do ponto de vista ye’kwana: nutritivo e sem veneno. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/5/1/3_dbd434063305243/75513scr_11763a5149d0a85.jpg?v=2021-03-18+13%3A24%3A09 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/5/5/1/3_dbd434063305243/75513scr_11763a5149d0a85.jpg?v=2021-03-18+13%3A24%3A09 Mulheres em busca de ''moto''. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Ana Gita de Oliveira, 1974. Outros animais apreciados são algumas lagartas comestíveis e as formigas sedi e ködhakwä. Atualmente, a região sofre com a escassez de animais de caça devido ao aumento demográfico, à sedentarização da população e ao uso de armas de fogo pelos moradores durante as caçadas. Antes da chegada de não indígenas em Auaris, os Ye'kwana e seus vizinhos yanomami, os Sanöma, viviam com maior mobilidade; não ficavam mais de cinco anos no mesmo lugar e construíam suas novas casas onde havia fartura de caça e pesca. Com a presença não indígena na região, as comunidades começaram a se aproximar, atraídas pelos bens manufaturados trazidos pelos brancos, e com isso aumentou a pressão sobre os recursos naturais, principalmente, os animais de caça, os peixes e as palhas. https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/4/5_f19831ba39ea3af/54445scr_d7883715b1aebad.jpg?v=2020-03-30+16%3A06%3A15 https://galeria.socioambiental.org/filestore/5/4/4/4/5_f19831ba39ea3af/54445scr_d7883715b1aebad.jpg?v=2020-03-30+16%3A06%3A15 Timbó ''ayaadi'' reservado antes de ser batido. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2018. Existem vários modos de pescar, mas certamente o mais apreciado são as pescarias coletivas feitas com timbó ayaadi. Nesse momento, toda a comunidade participa, cada um carregando o seu puçá (faaji), rede em forma cônica montada em um aro, que é fabricada pelos homens. Assim que o efeito do veneno é sentido os peixes menores aparecem na superfície da água e se tornam presas fáceis. Ao lado da área onde estava sendo realizada a pescaria, as famílias acendem pequenas fogueiras para assar alguns peixes que servem de almoço rápido. A maior parte dos peixes pescados será moqueada nas casas das famílias e será um importante complemente na dieta alimentar da comunidade por um tempo. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/2_0d26f0b11212ba0/73902scr_35e76ba612563b5.jpg?v=2021-02-17+12%3A09%3A38 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/2_0d26f0b11212ba0/73902scr_35e76ba612563b5.jpg?v=2021-02-17+12%3A09%3A38 Pescaria coletiva com timbó. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2018. Os peixes na região de Auaris são pequenos, pois por causa das cachoeiras os peixes maiores não conseguem subir. Na década de 1980, malhadores e redes de pesca começaram a ser usados e a partir daí as pescarias aumentaram bastante. Ainda há um descontrole no uso da rede de pesca até mesmo durante o tempo da piracema. Em Auaris, as áreas de caça e pesca estão mais distantes. Os animais de caça podem ser encontrados a um ou três dias caminhada, em caminhos que atravessam a fronteira Brasil-Venezuela nas direções leste, oeste e norte da região. Ao contrário do acontece em Auaris, há nas comunidades Kudatannha e Waichannha fartura de peixes grandes e animais de caça. Ali, os peixes são diferentes daqueles que existem acima da Cachoeira Tödömmadö, situada depois de Kudatannha, subindo o curso do rio Auaris. Abaixo dessa cachoeira há ambientes, plantas e animais que não existem na região de Yujudunnha –território tradicional – rio acima. Segundo uma história antiga (wätunnä), a diferença de paisagens e habitantes que há nessa região deve-se a uma pessoa chamada Adaajaiyana que não deixou a garça vomitar peixes grandes no território demarcado pelo ancestral Kuyuujaani, somente os pequenos. Adaajaiyana pediu para que a garça os levasse para bem longe. Antigamente, os Ye’kwana não consumiam os peixes e animais que viviam abaixo da Cachoeira Tödömmadö, pois por não serem alimentos de seu território tradicional poderiam trazer doenças. Naquele tempo, quando as pessoas passavampor regiões a jusante levavam masoya, um tipo de lagarto, alimento ideal para as viagens. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/6_4ec5e429fd7622e/73906scr_4c1323f732dd87b.jpg?v=2021-02-17+12%3A10%3A41 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/0/6_4ec5e429fd7622e/73906scr_4c1323f732dd87b.jpg?v=2021-02-17+12%3A10%3A41 A (re)introdução de peixes (kudaaka), animais quadrúpedes (odookoja’komo) e aves (tadinhaamo) na dieta alimentar de uma pessoa deve ser mediada por cantos de desintoxicação ou purificação chamados tänäämö yacchuumadö. Em geral, o dono de canto recebe um embrulho com o pedaço da carne enrolado em um beiju e amarrado com fibra de curauá e durante o canto vai soprando esse alimento, tornando-o próprio para o consumo. A carne deverá estar moqueada, sem qualquer sinal de sangue do animal abatido. Refeição com chibé, beiju, molho de pimenta e banana. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. Uma criança ye’kwana ou um adulto, após um período de resguardo, deve incorporar pouco a pouco em sua dieta novos alimentos. Assim passa-se do alimento menos perigoso (amoijhe’da) ao mais contaminado e perigoso (amoijhe). Do chibé morno e do consumo da minhoca moto, passa-se aos pequenos peixes; em seguida, aos peixes maiores; às aves de carne branca, preferencialmente; e, por último, carne de caça. A cada novo alimento introduzido na dieta alimentar, o canto tänäämö yacchuumadö deve ser feito, como se esse nunca tivesse sido consumido antes. Centralidade das roças A mandioca-brava é, sem dúvida, um dos elementos centrais na dieta alimentar https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/3/4_5bb8e01a7974d3d/73934scr_dbca0f3db3d9906.jpg?v=2021-02-17+12%3A16%3A50 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/3/4_5bb8e01a7974d3d/73934scr_dbca0f3db3d9906.jpg?v=2021-02-17+12%3A16%3A50 dos Ye’kwana, assim como de outros povos. O cultivo da mandioca-brava é uma prática envolve a produção do alimento verdadeiramente saudável e também diz respeito a um modo de viver muito antigo extremamente valorizado pelos Ye’kwana. Mulher na roça. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Ana Gita de Oliveira, 1974. Todos os tipos de mandioca-brava hoje produzidos nas roças ye’kwana têm sua origem em uma única maniva, roubada de uma roça celeste e plantada na terra. Primeiro, foi plantada fora do território ye’kwana, onde hoje é o Monte Roraima (Dodoimä’jödö), e depois foi transplantada no alto rio Orinoco, onde hoje se encontra a Serra Marawaka (Madaawaka’jödö). Ambas as serras são tepuis, um tipo de formação rochosa que tem o formato de uma mesa, com paredes íngremes e o topo plano, e são o que sobrou das árvores gigantescas repletas de frutos que existiram no início dos tempos e que foram cortadas pelos antigos. A mandioca-brava é uma planta de origem celeste e foi trazida por uma pessoa que vivia na terra no tempo em que todos se alimentavam com argila. O nome utilizado nos cantos rituais para denominar essa “maniva primordial” é ädeeja. A história narra a saga de Wayaama, um Kuichui (jupará), que foi para o céu em busca da maniva. Subiu nas árvores mais altas que havia em busca de um caminho até a roça de Udeenadiwa no céu. O jupará roubou um pedaço da mandioca-brava e escondeu-o em sua unha e depois de muito ser perseguido (inclusive morto), voltou à terra para plantar o primeiro pé, onde hoje é o Monte Roraima. A ädeeja cresceu rapidamente e se transformou em uma árvore enorme cheia de frutos. Por ficar longe demais de onde viviam as pessoas, a https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/8/1_ed27723d6cb5afc/73981scr_308cd26cc3e4988.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A44 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/8/1_ed27723d6cb5afc/73981scr_308cd26cc3e4988.jpg?v=2021-02-17+12%3A29%3A44 árvore foi derrubada e uma nova muda foi levada à região de Yujudunnha, próxima de suas casas. A primeira tentativa foi frustrada, pois a planta foi estragada por inimigos e não cresceu. Uma nova tentativa aconteceu. As pessoas responsáveis pelo transporte da planta andaram por caminhos protegidos para não atrair a atenção dos inimigos que queriam roubar a ädeeja ou estragá-la. Roça nova com plantação de cubiu. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. Na segunda tentativa, na região do alto Orinoco, a planta vingou e de um dia para outro a maniva se transformou em uma árvore gigantesca, cuja abundância de frutos alimentou muita gente. Mas a árvore era grande demais e por isso quando os frutos maduros caiam acabavam matando as pessoas que estavam ali embaixo. Decidiram derrubar a árvore Madaawaka e distribuir os talos de mandioca entre todas as pessoas que ajudaram a tombá-la. As mudas tiradas de Madaawaka deram origem a todas as plantas cultivadas nas roças dos Ye’kwana e de outros povos, não só à mandioca-brava, mas também ao milho, à batata doce, ao inhame, ao cará, à abóbora, à banana, à cana de açúcar, ao cubiu, à cabaça etc. Após esse grande acontecimento, inúmeras transformações se deram, como a diferenciação entre línguas faladas pelas pessoas e a diferenciação entre povos – e cada um agora tinha a sua própria roça. Depois da derrubada de Madaawaka, todos participaram da primeira grande festa que existiu na terra chamada äddwaajä edeemi’jhödö. É essa cerimônia que os Ye’kwana realizam assim que terminam de derrubar as últimas árvores de suas roças novas. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/6_76b1a615387faee/73956scr_0a3973b7e2fb34c.jpg?v=2021-02-17+12%3A22%3A05 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/5/6_76b1a615387faee/73956scr_0a3973b7e2fb34c.jpg?v=2021-02-17+12%3A22%3A05 Tipiti (''tönköi'') e a massa de mandioca depois de prensada. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. É importante destacar que apesar da mandioca-brava ter sido plantada na terra, as pessoas daquele tempo não sabiam prepará-la, isto é, extrair o seu veneno (eke) e fazer o beiju. De acordo com os dados de Guss (1989), foi Edodicha, um poderoso pajé, que trouxe de um plano celeste, os materiais e os conhecimentos relativos à fabricação dos objetos usados para preparar a mandioca-brava: o ralo (tadaddwe), tipiti (tönköi), o cesto onde se apóia a massa (waja tönköijhato), a peneira (manaade), a chapa onde se assa o beiju (fötadi), o abano para o fogo (wadiwadi), cestos cargueiros feminino e masculino (wöwa e tudui), entre outros. https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/1_4ca26fcdd70daef/73941scr_7378540b59efb88.jpg?v=2021-02-17+12%3A18%3A31 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/4/1_4ca26fcdd70daef/73941scr_7378540b59efb88.jpg?v=2021-02-17+12%3A18%3A31 Mulheres carregam dezenas de quilos em seus cestos wowa. Fuduuwaadunnha. TI Yanomami, Roraima. Majoí Gongora, 2013. Cuidar das roças é uma prática eminentemente feminina. A dona da roça (äddwaajä edhaajä) se refere a ädeeja (mandioca-brava e outros cultivares) usando o termo önnedö (“meu filho”). Mulheres, as donas dos alimentos Autoria ye’kwana: Alerina Perez e Carmen Gimenes A mulher cuida das plantas cultivadas na roça como se fosse a mãe delas. É ela que prepara os alimentos para a sua família. O homem é como se fosse o pai das plantas. É ele que derruba as árvores para fazer a roça e às vezes vai lá olhá-la. Ele limpa o caminho, faz a barraca na roça, faz os objetos usados no preparo dos alimentos como o tipiti, a peneira, o balaio etc. A mulher vai todo dia à roça para ver se está tudo bem, se há pessoas desconhecidas mexendo ali. Faz igual aos donos das roças que existem lá no céu, que sempre estão cuidando de suas plantações. A roça dela é como se fosse um filho. Se ela não for lá olhar, a mandioca-brava vai se zangar: “Minha mãezinha não vem me ver”, assim ela vai dizer. Quando tira o mato que cresce na roça, a mandioca-brava fica contente: “Minha https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/2/7_e88a40142c23155/73927scr_31f2f7ecbabb743.jpg?v=2021-02-17+12%3A15%3A32 https://galeria.socioambiental.org/filestore/7/3/9/2/7_e88a40142c23155/73927scr_31f2f7ecbabb743.jpg?v=2021-02-17+12%3A15%3A32