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Porto Alegre, 2005 Rafael José dos Santos ANTROPOLOGIA PARA QUEM NÃO VAI SER ANTROPÓLOGO © do autor 1ª edição 2005 Tomo Editorial Ltda. Fone/fax: (51) 3227.1021 tomo@tomoeditorial.com.br www.tomoeditorial.com.br Rua Demétrio Ribeiro, 525 CEP 90010-310 Porto Alegre RS Série “Para quem não vai ser” Coordenação: Rafael José dos Santos Editor: João Carneiro Diagramação: Tomo Editorial Capa: Atelier @Arte sobre fotografia “Esquina dos quatro cantos”, Olinda, Pernambuco, de Maria Nazareth Agra Hassen Foto do autor: Liliane P. R. dos Santos Fotografias gentilmente cedidas por: Toshi Matsuo (página 60) e Luiz Eduardo Robinson Achutti (páginas 62 e 63) Revisão: Moira Direitos reservados desta edição: Tomo Editorial Ltda. A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br. S237a Santos, Rafael José dos Antropologia para quem não vai ser antropólogo / Rafael José dos Santos — Porto Alegre : Tomo Editorial, 2005 — (Série “Para quem não vai ser”, 1). 80 p. ISBN 85-86225-41-X 1. Antropologia. 2. Evolucionismo Social. 3. Etnocentrismo. 4. Positivismo. 5. Meio e Raça. I.Título. CDD 573.2 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Responsável: Vera Lucia Linhares Dias CRB-10/1316 Para Liliane e Gabriel, companheiros nessa viagem pela vida. Agradecimentos Este livro não teria sequer razão de ser se não fosse pelos alunos e alunas de vários cursos, com quem já tive o prazer de trabalhar, tanto em salas de aula como em orientações de trabalhos, não apenas falando sobre Antropologia, mas também sobre Sociologia e outras disciplinas. A todos e todas um “muito obrigado” especial. Há também um número muito grande de amigos, amigas, muitos deles colegas de ofícios – professores de várias áreas, alguns antropólogos, meus professores. Não conseguiria agradecer nome por nome, mas sei que todos eles irão reconhecer-se em minha gratidão. Sumário Apresentação – Para que serve estudar antropologia?......... 7 Prazer em conhecer ....................................................... 11 I O que é, como surgiu? .......................................... 17 1. O que é Antropologia?........................................... 17 2. Como surgiu? Um pouco de história ....................... 19 3. Evolucionismo Social e Positivismo, Meio e Raça....... 22 3.1 Evolucionismo Social ........................................ 22 3.2 O Positivismo ................................................... 23 3.3 Meio e Raça..................................................... 27 4. Etnocentrismo........................................................ 34 I I E as visões foram mudando... ................................ 37 1. O trabalho de campo: o antropólogo “dança com lobos” ................................................................... 37 2. Enquanto isso, na França ....................................... 42 I I I O olhar antropológico............................................ 53 1. Tão diferentes, tão iguais: somos todos “tribais” ....... 53 2. A experiência da pesquisa: o “estar lá” .................... 64 Concluindo ou, quem sabe, começando... .................. 69 Referências ..................................................................... 71 Anexo I Código de Ética do Antropólogo .................................. 74 Anexo II Antropologia na Internet .............................................. 75 Índice Remissivo ............................................................. 76 Para que serve estudar antropologia? Lúcia Helena Alves Müller * Tudo bem, tem gente que tem curiosidade a respeito de povos longínquos, culturas em extinção ou mesmo sobre crenças e costumes exóticos. Também tem gente que pensa que, por ser uma disciplina dedicada ao estudo do ser huma- no, por princípio, a antropologia deveria interessar a todo mundo. Mas se for este o caso, porque não estudar história ou psicologia, que também tratam das questões humanas? Essas são as primeiras dúvidas com as quais todo professor se depara ao ministrar uma disciplina inicial de an- tropologia social em qualquer curso, principalmente se ele não estiver voltado à formação de cientistas sociais. E o que levou Rafael a escrever esse livro foi, certamente, o interesse em ajudar os professores de antropologia a fornecerem res- postas satisfatórias para essas perguntas. Mas afinal, para que serve estudar antropologia quan- do não se pretende ser antropólogo? Para acharmos respostas a essa indagação deve-se começar prestando atenção nos temas das pesquisas que es- tão sendo produzidas pelos profissionais dessa área. Uma for- ma simples de fazer isso é dar uma olhada nas estantes que são dedicadas às publicações de antropologia em bibliotecas e livrarias. Ao fazê-lo, iremos encontrar trabalhos que tratam de temas muito variados, indo do campo da saúde ao campo Apresentação * Doutora em Antropologia e professora do Programa de Pós- graduação em Ciências Sociais da PUCRS. 7 Rafael José dos Santos 8 da política ou da religião, do campo do direito ao da comu- nicação ou da economia. Também vamos encontrar estudos sobre temas relativos ao meio-ambiente, à educação, ao tu- rismo, à sexualidade, às organizações, ao esporte, à arte, à nutrição, à globalização, à violência, à moda, ao cinema, à família, à internet. Enfim, encontraremos pesquisas antropoló- gicas voltadas a praticamente todas as temáticas que fazem parte da vida social contemporânea. Isso não significa que, em suas pesquisas, os antro- pólogos estejam assumindo a função dos pesquisadores for- mados em outras áreas do conhecimento, apenas que eles são capazes de produzir um tipo específico de conhecimento sobre temas que também são alvo de estudos por parte de outras disciplinas e sobre grupos ou realidades sociais que constituem objeto ou campo de trabalho de profissionais de diversas áreas. Mas para que se possa usufruir do conhecimento que os antropólogos produzem sobre essa variedade de temas é necessário entender como ele é produzido, ou seja, conhecer a especificidade da abordagem antropológica e entender por- que ela é capaz de nos fazer enxergar e compreender dimen- sões da realidade que não são enfocadas pelas outras disci- plinas. O grande interesse sobre o conhecimento que a an- tropologia é capaz de produzir e a necessidade de uma fami- liarização com a especificidade da abordagem antropológica para se poder usufruir plenamente desse conhecimento são os principais motivos para que essa disciplina fosse incluída no currículo de um número crescente de cursos de graduação e pós-graduação que não têm como objetivo a formação de antropólogos. Essa expansão da demanda pela produção acadê- mica e pelo instrumental teórico específico de sua disciplina é muito estimulante para os antropólogos, na medida em que lhes coloca frente a grandes desafios: o de manter um diálogo sempre atualizado com as outras áreas do conhecimento, e Antropologia para quem não vai ser antropólogo 9 principalmente, o de compreender e se fazer compreender pelos estudantes dessas outras áreas, sem ter como objetivo final a reprodução de seu próprio campo de conhecimento, e sim o de formar novos leitores e interlocutores da disciplina antropológica. Embora muito estimulantes, esses desafios não são nada fáceis de serem vencidos. E é por isso que o apoio de um livro como esse é muito importante e bem-vindo. Com uma linguagem clara e uma abordagem leve, sem fazer concessões em relação à complexidade dos conteú- dos abordados, Rafael nos apresenta os principais elementos da história da disciplina antropológica, suas correntes teóricas e conceitos fundamentais, formando um painel que explica como essa forma de produzir conhecimento foi se constituindo e como ela é capaz de se atualizar constantemente, contribu- indo para a compreensão das grandes questões que a socie- dade se coloca a cada momento. Sem sombra de dúvida, temos aqui um ótimo guia para orientar quem se inicianesse campo do conhecimento que é fascinante e enriquecedor, mes- mo para quem não vai ser antropólogo. Aproveitem. Prazer em conhecer Este livro pretende ser uma modesta apresentação da antropologia e um convite à reflexão sobre as coisas da cultu- ra para estudantes de cursos nos quais a antropologia integra o currículo, mas que não estão se preparando para serem cientistas sociais. Muitos chegaram recentemente à universida- de, e as novidades são muitas: novos colegas, novo ambiente (bem diferente, espero, daquele do ensino médio), novas ma- térias ou disciplinas. Este texto foi escrito para você. Aliás, uma das novidades na universidade é a quantidade de textos, prin- cipalmente nas áreas de ciências humanas e sociais. E por falar em textos e leituras, começo contando uma pequena estória que roda por aí em forma de anedota. Um dia um homem acordou e verificou que precisava fazer uns consertos em casa, mas não tinha martelo. Resolveu, en- tão, que pediria um martelo emprestado ao seu vizinho, mas logo pensou: “E se ele não me emprestar o martelo? Pode estar de mau humor, ou quem sabe estará utilizando o marte- lo, quem sabe não quer ser incomodado e pode ficar chatea- do comigo...”. E foi assim durante toda a manhã. O homem andava de um lado para o outro, coçava a cabeça, queixava- se para a esposa da falta que fazia um martelo e falava de sua certeza da má vontade do vizinho. A mulher ouvia, ouvia e comentava vez por outra: “– Você já experimentou ir até lá e pedir o martelo emprestado?”. O homem não ouvia a esposa. Continuava remoen- do-se, chateando-se antecipadamente com o vizinho que, pen- sava ele, não lhe emprestaria a ferramenta. Perto da hora do 11 Rafael José dos Santos 12 almoço, já cansado e ansioso (na verdade, bastante irritado), o homem levantou-se, saiu de casa, caminhou apressado e, de punhos cerrados em direção à porta do vizinho, tocou insistentemente a campainha. Quando o vizinho abriu a por- ta, o homem foi logo falando aos berros: “– Olhe aqui, você pensa que é o dono do mundo, não é? Acha que estou precisando do seu martelo? Acha? Pois eu não estou nem aí, pode ficar com ele, seu egoísta!” Virou-se e voltou para sua casa, deixando o vizinho com boca de espanto, paralisado pelo susto. Moral da estó- ria: nem fez os consertos que precisava fazer, nem ficou saben- do se o vizinho emprestaria o martelo! Além de tudo ficou estressado e perdeu toda a manhã por conta do tal martelo. Pois é. Para muitos que chegam à universidade ler um texto (e também escrever um) é algo bastante semelhante à estória do homem e do martelo. Muitas das dificuldades de leitura não estão no “martelo” (no texto), mas encontram-se dentro de nossas próprias cabeças, estão relacionadas a toda nossa história de vida, hábitos (ou falta de hábitos), deficiênci- as dos sistemas de ensino fundamental e médio. Então come- çamos a brigar com o autor (ou com o “vizinho”), sem ao menos ouvir o que ele tem a nos dizer. Pense na estória: realmente, o vizinho poderia não emprestar o martelo, mas o homem só saberia disso se per- guntasse antes. Ele poderia ouvir um “não” antipático, ou quem sabe o vizinho pedisse que ele esperasse um pouco, pois esta- va utilizando a ferramenta naquele momento. Talvez ele até saísse da casa do vizinho com o martelo em mãos. As possibi- lidades eram várias, mas é preciso lembrar que seu objetivo era fazer consertos em casa e, de alguma maneira, ele teria que conseguir um martelo. Os textos, tanto os que lemos como os que escreve- mos, constituem uma espécie de ferramenta, entre outras, uti- lizadas na universidade. Mas, são ferramentas para quê? Quando entramos na universidade temos sempre em mente um objetivo específico: uma profissão de nível superior. Antropologia para quem não vai ser antropólogo 13 Para isso existem as disciplinas, com seus professores e profes- soras. Algumas disciplinas “vão direto ao assunto”, isto é, falam de coisas que serão utilizadas diretamente no exercício da profissão. Há quem goste de chamá-las de disciplinas “es- pecíficas”. Outras chegam até a parecer que não têm nada a ver com a aplicação prática na área de atuação profissional, gerando muitas vezes resistência nos estudantes. Essas discipli- nas são usualmente chamadas de “gerais” ou, em alguns ca- sos, de disciplinas de “formação humanística”. É o caso da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia, entre outras. Existem alguns pontos a considerar no tocante a esse grupo de disciplinas. O primeiro relaciona-se à questão da formação em nível superior e o segundo, mas não menos importante, diz respeito às contribuições que tais disciplinas podem dar às áreas “específicas”. A formação universitária não visa apenas preparar o estudante para o exercício de uma atividade prática, como atender pacientes, planejar e criar campanhas publicitárias, gerenciar empresas e processos, trabalhar em jornais, elabo- rar roteiros turísticos, projetar edifícios ou máquinas ou educar crianças, jovens e adultos, só para citar alguns exemplos. Estar na universidade significa também ampliar os horizontes inte- lectuais, exercitar a reflexão, treinar nossa capacidade de pen- sar e fazer tudo que é específico dentro de um contexto muito mais amplo. Esse é um dos papéis das disciplinas que muitos chamam de “gerais”. O segundo aspecto é a contribuição que essas disci- plinas podem dar às áreas específicas de atuação. No caso da Antropologia (o argumento é válido também para a Soci- ologia e a Filosofia), existe hoje uma multiplicidade de temas de pesquisa relacionados a outras áreas de formação. Há pesquisas antropológicas nas áreas da comunicação, do turis- mo, da educação, da saúde, do direito, das organizações empresariais e muitas outras. Hoje em dia, com o acesso à Internet e aos recursos de busca, você não terá dificuldade em encontrar trabalhos assim, feitos por antropólogos ou por pro- Rafael José dos Santos 14 fissionais de várias áreas que utilizam recursos da antropolo- gia. Ou seja, há possibilidades de “diálogo” da antropologia com cada uma dessas áreas, inclusive com a de sua escolha. Assim, fica difícil separar disciplinas “gerais” e “específicas”: muito do que for estudado em antropologia pode ser útil em sua vida profissional. A esta altura o leitor e a leitora devem estar impaci- entes: “– Mas, afinal, o que é antropologia?”. Antes que al- guém fique muito ansioso e pense em dispensar o meu “mar- telo”, como o homem da estória, peço apenas mais um tanto de paciência. É preciso dizer antes que a antropologia é bem mais do que uma disciplina estudada na universidade. Ela é uma ciência, o que faz dos antropólogos cientistas (somos chama- dos também de “cientistas sociais”, uma denominação que inclui os sociólogos e os cientistas políticos). As universidades caracterizam-se, para além do ensino, pelo trabalho de pes- quisa em várias áreas e em vários níveis, com pessoas produ- zindo suas monografias de especialização, suas dissertações de mestrado, teses de doutorado, publicando livros ou artigos em revistas especializadas, orientando pesquisas de outros e participando de congressos, seminários e simpósios, reunin- do-se em associações como a ABA – Associação Brasileira de Antropologia (fundada em 1955) – e trabalhando em colabo- ração com colegas de outras universidades e institutos de pes- quisa. Os textos que nos são oferecidos para a leitura no decorrer de nossos cursos universitários são (ou deveriam ser) escritos por professores e /ou pesquisadores, alguns vivos, ou- tros do passado mais ou menos recente. Muitos pensam que fazer ciência é uma atividade de “gente louca”, algo muito além dos “pobres mortais”, um “martelo” que o vizinho não irá emprestar. Quase nenhum estudante se dá conta de que pode também vir a ser um cientista, um pesquisador, seja qual for sua área de formação em nível superior. Os cientistas são pessoas absolutamente Antropologia para quem não vai ser antropólogo 15 “normais” (ou, no mínimo, tão loucos quanto qualquer outra pessoa). Apesar dasdificuldades que esse ofício enfrenta no Brasil, trata-se de algo bastante prazeroso. O autor deste livro ficará bastante feliz se, ao final da leitura, você pensar nessa possibilidade para seu futuro. Uma dica para a leitura: como você, na universida- de, irá ler e escrever textos que exigem certas normas, utilizei um sistema que chamamos “autor/data” toda vez que me referi à obra de algum autor. Você verá um nome, por exem- plo, Laraia, e entre parênteses o ano da edição citada e as páginas: (1988, p. 35). Tudo que você tem a fazer é ir às “Referências”, no final do livro, e saber todos os dados sobre a obra. Em tempos de rede mundial de computadores, colo- quei também no final do livro uma série de endereços de sites relacionados com a antropologia (Anexo II). Pronto para começar? I O que é, como surgiu? 1. O que é Antropologia? Existem momentos difíceis para os antropólogos, quan- do estamos entre pessoas que, mesmo com boa formação escolar, não têm familiaridade com as Ciências Sociais. De repente somos atingidos pela pergunta inevitável: “– Afinal, o que é Antropologia?”. Aliás, esta deve ser a pergunta que muitos estudantes fazem quando descobrem que a disciplina consta de seus currículos. E, além disso, para que serve? Não há como discordar: a pergunta é difícil. Mas quais as razões desta dificuldade? Em primeiro lugar, existem os estereótipos do antro- pólogo como pesquisador, assim como existem as falsas ima- gens de muitas outras profissões. Muitas pessoas nos imagi- nam uma espécie de Indiana Jones, escavando túmulos em busca de arcas perdidas, ou como desajeitados professores, metidos em roupas estilo “safári”, desafiando as florestas afri- canas para estabelecer contatos com perigosos selvagens. Es- sas falsas imagens atrapalham bastante a compreensão do que é a Antropologia. Um outro caminho freqüente é o recurso à etimolo- gia, ou seja, à origem da palavra. Então, anthropos = ho- mem, logia = estudo. Ah!, o estudo do Homem! Mas isso é muito geral e poderia englobar outras tantas áreas do conhe- cimento. A palavra e seu sentido podem ter servido durante 17 Rafael José dos Santos 18 um tempo, mas hoje já não indicam muito acerca do ofício de antropólogo. Outra dificuldade: muitos nos confundem com arque- ólogos, colegas pesquisadores que estudam vestígios históri- cos ou pré-históricos através de escavações. Também somos muito confundidos com os paleontólogos, que estudam fósseis animais ou vegetais. Para confundir tudo ainda mais, há a expressão “antropologia física” para designar o estudo de as- pectos biológicos dos seres humanos. O que posso dizer até aqui é que não é dessas coisas que iremos tratar, embora as contribuições da Arqueologia e da Paleontologia sejam im- portantes, tanto para o antropólogo, em seu trabalho, como para qualquer outra pessoa interessada em conhecer a espé- cie interessante que somos nós. Caminhemos um pouco mais. Em nossa sociedade nos acostumamos a definir as ciências descobrindo quais são seus objetos de estudo, isto é, aquilo sobre o qual os especialistas de cada área fazem suas pesquisas e elaboram suas explicações. No caso da Antropo- logia (e isso é comum a outras ciências) a pergunta não pode ser respondida assim. Basta olharmos rapidamente algumas palavras-chave de dissertações e teses em Antropologia pro- duzidas no Brasil: Família, Parentesco, Memória, Cidadania, Ongs, Ecologia, Movimentos Sociais, Igreja, Extrativismo, Mas- culinidade, Violência Conjugal, Alimentação, Cultos Afro-Bra- sileiros, Migração, Linguagem, Viagens, Artesanato; Traba- lho, Criança, Infância, Gravidez, Adolescência, Habitação, Te- levisão, Advogados e Juízes, Política Indigenista e História In- dígena (ABA, 2000). Uma diversidade tão grande de referências significa uma multiplicidade de objetos de estudo: das artes à questão indígena, passando pela comunicação, pelo turismo e pela educação. Creio que as coisas são bem mais fáceis para bió- logos, astrônomos, matemáticos, físicos e outros cientistas, embora eles mesmos saibam que também em suas áreas as coisas não são tão simples assim. Antropologia para quem não vai ser antropólogo 19 É bastante complicado definir a Antropologia pelo(s) seu(s) objeto(s) de estudo, sabe por quê? Porque eles são tan- tos quantas são as coisas que fazemos em sociedade! A essa altura você poderá estar frustrado, esperando agora uma definição clara, precisa e prática da Antropologia (ainda mais porque você tem o direito de saber o que ela faz em seu currículo!). Como veremos adiante, uma definição as- sim seria contrária ao próprio espírito da Antropologia con- temporânea. Entretanto, podemos iniciar pensando a Antro- pologia como um conjunto de teorias (nem sempre concor- dantes) e diferentes métodos e técnicas de pesquisa que bus- cam explicar, compreender ou interpretar as mais diversas prá- ticas dos homens e mulheres em sociedade. Muitas dessas teorias baseiam-se em pesquisas de campo, nas quais os antro- pólogos buscam conviver com as populações locais e apren- der seus hábitos, valores, modos de vida, crenças, relações de parentesco e outras dimensões da vida social. Vejamos como tudo isso começou. 2. Como surgiu? Um pouco de história A Antropologia (mais tarde “Social” ou “Cultural”) deu seus primeiros passos aproximadamente na segunda me- tade do século XIX, na Europa, da mesma forma que sua “irmã” a Sociologia. Em alguns países, como na França, não apenas suas histórias se confundem: muitos cientistas sociais franceses, até hoje, não fazem distinção entre as duas, utili- zando ora uma, ora outra palavra para referir-se à sua área de trabalho. O fato de ambas começarem no mesmo momento histórico e na mesma região do mundo não foi uma coinci- dência, mas resultado de uma série de mudanças sociais, econômicas e políticas, ou, para falar como cientista soci- al, de um determinado contexto. Vejamos o caso da Socio- logia. Rafael José dos Santos 20 Países como a França, Alemanha e, principalmente, a Inglaterra, constituíam o centro nervoso do emergente siste- ma capitalista industrial do século XIX. Em Londres e Paris as manufaturas eram as principais unidades de produção e essas cidades viviam os frutos e contradições da chamada moderni- dade: um veloz desenvolvimento das técnicas entrelaçado a graves problemas sociais e uma seqüência de revoltas operá- rias. A Revolução Industrial formou o cenário de transforma- ções que deu origem à sociedade capitalista. Foi um período de transformações também no âmbito das idéias, com as re- flexões vindas da Filosofia Política e da Filosofia da História (Bottomore, 1987, p 16-18). Estas correntes de pensamento, por sua vez, desenvolveram-se juntamente com as grandes mudanças políticas dos séculos XVIII e XIX, entre elas a Revolu- ção Francesa em 1789. Podemos então concluir que a socio- logia formou-se como conseqüência de amplas transforma- ções intelectuais, econômicas, políticas e culturais que tiveram seu auge no século XIX. Deste ponto de vista, a sociologia pode ser entendida como uma ciência da sociedade industri- al, e ao mesmo tempo expressão que esta sociedade construía acerca de si mesma. Agora vamos estabelecer a ligação entre o surgimento do capitalismo e o nascimento da Antropologia como ciência social. O sistema capitalista não se restringia aos limites da Inglaterra e do continente europeu. No século XIX acelerou-se a expansão colonialista que já ocorria desde o mercantilismo do século XV. Nas palavras do antropólogo Gérard Leclerc: Nos meados do século XIX, o expansionismo euro- peu chegado à sua fase última, começa pressentir “territó- rios desconhecidos” como “territórios a conquistar”.(...) Numerosas são as riquezas a explorar, a utilizar e a fazer frutificar pelo Ocidente. (Leclerc, 1977, p.13). A Antropologia tem suas origens históricas, portanto, no processo de expansão do capitalismo, mais precisamente através do colonialismo e do imperialismo das nações ricas, que estendiam seus domínios a lugares remotos do mundo. Antropologia paraquem não vai ser antropólogo 21 Esse é um dado importante, pois não nos deixa esquecer as relações de força e poder envolvendo países centrais, como Inglaterra, França e Alemanha, e países e regiões subjugados direta ou indiretamente pelo sistema, como boa parte das culturas africanas, asiáticas, indianas e latino-americanas. Algo similar acontecia nos Estados Unidos do século XIX, mas lá a expansão capitalista não acontecia para fora (pelo menos não naquele momento!): ela fazia um movimento do leste para o oeste, provocando o contato dos colonos com diferentes sociedades indígenas nativas. Esse tema alimentou bastante o cinema norte-americano, com soldados vestidos de azul – a Cavalaria! – protegendo os desbravadores bran- cos que avançavam sobre os territórios dos “perigosos peles- vermelhas”. Como veremos, estes aspectos econômicos e políti- cos acabaram refletindo em noções e “teorias” dentro da pró- pria ciência que estava nascendo. Os primeiros antropólogos, cientistas que buscavam o conhecimento das sociedades “exóticas”, não coletavam seus dados de modo direto. Eles se baseavam em informações enviadas por missionários, mercadores, militares e funcionári- os coloniais. Como observou o antropólogo francês François Laplantine (1988, p. 64-65), naquela época: Uma rede de informações se instala. São os questio- nários enviados por pesquisadores das metrópoles (em espe- cial da Grã-Bretanha) para os quatro cantos do mundo, e cujas respostas constituem os materiais de reflexão das pri- meiras grandes obras de Antropologia que se sucederão em ritmo regular durante toda a segunda metade do século XIX. Entre as obras clássicas da Antropologia nesta fase podemos destacar duas, apenas a título de curiosidade: A Sociedade Primitiva, do norte-americano Henry Lewis Morgan (1974) e o belo trabalho do inglês James Frazer, O Ramo Dourado (1956). Existem dois aspectos desta fase inicial da Antropologia que serão úteis para começarmos a desvendar Rafael José dos Santos 22 esta ciência. Aliás, não só desvendá-la, mas inclusive compre- ender muitas de nossas próprias idéias sobre sociedades e culturas que não conhecemos. O primeiro aspecto é a forte influência de correntes de pensamento, como o positivismo, o evolucionismo, e os determinismos geográfico e biológico nas idéias que os pri- meiros antropólogos tinham das culturas distantes. O segundo aspecto diz respeito à ausência do que mais tarde passamos a conhecer por trabalho de campo (fieldwork), ou seja, da pre- sença in loco do pesquisador na cultura estudada, coletando dados e fazendo observações diretas. 3. Evolucionismo Social e Positivismo, Meio e Raça 3.1 Evolucionismo Social As Ciências da Natureza, principalmente a Biologia, exerciam grande influência no meio intelectual europeu do século XIX, em particular as teorias evolucionistas de Pierre Lamarck (1744-1829) e Charles Darwin (1809-1882). Para La- marck, as adaptações dos organismos ao meio ambiente pro- vocavam mudanças evolutivas. Já para Darwin, que se tornou mais conhecido que o primeiro, a evolução das espécies ba- seava-se em um processo de seleção natural. Em ambas as teorias a idéia básica era de que os seres vivos evoluíam dos mais “simples” para os mais “complexos”. O evolucionismo, como explicação para a origem das espécies animais, repre- sentou um grande avanço frente às explicações religiosas do- minantes na época. Por seu aspecto revolucionário, o evolucionismo em- polgou também pensadores de outras áreas, que resolveram adaptar o modelo, construído para entender a natureza, ao estudo das sociedades. Assim, o antropólogo norte-america- no Henry Lewis Morgan (1818-1881) elaborou um modelo de Antropologia para quem não vai ser antropólogo 23 desenvolvimento da humanidade em três estágios: selvageria, barbárie e civilização. Do outro lado do Atlântico, na Inglater- ra, o escocês James Frazer (1854-1941) elaborava um mode- lo evolutivo do pensamento, afirmando que esse passava por três fases: magia, religião e ciência. Essas três formas do pen- samento humano estariam em uma relação de complexidade crescente, sendo que a ciência – assim como a “civilização”, para Morgan – seria o estágio mais avançado. Agora podemos perceber como é importante dar uma “olhadinha” no contexto histórico de surgimento da Antropolo- gia. O sucesso da visão evolucionista da sociedade pode ser explicado pela idéia que os europeus tinham de sua própria sociedade. Esta seria “civilizada” e “complexa” por haver atin- gido um grau de industrialização, ciência e tecnologia, en- quanto as culturas das colônias seriam “primitivas” e “atrasa- das”. Em outras palavras, a sociedade européia tomava a si mesma como medida de civilização, atribuindo às socieda- des tribais um perfil “inferior”. No caso de Morgan, os habi- tantes nativos do oeste norte-americano não haviam, ainda, alcançado o grau de “civilização” da população branca do leste. Esse é um daqueles exemplos de como as teorias e idéias pretendem explicar uma dada realidade, quando na verdade “são elas que precisam ser explicadas pela realida- de” (Chauí, 1981, p. 16). Veremos mais adiante como estes modelos, que denominamos de “evolucionismo social”, fo- ram superados pela Antropologia. Notem, entretanto, que no senso comum, tais idéias ainda são bastante fortes, mesmo no século XXI. Vejamos agora uma outra influência intelectual muito forte entre os pensadores do século XIX: o Positivismo. 3.2 O Positivismo Assim como no caso do evolucionismo, o Positivismo também surgiu pela forte influência exercida pelas ciências da Rafael José dos Santos 24 natureza. Tudo acontecia, em certa medida, pelo otimismo que muitos cientistas e pensadores do século XIX tinham em relação à ciência e as possibilidades que ela abria para expli- cações racionais, em um mundo que tentava livrar-se do do- mínio das explicações religiosas. Um desses otimistas da ciência era o filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), que pensou na possibilidade de uma ciência da sociedade que se baseasse nos mesmos méto- dos de observação das ciências naturais. Comte denominou esta nova ciência de Sociologia. Vejamos o que nos diz, sobre Comte, o sociólogo contemporâneo Loïc Wacquant: A ambição de Comte era fundar uma ciência na- turalista da sociedade capaz de explicar o passado da espécie humana e predizer o seu futuro aplicando os mesmos métodos de investigação que tinham provado ser tão bem sucedidos no estudo da natureza, a saber, observação, experimentação e comparação (Wacquant, citado por Outhwaite e Bottomore, 1996, p. 593). Entre 1830 e 1842 Auguste Comte publicou os seis volumes de sua obra Curso de Filosofia Positiva. De acordo com Comte, as explicações que os homens davam para os fenômenos em geral (naturais ou sociais) haviam passado por três fases diferentes. Na primeira, denominada “teológica ou fictícia”, os homens atribuíam as causas dos fenômenos às divindades ou outro tipo de ação sobrenatural; pense, por exemplo, nos deuses cultuados na Grécia Antiga ou nas cren- ças de sociedades tribais. Na segunda fase – “metafísica ou abstrata” – as explicações deixaram de ser sobrenaturais, ba- seando-se nas especulações filosóficas. Finalmente, ainda de acordo com Comte, veio a fase “científica ou positiva”, na qual buscava-se através de métodos “científicos” as leis que regiam os fenômenos sociais e naturais (Wacquant, citado por Outhwaite e Bottomore, 1996, p. 593). A idéia de um conhe- cimento “positivo” é que originou a expressão positivismo. A idéia das ciências da sociedade, como a Antropo- logia e a Sociologia, utilizarem métodos das ciências naturais Antropologia para quem não vai ser antropólogo 25 já não é mais dominante, mesmo que alguns ainda aceitem esse princípio. No decorrer do tempo, sociólogos e antropólo- gos perceberam que não é possível estudar homens e mulhe- res em sociedade da mesma maneira que um biólogo ou um matemático. E por quê? Pelo fato de nós, seres humanos, sermos dotados da capacidade de criar sentidos para a vida,coisa que uma árvore, uma abelha ou uma substância quími- ca não pode fazer. Então, para pesquisar pessoas em socieda- de, gente produzindo, reproduzindo e modificando a cultura, não é possível adotar a mesma postura de um cientista da natureza. Podemos perceber que existem semelhanças entre os modelos de Frazer, Morgan e Comte no que diz respeito à idéia de evolução, sejam das sociedades ou das formas de pensamento. Veja o esquema abaixo para visualizar a seme- lhança entre os modelos propostos pelos três pensadores: As explicações que os homens dão aos fenômenos passam por três fases: • Fase teológica ou fictícia • Fase metafísica ou abstrata • Fase científica ou Positiva Estágios do pensamento humano: • Magia • Religião • Ciência Fases do desenvolvimento das sociedades: • Selvageria • Barbárie • Civilização Frazer (Inglaterra) 1854 1941 1798 1857Comte (França) Morgan (EUA) 1818 1881 Nos dias de hoje nós já sabemos – e descobrimos isso através da própria Antropologia – que as explicações sobrenaturais, filosóficas e científicas não mantêm entre si uma relação de “evolução”. Trata-se, na verdade, de explicações diferentes que dependem, entre outras coisas, dos contextos culturais. Tanto em sociedades tribais como em nossa própria Rafael José dos Santos 26 sociedade, encontramos explicações sobrenaturais, baseadas em crenças religiosas. É perfeitamente possível, por exemplo, um cientista social utilizar-se dos métodos científicos para in- terpretar a sociedade e a cultura e ter suas próprias crenças religiosas, desde que tome o devido cuidado para não “mis- turar as coisas”. Da mesma maneira, a idéia de que as sociedades “evoluem” das mais “simples” para as mais “complexas” (ou da “selvageria” para a “civilização”) passou a ser questionada a partir do momento em que os antropólogos foram travando um contato mais estreito com sociedades nativas, “indígenas”, e percebendo que suas estruturas, seus sistemas simbólicos, suas cosmologias e, não menos importante, suas línguas, ca- racterizavam-se por uma complexidade imensa. Falaremos disso mais tarde. Por enquanto podemos nos fixar no aspecto político e histórico do evolucionismo. No século XIX ele representava o discurso das metrópoles sobre as colônias, ou, no caso norte- americano, de uma região industrializada sobre regiões onde o capitalismo ainda não havia chegado. Tratava-se, portanto, de um discurso de poder, no qual o mais forte situava-se a si mesmo no pólo mais avançado, civilizado e científico. Uma observação importante. Os comentários anteri- ores não significam, de modo algum, que Comte, Frazer ou Morgan fossem pessoas inescrupulosas a serviço do colonialis- mo. É preciso situar os pensadores em seus contextos históricos e compreender que eles olhavam o mundo sob as influências das idéias dominantes e da realidade social, econômica e cultural na qual estavam inseridos. Gostaria, entretanto, de enfatizar algo que já afirmei antes. Embora a visão evolucionista e, de alguma maneira, o positivismo do século XIX, tenham sido superados na (e pela) Antropologia, encontram-se ainda presentes e muito fortes no senso comum, em nossas explicações espontâneas sobre a vida social e cultural. Notem, por exemplo, a forma como as diferenças regionais, em um país como o Brasil, são muitas Antropologia para quem não vai ser antropólogo 27 vezes tratadas em termos de evolucionismo social. Os proble- mas de ordem econômica e política que atingem o Norte e o Nordeste acabam sendo substituídos pelas idéias de “inferiori- dade” e “atraso” das populações locais, quando um simples olhar para o papel da mão de obra nordestina em São Paulo, ou para as mais diferentes contribuições de escritores e pensa- dores daquela região, já coloca “sob suspeita” a idéia de inferioridade. Essas noções, ou pré-noções (ou, ainda: “pré-concei- tos”) baseados na idéia de uma hierarquia entre povos e po- pulações, encontram-se presentes no senso comum também devido a duas outras correntes de pensamento que marcaram as Ciências Sociais em seu início. Trata-se dos “determinis- mos” geográfico e biológico. Vamos a eles. 3.3 Meio e Raça Vocês já devem ter ouvido, alguma vez, alguém co- mentar que os países do hemisfério norte são mais desenvolvi- dos devido ao clima, que predispõe os indivíduos ao traba- lho, enquanto nos países tropicais o calor nos transforma em preguiçosos. O mesmo raciocínio é freqüentemente aplicado para explicar diferenças no desenvolvimento de regiões dentro de um mesmo país, e de novo ocorre o exemplo do contraste entre o sul e o nordeste do Brasil. Desta vez os motivos seriam as condições geográficas. A idéia de que o homem é um “produto do meio” foi, durante algum tempo, a explicação que alguns geógrafos e antropólogos utilizavam, não só para explicar a variedade de culturas, mas também para hierarquizá-las, isto é, classificá- las em mais ou menos desenvolvidas. Chamamos esse tipo de explicação de “determinismo geográfico”. Como a Antropologia superou esta corrente de pensa- mento? De modo relativamente simples: demonstrando que di- ferentes sociedades vivendo em condições climáticas e geográ- Rafael José dos Santos 28 ficas bastante semelhantes, desenvolveram práticas culturais dis- tintas. O antropólogo Roque de Barros Laraia nos dá alguns exemplos interessantes, entre os quais, o das habitações dos lapões, habitantes do pólo norte na altura da Europa, e dos esquimós, que vivem ao norte da América. Enquanto os primei- ros vivem em tendas feitas de pele de animais, os segundos moram em iglus, casas construídas com neve. O exemplo mais interessante, contudo, vem dos padrões alimentares dos povos do Xingu, no Brasil. Enquanto os Kamaiurá dedicam-se à pesca e à caça de aves, os Kayabi alimentam-se de mamíferos. No mesmo meio ambiente, diferentes sociedades recorrem a meios distintos para alimentar-se, e o dado principal para refletirmos: a caça de mamíferos é “interditada por motivos culturais” aos Kamaiurá (LARAIA, 1988, pp. 24-25). A fartura de determinado animal, que é um dado do meio ambiente, não significa, necessariamente, que esse ani- mal será o alimento predileto da sociedade que vive ali. É só pensarmos no cachorro, que em nossa sociedade é um ani- mal doméstico, mas é apreciado em outras sociedades como prato na hora de jantar. Para quem se interessar mais pelo que vem sendo discutido aqui, sugiro o excelente livro Cultura – Um conceito antropológico (Laraia, 1988). É claro que os seres humanos criam suas vidas tendo em vista o meio geográfico em que vivem, isso é uma coisa. Outra coisa, muito diferente, é pensar que as mesmas condi- ções geográficas vão gerar equivalente maneira de viver. Em Antropologia dizemos que se trata de uma questão de seleti- vidade, não de uma relação de causa e efeito (Laraia, 1988, p. 25). Agora resta um problema quanto ao meio geográfi- co. Se é certo que os grupos humanos, vivendo em condições geográficas semelhantes, não criam as mesmas maneiras de viver (isto é, não fazem as mesmas escolhas), o que dizer da idéia de que a geografia e o clima podem transformar socie- dades em mais “adiantadas” ou mais “atrasadas”? Bem, em primeiro lugar seria ótimo recorrer a um Atlas e verificar que Antropologia para quem não vai ser antropólogo 29 as coisas não são, de fato, desta maneira. Em segundo lugar, e mais importante, temos que aprender a pensar de modo relacional, isto é, colocando as sociedades em relação. Em vez de buscar o atraso de um país como o Brasil no próprio Brasil, que tal pensar as relações entre, por exemplo, Brasil e Estados Unidos, tentando entender a situação de cada um em relação ao outro Fica a inquietação no ar, mas deixemos as explicações climáticas para o passado. Resta pensar ainda um último tipo de hierarquização entre sociedades, aquela que procura estabelecer uma liga- ção entre a raça e o nível de desenvolvimento alcançado pelo grupo social. O exemplo mais forte é o das populações ne- gras (ou afros-descendentes), que em países como os Estados Unidos eramconsiderados, até pouco tempo atrás, como “cul- turalmente inferiores”. O determinismo biológico serviu tam- bém para justificar uma suposta superioridade racial como, por exemplo, a dos “arianos” durante o período de Hitler na Alemanha. Poderíamos “passar batidos” por esse ponto. Afinal, em sala de aula, ninguém sustentaria em voz alta uma rela- ção desse tipo. Seria “politicamente incorreto”, embora mui- tos adeptos de uma certa genética andem colocando as man- guinhas de fora nas revistas científicas. Entretanto, apenas para registro, convido para um breve exercício de imaginação: uma criança nascida na Itália, que seja retirada imediatamente de seus pais e levada para o Japão, onde irá crescer dentro de uma família japonesa e estudar em escolas locais. Sua língua materna será o japonês, e nada nos garante que ela gostará “naturalmente” de macarronada. Ao contrário do que dize- mos no senso comum o gosto por coisas italianas não estará “em seu sangue” (o que não a impede de vir a gostar muito de tais coisas, mas somente se for colocada em contato com elas depois, mais tarde). Em princípio a criança será japone- sa, apesar de seus traços físicos dizerem o contrário. Agora, um exemplo do Brasil: os negros trazidos es- cravos da África, eles mesmos oriundos de diferentes culturas Rafael José dos Santos 30 no continente de origem, eram vistos pelos europeus como inferiores em suas práticas religiosas, seus conhecimentos da natureza e mesmo em suas capacidades cognitivas. Hoje sa- bemos que as culturas africanas trazidas ao Brasil são acervos ricos em complexidade e variedade culturais, dos sistemas religiosos à música. O que fez com que a imagem do negro fosse associada à inferioridade não foi uma suposta “ausência de conhecimentos”, mas sua inserção no tráfico mercantilista a partir do século XVII, sob o jugo militar e econômico europeu, para servirem como mão-de-obra nas fazendas das colônias. Vamos pensar mais um pouco nisso, utilizando uma definição (não a única!) antropológica de cultura: a cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitidas ao conjunto de seus membros (Laraia, 1988, p. 120). Claro, nenhuma cultura é estática, como lembra Ro- que de Barros Laraia, nem mesmo aquela de uma sociedade isolada no meio da floresta: “porque os homens, ao contrário das formigas, têm a capacidade de questionar seus próprios hábitos e modificá-los” (Laraia, 1988, p. 99). O que acontece é que existem mudanças culturais mais fáceis de serem visualizadas, outras requerem um olhar mais atento, mais minucioso. Vamos continuar seguindo com Laraia para entender dois tipos básicos de mudança cultural: “uma, que é interna, resultante do próprio sistema cultural, e uma segunda que é resultado do contato de um sistema cultu- ral com outro” (Laraia, 1988, p. 100). Neste começo de século XXI o segundo tipo de mu- dança cultural é mais visível e mais forte, pois o processo que chamamos de “globalização” coloca praticamente todos os sistemas culturais em contato, provocando mudanças mais rá- pidas e, infelizmente, nem sempre muito felizes para algum dos lados. Antropologia para quem não vai ser antropólogo 31 Imaginemos uma cultura indígena, uma sociedade que vivia no litoral brasileiro antes da chegada dos portugue- ses. Não podemos afirmar que essa sociedade nunca tenha passado por mudanças culturais internas, mas temos certeza de que as transformações ocorreram com muito mais rapidez quando as populações entraram em contato com o coloniza- dor europeu. De acordo com o antropólogo Julio Cezar Me- latti: No primeiro século de colonização, o XVI, foram os índios do litoral leste e sudeste do Brasil os que entraram em choque com os brancos. Estes não somente desejavam se apropriar das terras dos indígenas para fazer suas la- vouras de cana-de-açúcar, como queriam se apoderar das próprias pessoas dos indígenas, para transformá-las em escravos (Melatti, 1986, pp. 179-180). Não vamos discutir os “estragos” que esse contato fez, ao dizimar populações indígenas inteiras. A intenção aqui é mostrar que duas (ou mais) culturas foram colocadas em contato por relações de força. O europeu, por considerar sua cultura superior à dos nativos, pensava-se no direito de subjugá-los. Entretanto, a força militar dos colonizadores não foi o único elemento de- vastador. Uma outra força, mais ilustrativa para nossa refle- xão, não viria das armas européias, mas de seus valores cultu- rais. Claro, estamos falando principalmente dos missionários católicos e seus esforços por catequizar os nativos, que eram considerados pagãos. Ora, vamos separar por um momento a cultura do colonizador e a cultura dos nativos. Tomadas separadamente, cada cultura tinha seus valores, religiosidades, línguas, costu- mes matrimoniais. Cada cultura tinha sua singularidade. O que temos, na situação de contato, não é uma troca cultural entre iguais, mas a imposição da visão euro- péia. Isso significa que, além da cultura, existia a força (tanto das armas como da coerção exercida pelos missionários). As- sim, os europeus assumem um papel dominante, impondo-se Rafael José dos Santos 32 às culturas indígenas existentes nas novas terras, imposição que viria a se repetir com os escravos trazidos da África. Desde o mercantilismo, a intensa expansão européia pelo mundo entre os séculos XIV e XVII, a cultura dos coloniza- dores se impôs sobre as diferentes populações nativas das Américas, da África, da Ásia. Em outras palavras, uma cultura singular, a européia, colocava-se como universal, isto é, como única verdadeiramente válida. Vejamos o que diz a respeito disso a antropóloga Ana Valente: A exploração das colônias sobre as metrópoles, em benefício exclusivo destas últimas, só pôde ser assegurada pela imposição da visão de mundo européia sobre a popu- lação nativa, compreendendo-se a forma de organizar-se social, cultural e educacionalmente. Ou seja, a singularida- de européia se arroga como universalidade sobre as de- mais singularidades, com as quais entra em contato na empresa colonizadora (Valente, 1999, p. 27). Desta maneira, fica difícil pensar as mudanças cultu- rais ocorridas nos últimos cinco séculos sem considerar que elas se dão, quase sempre, em relações de força. No início, essas relações acontecem entre as metrópoles e as popula- ções nativas dos territórios coloniais, além daquelas trazidas como escravas para o trabalho nas lavouras. Depois, à medi- da que a população branca era socializada nos padrões eu- ropeus, estes se tornavam dominantes também entre os não- índios e não-africanos. A visão “européia” do mundo está na base de muita coisa que pensamos hoje. É uma constatação difícil, mas o fato é que somos ainda, de algumas maneiras, herdeiros daquele modo de pensar. Você já pode notar que a Antropologia não consegue trabalhar sozinha, precisando muitas vezes recorrer a outras ciências. Nesse caso, à História, que é ótima para desvendar as muitas razões das desigualdades sociais e econômicas que acabam por “aparecer” como supostas desigualdades cultu- rais, determinações raciais ou influências do meio geográfico. As considerações sobre a cultura nos levam a uma importante Antropologia para quem não vai ser antropólogo 33 conclusão: a existência de uma imensa diversidade cultural – tanto nos níveis regionais e nacionais como na sociedade glo- bal – implica a existência de diferenças, mas não de desigual- dades. Em outras palavras, a Antropologia nos ensina hoje que sociedades e grupos sociais cujos valores, práticas e co- nhecimentos não são iguais aos nossos não são “primitivos” ou “inferiores”: são diferentes. As diferenças só passam a ser sinônimo de desigualdade quando estão inseridas em rela- ções de dominação e exploração. Voltando ao assunto (se é que saímos dele): não exis- te nenhuma relação entre os traços raciais, no sentido biológi- co do termo,e quaisquer características culturais, nem para o mal, nem para o bem. Tanto o evolucionismo social, como as explicações raciais e ambientais foram superadas pela Antro- pologia. Desde, aproximadamente, a segunda década do sé- culo XX, os estudos sobre as culturas demonstraram que elas possuem uma outra lógica de funcionamento. O que está em jogo aqui é uma coisa muito discutida em Antropologia: a relação e os limites entre natureza e cultu- ra. Para início de conversa, vamos pensar que uma termina onde a outra começa. Pense, por exemplo, na idéia de “belezas naturais”, que aparece nas publicidades de turismo: belas praias, águas azuis, coqueiros. Ora, nem sempre uma paisagem litorânea foi considerada “bela” em si mesma, e apenas no final do século XIX é que se iniciou a prática de ficar na praia para descansar e sentir a brisa do mar, primeiro como forma de tratar da saúde, depois como lazer (Ah, uma praia!). A visão da natureza também depende muito de quem a vê e da rela- ção que as pessoas mantêm com ela. O sociólogo inglês John Urry, em um estudo sobre turismo e lazer, lembra que “nas mais antigas aldeias onde a pesca constituía a principal ativi- dade econômica, as casas muitas vezes eram construídas com os fundos dando para o mar”. Foi apenas com a transforma- ção do mar em objeto de contemplação e lazer que os pri- meiros bangalôs de veranistas foram construídos de frente para Rafael José dos Santos 34 ele. Até aquele momento, para os pescadores, o “mar era para se pescar, não para se contemplar” (Urry, 1999, p. 52). A natureza, em si mesma, não é nada. Ela “significa” aquilo que os seres humanos atribuírem a ela. Talvez o maior exemplo seja o do corpo humano, com a diferença entre ho- mens e mulheres. A presença de órgãos genitais é um dado da natureza, sem dúvida algo biológico. Entretanto, cada so- ciedade atribui um significado ao “ser homem” e ao “ser mu- lher”, isto é, transforma a natureza em cultura. Daí, em Antro- pologia, falarmos em “gêneros” para diferenciarmos dos as- pectos biológicos das diferenças entre os sexos. Uma menina não nasce com comportamentos femi- ninos, ela os adquire através da educação, aprendendo a “ser menina” de acordo com os padrões da cultura onde ela cres- ce. O mesmo acontece com os meninos (“homem não chora”, dizia minha avó). Concluindo: a cultura é a exclusividade humana, in- clusive porque através dela nós transformamos o que nos é dado pela natureza, uma transformação tanto no sentido do trabalho – que é uma forma material de transformação da natureza – como em termos de atribuição de significados. 4. Etnocentrismo Uma dificuldade enfrentada pela Antropologia – e pelos antropólogos em campo – diz respeito a algo expresso pela palavra “etnocentrismo”. Em princípio ele consiste em uma postura na qual tomamos a nossa sociedade e a nossa cultura, nossos valores, práticas e crenças, como medida para julgar valores, práticas, crenças, enfim, tudo que constitui cul- turas diferentes da nossa. Centrados em nossa “etnia”. O etnocentrismo traz dificuldades metodológicas e problemas políticos. Em termos metodológicos as nossas próprias referên- cias culturais atrapalham a compreensão de outras realida- Antropologia para quem não vai ser antropólogo 35 des. Isso acontece porque fomos criados, educados, socializa- dos de uma tal maneira que interiorizamos valores, normas, posturas e até “formas de sentir, pensar e agir”, como expres- sou tão bem o francês Émile Durkheim, um dos pais fundado- res da Sociologia e da Antropologia, de quem falaremos no próximo capítulo. Isso influencia desde nossas escolhas ali- mentares até nossa visão sobre a morte. Os índios wari’ da região de Roraima, por exemplo, têm um ritual funerário, bastante complexo, que inclui a inges- tão dos corpos de seus mortos (Vilaça, 1998). Certamente essa idéia nos dá nojo. Entretanto, se um wari’ nos visse enter- rando um parente a sete palmos de terra, provavelmente ele também sentiria nojo. Tanto nós como eles vivemos centrados em nossos próprios valores culturais. Enfim, aquilo que interiorizamos desde pequenos tem esta força porque temos a tendência, como apontam Peter e Brigitte Berger, de experimentar como absolutas coisas que, ao fim das contas, são relativas (Berger e Berger, 1980, pp. 204-205). Descobrir a relatividade das coisas da nossa cultura e da cultura dos outros é, portanto, um passo importante para o estudo antropológico. Concordo, não é algo fácil. É muito bom e tranqüilizador quando os hábitos, valores e práticas diferentes das nossas apresentam apenas aquilo que consideramos “belo” ou “exótico”, como algo folclórico. Entretanto, o contato com a diversidade cultural nem sempre é bem digerido. A idéia (e a força) do etnocentrismo nos ajuda a en- tender a postura dos primeiros antropólogos quando, por exem- plo, falavam em civilização para referir-se à sua própria soci- edade, ou colocavam a ciência como algo superior à magia ou à religião. Mas se você está descobrindo o etnocentrismo no fundo de seu espírito, não se sinta culpado: todos nós, como já foi dito, estamos impregnados do “olhar” moldado pela nossa sociedade. O que importa é reconhecermos isso e sabermos lidar com essa dificuldade no reconhecimento da- quilo que nos é estranho. Em termos políticos o etnocentrismo traz dificuldades semelhantes àquelas do evolucionismo social e das explica- ções baseadas nas idéias de raça e meio. Quando as convic- ções de uma pessoa, de um grupo, de uma classe social, de uma região ou de um país, acerca de seus próprios valores, são consideradas superiores às de outras, corre-se o risco das imposições (às vezes até com o uso da força militar). Podemos também pensar em “sociocentrismo”, quando crenças e valo- res de nossas classes sociais são nossos parâmetros para jul- garmos crenças e valores sociais distintos dos nossos, mas que existem dentro de nossa própria sociedade. O que está em questão aqui talvez nos ensine algo sobre a Antropologia contemporânea. Ela é um conjunto de métodos, técnicas de pesquisa, análises, explicações e inter- pretações onde entra em jogo o encontro com o “outro”, em um processo que chamamos de “relações de alteridade” (rela- ções com o “alter”, do latim: outro). Voltaremos em breve a esse ponto central e crucial da Antropologia. Por enquanto é importante salientar que esse “outro” pode ser uma outra cul- tura, pode ser o conjunto de membros de uma classe ou de um grupo social, étnico, religioso e mesmo de uma orienta- ção sexual que fuja aos padrões vigentes em nosso próprio grupo ou sociedade. Não será preciso um grande esforço para ver que não estamos apenas frente a um problema cien- tífico, mas que se trata também de uma postura relacionada à discriminação e ao preconceito, e que muitas vezes tem fins trágicos, como indígenas sendo incendiados vivos enquanto dormem em pontos de ônibus... É preciso dizer mais? Rafael José dos Santos 36 II E as visões foram mudando... 1. O trabalho de campo: o antropólogo “dança com lobos” Com Franz Boas, um alemão radicado nos Estados Unidos, e Bronislaw Malinowski, um polonês radicado na In- glaterra, surge a moderna Antropologia mediante o “trabalho de campo” (fieldwork), que também denominamos etnografia (algo como “mapeamento de etnias”). Os pesquisadores dei- xaram de priorizar as informações indiretas, fornecidas por colonizadores, viajantes e missionários, para transformar a ta- refa de coleta de dados em parte integrante de sua pesquisa. Vejamos esta transformação comentada por François Laplanti- ne (1994, pp. 75-76): O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir com- partilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como hóspedes que o recebem e mestres que os ensinem. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver en- tre eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. O trabalho etnográfico alterouas relações do antro- pólogo com as culturas estudadas. À medida que os antropó- logos começaram a travar contatos diretos (sempre é bom lembrar, com um “outro”), perceberam que tratavam com sis- 37 Rafael José dos Santos 38 temas bem mais complexos do que pensavam os homens do século XIX. Os rituais, os sistemas de parentesco, os mitos, assim como as estruturas das relações sociais, econômicas e políticas, revelavam um tal nível de sofisticação que seria im- possível e improcedente continuar a tratá-las como “inferio- res”. Vejamos dois registros feitos a partir de pesquisas etnográficas. Uma citação de Franz Boas, retirada da apre- sentação à primeira edição brasileira da obra desse co-fun- dador da Antropologia (2004, p. 9), escrita pelo antropólogo Celso Castro, e outra de Malinowski (1978, p.23). Franz Boas: Freqüentemente me pergunto que vantagens nossa “boa sociedade” possui sobre aquela dos “selvagens” e descubro, quanto mais vejo de seus costumes, que não te- mos o direito de olhá-los de cima para baixo. Onde, em nosso povo, poder-se-ia encontrar hospitalidade tão verda- deira quanto aqui? [Boas referia-se aos esquimós]... Nós, “pessoas altamente educadas”, somos muito piores, relati- vamente falando.... Creio que, se esta viagem tem para mim (como ser pensante) uma influência valiosa, ela reside no fortalecimento do ponto de vista da relatividade de toda formação [Bildung]1, e que a maldade, bem como o valor de uma pessoa, residem na formação do coração, que eu encontro, ou não, tanto aqui quanto entre nós. Bronislaw Malinowski: A idéia geral que se faz é que os nati- vos vivem no seio da natureza, fazendo mais ou menos aquilo que podem e querem, mas presos a crenças e apreensões irregulares e fantasmagóricas. A ciência moderna, porém, nos mostra que as sociedades nativas têm uma organização bem definida, são gover- nadas por leis, autoridades e ordem em suas relações públicas e particulares, e que es- tão, além de tudo, sob o controle de laços extremamente complexos de raça e paren- tesco. (...) As suas crenças e costumes são 1 Em alemão, idioma de Franz Boas, a palavra bildung tem o significado semelhan- te ao de civilização, não no sentido evolucionista, mas como um modo de vida específico de uma sociedade. Já o termo kultur (cultura) indica a produção artística, filosófica, espiritual. Antropologia para quem não vai ser antropólogo 39 coerentes, e o conhecimento que os nativos têm do mundo exterior lhes é suficiente para guiá-los em suas diversas ati- vidades e empreendimentos. Suas produções artísticas são cheias de sentido e beleza. Os dois trechos demonstram uma mudança no olhar da Antropologia e, talvez, este “olhar” seja uma das caracte- rísticas marcantes que diferenciam nossa disciplina de outras. Não dá para deixar de pensar no filme Dança com Lobos e o modo pelo qual o personagem de Kevin Costner vai lenta- mente “aprendendo” a cultura Sioux. Na história da Antropo- logia, Malinowski é considerado o revolucionário pioneiro do trabalho de campo, embora outros antes dele já tivessem via- jado para coletar diretamente informações. Sua importância foi, sem dúvida, ter estabelecido métodos e técnicas para a etnografia, em particular a “observação participante”. Vamos deixar o próprio Malinowski falar sobre isso, através das reco- mendações que ele faz no capítulo introdutório de sua obra Argonautas do Pacífico Ocidental, um estudo sobre os nativos das Ilhas Trobriand: ...nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógra- fo que de vez em quando deixe de lado sua máquina foto- gráfica, lápis e caderno e participe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte nos jogos dos na- tivos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar- se com eles, ouvindo e participando das conversas. (Mali- nowski, 1978, p. 31) Evidentemente, muitos métodos e técnicas de pesqui- sa surgiram e se desenvolveram a partir daí, como por exem- plo, a antropologia visual, assim como o registro livre do “discurso” nativo. A Antropologia transformou-se não apenas em suas técnicas de pesquisa, mas também na própria forma de escrever sobre as culturas. Mas como dissemos anterior- mente, além de constituir uma revolução no trabalho de cam- po, a etnografia de Malinowski forneceu os elementos para a contestação do evolucionismo social e do etnocentrismo. Como podemos perceber, Malinowski descobriu que, assim como na Rafael José dos Santos 40 sociedade considerada “civilizada”, os nativos das Ilhas Tro- briand constituíam uma sociedade com suas instituições, leis, conhecimentos e artes. Não há como deixar de notar a preo- cupação do antropólogo em mostrar que se tratava de uma sociedade e de uma cultura com sua própria complexidade. Mas quando Malinowski desenvolvia os métodos de observação etnográfica (recorrendo, inclusive, ao uso da foto- grafia), o golpe fatal no evolucionismo e no etnocentrismo, pelo menos no interior da Antropologia, já havia sido desferi- do por Franz Boas. Note, na citação do autor, que ele menci- ona o “ponto de vista da relatividade de toda formação [bil- dung]”. O que significava isso? Para Boas, era impossível comparar sociedades em termos de avanço e atraso, porque cada cultura – cada “for- mação”, cada bildung – só poderia ser entendida a partir de seus próprios valores, hábitos, modos de vida e, não menos importante, de sua própria história (lembra-se da noção de cultura discutida páginas atrás?). Cada cultura só poderia ser compreendida relativamente, daí surgir o termo “relativismo cultural”. Boas foi também um crítico do determinismo geo- gráfico, lançando mão de inúmeros exemplos de culturas di- versas em condições similares. Com igual intensidade, ele não poupava críticas ao determinismo biológico, como podemos perceber por este trecho de uma conferência proferida por ele em 1932 (Boas, 2004, p. 97): Este é o tema da antropologia cultural. Podemos di- zer com segurança que os resultados do imenso material reunido durante os últimos cinqüenta anos não justifica a suposição de qualquer relação estreita entre tipos biológi- cos e forma cultural. Com suas idéias, resultantes de intensas pesquisas, Boas tornou-se uma figura central, principalmente na Antropo- logia que se desenvolveria nos Estados Unidos, onde ele vivia e lecionava. O adjetivo “cultural”, que acompanha a Antro- pologia em muitos currículos universitários, refere-se à tendên- cia culturalista fundada por ele. Antropologia para quem não vai ser antropólogo 41 Para nós, no Brasil, existe ainda um dado muito im- portante relacionado com as idéias de Franz Boas. Entre seus alunos da Universidade Colúmbia, em Nova Iorque, encon- trava-se um jovem intelectual brasileiro, Gilberto Freyre, que publicaria no início dos anos 1930 o clássico Casa Grande & Senzala. Deixemos falar o então jovem cientista social, en- quanto escrevia o prefácio à primeira edição de sua obra: Foi o estudo da Antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a conside- rar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discri- minar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio [Freyre referia-se ao seu livro]. Também no da diferenciação entre hereditariedade de raça e hereditariedade de família. (Freyre, 1986, p. 11). Esse é um belo exemplo de como coisas e nomes aparentemente distantes podem ter relação com a nossa vida: quantas vezes você ouviu que a cultura brasileira é fruto da “mistura de raças”? Pois é. Só que a palavra “raça”, aqui, não tem o significado biológico, mas cultural: a cultura brasileira teria sua história formada pela contribuição do branco, dos negros e dos índios. Isso é Gilberto Freyre, aluno de Franz Boas. Hoje em dia podemos até concluir que talvez as coi- sasnão tenham sido bem assim, que os caminhos da cultura brasileira, ou quem sabe das culturas no Brasil, tenham sido outros, ou não tenham sido únicos. Entretanto, se considerar- mos que no Brasil da virada do século XIX para o século XX havia quem atribuísse as razões de nosso “atraso” ao clima ou à presença de raças “inferiores”, sem dúvida o pensamento de Freyre, a partir de Boas, foi um grande avanço. O que não dá para entender é como tem gente que ainda pensa assim no início do século XXI. Rafael José dos Santos 42 Não foram apenas as contribuições de Boas nos Esta- dos Unidos e de Malinowski na Inglaterra que ajudaram a Antropologia a entrar em sua modernidade. Ambos deram passos decisivos ao transformar o trabalho de campo, a etno- grafia, no principal método de pesquisa de nossa ciência, assim como contribuíram para a superação de visões equivo- cadas sobre outras sociedades e culturas. Mas além dos méto- dos, a Antropologia também foi impulsionada pelo trabalho teórico, e nesta área temos que conhecer algumas idéias de Émile Durkheim (1858-1917) e Marcel Mauss (1872-1950). 2. Enquanto isso, na França Na Inglaterra e nos Estados Unidos, a Antropologia desenvolveu-se basicamente através dos trabalhos de campo voltados aos estudos de sociedades distantes. Isso fez com que nestes países acontecesse uma separação muito clara entre Antropologia e Sociologia, uma vez que esta última preocu- pava-se mais com o que acontecia na própria sociedade in- dustrial. Na França os limites entre as duas ciências são, até hoje, pouco delimitados. Existem muitas razões para isso, en- tre elas uma tendência dos pensadores anglo-saxões para as pesquisas empíricas (voltadas para realidades “concretas”). Ir a campo, para ingleses e norte-americanos, seria quase uma condição para definir-se como antropólogo. Já seus colegas da Europa continental têm uma orientação mais “intelectualis- ta” (preocupada com a elaboração de conceitos). Não vamos nos deter nesse ponto, uma vez que este livro é voltado para quem não vai ser antropólogo, não havendo razões para cha- tear o leitor com as diferenças internas, que muitas vezes dei- xam de ser apenas de orientação científica e transformam-se em brigas e disputas desgastantes e desnecessárias. Fica feito esse registro apenas para você não se sentir confuso quando, ao falarmos dos franceses, utilizarmos as palavras “Sociolo- Antropologia para quem não vai ser antropólogo 43 gia” e “Antropologia” de modo intercambiável. Por isso é co- mum nos referirmos à “Escola Francesa de Sociologia” (“Esco- la” entendida como corrente de pensamento) também para designar o também o pensamento antropológico francês. Há uma vantagem aqui para o estudante: muito do que for dito sobre Émile Durkheim, por exemplo, poderá aju- dá-lo na “outra” matéria que aparece em muitos currículos (a Sociologia). As matérias e os professores poderão ser diferen- tes, mas Durkheim era um só, assim como suas idéias sobre a sociedade. Como um dos fundadores da Sociologia, um dos grandes desafios de Durkheim foi o de convencer os cientistas de seu tempo de que a sociedade era algo com características próprias (isto é, propriamente “sociais”) e que por isso ela não poderia ser estudada pela Biologia ou pela Psicologia. Vamos entender um pouco mais. A Biologia baseia suas explicações a partir da genéti- ca, dos processos bioquímicos, dos reflexos nervosos e de ou- tras características que dizem respeito à dimensão orgânica da vida. As abelhas podem nos dar um exemplo: uma abe- lha, ao nascer, passa a fazer parte da “sociedade” das abe- lhas. Ela construirá colméias, produzirá mel, carregará o pó- len de uma flor para outra. Entretanto, ela fará isso sem preci- sar que ninguém a ensine, uma vez que esses “saberes de abelha” já estão inscritos em suas informações genéticas. Com os homens e mulheres a coisa é diferente, já vimos isso ao discutir o “determinismo biológico”: a língua que falamos, os trabalhos que desempenhamos, as normas e valores que regem nossas vidas, tudo isso nos é ensinado, seja pelos familiares, pelos amigos, por colegas de trabalho, pela escola, etc. Isso significa que nosso comportamento não é herdado geneticamente – embora herdemos traços físicos de nossos ancestrais. Nossos comportamentos vêm, portanto, da sociedade na qual somos criados. Chamamos isso de “pro- cesso de socialização”, que acontece de diferentes formas de- pendendo do tipo de sociedade. A educação escolar é uma Rafael José dos Santos 44 das formas de “socialização” em nosso meio. Os meios de comunicação também exercem um papel fundamental nos pro- cessos de socialização da atualidade. Voltemos a Durkheim. Ele estava convencido que a sociedade não poderia ser explicada pela Biologia. O que dizer, então, da Psicologia? Em princípio, tratava-se de uma ciência que focalizava o indivíduo e sua subjetividade. A sen- sação que temos é que tudo o que fazemos, sentimos, gosta- mos ou escolhemos vem de nosso interior, isto é, são coisas “subjetivas”. Existe algo mais pessoal, por exemplo, do que uma opinião? Entretanto, verificando com atenção, veremos que muitas das coisas que consideramos pessoais, subjetivas ou individuais, são compartilhadas com outras pessoas: senti- mentos, gostos, escolhas e opiniões. Na sociedade contempo- rânea esta constatação é, inclusive, uma das premissas para a existência da Comunicação de Massa, caso contrário os meios teriam que fazer uma mensagem para cada indivíduo, um jornal para cada um, um comercial para cada consumidor. Se as opiniões fossem puro produto da subjetividade e da indivi- dualidade não seria possível fazer pesquisas de opinião, agru- pando os resultados em grupos de porcentagens: teríamos tantas opiniões quantas fossem as pessoas entrevistadas. O que os exemplos acima nos demonstram é que em cada indivíduo existe um pouco (ou, quem sabe, muito) da sociedade. Desde que nascemos, enquanto crescemos e no decorrer de nossa vida adulta o processo de socialização vai fazendo com que a sociedade seja “interiorizada” em nós: gostos, escolhas estéticas, modos de pensar, acreditar, sentir. Logo, a sociedade não pode ser explicada a partir da forma- ção psíquica de cada indivíduo. Nem a Biologia, nem a Psicologia: a sociedade cons- tituía, para Durkheim, o que chamamos de uma realidade “sui generis” (do Latim, segundo o bom e velho dicionário do mestre Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, algo “que não apresenta analogia com nenhuma outra pessoa ou coisa”). Ou seja: a sociedade era uma realidade única, que não per- Antropologia para quem não vai ser antropólogo 45 tencia nem ao domínio da natureza – a ser estudada pela Biologia – nem à esfera da subjetividade individual – campo da Psicologia. Pensando assim, Durkheim estabeleceu a base para uma ciência da sociedade: a Sociologia, mas abriu também uma nova perspectiva para a Antropologia. Lembre-se que para esta ciência as explicações biológicas não servem para a compreensão das culturas. Um dado importante: se nos Esta- dos Unidos a Antropologia, pela influência de Boas, seria cha- mada de “Cultural”, na França ela ganharia o adjetivo “Soci- al”, justamente devido ao enfoque dado por Durkheim. Vamos acompanhar o pensamento do autor através de suas próprias palavras. Embora o trecho seja um pouco longo e a linguagem um tanto complexa (é um texto do século XIX!), creio que vale a pena “ouvir” um pouco o pró- prio autor: (...) Cada indivíduo bebe, dorme, come, raciocina, e a sociedade tem todo o interesse em que essas funções se exerçam regularmente. Assim, se estes fatos fossem sociais, a sociologia não teria um objeto que lhe fosse próprio e o seu domínio confundir-se-ia com os da biologia e da psico- logia. Mas, na realidade, há em todas as sociedades um grupo determinado de fenômenos que se distinguem por características distintas dos estudados pelas outras ciênci- as da natureza. Quando desempenho a minha obrigação de irmão, esposo ou cidadão, quando satisfaço os compromissos que contraí, cumpro deveres que estãodefinidos, para além de mim e dos meus atos, no direito e no costume. Mesmo quan- do eles estão de acordo com os meus próprios sentimentos e lhes sinto interiormente a realidade, esta não deixa de ser objetiva [isto é, não “subjetiva”, observação minha], pois não foram estabelecidos por mim, mas sim recebidos através da educação. (...) os fiéis, quando nascem, encontram já feitas as crenças e práticas de sua vida religiosa: se elas existiam antes deles é porque existiam fora deles. O sistema de si- nais de que me sirvo para exprimir meu pensamento, o siste- ma monetário que emprego para pagar as dívidas, os instru- Rafael José dos Santos 46 mentos de crédito que utilizo nas minhas relações comerci- ais, as práticas seguidas na minha profissão, etc., etc. funci- onam independentemente do uso que deles faço. Tomando um após outro todos os membros de que a sociedade se compõe, pode repetir-se tudo o que foi dito, a propósito de cada um deles. Estamos pois em presença de modos de agir, de pensar e sentir que apresentam na notável proprie- dade de existir fora das consciências individuais (Durkheim, 1983, pp. 87-88 – grifos meus). Em primeiro lugar, as coisas da sociedade são vistas aqui como anteriores (“existiam antes”) e exteriores (“existiam fora”) em relação aos indivíduos. Chamamos essas característi- cas de “anterioridade” e “exterioridade”. Em segundo lugar, se essas coisas da sociedade caracterizam-se pela exterioridade e anterioridade, como elas manifestam-se no indivíduo? Através da “educação”. Não apenas a educação escolar (formal), mas também aquela exercida na família ou em outros grupos nos quais o indivíduo está inserido (educação informal). Em terceiro lugar, mas não menos importante, note que Durkheim não se refere apenas a “modos de agir”, mas também a maneiras “de pensar e de sentir”, o que significa que até aquilo que consideramos extremamente subjetivo é aprendi- do socialmente. A maneira de nos emocionarmos diante de uma cena de um filme, o modo de nos relacionarmos afetiva- mente com alguém (o amor, a paixão) ou de vivenciarmos de- terminadas crenças religiosas, tudo isso nós “aprendemos” de nossa sociedade. Isso nos leva a uma noção-chave da Sociolo- gia de Durkheim, o “Fato Social”, que ele definiu como: (...) maneiras de agir, pensar e sentir exteriores ao indivíduo, e dotadas de um poder coercitivo em virtude do qual se lhe impõem. Por conseguinte, não poderiam ser confundidos com fenômenos orgânicos, visto consistirem em representações e ações; nem com os fenômenos psí- quicos, por estes só existirem na consciência dos indivídu- os, e devido a ela. Constituem, pois, uma espécie nova de fatos, aos quais deve atribuir-se e reservar-se a qualificação de sociais (Durkheim, 1983, p. 88). Antropologia para quem não vai ser antropólogo 47 Esta definição contém algo importante: a idéia de “coercitividade”, isto é, a de que o fato social se impõe ao indivíduo. Esta imposição ocorre através da ameaça de “puni- ções” (“sanções”, nas palavras de Durkheim). Essas ameaças de punição podem ser expressas em leis, como nos códigos do Direito, ou, o que para nós é mais significativo, podem estar sutilmente presentes nos padrões sociais e culturais. Ima- ginemos um aluno que resolve vir à aula usando uma roupa do início do século XX: terno (significa paletó, colete e calça), gravata, suspensórios, cartola, etc. Não está escrito em ne- nhum regulamento que ele não pode fazer isso, mas está “ins- crito” nas consciências individuais que ele está absolutamente fora dos padrões. O que acontecerá? Risos, por exemplo. Está aí uma forma social de constrangimento! Você deve estar se perguntando assim: se as “manei- ras de agir, pensar e sentir” são de origem social, como expli- car o fato de as pessoas não agirem todas da mesma forma, não pensarem do mesmo modo e não sentirem da mesma maneira? Durkheim também tentou dar conta desta questão. Vejamos o que ele disse: Mas, dir-se-á, um fenômeno não pode ser coletivo se não for comum a todos os membros da sociedade ou, pelo menos, à maior parte deles. Sem dúvida; mas ele é geral por ser coletivo (quer dizer, mais ou menos obrigatório), e nunca coletivo por ser geral. (...) está em cada parte por- que está no todo, não está no todo por estar nas partes (Durkheim, 1983, pp. 90-91). Grifo meu. Vamos tentar entender isso através de um exemplo: o fato de a calça jeans ser um item da moda, que por sua vez é um fato social – exterior e anterior ao indivíduo – não significa que todos os indivíduos vão usar jeans. Mas também não significa que usar jeans seja uma escolha puramente individu- al e subjetiva: ela baseia-se, às vezes de modo não conscien- te, no fato social do jeans ser um item da moda. Você pode agora estender esse raciocínio para todas as outras “opções” que nos aparecem como sendo puramente individuais: opini- Rafael José dos Santos 48 ões políticas, crenças religiosas, gostos musicais, etc. Nos dias de hoje as idéias de Durkheim parecem fáceis de serem enten- didas (embora muitos possam discordar delas), entretanto, imagine como ficaram as cabeças dos biólogos e psicólogos europeus do final do século XIX! Do ponto de vista da Antropologia, uma das grandes contribuições de Durkheim foi demonstrar que as idéias que temos a respeito das coisas, isto é, as representações que fazemos da natureza e da cultura, são de origem coletiva, ou seja, são sociais. Por exemplo: quando tomamos conhecimen- to que determinada sociedade indígena associa a constelação do Cruzeiro do Sul a um determinado clã, isto é, a um conjun- to de linhagens familiares, podemos pensar que se trata ape- nas da imaginação e da criatividade dos membros daquela sociedade. Entretanto, é bem mais que isso: os membros des- se grupo estariam classificando o céu de acordo com as sub- divisões de sua sociedade, ou como disse o próprio Durkheim, escrevendo em 1903 junto com Marcel Mauss, o traço carac- terístico dessas classificações “é que as idéias são aí organiza- das segundo um modelo fornecido pela sociedade” (Durkheim e Mauss, 1981, p. 399). A partir de Durkheim, na França, desenvolve-se um tipo de pensamento antropológico – e também sociológico – muito voltado para o estudo das “representações coletivas”: magia, religião, sistemas de classificação da natureza, mitos, enfim, uma série de temas que estamos acostumados a pen- sar como fenômenos que dependem simplesmente da cabeça de cada um. O que “anda pelas cabeças”, aquilo que ho- mens e mulheres pensam, imaginam, representam, deixou de ser domínio único da psicologia para transformar-se em obje- to de estudos que pudessem dizer algo a respeito da socieda- de na qual se vive. Mas se Émile Durkheim contribuiu de modo decisivo para as ciências sociais, foi seu sobrinho e colaborador Mar- cel Mauss (1872-1950) que deu tonalidades antropológicas para a Escola Francesa. Embora Mauss nunca tenha desenvol- Antropologia para quem não vai ser antropólogo 49 vido um trabalho de campo, ele “ocupa na França um lugar bastante comparado ao de Boas nos Estados Unidos” (La- plantine, 1994, p. 92). É bom frisar que, mesmo não coletan- do dados em campo, Mauss não tirava coelhos da cartola, nem se fundamentava, como os antropólogos do século XIX, em relatos imprecisos de missionários e viajantes. Uma de suas obras mais importantes, o Ensaio sobre a Dádiva, lança- va mão da História, da Economia e de etnografias realizadas por outros pesquisadores, entre os quais ninguém menos que Malinowski. Entre outras razões para o status que Marcel Mauss assumiu na Antropologia francesa devemos mencionar a idéia de “Fato Social Total”, uma espécie de aperfeiçoamento da noção criada por Durkheim. Vamos lançar mão de um exem- plo dos dias de hoje. Vem chegando o Natal, você tem uma amiga muito querida e certamente irá presenteá-la. Vai às compras, escolhe algo legal na expectativa de que ela goste. No momento escolhido, quem sabe na hora da ceia, você dá a ela o presente e ela lhe retribui com aquele CD que você queria tanto. Será que