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ANÁLISE CRÍTICA DO PROJETO DE LEI 591/2020, QUE TRATA DA PRIVATIZAÇÃO DOS CORREIOS.
De autoria do Poder Executivo, o Projeto de Lei 591/2020 tem o escopo de alterar o marco regulatório, a organização e a manutenção do Sistema Nacional de Serviços Postais, autorizando que os serviços postais possam ser explorados pela iniciativa privada, inclusive os prestados hoje em regime de monopólio pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, sendo esta atualmente empresa estatal totalmente pública.
 Dessa maneira, aumentar a qualidade dos serviços postais, garantir a prestação do serviço universal, ampliar investimentos privados no setor e facultar a desestatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos são os principais resultados esperados pelo Governo Federal através de tal proposição, uma vez, segundo a equipe econômica do Governo, ao justificar o projeto, “os esforços empreendidos não têm sido suficientes para que a empresa se atualize na velocidade requerida”[footnoteRef:1]. Na mesma linha, o parecer da Comissão Especial[footnoteRef:2] que deu prosseguimento ao projeto em forma de substitutivo, sustentou que se teme que os altos gastos necessários para se atualizar com as constantes inovações com o intuito de manter a empresa competitiva, poderia ocasionar em um risco as contas públicas, já que existe o risco de a empresa ficar dependente do Tesouro Nacional, corroborando com a linha de pensamento proposta pela atual gestão do Governo Federal, que tenta ampliar a participação do setor privado no fornecimento dos serviços públicos. [1: Projeto de Lei Nº 591, de 24 de fevereiro de 2021, disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1972837&filename=PL+591/2021] [2: Parecer de Plenário pela Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei Nº 591, de 2021, disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2051161] 
Neste diapasão, Projeto de Lei 591/2020, na fase em que se encontra, em linhas gerais, propõe-se a criar um sistema em que todos os serviços prestados pelos Correios possam ser explorados pela iniciativa privada, sob a ótica da concorrência entre as empresas, o que se daria através de uma fase de transição em que a Empresa Brasileira de Correios de Telégrafos (ECT) passaria a se denominar de Correios do Brasil, enquanto o monopólio do serviço de correspondências ainda seria garantido por um período entre três e cinco anos. 
Seguindo a atual redação do projeto, o serviço postal seria completamente privado, situação esta que ataca diretamente as disposições constitucionais, eivando a proposição sob análise de vício formal e material, de sorte que o projeto – tanto em sua atual redação quanto na proposta original – é considerado como incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, que se funda pelos mandamentos constitucionais. 
Com isso, em que pese os argumentos técnicos e econômicos sustentados pelo Governo Federal, o Projeto de Lei resvala em flagrante inconstitucionalidade material, uma vez que o artigo 21, inciso X, da Constituição Federal assegura que compete à União manter o serviço postal e o correio aéreo nacional, matéria essa que já foi, inclusive, discutida no Supremo Tribunal Federal, através da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) Nº 46, que firmou entendimento no sentido de que o serviço postal é serviço público e deve ser prestado em regime exclusivo da União[footnoteRef:3]. [3: RIVAS; CASTRO, 2021.] 
Isto se dá em razão da própria natureza do serviço público, uma vez que os serviços postais não se caracterizam como atividade econômica stricto sensu, regida pelos parâmetros da ordem econômica[footnoteRef:4], de forma que o Estado pode explorá-lo sem que incida o artigo 173 da Constituição Federal, que assevera que “a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”, isto é, além da impossibilidade da exploração privada dos serviços postais em detrimento da desestatização dos Correios, a União não só deve prestar tal serviço, como pode explorá-la livremente sem que viole o dispositivo mencionado. [4: Id. Ibid. ] 
Não obstante, ainda que não houvesse o impedimento material, há um flagrante vício inconstitucional na proposição, uma vez que por se tratar de matéria regulamentada pela Constituição Federal, quaisquer alterações somente poderiam ser realizadas mediante Proposta de Emenda à Constituição, que, como se sabe, carece de um processo legislativo muito mais complexo para que seja aprovada e, consequentemente, promulgada. Sendo assim, o projeto de lei ordinária apresentado aparenta mais como uma tentativa pífia do Governo Federal em implementar sua política de privatização e inflamar os ânimos da sua base eleitoral do que como uma proposta técnica de política econômica.
Nesse sentido, o projeto de lei sob análise é inconstitucional por vício de natureza formal, uma vez que lei ordinária não poderia veicular matéria reservada à Proposta de Emenda à Constituição, sendo considerada como error in procedendo, uma vez que a forma adotada pelo PL 591/2021 não é compatível com as determinações das regras que regulamentam o processo constitucional, estando, a proposição mencionada, fora da esfera de competência para regular tal matéria e, consequentemente, violando o procedimento estabelecido pela Constituição Federal.[footnoteRef:5] [5: SILVA, 2017, p. 354;] 
Todavia, é preciso salientar que o projeto de lei em questão se respalda em dois dispositivos normativos que ainda vigoram no país, quais sejam o inciso I do art. 2º da Lei 9.491/1997, que estabelece que “poderão ser objeto de desestatização de empresas, inclusive instituições financeiras, controladas direta ou indiretamente pela União, instituídas por lei ou ato do Poder Executivo”, e o Decreto 10.674, de 13 de abril de 2021, que determina, ipsi litteris: 
Art. 1º Fica incluída no Programa Nacional de Desestatização – PND, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT. 
§ 1º A desestatização de que trata o caput observará as seguintes diretrizes: 
I – alienação de controle societário em conjunto com a concessão dos serviços postais universais de que trata o inciso IV; 
II – prestação concomitante dos serviços de correspondências e objetos postais e prestação integrada dos serviços de atendimento, tratamento, transportes e distribuição; 
III – prestação dos serviços com abrangência nacional; e 
IV – celebração de contrato de concessão, de modo contínuo e com modicidade de preços, dos seguintes serviços postais universais: 
a) carta, simples ou registrada; 
b) impresso, simples ou registrado; 
c) objeto postal sujeito à universalização, com dimensões e peso definidos pelo órgão regulador; e 
d) serviço de telegrama, onde houver a infraestrutura de telecomunicações necessária para a sua execução.
(g.n)
Ocorre, todavia, que o próprio Procurador Geral da República, Augusto Aras, já emitiu parecer no sentido da impossibilidade da desestatização dos Correios com base nestes dispositivos, justamente por impedimento inconstitucional, como mencionado anteriormente. Dessa forma, na ADI 6.635/DF, proposta pela Associação dos Profissionais dos Correios para declarar como inconstitucionais os dispositivos citados, os quais deram base ao surgimento do PL 591/2020, Aras se manifestou no sentido de que “o inciso X do art. 21 da Constituição Federal não possibilita a prestação indireta dos serviços postais e do correio aéreo nacional”[footnoteRef:6], pugnando, consequentemente, pela inconstitucionalidade do inciso I do art. 2º da Lei 9.491/1997 e do Decreto 10.674/2021. [6: ADI 6.635/DF.] 
Em razão de tudo que fora exposto, conclui-se que o Projeto de Lei 591/2021, viola diretamente as disposições da Constituição Federal de 1988, uma vez que os serviços postais realizados pelos Correios são executados em regime de privilégio exclusivo da União, como fora demonstrado, de sorteque não se poderia sequer a iniciativa privada explorá-lo através dos regimes previstos em lei, como é o caso da concessão, autorização e permissão. Por outro ângulo, é nitidamente incompatível a regulamentação de tal matéria via projeto de lei ordinária, uma vez que tal espécie normativa possui caráter residual, sendo utilizada somente para os casos em que não há reserva de matéria para outras espécies normativas, uma vez que, como dito, a matéria em questão deveria ser veiculada através de Proposta de Emenda à Constituição. 
Portanto, alinhando-se ao posicionamento exposto, assim como com o entendimento do atual Procurador Geral da República, afirma-se que o referido projeto de lei é flagrantemente inconstitucional por vício material e formal, sendo incompatível com a ordem constitucional vigente, de sorte que – já que fora aprovado na Câmara dos Deputados – agora caberá ao Senado Federal a apreciação da matéria, razão pela qual se espera a sua rejeição com o consequente encerramento do processo legislativo. 
REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS
BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer de Plenário pela Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei Nº 591, de 2021. Brasília: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2051161. Acesso em: 29 ago. 2021.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Nº 591, de 24 de fevereiro de 2021. Dispõe sobre a organização e a manutenção do Sistema Nacional de Serviços Postais. Brasília: Câmara dos Deputados, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1972837&filename=PL+591/2021. Acesso em: 29 ago. 2021.
BRASIL. Decreto Nº 10.674, de 13 de abril de 2021. Dispõe sobre a inclusão da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos no Programa Nacional de Desestatização. Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.674-de-13-de-abril-de-2021-314022900. Acesso em: 29 ago. 2021.
BRASIL. Lei Nº 9.491, de 9 de setembro de 1997. Altera procedimentos relativos ao Programa Nacional de Desestatização, revoga a Lei n° 8.031, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9491.htm. Acesso em: 29 ago. 2021.
BRASIL. Ministério Público Federal. Parecer AJCONST/PGR Nº 237187/2021. Desestatização de Serviços Postais. Requerente: Associação dos Profissionais dos Correios – ADCAP. Interessados: Congresso Nacional e Presidente Da República. Procurador Geral da República: Augusto Aras, 30 de junho de 2021. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/ADI006635privatizaodosCorreiosaditamentoinicialCD.pdf. Acesso em: 29 ago. 2021.
RIVAS, Lucas de Castro. CASTRO, Roberval Borges. Correios: privatização, informação e inconstitucionalidade do PL 591/20. Acesso em: 31 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/345580/pl-591-20
SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. São Paulo: Malheiros, 2017. 3ª ed.

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